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Puericultura, eugenia e interpretações do Brasil na construção do Departamento Nacional da Criança (1940)

Child care, eugenics, and interpretations of Brazil in the construction of Brazil’s Children Bureau (Departamento Nacional da Criança) (1940)

Resumo:

A criação do Departamento Nacional da Criança em 1940, em meio à crescente incorporação das demandas sociais pelo Estado durante a era Vargas, pode ser considerada um marco na história das políticas de assistência materno-infantil no Brasil. Este trabalho, ao abordar os primórdios da estruturação dos serviços federais de proteção materno-infantil no país, analisa a forma como os médicos puericultores buscaram delimitar uma esfera própria de atuação profissional no âmbito do Estado, defendendo a implementação de um intrincado leque de ações em saúde, educação e assistência. Argumenta-se que os puericultores foram em grande medida informados por interpretações do Brasil que indicavam o quadro de pobreza e desnutrição da população como os principais obstáculos à construção da nação, lançando mão da linguagem da eugenia a fim de acentuarem a dimensão social dos problemas da criança no país, como a mortalidade infantil e a delinquência juvenil.

Palavras-chave:
história da assistência à infância; eugenia; Departamento Nacional da Criança

Abstract:

The creation of Brazil’s Children Bureau (Departamento Nacional da Criança) in 1940, as part of the construction of a welfare system initiated by the Vargas regime, can be considered a milestone in the history of child care policies in the country. We address the early stages of development of the federal government’s child protection services in order to examine the ways trough which child experts sought to define a sphere of professional action for themselves within the State. To deal with such problems as infant mortality and juvenile delinquency, they defended the implementation of a set of health, education, and social assistance policies. We argue that these experts were largely informed by interpretations of Brazil that pointed to the poverty and malnutrition of its population as the main challenge to the nation-building process, and resorted to the language of eugenics in order to stress the social dimension of child welfare’s main issues in the country, such as infant mortality and juvenile delinquency.

Keywords:
child welfare history; eugenics; Brazil’s Children Bureau (Departamento Nacional da Criança)

Introdução

A criação do Departamento Nacional da Criança (DNC) em 1940, em meio ao processo de crescente incorporação das demandas sociais pelo Estado durante o primeiro governo Vargas, pode ser considerada um dos marcos da história das políticas de saúde e assistência materno-infantis no Brasil. Se, nas primeiras décadas do século XX, as instituições filantrópicas se constituíram no espaço privilegiado para modelos de assistência apoiados em saberes e práticas médicas como a pediatria e a puericultura, então em vias de institucionalização, a partir do Estado Novo, a promoção do bem-estar infantil passa a fazer parte da agenda oficial do poder público, associando-se ao projeto varguista de construção da nacionalidade.

Ao abordar as etapas iniciais da estruturação do órgão federal dedicado às políticas de saúde e assistência materno-infantis, o presente trabalho analisa a forma como os médicos puericultores que participaram desse processo, associados ao médico Olinto de Oliveira, conceberam tanto sua formação e atuação profissional junto aos quadros da burocracia estatal quanto os programas de ação em puericultura. A mortalidade infantil, o menor abandonado e a delinquência juvenil ganharam destaque como os principais problemas a serem enfrentados pelos puericultores, que deveriam pôr em prática um amplo conjunto de ações em assistência social, educação e saúde.

Aventa-se a hipótese de que a avaliação dos denominados problemas da infância feita por esses médicos, que se valeram da linguagem da eugenia a fim de acentuarem sua dimensão social, foi em grande medida informada por interpretações do Brasil que indicavam o quadro de pobreza e desnutrição de amplos setores da população como o principal obstáculo ao ingresso do país no concerto das nações modernas. Ligando preceitos de higiene, medicina preventiva, serviços de assistência e programas de remodelação dos espaços urbanos, a perspectiva dos puericultores se aproximou de abordagens sociológicas em saúde desenvolvidas na década de 1940 por cientistas sociais como Alberto Guerreiro Ramos, sociólogo que atuou como professor nos cursos de formação técnica do DNC.

Inicialmente, são analisadas as ações governamentais no âmbito da assistência materno-infantil no primeiro governo Vargas. São abordados, nesse caso, os esforços de organização e ampliação do escopo das políticas de proteção à infância na Primeira República e seus desdobramentos nas décadas de 1930 e 1940 que culminaram na criação de um órgão de assistência materno-infantil autônomo em relação ao Departamento Nacional de Saúde (DNS). Em seguida, nossa atenção recai sobre as concepções de saúde e desenvolvimento infantis que nortearam os planos de ação e as políticas de proteção à infância propostas pelos médicos puericultores envolvidos com a criação do DNC. Consideram-se as perspectivas elaboradas por esses médicos acerca da mortalidade infantil e da delinquência juvenil, bem como os significados subjacentes à linguagem da eugenia que empregaram, analisando-se em que medida a visão dos puericultores sobre os problemas da criança esteve apoiada em interpretações então vigentes sobre a sociedade brasileira. Por último, enfocam-se a estruturação dos cursos de formação do médico puericultor e os esforços de delimitação do escopo de sua atuação profissional no âmbito do Estado. Com o intuito de explicitar a dimensão sociológica das ideias dos puericultores sobre a infância, sua abordagem é cotejada com a aquela desenvolvida pelo sociólogo Guerreiro Ramos.

Proteção materno-infantil na era Vargas: a criação do DNC

Nas primeiras décadas do século XX, as práticas de cuidado à infância com base no princípio da caridade cristã passaram a dividir espaço com um modelo de assistência que associava filantropia e saberes médicos ligados a especialidades em processo de institucionalização no país, como a pediatria e a puericultura (Sanglard e Ferreira, 2010SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República. Varia História, v. 26, n. 44, p. 437-459, 2010.). Entre as instituições filantrópicas da Primeira República que foram palco da atuação desses novos especialistas destacaram-se, na então capital federal, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância, a Policlínica das Crianças e a Policlínica de Botafogo (Wadsworth, 1999WADSWORTH, James. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais e ideológicos da assistência à infância no Brasil. Revista Brasileira de História, v. 19, n. 37, p. 103-124, 1999.; Sanglard e Ferreira, 2010SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República. Varia História, v. 26, n. 44, p. 437-459, 2010. e 2014SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a assistência à infância no Rio de Janeiro. Estudos Históricos, v. 27, n. 53, p. 71-91, 2014.). Nesses espaços, organizaram-se atividades que envolviam desde o atendimento médico ambulatorial às crianças até medidas educativas destinadas à propagação de princípios de higiene e puericultura e o provimento de alimentação e vestimenta a famílias pobres. A atuação de médicos como Arthur Moncorvo Filho, Antônio Fernandes Figueira e Luiz Torres Barbosa, guardadas suas diferenças, foi marcada pela defesa da normatização e fiscalização das ações em saúde infantil com base no conhecimento médico-científico e pelo apoio que receberam das elites republicanas na estruturação dos serviços, base de um modelo de assistência que implicava o envolvimento das famílias abastadas, em especial das mulheres, em atividades como o angariamento de fundos e a promoção de concursos de robustez entre recém-nascidos.

A despeito de esforços dos médicos envolvidos com as práticas filantrópicas em expandir as ações de proteção materno-infantil para todo o país, pleiteando maior participação do poder público - como foi o caso, notadamente, de Moncorvo Filho, que chegou a propor a criação de um Departamento da Criança de escopo nacional (Wadsworth, 1999WADSWORTH, James. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais e ideológicos da assistência à infância no Brasil. Revista Brasileira de História, v. 19, n. 37, p. 103-124, 1999.) -, foram tímidas as ações do Estado durante a Primeira República. Em 1921, foi posta em funcionamento a Inspetoria de Higiene Infantil (IHI) do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). A cargo de Fernandes Figueira, a atuação do órgão se manteve, no entanto, restrita ao Distrito Federal (Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.; Maes, 2011MAES, Cari Williams. Progeny of progress: child-centered policymaking and national identity construction in Brazil, 1922-1954. Tese (Doutorado em História), Emory University, Atlanta, 2011.). Em 1927, instituiu-se o código de menores, visando à fiscalização do trabalho infantil na indústria e ao estabelecimento de tratamento jurídico diferenciado a indivíduos menores de 18 anos de idade que transgredissem as leis do Estado. Produto de longos debates nos meios jurídicos, a nova legislação, que contribuiu para a disseminação e a naturalização das categorias do “menor abandonado” e do “menor delinquente”, assinala a importância crescente que o tema da proteção social à infância vinha assumindo para o poder público (Rizzini, 1995RIZZINI, Irene. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever: uma história da legislação para a infância no Brasil. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (Org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Universitária Santa Úrsula, 1995. p. 109-110.).

