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Supervisão de estágio em Psicologia Escolar: enfrentando desafios e superando barreiras

Supervising internships in School Psychology: confronting challenges and overcoming barriers

Supervisión de estágio en Psicología Escolar: enfrentando desafíos y superando barreras

Historicamente, o trabalho realizado pelo psicólogo no ambiente escolar foi marcado pela realização de intervenções individuais que resolviam problemas pontuais naquele espaço, tornando o aluno e sua família os únicos responsáveis pelos acontecimentos. De fato, a psicologia escolar como uma área de atuação do psicólogo ainda encontra-se em consolidação. Na prática, por vezes, o campo do psicólogo escolar é percebido como uma psicologia clínica dentro da escola e não como uma psicologia institucional. Aliada à perspectiva clínica, o olhar remete à sua própria história quando a psicologia escolar estava a serviço da normatização daqueles alunos que não eram “normais” (Dias, Patias, & Abaid, 2014Dias, A.C.G; Patias, N.D; & Abaid, J.L.W. (2014). Psicologia Escolar e possibilidades na atuação do psicólogo: algumas reflexões. Psicologia Escolar e Educacional, 18(1), 105-111.; Oliveira-Menegotto & Fontoura, 2015Oliveira-Menegotto, L; & Fontoura, G. P. (2015). Escola e Psicologia: Uma História de Encontros e Desencontros.Psicologia Escolar e Educacional,19(2), 377-386.). Embora o conhecimento científico e a prática sobre essa forma de atuação do psicólogo tenham ampliado a visão e suas perspectivas de atuação, ainda se mantêm resquícios destas práticas normatizadoras, preconceituosas e excludentes.

Essa mesma perspectiva perpassa como representação de muitos estudantes de psicologia que, ao se depararem com estágios não clínicos, chegam às escolas “sem saber o que fazer”. Se, por um lado, alguns entendem que a psicologia escolar propõe-se a ser uma psicologia da instituição e não uma psicologia clínica, outros estudantes têm dificuldades em perceber essa diferença. Para os últimos, a seguinte frase é frequente “se não é clínica, o que eu faço na escola, então?”. Esta é uma expressão comum entre estudantes de psicologia que adentram as escolas para realizarem seus estágios. Somada a esta dificuldade, está a percepção dos próprios profissionais da educação (professores e gestores), sobre o papel da psicologia escolar que é, muitas vezes, percebida como uma psicologia do aluno que não aprende, do aluno que se comporta mal e da família que é “desestruturada” (Patias, Abaid, & Gabriel, 2011Patias, N.D; Abaid, J.L.W; & Gabriel, M.R. (2011). Concepções de família na escola e sua influência na aprendizagem: Um relato de experiência. Psicopedagogia OnLine, s/v, 1-5. Disponível em: http://www.psicopedagogia.com.br/new1_artigo.asp?entrID=1390#.VjTbjrerTIU
http://www.psicopedagogia.com.br/new1_ar...
; Moreira & Guzzo, 2014Moreira, A.P; & Guzzo, R.S. (2014). A psicologia que defendemos na escola que vivemos: Uma contribuição dos bastidores do ‘Voo da Águia”. (pp. 13-26). In: Guzzo, R.S. (Org.), Psicologia Escolar: Desafios e bastidores na Educação Pública. Campinas, SP: Alínea.; Souza, 2009Souza, M.P.R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional 13(1), 179-182.; Trigueiro, 2015Trigueiro, E.S.O. (2015). A Psicologia Escolar e o estudante de Psicologia: elementos para o debate. Psicologia Escolar e Educacional , 19(2), 223-232.).

Este relato de experiência deriva da experiência das supervisões de estágio básico e específico em escolas públicas em diferentes cidades do Rio Grande do Sul, RS, Brasil. O objetivo principal é descrever os principais desafios encontrados tanto no espaço de estágio, como nas dificuldades de alguns estagiários estudantes de psicologia em ampliar o olhar para uma psicologia da escola - concepção emergente - e não apenas do aluno ou de sua família.

