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Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde

Assistance to the drug user in the primary health caren

Asistencia al usuario de drogas en la atención primaria a la salud

Resumos

Na atualidade é de suma relevância discutir a assistência ao usuário de drogas na Atenção Primária à Saúde, uma vez que o uso de substâncias psicoativas causa aos usuários graves agravos biopsicossociais. Nesse contexto, objetivou-se analisar a assistência a usuários de drogas na Atenção Primária à Saúde a partir dos discursos de profissionais da ESF. Para tanto, optou-se por um estudo com abordagem qualitativa, com a utilização da hermenêutica para análise das informações coletadas a partir de entrevistas em profundidade. A pesquisa foi realizada em unidades de Saúde da Família localizadas no município de Fortaleza, Ceará. Observa-se que a Atenção Primária à Saúde enfrenta grandes desafios que fragilizam o cuidado, entre os quais se destacam a dificuldade de estabelecimento de vínculo e o preconceito contra o usuário de drogas, violando o direito de acesso ao cuidado de qualidade e integralidade preconizado pelo SUS. As principais ações estão voltadas à escuta, ao acolhimento das demandas e ao aconselhamento às famílias. Diante desse cenário, reafirma-se que a assistência é centrada em serviços especializados, fazendo-se necessário fortalecer a rede para um efetivo cuidado ao usuário de drogas.

Programa de Saúde da Família; crack; família


The assistance to the drug user in the primary healthcare attention is a relevant discussion nowadays, once it involves bio-psychosocial grievances caused by psychoactive substances. Thus, this study aimed to analyze the assistance targeted to drug users in the Primary care Attention from the arguments of the FHS professionals. For some, this article chose a study with qualitative approach, using hermeneutics to analyze information collected from in-depth interviews. The research was conducted in Family health units, located in the city of Fortaleza, Ceará. It is noted that the primary healthcare attention faces great challenges that weaken the care. Among them, the difficulty of establishing ties and the prejudice against drug users can be highlighted, which violates the right of use of the healthcare with quality and integrality, recommended by SUS. The main actions are directed to the listening, as well as the reception of demands and family counseling. In this scenario, it is reiterated that assistance is focused on specialized services, becoming necessary the fortification of the web for an effective healthcare toward the drug user.

Family Health Program; crack; family


La asistencia al usuario de drogas, en la Atención Primaria, es una discusión relevante en la actualidad, una vez que abarca agravios biopsicosociales decurrentes del uso de sustancias psicoactivas. En este contexto, el objetivo fue analizar la asistencia dirigida a usuarios de drogas, en la Atención Primaria a la Salud, a partir de los discursos de los profesionales de la Estrategia Salud de la Familia (ESF). Para ello, se optó por un estudio con enfoque cualitativo, utilizando la hermenéutica para el análisis de las informaciones recogidas a partir de entrevistas en profundidad. La investigación fue realizada en Unidades de Salud de la Familia, ubicadas en la ciudad de Fortaleza-Ceará. Fue observado que la Atención Primaria a la salud enfrenta grandes retos que fragilizan el cuidado. Entre éstos, se destacan la dificultad de establecer vínculo y el prejuicio con el usuario de drogas, violando el derecho de acceso de calidad y al cuidado integral, recomendado por el Sistema Único de Salud (SUS). Las principales acciones están dirigidas para la escucha, acogida de las demandas y el consejo a las familias. Con esto, se refuerza que la asistencia es centrada en servicios especializados, por lo que es necesario el fortalecimiento de la red para un efectivo cuidado al usuario de drogas.

Programa de Salud de la Familia; crack; familia


ARTIGOS

Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde1 Endereço para correspondência: Milena Lima de Paula Av. da Abolição, 3303, ap. 902, Meireles Fortaleza-CE, Brasil CEP 60.165-081 E-mail: psicoim@hotmail.com

Assistance to the drug user in the primary health caren

Asistencia al usuario de drogas en la atención primaria a la salud

Milena Lima de PaulaI; Maria Salete BessaJorgeII; Mardênia Gomes Ferreira VasconcelosII; Renata Alves AlbuquerqueIII

IPsicóloga, mestre em Saúde Pública pelo Departamento de Saúde Pública da Universidade Estadual do Ceará, Brasil

IIEnfermeira, doutora em Saúde Coletiva pelo Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará, Brasil

IIIPsicóloga, doutora em Saúde Coletiva pelo Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Milena Lima de Paula Av. da Abolição, 3303, ap. 902, Meireles Fortaleza-CE, Brasil CEP 60.165-081 E-mail: psicoim@hotmail.com

RESUMO

Na atualidade é de suma relevância discutir a assistência ao usuário de drogas na Atenção Primária à Saúde, uma vez que o uso de substâncias psicoativas causa aos usuários graves agravos biopsicossociais. Nesse contexto, objetivou-se analisar a assistência a usuários de drogas na Atenção Primária à Saúde a partir dos discursos de profissionais da ESF. Para tanto, optou-se por um estudo com abordagem qualitativa, com a utilização da hermenêutica para análise das informações coletadas a partir de entrevistas em profundidade. A pesquisa foi realizada em unidades de Saúde da Família localizadas no município de Fortaleza, Ceará. Observa-se que a Atenção Primária à Saúde enfrenta grandes desafios que fragilizam o cuidado, entre os quais se destacam a dificuldade de estabelecimento de vínculo e o preconceito contra o usuário de drogas, violando o direito de acesso ao cuidado de qualidade e integralidade preconizado pelo SUS. As principais ações estão voltadas à escuta, ao acolhimento das demandas e ao aconselhamento às famílias. Diante desse cenário, reafirma-se que a assistência é centrada em serviços especializados, fazendo-se necessário fortalecer a rede para um efetivo cuidado ao usuário de drogas.

