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Desigualdade na utilização de serviços de saúde entre adultos: uma análise dos fatores de concentração da demanda

Resumos

Este trabalho estima a desigualdade no uso de serviços de saúde por meio de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008, conforme metodologia sugerida por O'Donnell et al. (2008). Além da análise descritiva da distribuição observada em nove serviços essenciais, a metodologia permite mensurar as necessidades previstas e padronizadas por classes socioeconômicas. Os resultados apontam que a utilização de serviços de saúde segundo classes de renda familiar é desigual e a favor dos mais ricos (pró-rica), em sete dos serviços analisados. A desigualdade é maior para os indicadores de cirurgia em 12 meses, exame de mamografia e consultas para o período de duas semanas, com índices de concentração estimados de 0,128; 0,20 e 0,371, respectivamente. O fator que mais contribui para mudanças percentuais para concentração é a posse de plano suplementar de saúde. Em contraposição, o Programa de Saúde da Família (PSF) contribui para diminuir essa concentração, porém seu impacto pró-pobre ainda é modesto se comparado com o efeito concentrador de cobertura suplementar.

Desigualdade em saúde; Índice de concentração; Programa de Saúde da Família; Seguro saúde


This paper estimates health inequality utilization using PNAD 2008 data following the analytical framework proposed by O'Donnell et al. (2008). Beyond descriptive analysis in nine health services, methodological framework allows to measure predicted and standardized need by income classes. Results indicate that services utilization are unequal distributed for the wealthier (pro-rich), in seven out of nine health services. The inequality is higher for surgery services in a 12 months period, mammography and for doctor's visits in two weeks period, with estimated concentration index of 0.128; 0.20 and 0.37, respectively. Supplemental health coverage is the most relevant factor to comprehend positive percentage changes in concentration index. Contrastingly, Family Health Program decreases the concentration, however its impact pro-poor is modest and it is more than offset by the health insurance effect.

Health inequality; Concentration index; Family Health Program; Health insurance


ARTIGOS

Desigualdade na utilização de serviços de saúde entre adultos: uma análise dos fatores de concentração da demanda

Ricardo Politi

Universidade Federal do ABC. E-mail: rbpoliti@gvmail.br

RESUMO

Este trabalho estima a desigualdade no uso de serviços de saúde por meio de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008, conforme metodologia sugerida por O'Donnell et al. (2008). Além da análise descritiva da distribuição observada em nove serviços essenciais, a metodologia permite mensurar as necessidades previstas e padronizadas por classes socioeconômicas. Os resultados apontam que a utilização de serviços de saúde segundo classes de renda familiar é desigual e a favor dos mais ricos (pró-rica), em sete dos serviços analisados. A desigualdade é maior para os indicadores de cirurgia em 12 meses, exame de mamografia e consultas para o período de duas semanas, com índices de concentração estimados de 0,128; 0,20 e 0,371, respectivamente. O fator que mais contribui para mudanças percentuais para concentração é a posse de plano suplementar de saúde. Em contraposição, o Programa de Saúde da Família (PSF) contribui para diminuir essa concentração, porém seu impacto pró-pobre ainda é modesto se comparado com o efeito concentrador de cobertura suplementar.

Palavras-chave: Desigualdade em saúde; Índice de concentração; Programa de Saúde da Família; Seguro saúde.

ABSTRACT

This paper estimates health inequality utilization using PNAD 2008 data following the analytical framework proposed by O'Donnell et al. (2008). Beyond descriptive analysis in nine health services, methodological framework allows to measure predicted and standardized need by income classes. Results indicate that services utilization are unequal distributed for the wealthier (pro-rich), in seven out of nine health services. The inequality is higher for surgery services in a 12 months period, mammography and for doctor's visits in two weeks period, with estimated concentration index of 0.128; 0.20 and 0.37, respectively. Supplemental health coverage is the most relevant factor to comprehend positive percentage changes in concentration index. Contrastingly, Family Health Program decreases the concentration, however its impact pro-poor is modest and it is more than offset by the health insurance effect.

Keywords: Health inequality; Concentration index; Family Health Program; Health insurance.

JEL classification: I14, H42.

1 Introdução

O acesso igualitário a serviços de saúde é um dos principais desafios de provisionamento do setor público para a maioria dos Governos, principalmente no grupo de países que apresentam uma demanda crescente por serviços médicos provocados pelo aumento da expectativa de vida e mudanças na pirâmide etária, como é o caso do Brasil.

No país, o principal objetivo do serviço de saúde pública, conhecido como Sistema Ášnico de Saúde (SUS), é garantir acesso ‘universal, igualitário e gratuito' aos serviços de saúde. No contexto de economia da saúde, esse conceito segue o princípio de equidade horizontal, ideia segundo a qual indivíduos com necessidades iguais de saúde devem ter possibilidades iguais de encontrar e obter tratamento (Wagstaff et al. 1991).

Porém, a literatura internacional é vasta em apontar que a situação de igualdade na utilização desses serviços costuma ser mais a exceção do que a regra, mesmo em economias mais ricas. Por exemplo, pesquisa de Van Doorslaer et al. (2004) sobre a utilização de serviços de saúde em 21 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados de 1999 até 2002, encontra evidência de desigualdade de acesso em favor das classes de renda mais elevadas em consultas com clínicos gerais e também em consultas com especialistas, em todos os países da amostra.

De acordo com Van Doorslaer et al. (2004), a literatura mais recente tem focado em compreender as causas das diferenças de utilização de serviços de saúde, ou seja, quais fatores aumentam ou diminuem a desigualdade de acesso. O objetivo desta pesquisa é contribuir com a discussão sobre a desigualdade horizontal na utilização de serviços de saúde no Brasil, investigando quais são os fatores que mais contribuem ou amenizam essa desigualdade de demanda. Para atingir esse objetivo, utiliza-se metodologia desenvolvida por O'Donnell et al. (2008).1 1 Esse manual foi editado pelo Banco Mundial (World Bank). Os artigos originais com discussões a respeito de padronização e decomposição podem ser encontrados, respectivamente, em Wagstaff & Van Doorslaer (2000) e Wagstaff et al. (2003). Além da distribuição padronizada de utilização de serviços de saúde, este artigo estima índices de concentração na demanda e mais importante, por meio da decomposição desse índice, estima os fatores que mais afetam essa concentração. Essa decomposição é relevante, pois permite identificar quais fatores mais afetam positiva ou negativamente a desigualdade na utilização dos serviços analisados. Por isso, é considerado tanto o atendimento na rede pública como na rede privada.