Planos de âmbito nacional voltados para a saúde e a assistência materno-infantil passaram a ganhar corpo no bojo de uma série de transformações institucionais que, a partir dos anos 1930, alargaram as atribuições do Estado no terreno das políticas sociais com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder (1930-1945). Dentro do escopo de ações em saúde de caráter universalista a cargo do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), a infância foi objeto de atenção especial, associando-se intimamente ao projeto de construção da nacionalidade (Fonseca, 1990FONSECA, Cristina. Modelando a cera virgem: a saúde da criança na política social de Vargas. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990.; Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.; Souza, 2000SOUZA, Cynthia Pereira de. Saúde, educação e trabalho de crianças e jovens: a política social de Getúlio Vargas. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: FGV, 2000.).

O pediatra gaúcho Olympio Olinto de Oliveira (1866-1956) desempenhou papel-chave na construção de um organismo público de escopo nacional destinado à assistência materno-infantil em um processo que não foi destituído de tensões e conflitos. Formado na antiga Faculdade Nacional de Medicina em 1887 e tendo atuado ao lado de importantes nomes da assistência pediátrica de base filantrópica da Primeira República, como Moncorvo Filho e Fernandes Figueira, Olinto de Oliveira iniciou sua carreira na administração federal em 1930, assumindo a chefia da IHI do Distrito Federal por indicação do médico sanitarista Belisário Penna.1 1 Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 731, p. 1. Ver também “Olympio Olinto de Oliveira”. Academia Brasileira da Pediatria. Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível em: http://www.sbp.com.br/pessoas/pessoa/peid/olympio-olinto-de-oliveira/. Acesso em: 27 março 2018. Ao que tudo indica, Olinto de Oliveira manteve vínculos diretos com a família Vargas, como sugere o fato de seu filho, Mário Olinto, ter sido médico particular da família do presidente. “Mário Olinto de Oliveira”. Academia Brasileira da Pediatria. Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível em: http://www.sbp.com.br/pessoas/pessoa/peid/mario-olinto-de-oliveira/. Acesso em: 27 março 2018. Em 1933, Olinto presidiu a Conferência Nacional de Proteção à Infância, propondo a ampliação das atribuições do governo federal a fim de que este pudesse, a partir de um órgão autônomo, fiscalizar as instituições de proteção infantil distribuídas pelo território nacional e fornecer auxílio técnico e material aos serviços. O encontro, reunindo médicos, juristas e políticos, trouxe à tona os debates da época em torno da denominada questão federativa, que dizia respeito à distribuição da autoridade e das funções administrativas entre as diferentes esferas de governo (Hochman, 1998HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 1998.; Fonseca, 2007FONSECA, Cristina. Saúde no governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Friocruz, 2007.). A proposta de Olinto sofreu severas críticas de representantes do estado de São Paulo que, resistentes ao ímpeto centralizador, tendiam a enxergá-la como ingerência da União nos serviços estaduais, assim como de médicos sanitaristas, que disputavam com os puericultores a responsabilidade pelo controle das atividades de assistência materno-infantil (Fonseca, 1990FONSECA, Cristina. Modelando a cera virgem: a saúde da criança na política social de Vargas. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990.; Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.).

Em 1934, a IHI se tornou uma repartição federal no interior do DNS, passando a se chamar Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, com jurisdição em todo o país,2 2 Entre as atividades do novo órgão, destacam-se a realização, em 1934, de uma campanha nacional pela alimentação da criança e o fornecimento de auxílio para a organização de associações de proteção à infância, consultórios, lactários e cantinas escolares (Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 338, p. 2). e, em 1937, esta deu lugar à Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância. Essas mudanças refletiam a crescente centralização político-administrativa característica das reformas institucionais propostas pelo ministro do Mesp Gustavo Capanema (1934-1945).3 3 Sobre a Reforma Capanema de 1937, que ampliou a presença dos serviços federais de saúde nos estados, criando as Delegacias Federais de Saúde e as Conferências Nacionais de Saúde, ver Fonseca (2007). Nesse período, o investimento do poder público no desenvolvimento de um arcabouço institucional e legal destinado à proteção social da infância aumentou consideravelmente. Em 1936, foi criado, por recomendação do desembargador José Burle de Figueiredo, o Laboratório de Biologia Infantil, vinculado ao Juizado de Menores do Distrito Federal, que passou a receber menores sob tutela do Estado a fim de investigar as causas da delinquência juvenil no país e propor medidas de controle, correção, prevenção e cura (Silva, 2003 e 2011). Em 1937, foi fundado o Instituto Nacional de Puericultura, instituição de pesquisa em saúde e higiene infantis cuja direção foi confiada ao médico Joaquim Martagão Gesteira, que alcançara projeção nacional a partir de sua atuação profissional e filantrópica na Bahia (Ribeiro, 2011). Com o regime autoritário instaurado em 1937, criaram-se, finalmente, as condições político-institucionais para que as concepções de Olinto de Oliveira acerca da assistência materno-infantil se consubstanciassem em um organismo autônomo em relação às políticas do DNS. O DNC foi instituído em 17 de fevereiro de 1940 por decreto presidencial.

O Estado Novo de Vargas não apenas confiou a Olinto a direção do novo órgão como também contribuiu para que sua visão da puericultura como área de intervenção e atuação profissional distinta da clínica pediátrica e da saúde pública adquirisse bases institucionais, extinguindo o Setor da Criança até então existente no interior do DNS e garantindo, por lei, recursos federais aos estados que criassem seus próprios departamentos da criança.4 4 Segundo o depoimento do sanitarista Ernani Braga, em entrevista de 1978, a criação do DNC “repercutiu até no plano acadêmico, em que se criaram as cátedras de Puericultura e Pediatria, como se fossem disciplinas diferentes. Esta é uma invenção totalmente brasileira, que não existe em nenhum outro lugar” (Braga, 2004 [1978]). Colocando-se administrativamente no mesmo nível hierárquico do órgão responsável pela saúde pública, o DNC ficava subordinado apenas ao ministro Capanema.5 5 Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 338, p. 2.

O decreto-lei de criação do DNC definiu-o como o órgão de coordenação e normatização dos serviços de proteção materno-infantil do país, incluindo, entre suas atribuições: a realização de inquéritos sobre os “problemas sociais” da maternidade, da infância e da adolescência; a promoção de campanhas de conscientização pública; e a orientação e a fiscalização dos estabelecimentos estaduais, municipais e particulares de assistência à infância. A lei estipulou ainda a criação de um Fundo Nacional de Proteção à Criança para angariar donativos de particulares.6 6 Brasil. Decreto-lei no 2.024, de 17 de fevereiro de 1940. Valendo-se do discurso da cooperação social, os médicos puericultores apelavam para o envolvimento das elites econômicas e de atores sociais que, na visão desses profissionais, seriam capazes de exercer influência junto às populações dos municípios, como o prefeito, o juiz de menores e a professora primária. A iniciativa particular no terreno da proteção materno-infantil deveria receber auxílio financeiro e orientação do Estado.

Além de ser uma estratégia para contornar o problema da escassez de verbas, a aposta do DNC na colaboração entre o Estado e as classes média e alta da sociedade na implementação de seu programa é um indicativo das continuidades que mantinha com o modelo assistencial-filantrópico até então predominante, o que se compreende se se considera que seus quadros, notadamente Olinto de Oliveira, formaram-se nessa tradição. Por outro lado, esses médicos não desejavam que suas ações se resumissem à assistência aos “pobres”, afirmando o escopo universal e a natureza técnica e especializada de suas políticas. Mesmo as elites deveriam ser educadas nas formas científicas de educação e alimentação infantis.7 7 Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança (doravante BTDNC), Rio de Janeiro, v. I, n. 1, p. 7, jun. 1940.