Palavras-chave: Programa de Saúde da Família; crack; família.

ABSTRACT

The assistance to the drug user in the primary healthcare attention is a relevant discussion nowadays, once it involves bio-psychosocial grievances caused by psychoactive substances. Thus, this study aimed to analyze the assistance targeted to drug users in the Primary care Attention from the arguments of the FHS professionals. For some, this article chose a study with qualitative approach, using hermeneutics to analyze information collected from in-depth interviews. The research was conducted in Family health units, located in the city of Fortaleza, Ceará. It is noted that the primary healthcare attention faces great challenges that weaken the care. Among them, the difficulty of establishing ties and the prejudice against drug users can be highlighted, which violates the right of use of the healthcare with quality and integrality, recommended by SUS. The main actions are directed to the listening, as well as the reception of demands and family counseling. In this scenario, it is reiterated that assistance is focused on specialized services, becoming necessary the fortification of the web for an effective healthcare toward the drug user.

Keywords: Family Health Program; crack; family.

RESUMEN

La asistencia al usuario de drogas, en la Atención Primaria, es una discusión relevante en la actualidad, una vez que abarca agravios biopsicosociales decurrentes del uso de sustancias psicoactivas. En este contexto, el objetivo fue analizar la asistencia dirigida a usuarios de drogas, en la Atención Primaria a la Salud, a partir de los discursos de los profesionales de la Estrategia Salud de la Familia (ESF). Para ello, se optó por un estudio con enfoque cualitativo, utilizando la hermenéutica para el análisis de las informaciones recogidas a partir de entrevistas en profundidad. La investigación fue realizada en Unidades de Salud de la Familia, ubicadas en la ciudad de Fortaleza-Ceará. Fue observado que la Atención Primaria a la salud enfrenta grandes retos que fragilizan el cuidado. Entre éstos, se destacan la dificultad de establecer vínculo y el prejuicio con el usuario de drogas, violando el derecho de acceso de calidad y al cuidado integral, recomendado por el Sistema Único de Salud (SUS). Las principales acciones están dirigidas para la escucha, acogida de las demandas y el consejo a las familias. Con esto, se refuerza que la asistencia es centrada en servicios especializados, por lo que es necesario el fortalecimiento de la red para un efectivo cuidado al usuario de drogas.

Palabras-clave: Programa de Salud de la Familia; crack; familia.

Na atualidade é de suma relevância discutir a assistência ao usuário de drogas na Atenção Primária à Saúde, uma vez que se observa a emergência dos agravos biopsicossociais decorrentes do uso de substâncias psicoativas. Numa análise das políticas de saúde no Brasil, de acordo com o princípio da universalidade proposto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os usuários de drogas, assim como suas famílias, possuem direitos de acesso aos serviços de saúde, direito que deve ser garantido em todos os níveis de atenção, e não apenas nos serviços especializados.

A Política de Atenção Integral ao Usuário de Drogas, publicada pelo Ministério da Saúde em 2004, destaca a necessidade de uma atenção ao usuário centrada na comunidade e associada à rede de saúde e social. A referida política tem enfoque na reabilitação e reinserção social dos usuários, assim o cuidado deve ser prestado, preferencialmente, em serviços extra-hospitalares de atenção psicossocial (Brasil, 2003).

Essa política corrobora os princípios da Reforma Psiquiátrica, os quais propõem o fortalecimento das bases territoriais do cuidado em saúde mental. Neste sentido, os tratamentos relacionados à saúde mental passaram a ser atribuídos a uma rede de cuidados em saúde, a qual deve incluir a Atenção Primária em Saúde (APS) (Nunes, Juca e Valentim, 2007).

Neste sentido, a Atenção Primária deve desempenhar o importante papel de porta de entrada do usuário de crack no SUS, realizando o acolhimento dessa demanda. Esse nível de assistência conta com o trabalho de equipes multiprofissionais que, por sua vez, têm condições de realizar o reconhecimento dos usuários de drogas e de acompanhar as demandas relacionadas às suas necessidades e às de seus familiares. Reafirma-se, assim, a capacidade para abranger um grande número de usuários em suas ações, realizar um cuidado longitudinal e inserir a família, a rede social de apoio e a comunidade no cuidado (Ramalho, 2011).

Entre as ofertas de cuidado ao usuário que devem ser propostas pela equipe da atenção primária destacam-se: a identificação de usuários com necessidades relacionadas à ruptura dos laços sociais; a articulação com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do município, para o desenvolvimento de projetos terapêuticos ampliados; a realização do mapeamento de usuários disfuncionais; e, com suporte da rede de serviços do sistema de saúde, a proposta de abordagens, para os usuários, de ações de redução de danos ou ofertas de tratamento (Brasil, 2010).

A abordagem do problema do abuso de drogas na APS é fundamental para o sucesso de intervenções voltadas a essa problemática, pois as ações nessa área abrangem a prevenção, o diagnóstico precoce, o cuidado aos agravos e encaminhamentos para outros serviços (Ramalho, 2011).