Conforme descrito em O'Donnell et al. (2008), além da distribuição observada, a desigualdade é analisada a partir de classes socioeconômicas por meio da distribuição esperada e padronizada. Diferente da observada, a distribuição padronizada permite estimar a desigualdade na demanda dos serviços eliminando a diferença na distribuição decorrente da composição dos fatores de necessidade. Segundo essa metodologia, diferenças na utilização dos serviços após essa correção (padronização) são atribuídas a desigualdades socioeconômicas. Ademais, é possível estimar essa relação condicionada a fatores que podem influenciar a utilização, como acesso a plano suplementar e participação no mercado de trabalho.

Apesar da importância do tema, pesquisa a respeito da desigualdade de utilização de serviços de saúde no Brasil ainda é restrita. Uma exceção importante é o trabalho de Neri & Soares (2002) que procura considerar as necessidades de saúde dos indivíduos, como seu estado de saúde, e demais fatores não ligados diretamente à necessidade, como escolaridade e participação no mercado de trabalho. Baseado nos dados da PNAD de 1998, os autores identificam, em relação à desigualdade de acesso, que quanto maior a renda, maior a possibilidade de demandar serviços de saúde. À exceção do trabalho pioneiro de Noronha & Andrade (2001), na literatura brasileira são também escassos os trabalhos que tentam mensurar a desigualdade de acesso nos serviços de saúde a partir de estimativas padronizadas.2 2 A pesquisa de Neri & Soares (2002), por exemplo, usa um método de estimação (nesse caso, regressão logística) para mensurar a necessidade prevista (ou esperada).

Em comparação à estudos anteriores, este artigo amplia a análise da desigualdade de acesso aos serviços de saúde para um total de nove procedimentos entre serviços preventivos e não preventivos (curativos). Adicionalmente, esta análise inclui o efeito do Programa de Saúde da Família (PSF), que não estava disponível para análise em estudos prévios (Neri & Soares 2002, Noronha & Andrade 2001) e ainda, desagrega o indicador de internações em partos, cirurgias e procedimentos clínicos, visto que essa divisão influencia os resultados de desigualdade de acessos.

Neste artigo, a metodologia é empregada para os dados do suplemento de saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008. São selecionados nove indicadores de uso: se o paciente fez consulta médica nas duas últimas semanas da pesquisa, ou se fez consulta nos últimos 12 meses, se fez cirurgia nos últimos 12 meses, se utilizou hospital ou pronto socorro nas duas últimas semanas e se fez uso de medicamento prescrito nos últimos 12 meses, se fez tratamento clínico nos últimos 12 meses, e por fim, em relação à saúde da mulher, se fez exame de mamografia, colo de útero ou parto, todos esses serviços nos últimos 12 meses.

Os resultados apontam que a utilização de serviços de saúde segundo classes de renda familiar é desigual e a favor dos mais ricos (pró-rica), em sete dos nove indicadores analisados. A desigualdade é maior para os indicadores de cirurgia em 12 meses, exame de mamografia em 12 meses e consultas para o período de duas semanas, com índices de concentração padronizados de 0,128; 0,20; e 0,37, respectivamente.3 3 O índice de concentração assume valor de zero quando não existe desigualdade de acesso. Quanto maior o valor em módulo, maior a desigualdade (o valor máximo é um). Um valor positivo indica que a desigualdade é maior em favor dos mais ricos, um valor negativo indica que a utilização do serviço é desigual em favor dos mais pobres. Para a relação entre índice de concentração e curvas de concentração vide seção 3.1. É relevante notar que o fator que mais contribui para mudanças percentuais nesse indicador é a posse de plano suplementar de saúde, com participação estimada entre 38,6% e 189% dependendo do indicador.

Outro resultado importante é que o PSF contribui para diminuir essa concentração, porém seu impacto pró-pobre ainda é modesto se comparado com o efeito concentrador de cobertura suplementar. Em síntese, o resultado consolidado parece indicar que os usuários do sistema público encontram dificuldade de agendar consultas e por isso o indicador de utilização de curto prazo (serviço nas duas últimas semanas) é mais desigual que o indicador de longo prazo (serviço em 12 meses). Também indicam que os usuários mais pobres tendem a apresentar maior dificuldade para marcar cirurgia e realizar exames (mamografia e colo de útero). É possível que isso ocorra devido à demora entre a marcação e a realização do serviço.

Para discutir a desigualdade horizontal no acesso de serviços de saúde no Brasil, esta pesquisa esta dividida em quatro seções além desta introdução. Na seção seguinte é feito uma breve discussão do sistema de saúde no Brasil e uma introdução ao referencial teórico no país. Na seção seguinte é descrita a metodologia empregada conforme publicada em O'Donnell et al. (2008). Na seção quatro são apresentados os resultados e a seção cinco conclui o trabalho.

2 Saúde e Referencial Teórico no Brasil

No Brasil, assim como em muitos países do mundo, coexiste a rede de atendimento pública, conhecida como SUS, e a rede de atendimento privada. O SUS consiste em "um sistema público, nacional e de caráter universal". Foi criado pela Constituição de 1988 e foi efetivamente implementado em 1990. O SUS realiza diversos procedimentos e é responsável pela maior parcela dos atendimentos médicos no país. De acordo com dados do Relatório Anual de Gestão de 2010 do Ministério da Saúde, foram realizados no SUS cerca de 70 mil cirurgias cardiovasculares e 85 mil cirurgias oncológicas naquele ano. O SUS também conta com 3.451 hospitais públicos, sendo que 90% desses hospitais se encontram sob administração direta. Ainda de acordo com o anuário, foram realizadas cerca de 467,5 milhões de consultas em 2010 (média de mais de duas consultas por habitante ao ano), sendo que aproximadamente 18% destas são com médicos especialistas.4 4 De acordo com o Anuário de 2011, o Ministério da Saúde gastou aproximadamente R$ 11 bilhões com internações; R$ 3,5 bilhões com procedimentos em neurologia, cardiologia e traumato ortopedia; R$ 16 bilhões em atendimento ambulatorial de média e alta complexidade; e R$ 1,3 bilhão com transplantes.

Apesar de um sistema de saúde ambicioso, os investimentos públicos em saúde se apresentam abaixo dos investimentos privados. De acordo com o Anuário Estatístico da Organização Mundial de Saúde (WHO 2011), enquanto os gastos privados de saúde no Brasil representam aproximadamente 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB), os gastos públicos representam apenas 3,7%, de um total de 8,4% de gastos em relação ao PIB. O gasto do governo em saúde é de cerca de US$ 317 per capita de acordo com o relatório. Apenas para efeito comparativo, ainda de acordo com o Anuário, os gastos públicos em países de renda média elevada (grupo do Brasil) representam 57% dos gastos totais, contra 44% do total no caso brasileiro (os outros 56% são gastos privados).