No centro das considerações do grupo de médicos à frente do DNC estava o enfrentamento dos problemas da mortalidade infantil, do menor abandonado e da delinquência juvenil. Na perspectiva desses médicos, o puericultor deveria intervir em todas as etapas envolvidas na geração dos futuros membros da nação, realizando exames pré-nupciais, fazendo o acompanhamento da gestação, do parto e do recém-nascido, divulgando preceitos básicos de cuidado, higiene e alimentação a mães e gestantes. Um programa de puericultura também deveria incluir a assistência social, provendo alimentação, vestimenta e abrigo adequados às crianças pobres, mas sem perder de vista a necessidade de intervir sobre a população como um todo, alterando práticas consideradas prejudiciais e atrasadas.

A fim de demarcar suas diferenças em relação ao campo da saúde pública, os médicos reunidos em torno de Olinto de Oliveira afirmavam que os cuidados com a criança demandavam um espaço próprio de atuação, o posto de puericultura, composto de consultórios de higiene infantil e pré-natal, lactários e cantinas maternais. Em vez de serem dispensários clínicos ou ambulatórios para o tratamento de enfermidades, esses espaços deveriam priorizar a ação preventiva com base na educação e na distribuição de alimentos, visando a “manter sadia a criança sadia”, conforme o lema veiculado pela cartilha do DNC. A construção de postos de puericultura em todo o território nacional, mediante a conjugação de esforços das diferentes esferas de governo e da iniciativa particular, constituiu a principal aposta dos puericultores para fazer frente aos problemas da saúde infantil no Brasil.

Puericultura e interpretações do Brasil

Em suas leituras do quadro da saúde infantil do país, os médicos do DNC recorreram invariavelmente a avaliações das condições de vida da população brasileira, enfatizando a dimensão social dos problemas da infância. Apoiados no discurso varguista, cuja foco recaía sobre a construção da nação e a valorização do trabalhador, eles argumentavam que as políticas do DNC, destinadas especialmente ao combate à mortalidade infantil,8 8 Havia um componente retórico quando se ressaltavam os índices de mortalidade infantil no Brasil. Isso porque, diante da falta de dados censitários consistentes, a determinação precisa desses valores nos centros urbanos e, especialmente, no vasto interior do país constituía um problema ainda não solucionado. Os puericultores por vezes desenvolviam por conta própria estudos circunscritos a pequenas localidades, utilizando com reserva os dados oficiais do registro civil. Ver, a esse respeito, Maes (2011). eram centrais nas tarefas de povoamento do vasto território e aumento da produtividade da força de trabalho. Resgatando a “raça brasileira” das condições socioeconômicas adversas que a enfraqueciam, suas ações poderiam garantir o desenvolvimento adequado das gerações futuras e solucionar os problemas populacionais do país. Gastão de Figueiredo, diretor da Divisão de Coordenação Federal do DNC, sintetizou o argumento dos puericultores ao afirmar que “[o]nde surge o médico desponta a civilização” (Figueiredo, 1941FIGUEIREDO, Gastão de. A primeira conferência nacional de saúde e a criança brasileira. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 5-7, p. 5-6, jun./dez. 1941., p. 5-6), ideia que se coadunava com os sentidos atribuídos à saúde pública na era Vargas: a integração dos contingentes rurais à nação e a modernização da sociedade brasileira (Fonseca, 2007FONSECA, Cristina. Saúde no governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Friocruz, 2007.).

A defesa da “alimentação racional” de gestantes, recém-nascidos e crianças, um dos pontos principais da agenda do DNC, fornece pistas importantes sobre as interpretações sociológicas subjacentes à concepção de puericultura dos médicos ligados ao órgão. O tema da alimentação era particularmente caro a Olinto de Oliveira, que lançara, em 1934, uma das primeiras campanhas nacionais em prol da alimentação infantil. Na ocasião, em ofício aos prefeitos municipais, Olinto, apoiando-se em imagens literárias sobre o sertanejo que remontam a Euclides da Cunha e ao movimento sanitarista da Primeira República (Lima e Hochman, 1996LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz , 1996. p. 23-40.; Lima, 1999LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/Iuperj-Ucam, 1999.), atribuiu os “males da raça” à situação de abandono, miséria e ignorância em que viviam os habitantes das zonas rurais e das favelas:

As fatalidades geográficas e históricas acumularam em nossa terra […] fatores nocivos à formação de uma raça numerosa, forte e sadia. […] Dois fatos brutais avultam […]. O primeiro é a nossa mortalidade infantil, excepcionalmente alta, verdadeira hecatombe permanente, cega e implacável, arrebatando anualmente aqui no Rio um quinto, em outras grandes cidades um terço, a metade da sua população de tenra idade! E localidades há do interior onde […] se não encontram crianças, morrem pequeninas todas as que aí nascem! Ora, o fator principal dessa mortalidade são as moléstias da nutrição por deficiência, impropriedade e má qualidade da alimentação. O segundo fato impressionante é o aspecto doentio da maior parte das nossas populações rurais e mesmo das cidades, a começar pelas crianças, magras, anêmicas, raquíticas, apáticas […]. São as que escaparam da ceifa sinistra. Resistiram à morte, mas diante da persistência das mesmas causas, deficiência e má qualidade da alimentação, […] vão morrendo aos poucos, presa das endemias, das secas e outras misérias, deixando o resíduo heroico dos caboclos e dos jecas, que é a gente com que temos de contar para constituir amanhã a massa da população brasileira. […] E quantos deles ainda tarados, ainda diminuídos na sua valia intrínseca pela ignorância e pelas contingências com que têm de lutar perenemente. Ah! Pudessem eles desenvolver todas as suas possibilidades, pudéssemos nós adicionar-lhes uma parte dos centos de mil crianças que estamos perdendo cada ano por incúria e inércia, como povoaríamos rápida e magnificamente o nosso território! (Oliveira, 1942bOLIVEIRA, Olinto de. Apelo aos srs. prefeitos municipais. A assistência à infância pelo município. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 9, p. 8-9, jun. 1942b., p. 8-9).

Olinto afirmava que a subnutrição não apenas afetava o quadro de saúde da população no presente como influía negativamente na formação da “raça brasileira” a médio e longo prazos, sugerindo que as deficiências nutricionais acumuladas em vida pelos indivíduos podiam ser transmitidas às gerações futuras. A estreita associação entre o estado de privação das camadas pobres e “a degeneração e a degradação da raça” foi retomada pelo médico durante a segunda campanha a favor da alimentação infantil, realizada durante a Semana da Criança de 1942, evento realizado anualmente pelo DNC:

Em que pese ao ufanismo bem-intencionado, mas inadvertido, o grosso da nossa gente vive em estado de subnutrição, de fome crônica, que lhe cerceia energias, lhe arruína a saúde e, num funesto círculo vicioso, a impede de reagir pelo trabalho e a força de vontade. E nesse vexame sucedem-se as gerações, o adulto conformado e indiferente à própria sorte, a infância já tarada e incapaz de reação. […] Ora, a mais grave das consequências de tudo isso é de natureza eugênica, é a ameaça de uma degradação persistente da nossa raça, calamidade que de nenhum modo poderemos consentir. […] Urge, portanto, um esforço decisivo no sentido de modificar essa situação, acudir a um sofrimento coletivo e elevar o nosso nível racial ameaçado. / Aí está porque o Departamento Nacional da Criança colocou em primeira plana, entre os seus múltiplos e complexos problemas, esse da alimentação da criança, em todas as idades. (Oliveira, 1942cOLIVEIRA, Olinto de. Discurso inaugural do professor Olinto de Oliveira na seção de abertura da Semana da Criança no Palácio Tiradentes. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 11, p. 8, dez. 1942c., p. 8).

A linguagem da eugenia, que veio a se tornar, no Brasil, uma língua franca por meio da qual médicos, cientistas, intelectuais e políticos debateram as possibilidades de constituição do país como nação civilizada (Hochmam et al., 2010) e que comportava distintas concepções biológicas sobre a hereditariedade (Souza, 2015SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro. Natal: EDUFRN, 2015.), esteve presente na argumentação dos médicos puericultores do DNC em prol de políticas de proteção social com base em medidas educativas, sanitárias e assistenciais amplas.