Problemas decorrentes do abuso de drogas têm sido demandas frequentes na Atenção Primária à Saúde, como mostra o estudo de Barros e Pillon (2007), o qual buscou investigar os problemas com drogas em um PSF de Araçatuba - SP. Os dados revelam que 61% dos entrevistados perceberam que os problemas relacionados ao uso de drogas estão presentes entre os agravos frequentes no PSF e que 89 % consideraram muito importante assistir esses pacientes; por outro lado, 69,2% perceberam dificuldades consideráveis, enquanto 64% consideraram que o PSF tem ajudado pouco esses pacientes e, na opinião de 69% dos entrevistados, os usuários pouco se beneficiam da assistência oferecida no programa.

Um dos problemas relacionados ao usuário de crack na APS é o fato de que os atendimentos a esse público referem-se ao tratamento dos sintomas por meio de atendimentos rápidos, que visam apenas à estabilização do paciente, em vez de atenderem também à identificação dos usuários e à prevenção ao uso dessa substância. A identificação e prevenção poderiam impedir que os usuários que ainda não tenham grandes problemas com o abuso de drogas evoluam para uma situação mais crítica (Vargas, Oliveira, & Luiz, 2010).

Disso se conclui que essas ações devem ir muito além do tratamento de sintomas, e, uma vez que são amparadas pelas diretrizes da política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas, devem propiciar o acesso aos serviços da Atenção Primária. Salienta-se que este acesso deve estender-se à comunidade, com práticas de educação em saúde para a população, envolvimento com a comunidade/família/usuários, formação de recursos humanos e criação de vínculos com outros setores, com vista a promover a saúde mental na comunidade.

Outro problema identificado na Atenção Primária é a dificuldade de os profissionais estarem preparados, com suas habilidades teórico-práticas, para lidar com a questão do álcool e das drogas (Barros & Pillon, 2006). Para isto devem ser realizados treinamentos, capacitações e formação permanente nos serviços. Então estas iniciativas não devem ser apenas teóricas, mas também práticas, provocando mudança de crenças e atitudes dos profissionais em relação aos usuários que frequentam o serviço (Ronzani, Castro, & Souza-Formigoni, 2008).

A partir daí, os profissionais da equipe multiprofissional, incluindo os agentes comunitários de Saúde (ACSs), poderiam realizar ações voltadas ao usuário de crack e sua família, pois estes profissionais estão em constante contato com a comunidade e assim poderiam atuar como sistematizadores e organizadores do trabalho de prevenção ao uso abusivo de drogas (Ronzani et al., 2008).

Quanto ao aspecto da formação permanente dos profissionais da APS, é importante definir uma política de formação e desenvolvimento em saúde que considere o conceito de educação permanente, que se conceitua como a aprendizagem obtida a partir do trabalho desenvolvido no cotidiano dos serviços e com base em experiências significativas e na possibilidade de transformar as práticas. Ela se dá a partir dos problemas comuns no serviço e leva em conta o conhecimento e as experiências que os profissionais já possuem, diferenciando-se, assim, de uma capacitação pontual (Brasil, 2009).

Além da formação adequada dos profissionais para um atendimento integral a usuários de drogas na APS, é indiscutível a necessidade de encaminhamentos de alguns usuários a serviços especializados. Por outro lado, o diálogo entre os serviços especializados em álcool e outras drogas e toda a rede SUS torna-se um indicador de qualidade para assistência, pois tal articulação contribuiria para a incorporação de práticas de cuidado resolutivas nos serviços, assegurando uma abordagem contínua e integral, construída cotidianamente e não apenas como intervenções realizadas temporariamente (Barros & Pillon, 2007).

Pelo exposto se infere que o abuso de drogas é um problema de saúde pública e também uma demanda da APS; no entanto são muitas as dificuldades para a efetivação do cuidado ao usuário de drogas nesse nível de atenção, apesar de a Estratégia Saúde da Família (ESF) ser um serviço de proximidade territorial que possibilita uma relação mais próxima e afetiva com os usuários de drogas e seus familiares.

Diante deste contexto, objetivou-se, neste estudo, analisar a assistência a usuários de drogas na Atenção Básica à Saúde com destaque para o crack e com base nos discursos de profissionais da ESF.

MÉTODO

O estudo é de natureza qualitativa, no sentido de buscar significados, opiniões e sentimentos como possibilidade de entender (analisar) o fenômeno social e suas relações no campo da saúde mental coletiva, tendo como finalidade a compreensão do conhecimento (Minayo, 2010, p 57). Faz parte de uma pesquisa mais ampla, denominada "A atenção clínica na produção do cuidado aos usuários de crack - assistência à saúde e redes sociais de apoio", financiada pelo CNPq/MS.

Neste sentido, a pesquisa qualitativa reconhece a existência de uma relação entre o pesquisador e o objeto de estudo, ou seja, uma interdependência entre o sujeito e o objeto, estabelecida de maneira interpretativa e sem neutralidade. O sujeito é parte do processo, um sujeito-observador que atribui significado aos fenômenos que interpreta. O objeto é construído e, assim, é significado na relação direta entre ele e o sujeito a partir de uma problematização (Demo, 1989).