As supervisões de estágio ocorrem semanalmente, em horários pré-definidos, em grupo, coordenado pelo professor supervisor de estágio. No primeiro encontro são estabelecidas as normas de estágio, bem como é realizado o acordo referente à ética e ao sigilo do grupo. Nessa ocasião, supervisor e estagiários agendam uma visita a cada local de estágio para conhecer a realidade de cada escola personalizando, assim, a supervisão de cada instituição de ensino. As escolas - locais de estágio são, geralmente, públicas (Estaduais e Municipais) atendendo, em geral, a populações em situação de vulnerabilidade social. Na supervisão de estágio, os estudantes relatam suas experiências semanais dos estágios, podendo compartilhar ansiedades, desafios e formas de atuação com os colegas e supervisor.

Geralmente, os estagiários referem demandas da escola que dizem respeito, principalmente, aos problemas de comportamentos dos alunos (“falta de limites”), dificuldades no aprendizado, relacionamentos conflituosos com professores e dificuldades relacionadas às famílias que não comparecem à escola ou “não dão limites aos filhos”. Muitas vezes, a escola pede que os estagiários atendam clinicamente os alunos, ou seja, realizem psicoterapia com os alunos da escola. Em outras vezes, os acadêmicos são chamados para “apagar incêndios” como, por exemplo, quando há alguma discussão entre alunos, brigas, ou para substituir professores que faltaram naquele turno. Essas demandas são sempre discutidas em supervisão, de forma a repensar a atuação profissional e como intervir no sentido de possibilitar o olhar ampliado sobre a psicologia escolar. Entre as práticas sugeridas estão a realização de observações, escutas relacionadas a queixas individuais ou de um grupo específico de alunos, pais e professores, bem como de grupos operativos, oficinas e palestras informativas.

No entanto, nem sempre há um entendimento por parte da escola sobre qual é a tarefa do psicólogo ou estagiário escolar, sendo este levado a realizar atividades que não lhe dizem respeito, e a aproveitar os pequenos espaços que são cedidos para intervir: conselho de classe, falta de professor, encontros de dia das mães e/ou pais/ família etc. Apesar das visitas de esclarecimento realizadas nos locais de estágio pelas supervisoras acadêmicas, o estagiário ainda é solicitado a auxiliar na resolução de problemáticas que fogem ao âmbito da psicologia escolar, quando, por exemplo, é chamado a cobrar os alunos por não terem vindo com o uniforme escolar. Outra situação comum, diz respeito a retirar o “aluno problema” da sala de aula, pois o professor precisa dar continuidade aos conteúdos e aquele está “atrapalhando”. Cria-se uma solução idealizada e coloca-se uma expectativa grande no trabalho do estudante de psicologia que faz estágio na escola, como se retirar o aluno e levá-lo para conversar com o estagiário fosse resolver todas as demandas de comportamento e disciplina relacionados à comunidade escolar. O oposto também ocorre, quando os estagiários não são chamados para auxiliar na decisão de transferência de um suposto “aluno problema”, ou para realizar atualizações do Projeto Pedagógico da escola. Tais ações evidenciam que há ainda uma franca demanda de esclarecimento sobre o papel do psicólogo na escola, o que deve ser realizado pela própria Psicologia. O documento Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica (Conselho Federal de Psicologia {CFP}, 2013Conselho Federal de Psicologia. (2013). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Brasília: CFP.) elenca algumas atividades que podem ser priorizadas nesse contexto, sempre com o foco no coletivo: participar da elaboração, avaliação e reformulação do Projeto Pedagógico da escola, destacando a dimensão psicológica da realidade escolar; intervenções no processo de ensino-aprendizagem; formação continuada de professores; educação inclusiva, rompendo com práticas excludentes e grupo com alunos. Este documento também ilustra os desafios profissionais neste contexto, o que vem ao encontro da presente discussão.