De acordo com dados de gastos domiciliares da Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) de 2008, representados na Figura 1, a maior parcela dos gastos privados em saúde no Brasil ocorre em medicamentos, em proporção muito superior aos gastos com serviços preventivos, como planos privados de saúde, consultas e exames.


Em 1994 o Ministério da Saúde criou o Programa de Saúde da Família (PSF), com o objetivo de atuar na prevenção e no monitoramento do estado de saúde por meio de atendimento na unidade de saúde do município ou por meio de atendimento médico domiciliar. Inicialmente, o programa abrangia os municípios mais pobres do país, nas regiões Norte e Nordeste, e estava focado na prevenção da mortalidade infantil.

Conforme destacado por Rocha & Soares (2010), a partir de 1998 o programa foi ampliado para atingir mais localidades em todas as regiões e representou uma mudança de atuação da saúde pública para favorecer procedimentos mais preventivos em contraposição ao atendimento emergencial de aspecto curativo. Em seu artigo, Rocha & Soares (2010) estimam o efeito do PSF na redução da mortalidade por região e faixa etária. A principal conclusão do trabalho é que o PSF, focado em ações preventivas e de acompanhamento permanente por meio de equipes médicas que visitam o domicílio, contribuiu para a redução da mortalidade, sobretudo infantil e nas regiões mais pobres do país.

Nesse contexto, aumenta o interesse em compreender como essa diferença de gastos públicos e privados pode estar afetando a equidade no acesso a serviços de saúde. A pesquisa mais recente nesta área é de Andrade et al. (2011) que estima os índices de concentração por região e compara os anos de 1998 e 2008 usando dados da PNAD. A pesquisa seleciona três indicadores de serviços: se esteve internado nos últimos 12 meses, se consultou o dentista nos últimos 12 meses, se consultou médico nos últimos 12 meses. A pesquisa inova ao mensurar a dificuldade de acesso aos serviços, combinando a informação se o indivíduo buscou atendimento e se foi atendido. Talvez o principal resultado da pesquisa seja mostrar que no período considerado houve queda na desigualdade de acesso aos serviços de saúde em todas as regiões.

Com base em dados nos suplementos de saúde da PNAD de três períodos diferentes (1998, 2003 e 2008), Cambota (2012) analisa a desigualdade socioeconômica no número de consultas médicas e no número de internações para um período de 12 meses. A autora identifica desigualdade de acesso em consultas médicas em favor dos mais ricos e pequena desigualdade no caso de internações. Assim como nesta pesquisa, a posse de plano particular de saúde é o fator individual que mais contribui para compreender o acesso desigual nos serviços analisados em favor dos mais ricos.

Já Noronha & Andrade (2001) medem a desigualdade no estado de saúde dos indivíduos originária de fatores socioeconômicos por Estados brasileiros. As autoras usam como indicadores de saúde medidas de morbidade e auto avalição do estado de saúde e calculam o índice de concentração padronizado para esses indicadores para todos os Estados brasileiros. As autoras controlam as diferenças demográficas nas unidades federativas e dividem classes socioeconômicas a partir de renda per capita e anos de escolaridade. De acordo com os resultados da pesquisa, quanto mais elevada a situação socioeconômica dos indivíduos ou das regiões, melhor o estado de saúde e o acesso aos serviços de saúde. Em todas as regiões do país identificou-se desigualdade no estado de saúde em favor dos mais ricos, com exceção da região Nordeste. Porém, as autoras observam a importância de incluir em futuras análises a utilização de serviços de saúde, conforme realizado neste artigo.

Para contribuir com esse debate a respeito do acesso aos serviços de saúde e mensurar os fatores concentradores de desigualdade será empregada a metodologia recomendada por O'Donnell et al. (2008), conforme descrita na próxima seção.

3 Metodologia

Para mensurar a desigualdade horizontal e os fatores de concentração na utilização dos serviços de saúde será utilizada metodologia descrita em O'Donnell et al. (2008).5 5 Essa seção utiliza essencialmente essa referência. Os códigos para geração das estimativas em STATA também podem ser encontradas no livro. De acordo com essa abordagem, o acesso a serviços de saúde é analisado a partir da distribuição do seu uso segundo classes socioeconômicas. Além da análise da distribuição observada, a metodologia visa estimar a distribuição esperada de acordo com as necessidades dos indivíduos considerando o seu estado se saúde (necessidade prevista) e também a distribuição de acesso condicional a fatores demográficos (necessidade padronizada). A seguir são descritas as metodologias para estimação das necessidades prevista e padronizada, mais a metodologia para determinação dos fatores de concentração.

3.1 Necessidades Esperada (Prevista) e Padronizada

O estado de saúde de um indivíduo e, portanto, as suas necessidades de acesso a serviços de saúde dependem de variáveis demográficas como idade e gênero. Com efeito, para identificar o estado se saúde de um indivíduo podem ser usadas medidas de percepção desse estado, como auto avaliação; ou ainda, medidas funcionais como se o indivíduo apresenta alguma dificuldade de mobilidade ou dificuldade para realizar tarefas rotineiras; e medidas descritivas como se o indivíduo possui alguma doença crônica. Neste último caso, as medidas são consideradas objetivas e, no primeiro caso, as medidas são consideradas subjetivas. As medidas funcionais apesar de descreverem uma limitação da capacidade física também podem apresentar um certo grau de subjetividade. Adicionalmente às variáveis demográficas e de estado de saúde, covariadas podem ser acrescentadas ao modelo para controlar suas correlações parciais com as variáveis que definem necessidade. Com a inclusão de variáveis de controle, a função padronizada traz a correlação das variáveis de necessidade com a utilização de determinado serviço condicional a essas covariadas. A omissão de uma covariada, correlacionada simultaneamente com fatores demográficos e renda na função de necessidade prevista pode fazer com que a padronização considere não apenas as diferenças nas variáveis de necessidade, mas também acabe captando as correlações parciais do uso do serviço com o estado de saúde, de modo que a estimativa da necessidade padronizada fique viesada. Por isso, a estimação da necessidade prevista deve considerar essas relações entre variáveis de necessidade e variáveis de controle (covariadas), conforme estabelecido na Função (1):

onde: y é um indicador de serviço de saúde para cada indivíduo i; β e y são os parâmetros de interesse, xj é o conjunto de variáveis que definem necessidade de uso (fatores de necessidade) e definem a padronização; e zk são as covariadas que não definem necessidade, mas cujas correlações parciais são controladas com as variáveis de necessidade.

