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O atendimento a queixas escolares no CRAS

The response to school complaints in CRAS

La atención a quejas escolares en el CRAS

Resumo

Este relato de experiência apresenta a atuação do psicólogo em grupos multifamiliares realizados em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) com benefciários do Programa Bolsa Família (PBF), em descumprimento da condicionalidade da educação. Em uma abordagem breve e focal, foram formados grupos multifamiliares, compostos por a 10 e 15 responsáveis pelo cadastro da família - sobretudo as mães. No grupo era abordado e problematizado o entendimento das mães para o que vinha acontecendo para que seus flhos faltassem à escola. Buscando uma relação horizontal, as mães eram convidadas a expressarem suas hipóteses, refletindo sobre elas e sobre as possibilidades de enfrentamento. Considera-se que a Psicologia Escolar fornece importantes subsídios para que se desenvolvam formas de atendimento que superem a costumeira culpabilização das famílias pobres pelas difculdades que vivem, buscando a produção dessas em contextos necessariamente mais amplos.

Palavras-chave:
Atuação do psicólogo; Psicologia Escolar; famílias

Abstract

This experience report presents the performance of the psychologist in multifamily groups carried out in a Social Assistance Referral Center (CRAS) with benefciaries of the Bolsa Família Program (PBF), in violation of education conditionality. In a brief and focal approach, multifamily groups have formed, composed of 10 and 15 family heads - especially the mothers. In the group, the mothers’ understanding of what had been happening for their children to attend school has addressed and problematized. Looking for a horizontal relationship, the mothers have invited to express their hypotheses, reflecting on them and on the possibilities of confrontation. It is considered that School Psychology provides important subsidies for the development of forms of care that overcome the habitual blame of poor families for the diffculties they face, seeking to produce them in necessarily broader contexts.

Keywords:
Psychologist’s performance; School Psychology; families

Resumen

Este relato de experiencia presenta la actuación del psicólogo en grupos multifamiliares realizados en un Centro de Referencia de Asistencia Social (CRAS) con benefciarios del Programa “Bolsa Familia” (PBF), en incumplimiento de la condicionalidad de la educación. En un abordaje breve y focal, se formaron grupos multifamiliares, compuestos por a 10 y 15 responsables por el catastro de la familia - sobretodo las madres. En el grupo era abordado y problematizado el entendimiento de las madres para lo que venía sucediendo para que sus hijos faltasen a la escuela. Buscando una relación horizontal, las madres eran invitadas a expresar sus hipótesis, reflexionando sobre ellas y sobre las posibilidades de enfrentamiento. Se considera que la Psicología Escolar fornece importantes subsidios para que se desarrollen formas de atención que superen la habitual culpabilidade de las familias pobres por las difcultades que viven, buscando la producción de esas en contextos necesariamente más amplios.

Palabras clave:
Actuación del psicólogo; Psicología Escolar; famílias

Neste relato de experiência, apresentaremos grupos multifamiliares realizados em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) com beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), em descumprimento da condicionalidade da educação, referente à exigência de frequência escolar mínima de 85% para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos e 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos (Brasil, 2009aBrasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009a). Guia para o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. Brasília: MDS.). Tais atendimentos foram desenvolvidos em um município da Grande São Paulo, entre 2009 e 2011, lastreados pela ideia de que o descumprimento da condicionalidade se tratava de um processo complexo, no qual as relações aluno-escola-família deveriam ser o foco de intervenção.

O CRAS, enquanto integrante da proteção social básica do SUAS - Sistema Único de Assistência Social, tem por responsabilidade desenvolver ações de prevenção a situações de risco social, sobretudo a partir do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários (Brasil, 2009bBrasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009b). Orientações técnicas - Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Brasília: MDS .). Dessa forma, o CRAS recebia ao longo do ano do órgão gestor municipal listagens com dezenas de famílias que receberam sanções que variavam de advertência ao cancelamento do benefício por terem descumprido a condicionalidade do PBF e que subsidiariam ações por parte da equipe técnica, composta por psicólogos e assistentes sociais.

Costumeiramente, os responsáveis pelo cadastro das famílias passavam por atendimentos individuais, em que se falava sobre a sanção recebida e de supostos problemas familiares que fariam com que seus filhos faltassem à escola. Reforçava-se a importância da escola para o rompimento do ciclo da pobreza entre gerações, dizendo-se que deveriam fazer com que a criança voltasse à escola e fazendo encaminhamentos necessários, para os órgãos gestores da Educação e Conselho Tutelar. Apesar de previsto, quase nenhum recurso para a reversão da sanção recebida era apresentado.

Uma nova possibilidade de atendimento

Entendendo-se que esse modo de se lidar com essas famílias acabava por individualizar o descumprimento da condicionalidade, já que a própria família era tida como a responsável pela baixa frequência escolar de seus filhos, foi proposta uma nova modalidade de atendimento, inspirado na orientação à queixa escolar, conforme proposto por Souza, B. (2010Souza, B.P. (2010). Apresentando a Orientação à Queixa Escolar. In: Souza, B.P. (Org.), Orientação à Queixa Escolar (pp. 97-116). São Paulo: Casa do Psicólogo .). Em uma abordagem breve e focal, foram formados grupos multifamiliares, compostos por a 10 e 15 responsáveis pelo cadastro da família - sobretudo as mães - , nos quais seriam discutidas possíveis razões para o recebimento da sanção, aos moldes da triagem de orientação proposto pela autora.