A pesquisa foi realizada em duas unidades básicas de Saúde da Família, localizadas na Secretaria Executiva Regional (SER) IV e V, no município de Fortaleza, Ceará. A cidade encontra-se dividida administrativamente em seis Regionais, as quais funcionam como instâncias executoras das políticas públicas municipais. A escolha do território político-administrativo da SER IV e da SER V deve-se ao fato de estas estarem pactuadas com o Sistema Municipal Saúde Escola, no qual a Universidade Estadual do Ceará (UECE) e a Prefeitura de Fortaleza desenvolvem parcerias no âmbito da formação e da promoção de atividades sociocomunitárias voltadas ao desenvolvimento da corresponsabilidade sanitária.

Inicialmente estabeleceu-se como critério para participação no estudo o participante ser trabalhador da equipe multiprofissional, atuante em unidades de Saúde da Família nas referidas regionais, ou ser usuário de crack que recebe atendimento na Unidade, seja pelo abuso da substância psicoativa seja por demandas clínicas gerais, ou ser um familiar desse indivíduo. O problema ocorrido é que não foi possível entrevistas os usuários e seus familiares, em virtude da dificuldade de encontrar essa população na Unidade de Saúde da Família. Além disso, os profissionais da equipe temiam identificar esses usuários e suas famílias, pois, ao indicarem algum usuário de crack ou algum familiar para a entrevista, acreditavam que podiam sofrer represálias por parte de traficantes residentes na área de abrangência do serviço.

Diante de tais circunstâncias, participaram do estudo dez profissionais da equipe da ESF, utilizando-se como critério de inclusão ser membro da equipe de Saúde da Família com no mínimo seis meses de atividade e atender à demanda de usuários de drogas no cotidiano dos serviços. Esse quantitativo se deu à medida que se coletavam os dados e se analisava o fenômeno, pois as entrevistas se encerravam quando, aprofundadas as questões levantadas, chegava-se à saturação teórica.

Antes da etapa de coleta de informações o projeto de pesquisa foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), do qual recebeu parecer favorável mediante o protocolo número 10724251-6. Em síntese, a coleta do material empírico respeitou os princípios éticos que norteiam o trabalho científico, guardando o anonimato e sigilo quanto à autoria das respostas dos participantes.

Para a coleta das informações foram realizadas entrevistas em profundidade que abordavam temas relacionados às práticas e intervenções dos profissionais da equipe de saúde com usuários de drogas e seus familiares na APS. As entrevistas aconteceram na própria unidade e foram registradas em gravadores digitais com a concordância prévia do entrevistado, que ficou manifesta após a leitura e compreensão do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A seguir, as entrevistas foram transcritas e submetidas às fases de análise de dados.

Para análise das informações realizaram-se leituras flutuantes e exaustivas do conteúdo das narrativas, e para conhecer o material de forma aprofundada, foram seguidos os passos de Minayo (1999) retraduzidos por Assis e Jorge (2010): ordenação, classificação e análise final dos dados, que inclui classificação das falas dos entrevistados, componentes das categorias empíricas, sínteses horizontal e vertical, e confronto entre as informações, agrupando as ideias convergentes, divergentes e complementares.

A seguir utilizou-se a hermenêutica, a qual possibilitou estabelecer convergências, divergências, complementaridades e confrontos referentes ao tema estudado. Para Gadamer (1999, citado por Minayo, 2010), a hermenêutica caracteriza-se como um movimento abrangente e universal do humano que se funda na compreensão. A hermenêutica tem sua origem no processo de intersubjetividade e de objetivação humana, e significa a capacidade do pesquisador de se colocar no lugar do outro; pode-se dizer, então, que tal compreensão contém a gênese da consciência histórica.

Assim, a hermenêutica é a arte de compreender textos que considera o presente como uma unidade temporal em que se marca o encontro entre o passado e o futuro. Essa compreensão é mediada pela linguagem, que pode ser transparente ou não transparente, e pode levar a um entendimento (que nunca é completo ou total) ou a um impasse na comunicação (Minayo, 2010).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Dificuldade e recursos utilizados para a assistência a usuários de drogas e sua família, no contexto da atenção primária à saúde.

Os profissionais relatam que existem muitos sujeitos envolvidos com drogas no território onde atuam, porém os usuários não costumam procurar a Unidade Básica de Saúde por problemas associados ao uso de substâncias psicoativas, e sim, por outros problemas de saúde. Tal situação dificulta a identificação dessa demanda e, consequentemente, o planejamento de ações direcionadas a usuários com problemas relacionados ao uso de drogas. Nesse contexto a família tem um papel importante, uma vez que, ao trazer a queixa destes usuários, ela contribui com a equipe no reconhecimento dos indivíduos que abusam dessas substâncias e necessitam de ajuda.

Os discursos dos familiares chegam até os profissionais da Atenção Primária, especificamente à equipe de Saúde da Família, como um pedido explícito de ajuda e apoio na condução da situação, conforme se pode perceber no discurso do Profissional 2 "... a gente observa que aquele paciente ou a mãe de um chega e diz: - olha meu filho está passando por isso" (Profissional da ESF, entrevista 2). Desse modo, a percepção dos profissionais é retratada pelo Profissional 8 da seguinte forma: "... a família também procura muito o serviço.... Quem procura mais é a família, o próprio usuário não."