No caso de uma variável de utilização de serviço binária, a representação não linear da função (1) pode ser reescrita por meio de uma forma funcional geral G(.), como em 2:

A necessidade esperada de serviços de saúde, é estimada a partir dos valores individuais das variáveis que definem necessidade e controlando a média amostral das covariadas (que não definem necessidade). Assim, a previsão da demanda desses serviços yE, pode ser obtida conforme representada na função (3):

A necessidade padronizada,6 6 Esse método de padronização é conhecido como "indireto". No caso de informações agrupadas por classes de renda (não individuais) é empregado o método "direto" de padronização. Para uma descrição detalhada da diferença entre os dois métodos, vide O'Donnell et al. (2008, p.60-61). Para mais detalhes sobre modelos não lineares vide Van Doorslaer et al. (2004, p.632-633) yP, por sua vez, pode ser obtida pela diferença entre a utilização atual e a necessidade prevista, mais a média de utilização do serviço da amostra, conforme descrito na função (4):

Para mensurar a desigualdade padronizada na utilização dos serviços de saúde, consideram-se as diferentes necessidades previstas por indivíduo. A necessidade padronizada reflete a utilização dos serviços independente da idade e gênero (fatores demográficos) e do estado de saúde dos indivíduos. A desigualdade padronizada pode ser maior ou menor do que a distribuição observada, pois a distribuição é corrigida pelos fatores demográficos e estado de saúde de cada indivíduo. Em outras palavras, a necessidade padronizada traz a distribuição do uso de serviços condicional as variáveis de necessidade.

A utilização dos serviços de saúde pode estar associada ao estado de saúde do indivíduo, ou a sua percepção dele. Um ponto central da metodologia é que ela simplesmente investiga a distribuição das médias do uso dos serviços por classes socioeconômicas. Porém, não é possível estabelecer nenhuma interpretação causal ou comportamental para os resultados (O'Donnell et al. 2008, Van Doorslaer et al. 2004). Por conta disso, não se pode afirmar que a classe de renda possui um efeito direto sobre o uso dos serviços de saúde, apenas que existe maior ou menor desigualdade do acesso por classes. Com efeito, eventual endogeneidade das variáveis explicativas não é uma questão central para a consistência da análise padronizada (Van Doorslaer et al. 2004).

Portanto, a análise da distribuição padronizada dos serviços de saúde fornece uma medida descritiva mais apurada das diferenças de uso dos serviços de saúde, uma vez que mede a desigualdade, corrigindo a diferença na distribuição decorrente da composição dos fatores de necessidade. O método se baseia na ideia que se existem diferenças de uso de serviços entre classes após a padronização, estas se devem a diferenças de distribuição nas classes socioeconômicas.

O índice de concentração, por sua vez, é uma medida relacionada a uma curva de inequidade, como a curva de Lorenz, que traz a distribuição relativa de uma variável (no caso de utilização) em um conjunto (classe socioeconômica) determinado. O índice de concentração é baseado no cálculo da área entre a linha igualitária (linha de 45º) e a curva de concentração (desigualdade), que pode estar acima (assume valor negativo) ou abaixo da linha (assume valor positivo) de equidade. Formalmente tem-se:

onde h se refere a um indicador de saúde. Relacionando a função não linear (3), tem-se:

Dessa forma, o índice de concentração é a soma ponderada dos IC's dos k regressores, sobre o qual o peso de cada xk é a elasticidade de y em relação à . Em outras palavras, cada variável apresenta um IC independente de alterações na renda do indivíduo, mas o seu peso no IC depende da elasticidade do fator no respectivo indicador y. Já a decomposição dos fatores pode ser obtida pela diferenciação total da função (5).7 7 Para formalização do resultado, vide Wagstaff et al. (2003, p.210-211).

Conforme descrito em Van Doorslaer et al. (2004), o que torna a decomposição uma metodologia de análise relevante é a possibilidade de compreender o efeito de cada fator k, por meio do seu efeito na demanda, conforme captado no termo η de elasticidade da demanda (primeiro componente); e por meio da sua participação mais ou menos desigual na distribuição socioeconômica, conforme captado pelo IC (segundo componente). Onde esse último termo estimado (IC) é constante por serviço. Dessa forma, é possível medir a contribuição percentual de cada fator sobre a desigualdade de uso do serviço de saúde.

Após essa discussão sobre decomposição dos fatores de demanda, bem como sobre a distribuição prevista e padronizada, e também sobre curvas e índice de concentração, a próxima seção descreve o banco de dados utilizado e a segmentação.

3.2 Descrição dos Dados e Formação dos Agrupamentos

Para mensurar a desigualdade no uso de serviços de saúde é utilizado o suplemento de saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008. São selecionados nove indicadores para a estimação da necessidade prevista e padronizada: se fez consulta nas últimas duas semanas e em 12 meses; se teve atendimento hospitalar nas duas últimas semanas; se usa remédio com prescrição, exame de colo de útero e mamografia (para mulheres) nos últimos 12 meses e, se realizou alguma cirurgia, tratamento clínico8 8 O SUS classifica 24 tipos de tratamento clínicos, como tratamentos de doenças infecciosas, de doenças do sangue, endócrinas, do sistema nervoso, de doenças cardiovasculares, do aparelho respiratório, aparelho digestivo, e também tratamento durante o período pré-natal e durante a gestação entre outros. Para relação completa vide "Tabela Unificada de Procedimentos, Medicamentos e Insumos Estratégicos do SUS", disponível em < http://dtr2001.saude.gov.br/sas/cgsi/grupo03.pdf>. Na PNAD estas classificações não estão disponíveis. ou parto9 9 No Brasil foram realizados cerca de 1,2 milhões de partos na rede pública de acordo com o Relatório Anual de Gestão de 2010. nos últimos 12 meses. Estes três últimos indicadores são obtidos por meio do desmembramento da variável original motivo da internação nos últimos 12 meses. Todas essas variáveis independentes assumem valores dicotômicos de uso (utilizou ou não) e por esse motivo utiliza-se para estimação uma metodologia para variáveis binárias (probit).