O médico Gastão de Figueiredo afirmou que as políticas de assistência à infância poderiam modificar as circunstâncias responsáveis pela inferioridade biológica da população brasileira, acometida por inúmeras doenças desde o nascimento. Escrevendo no contexto da Segunda Guerra Mundial, em meio à exacerbação dos nacionalismos, ele afirmou que as ações em puericultura eram estratégicas para a renovação eugênica da população e, consequentemente, para a garantia da soberania nacional:

A certeza de que o porvir das nações está vinculado ao estado hígido e culto de seus habitantes tem levado os dirigentes esclarecidos de vários países a cuidar carinhosamente desse problema [da proteção à infância], pois estão bem certos de que só a renovação sadia de seu povo poderá assegurar a contínua prosperidade que desfrutam. A nação que não se renova eugenicamente está fadada a desaparecer, ou a ser absorvida pelas que se mostrarem mais capazes. (Figueiredo, 1945FIGUEIREDO, Gastão de. Na extensa proteção à infância o Brasil assenta a garantia do seu futuro. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. VI, n. 21-22, p. 4, set. 1945., p. 4).

Dante Nascimento Costa, professor de Dietética do Serviço de Alimentação e Previdência Social do Rio de Janeiro, contrastou o tipo físico e psíquico médio das crianças brasileiras com aquele supostamente existente entre as nações civilizadas a fim de indicar a posição inferior ocupada pelo Brasil no quadro internacional:

A desnutrição da criança brasileira é o fator responsável pela sua fraca resistência às infecções, por várias doenças que a inferiorizam biologicamente, por um crescimento deficiente que, ao lado de outros fatores de ordem etnográfica, justifica os índices menores que a biometria aponta às nossas crianças, em comparação com índices e tabelas estrangeiras, responsável também, em parte significativa, pelos nossos altos índices de mortalidade infantil e pelo mau desenvolvimento e pouca eficiência de milhares de brasileiros adultos. A nutrição está na raiz dos fenômenos vitais, é a própria vida em sua mais alta significação biológica. (Costa, 1940COSTA, Dante Nascimento. A Igreja, a criança e a alimentação. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. I, n. 3, p. 12, dez. 1940., p. 12).

Embora faça ponderações acerca do papel desempenhado por “fatores de ordem etnográfica” ou “fatores raciais” na conformação disgênica dos brasileiros, Dante Costa indica a falta de alimentação como sua principal causa:

Comparando-se as tabelas de peso e altura de crianças estrangeiras e brasileiras da mesma idade, observam-se menor altura e menor peso nas nossas, e a alimentação defeituosa - ao lado de possíveis fatores raciais, que terão também na subalimentação, secularmente estabelecida, uma causa - deve ser apontada como a força maléfica responsável. (Costa, 1941COSTA, Dante Nascimento. Serviços de proteção alimentar à criança. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 5-7, p. 10, jun./dez. 1941., p. 10).

A eugenia foi acionada pelos puericultores do DNC na defesa de medidas de assistência cientificamente dirigidas, sobretudo às camadas empobrecidas, o que sugere, por seu turno, a sintonia do pensamento desses médicos com a tônica preponderante do movimento eugênico no Brasil e, de modo geral, na América Latina, que tendeu a privilegiar modos de intervenção sobre o meio ambiente como forma indireta de aperfeiçoamento dos indivíduos e das populações, concentrando-se na defesa da aplicação de princípios de higiene e saúde pública em detrimento de medidas negativas de controle reprodutivo, como a interdição do casamento e a esterilização em massa (Stepan, 2005STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.; Hochman et al., 2010HOCHMAN, Gilberto; LIMA, Nísia Trindade; MAIO, Marcos Chor. The path of eugenics in Brazil: dilemmas of miscegenation. In: BASHFORD, Alison; LEVINE, Philippa (Ed.). The Oxford handbook of the history of eugenics. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 493-510.).

Uma análise da forma como empregaram a linguagem da eugenia oferece indícios, ademais, acerca das concepções de hereditariedade que os puericultores do DNC esposaram, convergentes, ao que tudo indica, com as teses neolamarckianas da transmissibilidade dos caracteres adquiridos.9 9 Segundo Souza (2015), o exame do pensamento do antropólogo Edgar Roquette-Pinto indica, todavia, que não havia vínculos necessários entre a defesa de princípios de eugenia em chave positiva, como ações em educação, higiene e saúde pública, e compreensões neolamarckianas acerca da hereditariedade. Flammarion Costa, chefe da Divisão de Proteção Social do DNC, tratando da importância da difusão dos preceitos da puericultura, sublinhou o papel das variáveis ambientais no desenvolvimento da criança:

Pela hereditariedade a criança herda qualidades boas ou más, pela educação adquire outras tantas; o predomínio das boas qualidades sobre as más depende do meio em que ela vive, dos alimentos, do cuidado que lhe dispensam, das pessoas com quem aprende, dos conhecimentos que adquire durante os primeiros meses e do conforto e alegria que encontra no lar. (Costa, 1940COSTA, Flammarion. O ensino da puericultura. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. I, n. 3, p. 15-16, 1940., p. 15-16).

Embora os puericultores insistissem sobre a natureza complexa dos problemas da infância, que demandariam o concurso de diferentes ciências, como a biologia, a psicologia e a sociologia, além dos saberes médicos, os fatores ligados ao meio e às condições de vida assumiam centralidade em seus planos de ação. Ao ressaltar as ações do governo federal na área materno-infantil “em benefício da raça e da preservação das gerações futuras” durante a inauguração do Serviço de Puericultura da Santa Casa de Porto Alegre, Orlando Seabra Lopes, médico-chefe de uma das seções regionais do DNC, observou:

O aperfeiçoamento de um povo como o nosso, em plena evolução etnológica, só pode partir realmente da criança - esse pequenino ser que acumula as reservas físicas e morais da nacionalidade. O passo inicial é o combate, sem tréguas, à mortalidade infantil, ou antes, à eliminação de todas as suas causas determinantes. Perigos alimentares, infecciosos, congênitos, não devem mais ameaçar a preciosa vida dos pequeninos e se nos aprofundarmos mais na verdadeira arte eugênica de Caron, teremos que evitar muitas outras causas que podemos chamar predisponentes e que se apoiam principalmente em bases educacionais e econômicos. (Lopes, 1942bLOPES, Orlando Seabra. Assistência infantil “Prof. Olinto de Oliveira”. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 10, p. 53, set. 1942b., p. 53).

A referência de Seabra Lopes ao médico francês Alfred Caron não é fortuita. Ao lado de Adolphe Pinard, ele era considerado pelos quadros do DNC um dos fundadores da puericultura no século XIX. A autofiliação desses profissionais a matrizes francesas do pensamento médico é igualmente reveladora de como a eugenia, além de ser identificada com medidas de educação e higiene, coincidia, por vezes, em sua visão, com o próprio campo da puericultura.10 10 Segundo Adauto de Rezende, médico responsável pelo ambulatório do DNC, Alfred Caron teria cunhado o neologismo puericultura ainda na segunda metade do século XIX, tendo em vista a “maneira de criar a criança higiênica e fisiologicamente”, ao passo que Adolphe Pinard teria consagrado a expressão, usando-a para indicar “a ciência que tem por fim a pesquisa, o estudo e a aplicação de todos os conhecimentos relativos à conservação e melhoria da raça humana” (Rezende, 1942, p. 25). Essa mesma compreensão havia sido exposta por Seabra Lopes em visita oficial à cidade de Pelotas no início de 1942. Na ocasião, o médico declarou à imprensa local que formas vulgarizadas de puericultura deveriam ser postas ao alcance de “senhoras da sociedade e futuras mamãezinhas para que estas fiquem identificadas com o sublime encargo de saber criar eugenicamente os seus filhos” (Lopes, 1942aLOPES, Orlando Seabra. A obra do presidente Vargas no campo social. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 8, p. 37-38, mar. 1942a., p. 37-38).