Nos encontros realizados com os grupos, que duravam cerca de duas horas, era abordado e problematizado o entendimento das mães para o que vinha acontecendo para que seus filhos faltassem à escola. Buscando uma relação horizontal, as mães eram convidadas a expressarem suas hipóteses, refletindo sobre elas e sobre as possibilidades de enfrentamento. Grande parte delas estranhava o recebimento da sanção, não se lembrando de nenhuma situação de falta ou falando de situações pontuais, como um momento de doença, quando o atestado médico fora apresentado à escola. Mudanças de escola, sem atualização do cadastro da família no CRAS também eram muito frequentes. Raras foram as situações em que a baixa frequência escolar estava diretamente ligada a questões familiares, como violência doméstica ou negligência.

Pretendeu-se um segundo encontro, mas poucas foram as famílias que voltaram. Nesse primeiro (e muitas vezes único) atendimento, eram também trazidas outras demandas, referentes a questões financeiras e dificuldades no convívio familiar, o que implicou em um acompanhamento sistemático e contínuo das famílias. Percebeu-se que essa montagem permitiu ao CRAS compreender melhor como o descumprimento da condicionalidade se dava, ao mesmo tempo em que foi um momento importante para que as famílias conhecessem o equipamento, que começaria a se constituir como espaço de referência a elas.

Ao longo dos encontros realizados com os grupos entendeu-se não haver questões familiares produzindo baixa frequência escolar, que pareciam estar relacionadas a certos funcionamentos escolares, tais como dificuldades de deslocamento até a escola, devido à falta de transporte escolar e que se agravava em dias de chuva; a dificuldade em comprar todo o material escolar e uniforme e em pagar taxas exigidas por algumas escolas, mesmo públicas, o que acabava adiando o início do ano letivo para aqueles que não conseguissem arcar com todas as exigências; a falta de vagas no início do ano letivo ou para aqueles que haviam se mudado para a cidade em outros períodos. Situações de violência institucional também foram trazidas, como a ridicularização de alunos por problemas de saúde, deficiências ou por não conseguirem aprender. O tráfico, os conflitos que redundavam em agressões físicas e ameaças, também.

Situações de alunos que iam para a escola diariamente, mas que não entravam na sala de aula também foram relatadas. As mães eram cobradas para que fizessem os filhos assistirem às aulas e deixarem de bagunçar pelos corredores. Isso era recorrente sobretudo entre adolescentes, que cursavam os anos finais do Ensino Fundamental e eram pouco alfabetizados, frente aos quais os professores diziam não ter o que fazer. Essas eram situações de longa data e que tendiam à ruptura total de vínculos com a escola, com seu abandono.

Alguns desafios

Considerando que o CRAS busca intervir sobre aquilo que produz vulnerabilidades, tornou-se necessário conhecer de perto os contextos nos quais o descumprimento da condicionalidade se dava, isto é, a realidade das escolas da região. Para isso, passou-se ao longo do tempo a compor novos grupos multifamiliares de acordo com a escola em que crianças e adolescentes com baixa frequência escolar estudavam, como uma forma de conhecer melhor as questões de cada escola e que subsidiariam ações posteriores.

A partir do que era trazido pelas famílias, buscou-se o contato telefônico e por escrito com as escolas, visando a troca de informações sobre os problemas evidenciados nos grupos, bem como formas coletivas de os enfrentar. Entretanto, na maior parte das vezes, o contato foi pouco viável, devido a dificuldades em se agendar horário com a equipe escolar e a falta de retorno ao pedido de informações sobre alunos. Diante disso, investiu-se em ações de articulação da rede, com a visita às escolas e outros equipamentos do território, além de reuniões mensais com todos, a fim de se discutirem casos emblemáticos.

Nesse contexto, passou-se a entrar com recursos visando o cancelamento das sanções recebidas pelas famílias, argumentando-se não ter havido descumprimento de condicionalidade (já que a baixa frequência escolar se relacionava com questões escolares) e que a perda do benefício, agravaria as vulnerabilidades vividas, além de reforçar o estereótipo de que famílias pobres pouco valorizam a escolarização de seus filhos, necessitando de um “incentivo”, sobretudo financeiro, para os levarem para a escola

Dessa forma, o atendimento dessas famílias pelo CRAS deve procurar também evidenciar e enfrentar funcionamentos escolares, que dizem respeito a um campo de forças políticas, econômicas, sociais, institucionais, produtores do descumprimento da condicionalidade da educação, para além de questões individuais ou familiares de natureza física, emocional ou social, como hegemonicamente se dá no trato das queixas escolares (Patto, 1999Patto, M.H.S. (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Souza, M., 2010Souza, M.P.R. (2010). Prontuários revelando os bastidores: do atendimento psicológico à queixa escolar. In: B.P. Souza (Org.), Orientação à Queixa Escolar (pp.27-58). São Paulo: Casa do Psicólogo). Percebe-se, assim, que a Psicologia Escolar fornece importantes subsídios para que se desenvolvam formas de atendimento que superem a costumeira culpabilização das famílias pobres pelas dificuldades que vivem, buscando a produção dessas em contextos necessariamente mais amplos. Afinal, a atuação da Psicologia Escolar deve ultrapassar os muros da escola, sem perder de vista os efeitos da escola e do processo de escolarização na vida dos sujeitos.

Referências

  • Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009a). Guia para o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família Brasília: MDS.
  • Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009b). Orientações técnicas - Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Brasília: MDS .
  • Patto, M.H.S. (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Souza, B.P. (2010). Apresentando a Orientação à Queixa Escolar. In: Souza, B.P. (Org.), Orientação à Queixa Escolar (pp. 97-116). São Paulo: Casa do Psicólogo .
  • Souza, M.P.R. (2010). Prontuários revelando os bastidores: do atendimento psicológico à queixa escolar. In: B.P. Souza (Org.), Orientação à Queixa Escolar (pp.27-58). São Paulo: Casa do Psicólogo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2016
  • Aceito
    20 Nov 2017
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