Para classificar os indivíduos segundo grupos socioeconômicos são construídas cinco classes de renda a partir da distribuição de renda domiciliar. Desse modo, obtém-se quintis, no qual o primeiro representa os 20% mais pobres e o último quintil representa os 20% mais ricos. Todas as medidas e estimativas são produzidas utilizando os pesos censitários da PNAD referentes à representatividade dos indivíduos em relação ao total da população. Por fim, são excluídos os indivíduos com menos de 18 anos da amostra, pois os indicadores devem refletir a desigualdade na população adulta (a demanda infantil pode depender de outras variáveis). Dessa forma, a amostra da pesquisa conta com 271,7 mil observações. Esses procedimentos de segmentação (formação de grupos demográficos por gênero e faixa etária, exclusão de crianças e adolescentes da amostra e uso de pesos censitários) seguem as recomendações de O'Donnell et al. (2008) e são recorrentes em investigações empíricas em economia da saúde.

Com os dados a respeito da idade e gênero são construídos oito agrupamentos demográficos binários (dummies), combinando gênero e as seguintes faixas de idade: de 18 até 29 anos, de 30 até 40 anos, de 41 até 53 anos, e acima de 54 anos. Ainda em relação à definição dos fatores de necessidade são selecionadas como variáveis se o indivíduo apresenta doença crônica, ou ainda apresenta dificuldade de mobilidade (dificuldade de realizar tarefas rotineiras).10 10 A informação sobre auto avaliação do estado se saúde do indivíduo é excluída porque apresenta colinearidade elevada com as duas variáveis de medidas objetivas e funcionais citadas anteriormente. A correlação entre auto avaliação e doença crônica é de 0,43 na amostra utilizada. Já a correlação entre doença crônica e dificuldade de mobilidade é de 0,17.

Por fim, como variáveis de controle (fatores de não necessidade), sobre o qual a medida de padronização está condicionada as médias da amostra (vide função 3), são selecionadas se o indivíduo possui algum plano de saúde (empresarial, particular ou de servidor público), se trabalha, se vive em zona urbana ou rural, anos de escolaridade e número de membros da família (sobre estas duas últimas variáveis é aplicada a transformação logarítmica natural). Essas variáveis podem afetar a decisão de uso dos serviços de saúde e podem estar relacionadas aos agrupamentos de renda.

Por exemplo, escolaridade pode estar associada ao maior uso de serviços preventivos e maior preocupação com o estado de saúde. Já o indicador se o indivíduo trabalha ou não, aborda o fato de indivíduos com pior estado de saúde apresentarem menor produtividade e por isso apresentarem maior dificuldade em obter emprego e se manterem empregados. Já o número de membros da família morando no mesmo domicílio pode captar o efeito de alocação intrafamiliar, no qual o número de indivíduos da família afeta a disponibilidade (temporal ou monetária) para procurar serviços de saúde. Conforme discutido na seção 3.1, deve-se relembrar que por conta de eventual endogeneidade entre utilização dos serviços e essas variáveis não é possível estabelecer efeitos causais nessa análise.

A Tabela 1 traz a média das variáveis dependentes, das variáveis de necessidade e das covariadas por quintis de renda domiciliar. É interessante notar que a posse de algum plano suplementar de saúde está fortemente associada à renda do indivíduo, de modo que os 20% mais ricos possuem 10 vezes mais planos complementares de saúde do que os 20% mais pobres. Em contraposição, quanto menor a classe de renda, maior o percentual de participantes do PSF. Já a dificuldade de mobilidade também é menor no quintil de maior renda, apesar da idade média ser parecida entre as classes. Conforme esperado os quintis de maior renda apresentam maior escolaridade, maior proporção de pessoas que trabalham e menos pessoas morando em áreas rurais. Com exceção de partos e tratamento clínico, a utilização de serviços de saúde apresenta desigualdade por classe de renda. Na próxima seção esta desigualdade é discutida por meio das necessidades previstas e padronizadas.

4 Análise dos Resultados

A Tabela 2 traz a distribuição, conforme dados da PNAD 2008, de nove serviços de saúde por classes socioeconômicas agrupados entre serviços preventivos e não preventivos. A primeira coluna traz a média observada de uso, conforme descrito na seção anterior. Já a segunda coluna traz a necessidade prevista, obtida a partir da estimativa da função (3) com um método não linear (probit).11 11 Os resultados para as estimativas de necessidade padronizada para uso de remédio com prescrição e exame de colo de útero sem covariadas não está disponível na Tabela 2 porque as estimativas em máxima verossimilhança não convergem. A versão não linear das funções (3) e (5), bem como o código para a sua implementação, podem ser encontrada em O'Donnell et al. (2008, p.179-182). A terceira coluna traz a média de uso corrigida pela necessidade padronizada conforme especificado na função (3). A última coluna à direita traz a diferença entre a necessidade prevista e a necessidade padronizada.

Deve-se notar que, com exceção dos serviços de tratamento clínico e partos, a diferença entre a necessidade prevista e a necessidade padronizada (última coluna à direita na Tabela 2) é negativa nos dois quintis mais pobres e, positiva nos dois quintis mais ricos, para os demais sete serviços. Os resultados dessas diferenças sugerem que a distribuição padronizada do uso desses serviços no Brasil é pró-rico, pois uma vez padronizados as diferenças de necessidade dos indivíduos, existe uma possibilidade maior de um indivíduo em um quintil de renda mais elevado utilizar o serviço. Esta análise também se aplica à distribuição observada. Já a distribuição prevista é bastante homogênea (valores próximos de utilização esperados independente do quintil de renda) entre as classes, com uma distribuição levemente pró-pobre, ou seja, as classes de renda mais pobres tem uma necessidade esperada (ou prevista) um pouco maior de usar esses serviços.

Analisando a coluna de necessidade observada, no caso de cirurgia em 12 meses, o quintil mais rico apresenta quase o dobro de utilização da encontrada no quintil mais pobre (0,018 contra 0,034, respectivamente). A utilização de consulta em duas semanas apresenta uma desigualdade ainda maior, na qual o quintil mais rico apresenta em média cinco vezes mais chance de realizar uma consulta neste período. Os exames de mamografia e colo de útero também apresentam desigualdade de utilização pró-rica. O uso de remédio com prescrição e consulta em 12 meses apresentam uma desigualdade pequena. Já a visita em hospital nas duas últimas semanas quase não apresenta desigualdade. Em contraposição, partos e tratamentos clínicos realizados nos últimos 12 meses apresentam desigualdade pró-pobres, ou seja, quanto menos rico for o indivíduo, maior o uso desses serviços.12 12 O resultado para parto é esperado já que a taxa de natalidade é maior nos mais pobres em comparação com os mais ricos. Já a desigualdade pró-pobre em tratamentos clínicos é mais complexa e pode ser provocada pelo pior estado de saúde dos mais pobres (que demandam mais tratamentos), também podem estar associados a tratamentos ligados a gestação ou pré-natal, ou ainda, menor acesso a esses serviços mesmo na rede privada, no caso de planos suplementares com pequena cobertura. Entretanto, os dados da PNAD não permitem investigar essas hipóteses.