Além de contribuir para a identificação dos usuários, os familiares funcionam como mediadores entre os sujeitos que abusam de drogas e a equipe de Saúde, pois muitas vezes os profissionais temem oferecer orientações aos próprios usuários, preferindo informar a família. Assim, a estratégia de aproximação da equipe de saúde consiste no contato entre o ACS e a família, uma vez que as informações disponibilizadas aos familiares serão transmitidas por estes aos seus parentes envolvidos com substâncias psicoativas. É o que se observa no discurso do Profissional 7: "Primeiramente o agente de saúde detecta o usuário, conversa com a família, para depois chegar a eles." Por sua vez, o Profissional 5 explica:

... pois os usuários acham assim que é uma invasão na privacidade dele, de querer saber onde é que ele estava, se está tudo bem com ele.... É uma preocupação da gente com o paciente, mas só que eles não veem dessa maneira que a gente está tendo essa preocupação com eles, eles já veem de uma maneira que a gente quer se meter na vida deles. Eu dou todas as informações possíveis, mas nunca diretamente ao usuário, porque eu corro risco.

Dessa forma, principalmente o ACS expressa medo ao abordar a problemática das drogas com os usuários, pois reside na mesma comunidade da sua clientela e por isso acredita que pode ser apontado como informante de acontecimentos à polícia ou aos traficantes. Tais achados convergem com os resultados da pesquisa de Kanno, Bellodi e Tess (2012), a qual buscou investigar as dificuldades de um membro da ESF e identificou que os profissionais receavam mencionar a problemática do uso de drogas por usuários porque temiam ser considerados suspeitos em casos de denúncias.

Em face desse problema, Sousa e Pinto (2012) destacam que é preciso que os profissionais deixem clara a sua função nos serviços de saúde, a qual em nada faz referência à ação de controle, repressão ou de agente da Justiça quanto essa população. O referido estudo objetivou identificar como os enfermeiros atuantes na ESF abordam a temática do álcool e outras drogas. Este evidenciou a dificuldade de vinculação entre a equipe de saúde e usuários, pois os últimos não se sentem à vontade para falar com profissionais que fazem parte da localidade e por isso não expõem seus problemas.

Essa dificuldade de estabelecer uma relação de confiança e vínculo também foi evidenciada nesta pesquisa. A abordagem do tema do uso de drogas é delicada e expressa fragilidades, pois caso a família ou o usuário não abordem o assunto, nenhuma atitude é tomada pela equipe. Esta problemática pode ser enfatizada quando os profissionais não trabalham diretamente no território e sequer percebem o uso de drogas, não reconhecendo a demanda, conforme o discurso do Profissional 4:

Quando você trata de saúde com eles, você é bem recebido. No momento em que você fala de droga em si, não necessariamente o crack, você não fica bem-visto, você já começa a ser alvo de uma não boa aceitação. Então, até hoje eu já passei por uma experiência que eu lhe falei que eu tive que sair da área ... se ele chegar também, se não vier encaminhado por outro profissional, que tenha passado ou pelo médico ou pela enfermeira, eu não vou saber, acho que dificilmente eu vou saber se ele é usuário ou não, só se alguém chegar e me disser e se a pessoa tiver interessada no tratamento.

O receio que os profissionais demonstram em relação aos usuários de drogas, principalmente de crack, pode estar relacionado ao fato de ser comum o envolvimento de usuários em situação de risco para usar a substância, como envolvimento em conflitos familiares, violência doméstica ou entre a vizinhança e amigos e roubos dentro de casa. Dessa forma, ocorre uma vinculação explícita entre o uso de substâncias psicoativas e grupos sociais vistos como perigosos e ameaçadores (Almeida & Fontes Junior, 2010).

Assim, essa associação comum entre o uso de crack e a delinquência contribui para preconceitos relacionados aos usuários de drogas, os quais muitas vezes são considerados indivíduos muito perigosos, embora não haja nenhum indício de que o crack cause violência, pois o comportamento agressivo está associado a múltiplos fatores e a um contexto de vulnerabilidades sociais (Minayo & Deslandes, 1998).

Percebe-se que o profissional da Atenção Primária também traz em suas abordagens preconceitos sobre os usuários de drogas, julgando-os quando estes procuram um serviço de saúde. É o que mostrou a pesquisa realizada por Spricigo e Alencastre (2004), a qual buscou investigar as concepções dos enfermeiros de uma unidade básica em Santa Catarina sobre os motivos pelos quais as pessoas usam drogas. Os resultados mostraram que os ensejos imaginados pelos profissionais vão desde o enquadramento do indivíduo como delinquente até como doente ou vítima das circunstâncias sociais, o que influencia também a conduta do profissional com o usuário do serviço.

De modo semelhante, na presente pesquisa a percepção dos profissionais esteve associada a estigmas e preconceitos em relação aos usuários de crack, pois se percebeu que estes acreditam que o uso da substância provoca comportamentos delinquentes e agressivos, como roubos, assaltos e homicídios, conforme se observa no discurso do Profissional 8:

Eles ficam muito agitados, saem pras ruas, praticam assaltos. Eles são muito nervosos, agridem a gente. Eu já fui assaltada várias vezes e eu vejo ali que eles estão dispostos a qualquer coisa, devido o consumo da droga; eles fazem qualquer coisa para comprar e alimentar o vício.

Dessa forma, a vinculação entre usuários de crack e a criminalidade contribui para que haja barreiras que impeçam que o usuário admita o seu uso e procure ajuda. Segundo Fontanella e Turato (2002), existem vários entraves que dificultam a chegada de um usuário de substâncias psicoativas a um tratamento. Estas estão relacionadas aos próprios usuários, que adiam a procura por acompanhamento ou não pensam na possibilidade de se tratar, e empecilhos externos ao indivíduo, que decorrem da precariedade do sistema de saúde ou das características dos programas de tratamento oferecidos. Outras barreiras sao consideradas subjetivas, como o medo e o estigma, impedem a busca por ajuda.