O estágio, para o estudante de psicologia, é o primeiro contato real com o trabalho extraclasse. Desta forma, é natural perceber que a ansiedade, por vezes, se sobrepõe ao desejo de trabalhar. A insegurança do estagiário não difere de um local para outro, isso pode ser observado no trabalho de Ulup e Brasilino (2012Ulup, L; & Brasilino, B.R. (2012). A formação profissional e a ressignificação do papel do psicólogo no cenário escolar: uma proposta de atuação - de estagiários à Psicólogos Escolares. Psicologia Ciência & Profissão, 32(1) 250-263. ), quando relatam que após algum tempo no local de estágio, os estudantes de psicologia são surpreendidos com as primeiras queixas trazidas por pessoas da escola de que estavam precisando desesperadamente que o estagiário desse “uma olhadinha” em determinado aluno, afirmando ter certeza de que este “deve ter alguma coisa”, inúmeras vezes sustentando um diagnóstico feito aleatoriamente pela própria escola. Este fato provoca inquietação nos estagiários que não sabem se atendem ao pedido da professora, com a qual estão tentando estreitar laços, ou se o recusam. Ao recusá-lo, correm o risco de terem seus projetos de estágio colocados em segundo plano nas ações escolares, pois necessitam de autorização da escola para realizá-los; por outro lado, ao aceitarem, também correm o risco de não conseguir dar conta das demandas clínicas que surgirão apoiadas nesta “olhadinha”. Nesse sentido, os pedidos sedutores das escolas para que ocorram intervenções individualizantes e/ou excludentes são os mesmos que os futuros profissionais enfrentarão no mercado de trabalho e podem ser vistos também como um treino.

Finalmente, as supervisões, realizadas semanalmente, contribuem para que o estagiário possa relatar as dificuldades e as possibilidades encontradas dentro da escola e problematizá-las, sugerindo ações nesse sentido que ele mesmo possa construir. A troca com os outros estagiários, quando as supervisões são realizadas em grupo, permite que sejam compartilhadas as angústias e também sejam ampliadas as sugestões para melhorar o trabalho de cada estudante de psicologia. É importante enfatizar a necessidade de instrumentalização teórica paralelamente à prática dos estagiários para que fiquem mais seguros nas tomadas de decisões que serão necessárias em suas intervenções. Entre essas, estão as perspectivas sócio-históricas e contextuais (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed.; Vygotsky, 2000Vygotski, L.S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.) e os documentos técnicos (CFP, 2013Conselho Federal de Psicologia. (2013). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Brasília: CFP.; Guzzo, 2012Guzzo, R.S.l. (Org.). (2012). Psicologia escolar: LDB e educação hoje. 4. ed. Campinas, SP: Alínea, 2012).

Referências

  • Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos Porto Alegre: Artmed.
  • Conselho Federal de Psicologia. (2013). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica Brasília: CFP.
  • Dias, A.C.G; Patias, N.D; & Abaid, J.L.W. (2014). Psicologia Escolar e possibilidades na atuação do psicólogo: algumas reflexões. Psicologia Escolar e Educacional, 18(1), 105-111.
  • Guzzo, R.S.l. (Org.). (2012). Psicologia escolar: LDB e educação hoje 4. ed. Campinas, SP: Alínea, 2012
  • Moreira, A.P; & Guzzo, R.S. (2014). A psicologia que defendemos na escola que vivemos: Uma contribuição dos bastidores do ‘Voo da Águia”. (pp. 13-26). In: Guzzo, R.S. (Org.), Psicologia Escolar: Desafios e bastidores na Educação Pública Campinas, SP: Alínea.
  • Oliveira-Menegotto, L; & Fontoura, G. P. (2015). Escola e Psicologia: Uma História de Encontros e Desencontros.Psicologia Escolar e Educacional,19(2), 377-386.
  • Patias, N.D; Abaid, J.L.W; & Gabriel, M.R. (2011). Concepções de família na escola e sua influência na aprendizagem: Um relato de experiência. Psicopedagogia OnLine, s/v, 1-5. Disponível em: http://www.psicopedagogia.com.br/new1_artigo.asp?entrID=1390#.VjTbjrerTIU
    » http://www.psicopedagogia.com.br/new1_artigo.asp?entrID=1390#.VjTbjrerTIU
  • Souza, M.P.R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional 13(1), 179-182.
  • Trigueiro, E.S.O. (2015). A Psicologia Escolar e o estudante de Psicologia: elementos para o debate. Psicologia Escolar e Educacional , 19(2), 223-232.
  • Ulup, L; & Brasilino, B.R. (2012). A formação profissional e a ressignificação do papel do psicólogo no cenário escolar: uma proposta de atuação - de estagiários à Psicólogos Escolares. Psicologia Ciência & Profissão, 32(1) 250-263.
  • Vygotski, L.S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem São Paulo: Martins Fontes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2016
  • Aceito
    03 Mar 2017
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