É interessante notar que a média do uso por quintis é muito semelhante na distribuição atual e na distribuição padronizada. Van Doorslaer & Wagstaff (1998) também encontram pequena diferença entre a distribuição real e a padronizada usando dados de saúde para a Jamaica. De qualquer forma, a padronização aumenta as disparidades de renda na utilização dos serviços em comparação com a distribuição observada em oito dos serviços analisados. Isso ocorre principalmente para uso de remédios com prescrição nos últimos 12 anos. Já as distribuições previstas com covariadas ou sem covariadas (coluna 3 e 4) são também bastante semelhantes. A exceção se dá na distribuição padronizada de consulta em 12 meses, cuja especificação sem covariadas se mostra pouco desigual em comparação com a especificação completa.

Outro indicador utilizado para compreender a desigualdade na utilização desses serviços é o índice de concentração (IC). Conforme descrito na seção 3, quando não existe desigualdade no uso dos serviços, o IC é zero. Um valor estimado de IC positivo (negativo) indica que a distribuição é pró-rica (pró-pobre), ou seja, existe desigualdade na ocorrência a medida que aumenta (diminui) a classe socioeconômica. As estimativas de IC indicadas na Tabela 2 para a distribuição observada e padronizada revelam que as maiores concentrações de uso pró-rico são encontradas nos serviços de cirurgia em 12 meses, mamografia e consultas médicas nas duas últimas semanas.13 13 Esses resultados estão mais próximos dos encontrados em Andrade et al. (2011) para IC de acesso geral aos serviços.

O IC é uma medida adicional de desigualdade, já que um outro indicador mais simples pode ser obtido por meio da razão da utilização dos serviços entre o grupo dos 20% mais ricos (numerador) em relação aos 20% mais pobres (denominador). Ou ainda pode ser visualizado por meio das curvas de concentração, conforme descrito na Figura 2. Todos esses indicadores apontam para a distribuição desigual pró-rica do uso em sete dos nove serviços de saúde analisados, mas é relevante apontar que o IC permite testar a hipótese se o resultado da estimativa do IC é significante ou não. Para todos os serviços na distribuição padronizada, a hipótese de que o indicador é igual a zero (distribuição sem desigualdade) é rejeitada de forma significante (com 1% de significância),14 14 A única exceção é o t valor de 2,44 (inferior a 2,56) encontrado em atendimento hospitalar nas duas últimas duas semanas que é significante a 5%. sendo que em sete casos a desigualdade é pró-rica.


Outro aspecto interessante a respeito do cálculo do IC é que é possível decompô-lo de modo a identificar os principais fatores que afetam a desigualdade no uso. Esses resultados se encontram na Tabela 3. Os resultados apresentados representam a contribuição percentual de cada fator na mudança total do IC. Essas contribuições não dependem do serviço analisado, mas seu efeito varia de acordo com a elasticidade demanda de cada serviço. Os fatores podem ser agrupados como relacionados à necessidade ou não relacionados à necessidade (demais fatores), da mesma forma que discutido anteriormente (O'Donnell et al. 2008). A ideia é que fatores associados à necessidade são "justificáveis" na medida em que refletem a maior necessidade dos indivíduos com maior idade, ou com dificuldade de mobilidade ou ainda portadores de doença crônica. Já os demais fatores apontariam para motivos "não justificáveis", por não estarem associados a fatores que influenciam diretamente o estado de saúde dos indivíduos.

Os sinais da contribuição percentual por variável precisam ser interpretados de acordo com o IC do serviço. Assim, no caso de parto, no qual a distribuição da demanda do serviço é pró-pobre, o resultado positivo em fatores demográficos, indica que as mulheres mais jovens em classes sociais mais baixas fazem mais partos (tem mais filhos) do que as mulheres mais jovens nos estratos mais altos de renda (vide agrupamento de mulheres entre 19 e 29 anos e entre 30 e 40 anos). No caso de tratamento clínico, como a utilização desse serviço também é pró-pobre, o efeito positivo para indivíduos com doenças crônicas e dificuldade de mobilidade indica que a contribuição para o índice de concentração é positiva, pois aumenta a desigualdade em favor dos grupos de menor renda.

É interessante notar que os fatores demográficos (combinação de idade e gênero) ajudam a compreender mais de 10% do IC em apenas nos três serviços ligados a saúde da mulher e no caso de remédios com prescrição. No caso de exame do colo de útero e mamografia, os agrupamentos de menores faixas etárias ajudam a explicar a concentração pró-rica nesses serviços: mulheres mais jovens das classes mais elevadas realizam mais esses serviços. No caso de remédios com prescrição ocorre o oposto: são as faixas etárias mais elevadas tanto de homens como mulheres (grupos 4 e 8) que ajudam a compreender a maior concentração de uso.

Por outro lado, os sinais negativos encontrados nas variáveis de doenças crônicas e dificuldade de mobilidade na maioria dos serviços sugerem que os mais pobres tendem a apresentar mais esses estados. Inclusive no caso de remédios com prescrição, esses grupos reduzem a desigualdade pró-rica encontrada no IC. Esse efeito de queda na concentração no uso de medicamentos prescritos sugere que ações do Governo para facilitar o acesso a remédios, como o Farmácia Popular, ou mesmo a distribuição de medicamentos em unidades de atendimento de saúde pode estar ampliando o acesso a medicamentos nas classes mais baixas.

Já o subtotal positivo em "demais fatores" indica que se necessidade fosse balanceada entre grupos, o efeito dos demais fatores provoca uma concentração de uso pró-rico, ou seja, são fatores que acentuam o índice de concentração nas classes com maior renda. Em todos os serviços de saúde, o principal fator de concentração do seu uso é a posse do plano suplementar de saúde, cujo efeito direto na utilização apresenta um efeito positivo de 38% à 177% no aumento do IC (à exceção de parto e tratamento clínico em 12 meses, serviços nos quais a distribuição de uso é pró-pobre). Como a participação percentual do IC também pondera a importância dos fatores na sua composição, o principal fator de desigualdade de utilização desses serviços no Brasil, é a maior parcela de indivíduos com coberturas suplementares nas classes socioeconômicas mais altas. A importância do plano suplementar na concentração da demanda por serviços de saúde também é destacado em an Doorslaer et al. (2004) em uma amostra de 12 países da Europa.