Portanto, a associação entre crack e violência, geralmente, é considerada por muitos uma relação de causa e efeito, o que contribui para a amplitude do aspecto da violência relacionada ao uso. Muitas vezes tal problema ocorre por falta de conhecimento sobre o assunto, pois profissionais fazem referência à falta de capacitação para lidar com o problema das drogas, o que dificulta qualquer tipo de ação voltada aos usuários e família, como se pode perceber no discurso do Profissional 10:

... não existe ainda esse tipo de apoio [voltado à família], até porque os profissionais, os agentes de saúde são capacitados para realizarem aquilo que compete à função deles, um programa de combate à dengue, um hipertenso que está passando mal, ele fazer um agendamento. Acho que devíamos ter capacitação sobre droga.

Outro aspecto importante no relato é que o profissional em questão compreende que sua função abrange apenas demandas orgânicas e não está relacionada a problemas sociais, como o uso abusivo de crack. Tal fato contraria a política de atenção a usuários de álcool e outras drogas, a qual considera que a Atenção Primária também deve abranger ações voltadas a estes sujeitos. Tal política define, ainda, que suas equipes da APS devem ser capacitadas para o desenvolvimento de ações de prevenção primária, diagnóstico precoce de uso prejudicial, desenvolvimento de ações de redução de danos, tratamento de casos não complicados e referenciamento, para a rede de assistência, dos quadros moderados e graves (Brasil, 2004).

Aparentemente, o conhecimento dos profissionais sobre o uso de drogas provém de programas policiais, o que os leva a relacionar o uso de drogas a caso de polícia, como se vê no discurso do Profissional 7:

... eu assisto muito aquelas reportagens, pessoas, meninos, crianças que não tiveram infância, adolescência, entraram logo no mundo do crime: vão presos muitas vezes e ao final é a morte, a prisão. Só tem dois caminhos para quem entra nesse mundo, infelizmente.

A consideração sobre o uso de drogas como um caso de polícia está relacionada a resquícios de uma política proibicionista adotada pelo Brasil, que visava controlar o uso de substâncias psicoativas. Segundo Rodrigues (2008), tal política transformava um problema sanitário em caso de polícia, com a repressão e criminalização de usuários e traficantes, associando, dessa forma, usuários de drogas ao crime.

Como os profissionais não compreendem que a assistência ao usuário de crack e sua família também é uma demanda da Atenção Primária, as ações da equipe não alcançam o ideal de universalidade e integralidade preconizado pelo SUS. A exemplo das visitas domiciliares que a equipe realiza, as quais não inserem ações voltadas para o sujeito que faz uso problemático de drogas, a assistência, na Atenção Básica se restringe ao acompanhamento daqueles que apresentam problemas de hipertensão ou diabetes, como se observa na fala do Profissional 3: "... não disponibilizamos um serviço de visita domiciliar especifica para esse caso [usuário de crack], desse tipo de situação."

Por outro lado, alguns trabalhadores entendem que a visita domiciliar é uma oportunidade de dialogar com a família de usuários de drogas e aproximar-se da realidade do indivíduo, pois, conforme o Profissional 4 "... juntamente com a família, nas visitas domiciliares a gente conversa com o usuário, porque que ele teve aquela recaída".

A visita domiciliar caracteriza-se como um acolhimento realizado no ambiente onde os usuários e suas famílias vivem e é uma ação realizada fora da instituição, destinada a tratar usuários de drogas. Assim, esse tipo de prática é essencial para o cuidado integral, pois possibilita que o profissional de saúde tenha uma noção mais realista da dinâmica familiar e dos problemas sociais enfrentados pelos sujeitos e suas famílias (Schrank & Olschwsky, 2008).

Quanto à questão em pauta, destaca-se um aspecto importante relacionado à família, que é servir de apoio ao ACS para realizar a sua orientação, pois a presença dos familiares parece proporcionar um clima mais seguro para a abordagem do assunto droga. Ressalta-se que o enfoque desse problema em visitas domiciliares não é uma prática regular, ocorre apenas com aquelas famílias que já pediram ajuda aos profissionais da equipe de Saúde da Família. Esta situação ocorre porque os ACSs acreditam que assim ele correm menos riscos.

Os profissionais também deixam claro que não há uma abordagem específica para os usuários nem para os seus familiares e que as ações direcionadas a esse público se restringem à escuta dos problemas, aconselhamentos e informações sobre tratamentos relacionados ao uso de crack. Tal evidência pode ser ilustrada pela fala do Profissional 3: "Na verdade não tem [acompanhamento da equipe de saúde para o familiar. A gente tenta dar um suporte, os médicos, enfermeiros, agente. É a questão da escuta mesmo, do aconselhamento que não adianta muito, mas a gente tenta".

Ademais, as práticas descritas são realizadas apenas por profissionais que tenham interesse por esse problema, pois nem todos se identificam com esta demanda. Assim, o Profissional 5 descreve: "... não tem nada específico para o usuário de drogas, nem pra familiar, mas tem gente aqui que se preocupa e avisa sobre o tratamento no CAPS"

Da mesma forma, a pesquisa de Sousa e Pinto (2012) evidenciou que na Atenção Primária não há programa específico para atender os usuários de álcool e outras drogas. Nesse estudo, as intervenções eram realizadas de forma individualizada e as práticas destinadas a esse público restringiam-se a aconselhamentos e encaminhamentos.