Os termos eugenia e puericultura também se encontravam imbricados na abordagem dos médicos do DNC acerca do problema da “delinquência juvenil”, categoria que se aplicava a grupos de jovens e crianças das cidades considerados perigosos, em geral pertencentes às camadas pobres e cujo comportamento contrastava com os padrões de sociabilidade das classes altas e médias urbanas. Apesar de os puericultores recorrerem a uma gama variada de fatores na explicação do comportamento “desviante”, arrolando, entre suas causas, doenças congênitas, predisposições hereditárias e distúrbios psíquicos, eles tendiam a salientar a influência preponderante do meio, empregando o termo eugenia como sinônimo de educação e intervenção sobre espaços marcados pela pobreza e pela carência de infraestrutura sanitária, considerados propícios ao “desajustamento”. Em palestra realizada no Rotary Club de Porto Alegre em 1943, Seabra Lopes assinalou o valor eugênico das medidas educacionais e assistenciais dirigidas ao menor abandonado ou infrator:

Como é possível, meus Senhores, deixar de haver menores abandonados, menores delinquentes, se o abandono é uma contingência própria do meio em que vivem e se desenvolvem? Como é possível deixar de haver delinquência infantil se os próprios pais dessas infelizes crianças são coniventes com seus delitos, seus furtos e toda sorte de atentados à sociedade e aos bons costumes? Esses pequenos delinquentes são instrumentos de pais famintos que arruínam a formação moral dos filhos na trágica luta pela própria subsistência! {…} De ano para ano aumenta o número dos pequenos criminosos. {…} É um mal que vai grassando em caráter epidêmico. Urge dominar o flagelo, tão grave ou mais ainda do que o das grandes doenças. A profilaxia da raça tem de ser também moral e mental para podermos atingir o ideal eugênico de povo forte em todos os sentidos. (Lopes, 1944LOPES, Orlando Seabra. O menor abandonado. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. 5, n. 19, p. 30, dez. 1944., p. 30).

O médico pediatra Meton de Alencar Neto, diretor do Serviço de Assistência a Menores do Ministério da Justiça, convidado pelo DNC para proferir uma conferência especial sobre o tema dos adolescentes em situação de abandono durante a Semana da Criança de 1943, afirmou haver “forte correlação entre a deficiência mental e a pobreza orgânica” (Alencar Neto, 1943ALENCAR NETO, Meton de. No Instituto Nacional de Puericultura: uma sessão especial. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. IV, n. 15, p. 9, dez. 1943., p. 9). Alencar Neto havia assumido a direção do Laboratório de Biologia Infantil em 1938, momento em que a instituição, até então marcada pelo enfoque da medicina legal, passou a privilegiar a pesquisa sobre o meio social dos adolescentes em detrimento da busca pelas causas biológicas dos atos delinquentes (Silva, 2003SILVA, Renato da. “Abandonados e delinquentes”: a infância sob os cuidados da medicina e do Estado - o Laboratório de Biologia Infantil (1935-1941). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2003.). O médico ponderou que “os fatores mesológicos, de modo geral, [exerciam] uma influência maior que os hereditários, em relação à saúde física e mental, e […] entre aqueles ressaltam a pobreza, a aglomeração e a ignorância”, de modo que não era “difícil imaginar a precariedade da robustez, da resistência às infecções, sobretudo à tuberculose, do desenvolvimento endócrino e do equilíbrio psíquico” dos jovens em situação de abandono atendidos pelos serviços de assistência ao menor (Alencar Neto, 1943ALENCAR NETO, Meton de. No Instituto Nacional de Puericultura: uma sessão especial. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. IV, n. 15, p. 9, dez. 1943., p. 9). Alencar Neto foi ao encontro das expectativas dos quadros do DNC ao frisar a necessidade de o Estado “intensificar os processos de eugenia”, compreendendo estes como “os cuidados médicos da gestante; o seguro que permita sem privações, um período de repouso antes e depois do parto; o ensino da maternologia, ao alcance do povo; a recomendação e persuasão individual da conveniência dos exames pré-nupciais e de várias práticas que visam à melhoria física, social e moral dos pais” (Alencar Neto, 1943ALENCAR NETO, Meton de. No Instituto Nacional de Puericultura: uma sessão especial. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. IV, n. 15, p. 9, dez. 1943., p. 12).

O abandono do menor estava associado, na visão dos médicos do DNC, ao processo de acelerada urbanização e industrialização, que conduzia ao esfacelamento da família - esta compreendida como a unidade básica do organismo social, constituída pela união formal entre a mulher, a quem cabia o exercício da maternidade no âmbito doméstico, e o homem, a quem cabia a função de provedor do lar.11 11 BTDNC, v. III, n. 14, p. 17-32, out. 1943. Os puericultores afirmavam que as ações direcionadas ao problema do menor infrator deveriam ser, sobretudo, de caráter preventivo, consistindo em um conjunto de medidas educacionais e assistenciais: “O ambiente bondoso e honesto, a educação, o trabalho e a recreação adequada, aí está em quatro palavras, o meio de evitar o abandono e a criminalidade infantil.”12 12 Ibid. Suas preocupações estiveram voltadas para a manutenção ou “restituição” do ambiente familiar, o encaminhamento profissional do menor abandonado e a regulação de suas atividades de lazer. Nas palavras de Olinto de Oliveira:

É preciso organizar por toda parte associações de proteção à infância e às mães necessitadas, abrir creches e casas da criança, instituir serviços de colocação familiar, fundar asilos de novos moldes e modernizar, orientar e amparar os existentes, multiplicar os patronatos agrícolas e profissionais, criar parques de recreio infantil, formar milícias da juventude, desenvolver o escotismo, patrocinar a frequência à escola, o aprendizado profissional, o trabalho do menor, edificar reformatórios modernos e modificar radicalmente os existentes, para um e outro sexo. […] Mas antes de tudo convencer-nos de que o menor abandonado é o mais infeliz dos infelizes, e que os pequenos vagabundos, o pivete, o delinquente de menor idade precisam mais de compreensão, simpatia, de amparo e educação do que de repressão e castigos. E que, se um pequeno número dentre eles é irredutível, a maior parte é suscetível de se corrigir e vir a formar bons cidadãos, membros úteis da comunidade. (Oliveira, 1943OLIVEIRA, Olinto de. Discurso do prof. Olinto de Oliveira, diretor do Departamento Nacional da Criança, lido pelo prof. Mário Olinto, diretor do Instituto Nacional de Puericultura. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 14, p. 14-16, out. 1943., p. 14-16).

Os puericultores buscaram instituir “milícias da juventude” a partir da arregimentação de menores “desocupados” para o trabalho em serviços públicos sob a orientação de oficiais do exército e profissionais de educação e saúde.13 13 Em 1942, o boletim do DNC informava que Olinto de Oliveira havia submetido a Vargas um plano destinado a “agrupar, proteger e educar os inúmeros adolescentes abandonados nas capitais e grandes cidades, com enorme prejuízo para eles próprios e para a população” (BTDNC, v. II, n. 8, p. 9-12, mar. 1942). Em um contexto ideológico marcado pela valorização do trabalhador, a ideia de instruir o menor para o trabalho adquiria sentido terapêutico e regenerador (Silva, 2011). A proposta de Olinto estava afinada com os projetos do Estado Novo, esboçados por Capanema, de organização e mobilização de crianças e jovens, de caráter paramilitar, visando à inculcação da disciplina e do dever cívico. Ver, a esse respeito, Schwarztman et al. (1984). Propuseram, igualmente, ações reformadoras e intervenções urbanísticas em favelas, cortiços e malocas, espaços crescentemente associados, no imaginário das elites da época, à concentração das mazelas sociais das cidades (Valladares, 2005VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.). O médico Mário Guimarães Ramos, chefe do quarto Distrito de Puericultura do Distrito Federal, afirmava, em palestra pelo rádio por ocasião da Semana da Criança de 1943, que grande número de crianças abandonadas do Rio de Janeiro provinha das favelas, “desde recém-nascidas […] até a criança na idade em que deveria estar na escola, e, no entanto, perambula pelas ruas, nos pontos dos ônibus, nas portas dos cinemas e das confeitarias, etc., solicitando auxílio, que longe de solucionar o seu caso social, mais o agrava” (Ramos, 1943RAMOS, Mário. Pelos lares adotivos. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 15, p. 22, dez. 1943., p. 22). O médico apontava para a necessidade de reestruturação das favelas, de modo que suas populações recebessem “assistência social, moral, higiênica, educacional, etc., desde os primeiros dias de vida até a velhice”, o que contribuiria para a “melhoria do padrão social do povo” (Ramos, 1943RAMOS, Mário. Pelos lares adotivos. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 15, p. 22, dez. 1943., p. 22). Além de programas habitacionais, os puericultores veicularam a ideia dos parques infantis, espaços destinados ao lazer tecnicamente orientado, capazes de desempenhar funções educacionais e higiênicas, a serem construídos preferencialmente em áreas de grande densidade populacional (Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992., p. 243-244).