Em contrapartida, o PSF diminui a concentração e, portanto desigualdade, na utilização por classes socioeconômicas, mas sua importância relativa é menor se comparada com os demais fatores. De fato, o PSF diminui a concentração pró-rica de uso em cinco dos sete serviços com desigualdade positiva (IC pró-rico), pois reflete a maior cobertura desse atendimento nas parcelas de classes socioeconômicas mais baixas, conforme pode ser visto na Tabela 1.

Conforme descrito na seção 3.1 a partir de Van Doorslaer et al. (2004), os fatores de concentração contribuem para aumentar ou diminuir a desigualdade na demanda por meio de dois canais de transmissão: efeito na elasticidade da demanda do serviço (variável para cada serviço) e grau de equidade de distribuição do fator por classe (constante por serviço).

Esse aspecto pode ser melhor compreendido por meio de uma representação gráfica. Um serviço com utilização absolutamente igualitário é representado por uma figura na qual a soma das barras dos fatores equivale à zero (vide Van Doorslaer et al. 2004). Os IC's por fator estão na Figura 3 e a sua inspeção mostra que apesar de PSF apresentar um IC pró-pobre (negativo) elevado, sua participação percentual em mudanças da concentração do IC é menor entre os indicadores de uso devido a sua baixa elasticidade (não reportada) em relação a demanda pelos serviços analisados.15 15 Conforme detalhado em O'Donnell et al. (2008), um aspecto econométrico interessante é que quanto mais próximo a soma dos fatores de necessidade e dos demais fatores forem de 100% (ou 1), menor o resíduo da estimação e melhor a aderência do modelo. Nesse caso, o modelo com pior desempenho é o que analisa a desigualdade no uso de medicamentos prescritos em 12 meses.


Por fim, um aspecto interessante dos resultados é que a desigualdade é forte tanto em um serviço sofisticado como cirurgia, como em um procedimento simples, como consultas em duas semanas. Por outro lado, atendimento em pronto socorro ou hospital nas duas últimas semanas se mostrou pouco desigual, sugerindo que a distribuição do acesso a serviços emergenciais parece menos associado à classe socioeconômica. Em relação a consultas realizadas em um período de 12 meses a desigualdade também se mostrou baixa, principalmente se comparada com a utilização em duas semanas.

Esses resultados em conjunto podem estar refletindo o conceito de filas para racionar o atendimento. O "queuing" (no original em inglês) promove o racionamento do uso do serviço por meio da elevação do tempo de espera. Por isso, a desigualdade maior em consultas para um prazo de pesquisa menor (de duas semanas), mamografia e cirurgia em 12 meses, pode estar refletindo a dificuldade da população em realizar procedimentos que necessitam de agendamento, em contraposição aos atendimentos emergenciais e consultas, neste último quando considerado em um intervalo de observação maior. Neste caso, os indivíduos poderiam estar fazendo menos cirurgias ou ter uma menor frequência de consultas devido a dificuldades de agendamento. Como enfrentam dificuldade de disponibilidade, os usuários do sistema público recorrem ao atendimento hospitalar, que não exige marcação prévia e isso estaria refletido no menor IC do atendimento hospitalar.

Esses resultados também estão em sintonia com o relatório Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) de 2010 do IPEA.16 16 Vide SIPS p.12-13 e 17. De acordo com o relatório, para a população que utilizou o serviço público, as duas principais sugestões para melhoria do atendimento público foram "aumentar o número de médicos" (para 37% da amostra) e "reduzir o tempo de espera entre a marcação e a consulta com o especialista" (para 34% da amostra). Entre os serviços de atendimento no hospital ou pronto-socorro a principal melhoria sugerida entre os que utilizaram o serviço foi a diminuição "para a demora em ser atendido". Esses indicadores do SIPS sugerem que no serviço público os usuários realizam menos consultas devido ao prazo entre agendamento e realização da mesma. Por outro lado, os usuários conseguem atendimento de emergência apesar da elevada espera.

5 Discussão Final

A análise da distribuição da utilização observada, prevista e padronizada em nove serviços de saúde por classes socioeconômicas com base nos dados da PNAD de 2008, revela que o uso desses serviços é desigual e a favor das classes com maior renda (pró-rica) no Brasil. Entre os nove serviços analisados (consulta em 12 meses e nas últimas duas semanas, cirurgia em 12 meses, atendimento hospitalar nas duas últimas semanas, partos, tratamento clínico, exames de colo de útero e mamografia em 12 meses e uso de remédio com prescrição), as maiores desigualdades na utilização foram encontradas nos serviços de consulta em duas semanas, em mamografia e na realização de cirurgias em 12 meses.

Esses resultados sugerem que a desigualdade na utilização de serviços por classes socioeconômicas podem estar associadas a maior dificuldade do usuário em realizar esses procedimentos. Esse resultado encontra suporte na ideia que o atendimento público em saúde é racionado por meio de filas que atrasam os atendimentos (conceito conhecido como "queueing" em inglês). Como consequência, o usuário tende a procurar o atendimento emergencial, para o qual não há necessidade de agendamento. Isso justificaria a pequena desigualdade encontrada na utilização de atendimento hospitalar em duas semanas.

Adicionalmente, a decomposição do índice de concentração (IC) nesses serviços mostra que o fator que mais contribui para a desigualdade no acesso é a maior posse de plano complementar de saúde nas classes socioeconômicas mais elevadas. Diferentemente, o PSF atua na direção oposta: esse programa torna a utilização de serviços de saúde menos desigual, porém o seu impacto líquido é mais do que cancelado pelo efeito do plano suplementar pago. Considerando-se à importância do efeito de posse de plano suplementar sobre o índice de concentração estimado nesta pesquisa,17 17 Entre 1998 e 2008, o percentual da população com direito a algum plano de saúde passou de aproximadamente 18% para cerca de 25%, respectivamente, de acordo com dados do Ministério da Saúde. seria interessante investigar futuramente se a trajetória do uso serviços de saúde no Brasil não estaria refletindo além de uma maior universalização de acesso ao serviço público, o aumento de posse de plano complementar por parte da população.

Recebido em 28 de agosto de 2012.

Aceito em 11 de outubro de 2013.