Pelo exposto se percebe a necessidade de maior investimento em ações efetivas de assistência ao usuário com problemas relacionados ao uso de drogas no contexto da Atenção Primária. Entre as finalidades dessas intervenções deve-se incluir o cuidado à família, uma vez que este público é o foco de atenção da ESF. Por isso é essencial que os profissionais da Atenção Primária busquem incluir usuários de drogas e familiares em suas ações, apoiando e recebendo o apoio, pois essa corresponsabilização entre usuário, família e profissionais possibilita a qualidade da atenção integral nesse nível de assistência à saúde.

Na busca por compreender essa relação profissional da Atenção Primária com usuário de drogas e seus familiares, observa-se que cada segmento apresenta uma demanda diferente para o serviço. Exemplo disto é que muitas vezes a família procura a unidade básica de saúde porque deseja que os profissionais desse serviço consigam uma internação em casa de recuperação para o usuário, e não com o objetivo de que ele seja acompanhado pela equipe, como refere em seu relato o Profissional 2: "A família vem porque quer internamento, onde internar esse paciente. O objetivo dela é conseguir internar...".

De acordo com pesquisa realizada por Osinaga e Furegato (2004), a solicitação das famílias justifica-se pela crença de que o sucesso do tratamento está condicionado à ação médica e à internação em hospitais ou clínicas de recuperação. Neste aspecto, percebe-se que os familiares e usuários de drogas acreditam no tratamento e assistência baseados no modelo tradicional de cuidados, ou seja, no modelo hospitalocêntrico, baseado no isolamento do indivíduo.

Diante dessa realidade, os profissionais que atuam na atenção primária não dispõem de toda a tecnologia exigida neste modelo biologicista de cuidados, pois a lógica da ESF é outra, baseada na equipe multiprofissional e na corresponsabilização pelas ações. Mesmo com esse entendimento, a equipe da ESF não se sente segura para dar uma resposta ao familiar e ao usuário de drogas, como se observa na fala do Profissional 5: "... acho que a unidade não tem também uma resposta do que fazer com esse paciente...."

O modo de a equipe se organizar para atender à demanda consiste no encaminhamento ao profissional do serviço social e para a equipe que realiza o apoio matricial. Por fim, a maioria dos casos é encaminhada ao serviço especializado do Centro de Atenção Psicossocial, com referência a pessoas com problemas relacionados ao álcool e drogas (CAPS ad), como se observa no discurso do Profissional 6:

... quando a família não tem mais como ajudar, não tem mais como acolher, aí eles [usuários de drogas] pedem ajuda. Eles são indicados ao serviço social, às vezes vão até para o grupo de autoestima com a doutora [assistente social], e quando não, eles são indicados a ir para o CAPSad.

Pelo visto, os profissionais da APS acreditam que a prática de acompanhamento das famílias deve ser realizada por serviços especializados, como o CAPSad, pois assumem que este é um serviço específico de tratamento relacionado ao uso de drogas e, por isso, mais eficaz que as ações da Atenção Primária. Pela análise do discurso do Profissional 8 pode-se perceber como é feito o acolhimento:

... eu não faço visita não, eu procuro fazer um contato principalmente com o CAPSad que, é quem está mais ligado com a gente, que mantém maior esse vínculo com a gente aqui. Encaminhando a situação social daquela família e pedindo essa visita domiciliar, isso no caso específico do crack ou do usuário de droga. ... eu oriento a família: - olha, se quiserem ir pro CAPS a gente ajuda.

Nessa situação os profissionais referem que acolhem a demanda que chega à unidade de saúde, buscando escutar o sofrimento dos familiares e conhecer o caso e fezendo encaminhamentos, conforme mostra o discurso do Profissional 9: "Então fazemos o acolhimento da família para conhecer o caso..., depois você até manda para o apoio matricial...."

Lucchese, Oliveira, Conciani e Marcon (2009) observam que a porta de entrada na rede de atenção à saúde mental deve ocorrer por meio da Atenção Primária, pois isto contribui para a resolutividade do serviço. Não obstante, há problemas nas unidades básicas de saúde que dificultam essa resolutividade, como o questionamento da própria equipe sobre a capacidade resolutiva do serviço, visto que, de acordo com o SUS, a ESF constitui um novo modelo que deveria romper com a centralidade na doença e ter seu poder resolutivo, objetivando evitar encaminhamentos desnecessários para níveis mais complexos de atenção, reduzir as excessivas medicalizações de ações de saúde e favorecer o atendimento integral do sujeito; mas o que se observa, de acordo com Lucchase et al. (2009), são apenas intermináveis encaminhamentos, o que demonstra uma desarticulação das ações de saúde, em que um determinado serviço "faz a sua parte" e encaminha para outro serviço realizar a "parte dele". Nessas situações, percebe-se que não há a responsabilização e o vínculo, recursos necessários para a resolutividade das ações em saúde.

Diante de tal dificuldade, um recurso importante no acompanhamento de usuários de drogas e seus familiares na ESF foi a oferta do apoio matricial em saúde mental. Os discursos revelam que a equipe busca organizar-se de modo a oferecer o apoio e assistência necessários à população, conforme o Profissional 5: "A gente acompanha a família tentando dar apoio, ... através desse apoio matricial. Muitas vezes esse paciente vem acompanhado de um familiar."