Os médicos do DNC reunidos em torno de Olinto de Oliveira relacionaram os problemas da criança com fatores que podiam ser reduzidos, em última análise, ao binômio “ignorância” e “pobreza”. A esta perspectiva esteve associada uma concepção de proteção materno-infantil que supunha um amplo leque de ações em educação, saúde e assistência social. Entre os planos postos efetivamente em prática pelo DNC em seus primeiros anos, destacam-se: inquéritos sobre mortalidade infantil, menores abandonados e delinquência juvenil; censos de estabelecimentos de assistência materno-infantil em diferentes localidades do país; e o estudo de projetos de postos de puericultura e hospitais infantis.14 14 Avaliações do grau em que as políticas do DNC conseguiram ser implementadas, especialmente no que tange à construção e à operação dos postos de puericultura, encontram-se em Pereira (1992) e Maes (2011). Os médicos do DNC investiram ainda na organização de campanhas, eventos e comemorações anuais dedicadas à criança brasileira, instituindo uma ritualística por meio da qual, além da divulgação de preceitos de puericultura, buscavam reforçar os laços de cooperação que deveriam existir entre Estado e sociedade nas políticas de assistência à infância (Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.).

A formação do puericultor: “higienista, sociológico e pedagogo”

A fim de prover quadros destinados à assistência técnica e à fiscalização dos serviços de proteção materno-infantil do país, o DNC instituiu o Curso de Puericultura e Administração, aberto aos graduados em medicina. A criação do curso fazia parte dos esforços de delimitação de um campo próprio de atuação para o puericultor no âmbito do Estado e transcorreu em meio à expansão e à racionalização do aparelho burocrático governamental (Warlich, 1983WARLICH, Beatriz Marques de Souza. Reforma administrativa na era Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1983. ). A profissionalização em saúde se constituiu em elemento-chave na proposta de centralização das políticas para o setor levada a cabo nesse período, justificando-se com base na necessidade de formação de técnicos capazes de responder de forma mais ou menos homogênea aos programas esboçados pelo governo central (Fonseca, 2007FONSECA, Cristina. Saúde no governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Friocruz, 2007., p. 196).

Em 1940, Olinto de Oliveira havia submetido a proposta de criação da carreira de “médico puericultor” nos quadros do Ministério da Educação e Saúde ao ministro Capanema. No documento, argumenta que as funções de médico sanitarista ou de clínico não qualificavam o profissional para “atender plenamente à execução técnica dos serviços” de proteção à infância.15 15 Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 153, p. 1. O puericultor a serviço do Estado deveria expandir seus conhecimentos para além da higiene, da clínica e da psiquiatria, e dedicar-se à pediatria e à obstetrícia. Ademais, tendo em vista que “inúmeros fatores médico-sociais” influíam no desenvolvimento da criança, o médico puericultor deveria estar familiarizado com as “questões econômicas e educacionais”, de modo a poder lançar mão de “amplo desenvolvimento de ação, independente das condições do meio em que atuar”.16 16 Ibid., p. 2. Citando Luís Morquio, fundador da Sociedade de Pediatria do Uruguai, Olinto de Oliveira definiu o puericultor como profissional que deveria conjugar os papeis do “médico, higienista, sociólogo e pedagogo”.

A conformação do novo campo de atuação profissional não ocorreu sem atritos e resistências. No esforço de legitimação da carreira do puericultor no funcionalismo público, os médicos do DNC tiveram de distinguir sua esfera de intervenção daquela dos profissionais da saúde pública, o que torna inteligível sua recorrente afirmação de que a puericultura implicava a ação conjugada de diversos saberes e técnicas para além daqueles relativos ao sanitarismo. Nas palavras do médico Gastão de Figueiredo:

Proteger a criança, como tem sido repetido, não é problema exclusivamente sanitário. É problema muito vasto, interessando à saúde do corpo e do espírito, ao ajustamento social, à defesa moral, a todo o conjunto de fatores que influem no nascimento, no crescimento e no desenvolvimento do ser infantil. (Figueiredo, 1941FIGUEIREDO, Gastão de. A primeira conferência nacional de saúde e a criança brasileira. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 5-7, p. 5-6, jun./dez. 1941., p. 5-6).

Em nota aos interventores dos estados de 1942, Olinto de Oliveira observou que o conceito de proteção à infância havia evoluído, “não somente na extensão, mas, principalmente, em sua natureza e complexidade” (Oliveira, 1942aOLIVEIRA, Olinto de. Aos srs. interventores dos estados. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 8, p. 6, mar. 1942a., p. 6). Além da promoção da saúde infantil, era preciso auxiliar a “criança abandonada, a oprimida, o adolescente em perigo moral, as mães em infortúnio social” (Oliveira, 1942aOLIVEIRA, Olinto de. Aos srs. interventores dos estados. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 8, p. 6, mar. 1942a., p. 5). Em crítica à decisão de parte dos médicos sanitaristas em manter os serviços de higiene pré-natal e infantil sob a jurisdição dos órgãos de saúde pública, o diretor do DNC censurava os estados da Federação que ainda não haviam, “por continuidade administrativa, ou por motivos outros ainda menos justificáveis”, organizado, à semelhança do Rio de Janeiro, suas repartições autônomas de proteção infantil (Oliveira, 1942aOLIVEIRA, Olinto de. Aos srs. interventores dos estados. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 8, p. 6, mar. 1942a., p.5).17 17 Os atritos dos puericultores com os médicos sanitaristas remontam à proposta de criação do DNC nos anos 1930. Segundo Fonseca (1990, p. 84), João de Barros Barreto, então diretor do DNS, afirmava que os serviços de proteção materno-infantil poderiam seguir as diretrizes estipuladas pelo DNC e, no entanto, continuar sendo executados nos centros de saúde e postos de higiene a cargo do DNS

Foi nesse contexto de disputas que os primeiros cursos de formação em puericultura e administração tiveram lugar. Por ocasião da aula inaugural do curso de 1943, os médicos do DNC publicaram nota em seu boletim destacando a necessidade de técnicos “que não podem ser meros sanitaristas, mas devem ser puericultores, […] médicos conhecedores, igualmente, dos problemas da clínica e da higiene infantil, como da assistência social e dos fenômenos econômicos”.18 18 BTDNC, n. 16, p. 2, mar. 1944. A aula inaugural foi ministrada por Francisco Clementino de San Thiago Dantas, advogado de formação e diretor da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, que abordou “o panorama geral dos problemas econômicos e sociais” do país.19 19 Ibid., p. 2. Ao final do curso de 1943, Dantas voltou a discursar, dessa vez chamando a atenção para a “Importância da Sociologia na formação dos Médicos Puericultores”.20 20 BTDNC, n. 20, p. 4, mar. 1945.

San Thiago Dantas havia indicado o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, recém-egresso das primeiras turmas de ciências sociais da Faculdade Nacional de Filosofia, para ocupar a cadeira de “Problemas Econômicos e Sociais do Brasil” dos cursos de puericultura e administração. Nos anos 1930, ambos haviam militado nas fileiras do integralismo.21 21 Sem perspectivas de inserção profissional na universidade ao término de sua formação, Guerreiro Ramos ingressou no serviço público (Oliveira, 1995). As aulas de Guerreiro Ramos foram alocadas para o terceiro período dos cursos, junto com as disciplinas de “Serviço Social” e “Administração Pública Brasileira - Organização e Administração dos Serviços de Proteção à Maternidade, à Infância e à Adolescência”.22 22 O curso foi constituído, ademais, pelas seguintes disciplinas: 1. Bioestatística; 2. Puericultura Prévia — Revisão do Estudo da Clínica Obstétrica — Patologia do Recém-nascido; 3. Fisiologia e Higiene da Criança — Nutrição e Dietética; 4. Clínica Pediátrica Médica; 5. Epidemiologia e Profilaxia das Doenças Transmissíveis — as Grandes Endemias e a Infância; 6. Psicologia e Neurologia Infantis — Higiene Mental (Brasil. Decreto-lei no 13.701, de 25 de outubro de 1943). Guerreiro Ramos sugeriu que o nome da cadeira fosse alterado para “Sociologia e Economia” ou “Sociologia e Economia Aplicadas ao Brasil”, propondo ainda a criação de uma disciplina reservada à pesquisa social para o médico puericultor, de modo que este obtivesse treinamento para conduzir investigações sociológicas nas cidades em que atuava. A ênfase de Guerreiro nos aspectos metodológicos da sociologia e em seus instrumentais de pesquisa refletia os esforços para a institucionalização das ciências sociais no país em bases empíricas e dialogava, em particular, com a perspectiva do sociólogo norte-americano Donald Pierson, que desde os fins dos anos 1930 vinha lecionando na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Tendo estudado sob a orientação do sociólogo Robert Park, Pierson se tornou um dos principais veiculadores da tradição sociológica de Chicago no Brasil (Lopes, 2012LOPES, Thiago da Costa. Sociologia e puericultura no pensamento de Guerreiro Ramos: diálogos com a Escola de Chicago (1943-1948). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2012.; Maio e Lopes, 2015MAIO, Marcos Chor; LOPES, Thiago da Costa. Da Escola de Chicago ao nacional-desenvolvimentismo: saúde e nação no pensamento de Alberto Guerreiro Ramos. Sociologias, v. 14, n. 30, p. 290-329, 2012.).