  • Andrade, M. V., Kenya, V. M. S. N., Menezes, R. M., Souza, M. N., Reis, C. B., Martins, D. R. & Gomes, L. (2011), Equidade na utilização dos serviços de saúde no brasil: um estudo comparativo entre as regiões brasileiras no período 1998-2008, Textos para discussão, Cedeplar-UFMG.
  • Cambota, J. N. (2012), Desigualdades sociais na utilização de cuidados de saúde no Brasil e seus determinantes, tese de doutorado, FEA (USP). URL: Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12140/tde-11062012-190139/
  • Neri, M. & Soares, W. (2002), 'Desigualdade social e saúde no brasil', Cadernos de Saúde Pública 18, 7787.
  • Noronha, K. & Andrade, M. (2001), 'Desigualdades sociais em saúde: evidências empíricas sobre o caso brasileiro', Revista Econômica do Nordeste 32(n. especial), 877897.
  • O'Donnell, E., Van Doorlsaer, A. & Wagstaff, M. (2008), Lindelow analyzing health equity using household survey data: A guide to techniques and their implementation, 220p., World Bank, Washington, DC.
  • Rocha, R. & Soares, R. (2010), 'Evaluating the impact of community-based health interventions: evidence from brazil's family health program', Health Economics 19, 126158.
  • Van Doorslaer, E., Koolman, X. & Jones, A. M. (2004), 'Explaining incomerelated inequalities in doctor utilization in europe', Health Economics 13(7), 629647.
  • Van Doorslaer, E. & Wagstaff, A. (1998), Inequity in the delivery of health care: Methods and results for jamaica. hdn network, lac region, equi-lac, Working Paper 3, World Bank, Washington, DC.
  • Wagstaff, A. & Van Doorslaer, E. (2000), 'Measuring and testing for inequity in the delivery of health care', Journal of Human Resources 35(4), 716733.
  • Wagstaff, A., Van Doorslaer, E. & Paci, P. (1991), 'On the measurement of horizontal inequity in the delivery of health care', Journal of Health Economics 10(2), 169205.
  • Wagstaff, A., Van Doorslaer, E. & Watanabe, N. (2003), 'On decomposing the causes of health sector inequalities, with an application to malnutrition inequalities in vietnam', Journal of Econometrics 112(1), 219227.
  • WHO (2011), World health statistics 2011, Technical report, World Health Organization, Geneve, Switzerland.
  • 1
    Esse manual foi editado pelo Banco Mundial (World Bank). Os artigos originais com discussões a respeito de padronização e decomposição podem ser encontrados, respectivamente, em Wagstaff & Van Doorslaer (2000) e Wagstaff et al. (2003).
  • 2
    A pesquisa de Neri & Soares (2002), por exemplo, usa um método de estimação (nesse caso, regressão logística) para mensurar a necessidade prevista (ou esperada).
  • 3
    O índice de concentração assume valor de zero quando não existe desigualdade de acesso. Quanto maior o valor em módulo, maior a desigualdade (o valor máximo é um). Um valor positivo indica que a desigualdade é maior em favor dos mais ricos, um valor negativo indica que a utilização do serviço é desigual em favor dos mais pobres. Para a relação entre índice de concentração e curvas de concentração vide seção 3.1.
  • 4
    De acordo com o Anuário de 2011, o Ministério da Saúde gastou aproximadamente R$ 11 bilhões com internações; R$ 3,5 bilhões com procedimentos em neurologia, cardiologia e traumato ortopedia; R$ 16 bilhões em atendimento ambulatorial de média e alta complexidade; e R$ 1,3 bilhão com transplantes.
  • 5
    Essa seção utiliza essencialmente essa referência. Os códigos para geração das estimativas em STATA também podem ser encontradas no livro.
  • 6
    Esse método de padronização é conhecido como "indireto". No caso de informações agrupadas por classes de renda (não individuais) é empregado o método "direto" de padronização. Para uma descrição detalhada da diferença entre os dois métodos, vide O'Donnell et al. (2008, p.60-61). Para mais detalhes sobre modelos não lineares vide Van Doorslaer et al. (2004, p.632-633)
  • 7
    Para formalização do resultado, vide Wagstaff et al. (2003, p.210-211).
  • 8
    O SUS classifica 24 tipos de tratamento clínicos, como tratamentos de doenças infecciosas, de doenças do sangue, endócrinas, do sistema nervoso, de doenças cardiovasculares, do aparelho respiratório, aparelho digestivo, e também tratamento durante o período pré-natal e durante a gestação entre outros. Para relação completa vide "Tabela Unificada de Procedimentos, Medicamentos e Insumos Estratégicos do SUS", disponível em <
    http://dtr2001.saude.gov.br/sas/cgsi/grupo03.pdf>. Na PNAD estas classificações não estão disponíveis.
  • 9
    No Brasil foram realizados cerca de 1,2 milhões de partos na rede pública de acordo com o Relatório Anual de Gestão de 2010.
  • 10
    A informação sobre auto avaliação do estado se saúde do indivíduo é excluída porque apresenta colinearidade elevada com as duas variáveis de medidas objetivas e funcionais citadas anteriormente. A correlação entre auto avaliação e doença crônica é de 0,43 na amostra utilizada. Já a correlação entre doença crônica e dificuldade de mobilidade é de 0,17.
  • 11
    Os resultados para as estimativas de necessidade padronizada para uso de remédio com prescrição e exame de colo de útero sem covariadas não está disponível na
    Tabela 2 porque as estimativas em máxima verossimilhança não convergem. A versão não linear das funções (3) e (5), bem como o código para a sua implementação, podem ser encontrada em O'Donnell et al. (2008, p.179-182).
  • 12
    O resultado para parto é esperado já que a taxa de natalidade é maior nos mais pobres em comparação com os mais ricos. Já a desigualdade pró-pobre em tratamentos clínicos é mais complexa e pode ser provocada pelo pior estado de saúde dos mais pobres (que demandam mais tratamentos), também podem estar associados a tratamentos ligados a gestação ou pré-natal, ou ainda, menor acesso a esses serviços mesmo na rede privada, no caso de planos suplementares com pequena cobertura. Entretanto, os dados da PNAD não permitem investigar essas hipóteses.
  • 13
    Esses resultados estão mais próximos dos encontrados em Andrade et al. (2011) para IC de acesso geral aos serviços.
  • 14
    A única exceção é o
    t valor de 2,44 (inferior a 2,56) encontrado em atendimento hospitalar nas duas últimas duas semanas que é significante a 5%.
  • 15
    Conforme detalhado em O'Donnell et al. (2008), um aspecto econométrico interessante é que quanto mais próximo a soma dos fatores de necessidade e dos demais fatores forem de 100% (ou 1), menor o resíduo da estimação e melhor a aderência do modelo. Nesse caso, o modelo com pior desempenho é o que analisa a desigualdade no uso de medicamentos prescritos em 12 meses.
  • 16
    Vide SIPS p.12-13 e 17.
  • 17
    Entre 1998 e 2008, o percentual da população com direito a algum plano de saúde passou de aproximadamente 18% para cerca de 25%, respectivamente, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Recebido
      28 Ago 2012
    • Aceito
      11 Out 2013
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