A equipe da ESF, com o apoio da equipe do CAPS, tem buscado, por meio do apoio matricial, realizar o cuidado em saúde mental mais perto do território no qual o usuário reside, o que contribui para que este receba atenção em sua própria comunidade e fortalece os laços en tre a equipe da ESF e as famílias (Juca, Nunes, & Barreto, 2009).

O apoio matricial caracteriza-se como um suporte técnico especializado oferecido a uma equipe interdisciplinar de saúde, e visa ampliar o campo de atuação, bem como a qualificação dessa equipe que recebe o apoio, podendo ser realizado por diversas áreas especializadas. Em suas ações, destacam-se as discussões clínicas conjuntas entre as equipes e, até mesmo, intervenções conjuntas, como consultas e visitas domiciliares (Figueiredo & Campos, 2009).

Dessa forma, o apoio matricial da saúde mental na ESF busca propiciar maior consistência às intervenções em saúde. Sua importância se justifica, uma vez que, segundo a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde, 80% dos usuários encaminhados aos serviços especializados de saúde mental não trazem uma demanda que justifique a necessidade de uma atenção especializada (Figueiredo & Campos, 2009). Enquanto isto, os profissionais da equipe de Saúde da Família relatam que o apoio que recebem provém geralmente do CAPS geral, e não do CAPSad, como se observa no relato do Profissional 10: "... acho que a unidade de saúde não tem uma resposta do que fazer com esse paciente, você até manda pro apoio matricial, mas quando o apoio matricial vem, geralmente é mais direcionado [para transtornos mentais], não é o pessoal do CAPSad."

Esta evidência indica que não há uma discussão específica de casos de usuários de drogas nas reuniões do apoio matricial. Quando as equipes estão reunidas prevalecem as intervenções em pessoas com transtorno mental no contexto da Atenção Primária, pois, como relata o Profissional 2, "... o apoio é mais do CAPS geral, mais as doenças psicossomáticas, e não voltada ao paciente que é envolvido com álcool e droga".

Assim, percebe-se que a questão da assistência aos usuários de drogas, no contexto da Atenção Primária é colocada em segundo plano. Não é priorizado o enfoque na promoção, prevenção ou acompanhamento dessa demanda nesse nível assistencial, seja pela precária formação dos profissionais seja pelo preconceito ou pelo estigma imposto pela sociedade ao usuário de drogas. Nesse sentido, sugere-se que o apoio matricial conduzido na ESF pelos profissionais das equipes de Saúde da Família e CAPS seja motivo de discussão mais frequente de casos relacionados ao uso drogas, tendo-se em vista a grande demanda no território adscrito das Unidades de Saúde da Família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que a assistência ao usuário de drogas na APS enfrenta grandes desafios que fragilizam o cuidado dessa população. Entre estes desafios se destacam a dificuldade em estabelecer vínculo e o preconceito contra estes usuários, a centralização da assistência em serviços especializados, como o CAPSad, e a persistência no imaginário social do modelo institucionalizante como alternativa mais eficaz.

Diante desse contexto, reafirma-se a necessidade de fortalecer uma rede de cuidados na assistência ao usuário de crack que contemple os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Atenção Psicossocial. Esta rede incluiria uma ação intersetorial, como também uma articulação efetiva entre os trabalhadores, os usuários e seus familiares.

Sugerem-se ações que promovam a reflexão dos trabalhadores dos serviços de saúde sobre o uso de drogas e o contexto sociocultural em que estão inseridos os sujeitos, com o intuito de minimizar o receio dos profissionais em abordar o tema do uso de drogas e a crença quanto ao insuficiente conhecimento sobre como lidar com usuários de substâncias psicoativas.

Com isso, as ações dos profissionais deverão pautar-se pela escuta, pelo acolhimento das demandas das famílias, pelo aconselhamento, pela realização de visitas domiciliares e pela atenção às questões sociais, e não apenas pelos aspectos orgânicos. O serviço da APS deverá receber suporte de uma equipe especializada na condução dos casos e apoio para os encaminhamentos.

A assistência ao usuário de drogas deve incluir também o cuidado e envolvimento com a família, uma vez que os usuários não buscam o serviço por problemas que indicam o abuso de drogas. É por meio das queixas dos familiares que a equipe realiza a identificação dos sujeitos que abusam de drogas, especificamente de crack, o que leva a concluir que a família atua como mediadora entre os trabalhadores da APS e os usuários, uma vez que facilita o trabalho da equipe relacionado ao acompanhamento do sujeito que usa drogas.

Nesse contexto, compreende-se que os familiares de usuários de drogas também devem ser alvo de intervenções por parte dos trabalhadores da APS, pois a atuação junto a esse público permite o estabelecimento do vínculo entre a equipe de saúde e a comunidade, além de favorecer a corresponsabilização das famílias, dos trabalhadores e também dos usuários, contribuindo para o oferecimento de um cuidado integral.

O fortalecimento desses aspectos permitirá uma assistência de qualidade e condizente com as diretrizes políticas do SUS no que diz respeito à garantia da cidadania e à integralidade do cuidado.

Recebido em 30/09/2013

Aceito em 13/05/2014

1 Apoio e financiamento: Ministério da Saúde e CNPq

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  • Endereço para correspondência:
    Milena Lima de Paula
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      30 Set 2013
    • Aceito
      13 Maio 2014
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