A abordagem sociológica de Guerreiro Ramos acerca dos problemas da infância, elaborada a partir de uma leitura pragmática da tradição de Chicago e dos padrões de trabalho científico propugnados por Pierson, era convergente com as concepções e políticas esboçadas pelos médicos do DNC. No imaginário dos puericultores, fazia parte do ofício dos sociólogos pensar a nação, ou, nos termos de Olinto de Oliveira, “os destinos de nossa raça e da nossa terra” (Oliveira, 1941OLIVEIRA, Olinto de. Sobre mortalidade infantil. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. II, n. 5-7, p. 15, jun./dez. 1941., p. 15). Em referência às primeiras aulas de Guerreiro Ramos no DNC, publicadas no livro Aspectos sociológicos da puericultura (1944), o médico Gastão de Figueiredo, chefe da Divisão de Cooperação Federal daquele órgão, assinalou a importância de se considerar a dimensão social dos problemas da infância a fim de que esta fosse “acudida de modo integral”, para além do “âmbito restrito da higiene e da medicina” (Figueiredo, 1944FIGUEIREDO, Gastão de. Nota introdutória. In: RAMOS, A. G. Aspectos sociológicos da puericultura. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.). Na visão desses médicos, a sociologia corroborava a tese de que os problemas da criança eram de natureza complexa, exigindo a compreensão não apenas do indivíduo como organismo biológico, mas das contingências e características de seu entorno.

Guerreiro Ramos (1944RAMOS, Alberto Guerreiro. Aspectos sociológicos da puericultura. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional , 1944., p. 41) argumentou que a mortalidade infantil e a delinquência juvenil eram fenômenos sociais associados a áreas de “desorganização social” e de “zonas urbanas em deterioração”, verdadeiros “focos de sociopatia”, de modo que suas causas não eram exclusivamente biológicas. Esse enfoque ecológico convergia com o interesse dos puericultores em explorar as variáveis ambientais dos problemas da infância. Nesse sentido, o esforço do sociólogo em se diferenciar de abordagens biológicas do indivíduo, tendentes a reduzir o comportamento humano a instintos e disposições inatas, não se deveu, como alguns dos seus textos sugerem, a um confronto com a visão dos médicos do DNC, dispostos a assinalar as condições ou determinantes sociais da saúde infantil, mas refletia, sobretudo, o expediente argumentativo dos sociólogos de então, observado notadamente entre os cientistas sociais ligados à Universidade de Chicago, que, preocupados com a consolidação da sociologia no mundo das ciências, reivindicavam enfaticamente a existência de objetos de análise para as Ciências Sociais distintos dos fenômenos biológicos.23 23 Esforços semelhantes ao de Guerreiro em distinguir os “processos biológicos” dos “processos sociais” encontram-se em trabalhos de Robert Park e Ernest Burgess (1921, p. 55-56) e Donald Pierson (1962 [1945], p. 451-455).

Por outro lado, Guerreiro Ramos chamou a atenção para os condicionantes estruturais dos problemas da infância,24 24 Nas palavras de Guerreiro Ramos (1945, p. 12): “[A] resolução dos desajustamentos sociais implica […] a resolução dos problemas da desigualdade econômica.” traduzindo em termos de desigualdades socioeconômicas o que os puericultores equacionavam a partir do binômio “ignorância” e “pobreza” (Pereira, 1992PEREIRA, André Ricardo. As políticas sociais e corporativismo no Brasil: o Departamento Nacional da Criança no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1992.), e defendeu o protagonismo do Estado e de suas agências na busca da universalização dos serviços de proteção social no Brasil. Não obstante, suas recomendações de ordem prática, ao menos nos anos 1940, estiveram afinadas com os programas de ação que os médicos do DNC ambicionaram implementar, como a construção de postos de puericultura, maternidades, parques infantis, habitações e restaurantes populares (Guerreiro Ramos, 1944RAMOS, Alberto Guerreiro. Aspectos sociológicos da puericultura. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional , 1944.).25 25 Nos anos 1950, marcado pela temática do desenvolvimento, Guerreiro Ramos passou a tecer críticas agudas à política de ampliação dos serviços de saúde e assistência em moldes filantrópicos por sua falta de articulação a um projeto de desenvolvimento nacional capitaneado pelo Estado e baseado na industrialização do país (Maio e Lopes, 2012).

Considerações finais

Foi no primeiro governo Vargas, principalmente a partir do Estado Novo, que os médicos reunidos em torno de Olinto de Oliveira encontraram condições institucionais e ideológicas propícias à proposição de planos de proteção materno-infantil de escopo nacional. Alçado à categoria de políticas de Estado, o combate à mortalidade infantil e à delinquência juvenil deveria lançar mão de um amplo leque de ações em assistência social, educação e saúde. A mortalidade infantil foi atribuída, entre outros, aos problemas da má alimentação e da carência alimentar de recém-nascidos e gestantes e a práticas tradicionais de cuidado disseminadas na sociedade brasileira, consideradas nocivas e anticientíficas. A delinquência juvenil, por seu turno, esteve associada, na visão desses médicos, ao abandono de menores e à desestruturação das famílias. Embora fatores socioeconômicos estivessem por vezes articulados a elementos de ordem biológica e psíquica no discurso dos puericultores, a atenção desses médicos esteve dirigida, sobretudo, ao contexto social dos jovens, como a vida nas ruas dos centros urbanos e a habitação em malocas e favelas, e o uso que fizeram da linguagem da eugenia os aproximava das teses neolamarckianas e das propostas de intervenção sobre o meio que caracterizaram as práticas eugênicas em chave positiva. Informados por interpretações do país em circulação ao menos desde o movimento sanitarista da Primeira República, os puericultores acionaram o binômio “ignorância” e “pobreza” como chave explicativa mais geral dos problemas a serem enfrentados no âmbito da proteção materno-infantil.

Uma vez que os problemas da criança eram, fundamentalmente, problemas sociais, a puericultura podia regenerar a nação. Não faltaram, da parte dos médicos, retratos sobre as circunstâncias em que viviam mães, crianças e adolescentes, especialmente das camadas pobres, retratos de uma população desassistida e abandonada. Pode-se perguntar, nesse sentido, se os puericultores não acabaram sendo sociólogos “por acaso” Lima, 2009LIMA, Nísia Trindade. Uma brasiliana médica: o Brasil central na expedição científica de Arthur Neiva e Belisário Penna e na viagem ao Tocantins de Julio Paternostro. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, v. 16, supl. 1, p. 229-248, 2009., p. 231). Afinal, eles não somente reatualizaram interpretações sobre a sociedade brasileira em suas concepções sobre a puericultura como também registraram aspectos da vida de jovens e crianças sujeitos à desnutrição e à miséria. Ademais, nos primórdios do DNC e em meio a disputas em torno de seu campo de atuação profissional, os puericultores a serviço do Estado consideraram a sociologia como componente importante de sua formação multidisciplinar, que deveria ser capaz de lhes pôr a par das condições socioeconômicas do país.

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  • WARLICH, Beatriz Marques de Souza. Reforma administrativa na era Vargas Rio de Janeiro: FGV, 1983.
  • 1
    Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 731, p. 1. Ver também “Olympio Olinto de Oliveira”. Academia Brasileira da Pediatria. Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível em: http://www.sbp.com.br/pessoas/pessoa/peid/olympio-olinto-de-oliveira/. Acesso em: 27 março 2018. Ao que tudo indica, Olinto de Oliveira manteve vínculos diretos com a família Vargas, como sugere o fato de seu filho, Mário Olinto, ter sido médico particular da família do presidente. “Mário Olinto de Oliveira”. Academia Brasileira da Pediatria. Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível em: http://www.sbp.com.br/pessoas/pessoa/peid/mario-olinto-de-oliveira/. Acesso em: 27 março 2018.
  • 2
    Entre as atividades do novo órgão, destacam-se a realização, em 1934, de uma campanha nacional pela alimentação da criança e o fornecimento de auxílio para a organização de associações de proteção à infância, consultórios, lactários e cantinas escolares (Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 338, p. 2).
  • 3
    Sobre a Reforma Capanema de 1937, que ampliou a presença dos serviços federais de saúde nos estados, criando as Delegacias Federais de Saúde e as Conferências Nacionais de Saúde, ver Fonseca (2007). Nesse período, o investimento do poder público no desenvolvimento de um arcabouço institucional e legal destinado à proteção social da infância aumentou consideravelmente. Em 1936, foi criado, por recomendação do desembargador José Burle de Figueiredo, o Laboratório de Biologia Infantil, vinculado ao Juizado de Menores do Distrito Federal, que passou a receber menores sob tutela do Estado a fim de investigar as causas da delinquência juvenil no país e propor medidas de controle, correção, prevenção e cura (Silva, 2003 e 2011). Em 1937, foi fundado o Instituto Nacional de Puericultura, instituição de pesquisa em saúde e higiene infantis cuja direção foi confiada ao médico Joaquim Martagão Gesteira, que alcançara projeção nacional a partir de sua atuação profissional e filantrópica na Bahia (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Filantropia e assistência à saúde da infância na Bahia: a Liga Baiana contra a mortalidade infantil, 1923-1935. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011.).
  • 4
    Segundo o depoimento do sanitarista Ernani Braga, em entrevista de 1978, a criação do DNC “repercutiu até no plano acadêmico, em que se criaram as cátedras de Puericultura e Pediatria, como se fossem disciplinas diferentes. Esta é uma invenção totalmente brasileira, que não existe em nenhum outro lugar” (Braga, 2004BRAGA, Ernani. Entrevista com Ernani Braga realizada por Luiz Fernando Ferreira, Lisabel Klein, Sergio Arouca e Mabel Imbassay no dia 16 de junho de 1978. In: LIMA, Nísia Trindade; FONSECA, Cristina; SANTOS, Paulo Roberto Elian dos (Org.). Uma escola para a saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 128-156. [1978]).
  • 5
    Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 338, p. 2.
  • 6
    Brasil. Decreto-lei no 2.024, de 17 de fevereiro de 1940BRASIL. Decreto-lei n. 2.024, de 17 de fevereiro de 1940. Fixa as bases da organização da proteção à maternidade, à adolescência e à infância em todo o País. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 23 de fevereiro de 1940..
  • 7
    Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança (doravante BTDNC), Rio de Janeiro, v. I, n. 1, p. 7, jun. 1940.
  • 8
    Havia um componente retórico quando se ressaltavam os índices de mortalidade infantil no Brasil. Isso porque, diante da falta de dados censitários consistentes, a determinação precisa desses valores nos centros urbanos e, especialmente, no vasto interior do país constituía um problema ainda não solucionado. Os puericultores por vezes desenvolviam por conta própria estudos circunscritos a pequenas localidades, utilizando com reserva os dados oficiais do registro civil. Ver, a esse respeito, Maes (2011).
  • 9
    Segundo Souza (2015), o exame do pensamento do antropólogo Edgar Roquette-Pinto indica, todavia, que não havia vínculos necessários entre a defesa de princípios de eugenia em chave positiva, como ações em educação, higiene e saúde pública, e compreensões neolamarckianas acerca da hereditariedade.
  • 10
    Segundo Adauto de Rezende, médico responsável pelo ambulatório do DNC, Alfred Caron teria cunhado o neologismo puericultura ainda na segunda metade do século XIX, tendo em vista a “maneira de criar a criança higiênica e fisiologicamente”, ao passo que Adolphe Pinard teria consagrado a expressão, usando-a para indicar “a ciência que tem por fim a pesquisa, o estudo e a aplicação de todos os conhecimentos relativos à conservação e melhoria da raça humana” (Rezende, 1942REZENDE, Adauto de. O ensino de puericultura nas escolas primárias. Boletim Trimensal do Departamento Nacional da Criança, v. III, n. 13, p. 25, jul. 1942., p. 25).
  • 11
    BTDNC, v. III, n. 14, p. 17-32, out. 1943.
  • 12
    Ibid.
  • 13
    Em 1942, o boletim do DNC informava que Olinto de Oliveira havia submetido a Vargas um plano destinado a “agrupar, proteger e educar os inúmeros adolescentes abandonados nas capitais e grandes cidades, com enorme prejuízo para eles próprios e para a população” (BTDNC, v. II, n. 8, p. 9-12, mar. 1942). Em um contexto ideológico marcado pela valorização do trabalhador, a ideia de instruir o menor para o trabalho adquiria sentido terapêutico e regenerador (Silva, 2011SILVA, Renato da. O Laboratório de Biologia Infantil, 1935-1941: da medicina legal à assistência social. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, v. 18, n. 4, p. 1111-1130, 2011.). A proposta de Olinto estava afinada com os projetos do Estado Novo, esboçados por Capanema, de organização e mobilização de crianças e jovens, de caráter paramilitar, visando à inculcação da disciplina e do dever cívico. Ver, a esse respeito, Schwarztman et al. (1984)SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. São Paulo: USP/Paz e Terra, 1984..
  • 14
    Avaliações do grau em que as políticas do DNC conseguiram ser implementadas, especialmente no que tange à construção e à operação dos postos de puericultura, encontram-se em Pereira (1992) e Maes (2011).
  • 15
    Arquivo Gustavo Capanema. CPDOC/FGV-RJ. Microfilme, rolo 61, fot. 153, p. 1.
  • 16
    Ibid., p. 2.
  • 17
    Os atritos dos puericultores com os médicos sanitaristas remontam à proposta de criação do DNC nos anos 1930. Segundo Fonseca (1990, p. 84), João de Barros Barreto, então diretor do DNS, afirmava que os serviços de proteção materno-infantil poderiam seguir as diretrizes estipuladas pelo DNC e, no entanto, continuar sendo executados nos centros de saúde e postos de higiene a cargo do DNS
  • 18
    BTDNC, n. 16, p. 2, mar. 1944.
  • 19
    Ibid., p. 2.
  • 20
    BTDNC, n. 20, p. 4, mar. 1945.
  • 21
    Sem perspectivas de inserção profissional na universidade ao término de sua formação, Guerreiro Ramos ingressou no serviço público (Oliveira, 1995).
  • 22
    O curso foi constituído, ademais, pelas seguintes disciplinas: 1. Bioestatística; 2. Puericultura Prévia — Revisão do Estudo da Clínica Obstétrica — Patologia do Recém-nascido; 3. Fisiologia e Higiene da Criança — Nutrição e Dietética; 4. Clínica Pediátrica Médica; 5. Epidemiologia e Profilaxia das Doenças Transmissíveis — as Grandes Endemias e a Infância; 6. Psicologia e Neurologia Infantis — Higiene Mental (Brasil. Decreto-lei no 13.701, de 25 de outubro de 1943BRASIL. Decreto-lei n. 13.701, de 25 de outubro de 1943. Aprova o regulamento dos Cursos do Departamento Nacional da Criança a que se refere o Decreto-Lei n. 5.912. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União , 29 de outubro de 1943.).
  • 23
    Esforços semelhantes ao de Guerreiro em distinguir os “processos biológicos” dos “processos sociais” encontram-se em trabalhos de Robert Park e Ernest Burgess (1921, p. 55-56) e Donald PiersonPIERSON, Donald. Teoria e pesquisa em sociologia. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962 [1945]. (1962 [1945], p. 451-455).
  • 24
    Nas palavras de Guerreiro Ramos (1945, p. 12): “[A] resolução dos desajustamentos sociais implica […] a resolução dos problemas da desigualdade econômica.”
  • 25
    Nos anos 1950, marcado pela temática do desenvolvimento, Guerreiro Ramos passou a tecer críticas agudas à política de ampliação dos serviços de saúde e assistência em moldes filantrópicos por sua falta de articulação a um projeto de desenvolvimento nacional capitaneado pelo Estado e baseado na industrialização do país (Maio e Lopes, 2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2017
  • Aceito
    03 Out 2017
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