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ESTADO, AUTORITARISMO E LUTA DE CLASSES

O conjunto de textos que compõe este número da Revista Katálysis, enfeixados na relação Estado, autoritarismo e luta de classes, não poderia ser mais oportuno e necessário para refletir sobre as inquietações e desafios do tempo presente. Os textos revelam uma forte conexão com realidades pulsantes em diversos quadrantes do mundo, enfocando dimensões e tendências que enfrentam a compreensão do capitalismo contemporâneo e suas formas vivas de barbárie. Sob o ponto de vista do continente latino-americano, os textos recuperam as determinações sócio-históricas, econômicas, políticas e culturais que caracterizam o caráter dependente das suas formações particulares, chamando atenção para as referências que encontram, na totalidade da vida social, a sua crítica.

Neste sentido, os escritos aqui publicados dialogam, em sua maioria, com vertentes da tradição marxista, reivindicando a memória e a trajetória dos povos explorados e oprimidos da América Latina, Caribe e também Ásia e África, reconstruindo a natureza do Estado e das forças sociais em presença e como elas se movimentam para enfrentar as formas de dominação burguesa e as conjunturas de violência estrutural a que estão submetidos.

Ao situar o caráter classista do Estado e suas articulações com as classes e frações capitalistas dominantes no mundo, os artigos remetem à condição subalterna e periférica das economias analisadas, enfatizando a ideia de que as dimensões econômicas e políticas são indissociáveis e indispensáveis para sustentar os processos autoritários historicamente vigentes e, fundamentalmente, para tornar subjetiva a objetividade burguesa.

À abordagem da inserção econômica dos países em tela evoca o par conceitual desenvolvimento-desigualdade para explicar a sociabilidade construída e, a ela comparecem, não de forma hierárquica, elementos fundamentais que conformam modos de vida compatíveis com a racionalidade burguesa. Aqui fica evidenciado o quanto as economias dependentes e seus governantes locais, sob contextos diversos, abdicaram da construção de projetos nacionais, desde os interesses “dos de baixo” e se inseriram no mercado mundial de forma desigual e combinada, mas, alavancando, sempre, os processos de expansão e reprodução do capital.

As análises sobre o tema são profundamente matrizadas pelo pensamento do saudoso Florestan Fernandes e reivindicado para pensar o Brasil e sua configuração econômica, sociopolítica e cultural, bem como as redes de poder que foram tecidas no interior do Estado, em associação com o capital estrangeiro. Nessa totalidade, a dominação imposta sobre os explorados e verdadeiros produtores da riqueza socialmente produzida incidiram prioritariamente sobre os negros/as e os povos originários, sendo essencialmente marcada por formas violentas de expropriação das suas terras, ausência de proteção social e passivização das suas lutas. Não menos importante, são evocados autores que se debruçaram sobre o passado colonial e o movimento histórico das realidades particulares, tratando-as teórica e metodologicamente como uma unidade na diversidade. Em outros termos, há traços e elementos comuns que emolduram a constituição destas sociedades, nos aspectos referentes às suas dinâmicas produtivas e de acumulação - caracterizadas pela ação predatória dos seus recursos naturais - e graus de relações políticas, sociais e culturais distintos que se estabeleceram entre as classes sociais, desaguando em formas políticas que transitaram entre as funções de coerção e consenso do Estado - não de forma excludentes - para administrar a luta de classes.

É justamente sob esse aspecto que os textos se reportam, acertadamente, às heranças das ditaduras sangrentas, particularmente na América Latina, para entenderem o significado de um período obscuro e de aniquilamento de liberdades democráticas, ao tempo em que as classes e frações das classes dominantes atuavam para expandir sua capacidade de produzir uma sociabilidade burguesa com o fito de assegurar as condições de reprodução das relações sociais capitalistas.

As ditaduras de tipo civil-empresarial-militar nos contextos latino-americanos, por meio do Estado, praticaram as mais bárbaras expressões de violência, desenvolveram os métodos mais eficazes de controle e disciplinamento da força de trabalho e forjaram mecanismos ideológicos de naturalização das desigualdades sociais, regulando formas jurídicas e políticas de superexploração da força de trabalho e do seu domínio, com a ativação permanente de aparelhos privados de hegemonia para impedir o avanço das organizações populares e partidárias. A face mais reacionária do Estado e dos seus governantes locais deixaram marcas destrutivas na vida social - nos seus aspectos proativos e reprodutivos - que as análises empreendidas nos textos apresentados não deixaram escapar. Neste sentido, tomaram estas referências históricas para analisar a emergência, o desenvolvimento e as condições sob as quais se efetivaram os processos de transição política dos países latino-americanos e suas experiências democráticas - ainda que restritas e nos marcos da sociabilidade burguesa - considerando a crise capitalista mundial que se aprofundava a partir dos nos 1970, a qual exigia respostas efetivas para recomposição do padrão de acumulação capitalista e das suas formas de dominação.

Ao resgatar os processos de reestruturação produtiva do capital combinados às políticas neoliberais que se espraiaram pelo mundo, os/as autores/as fizeram recortes analíticos nos seus objetos de pesquisa que ensejaram reflexões sobre as determinações gerais desse processo, bem como as mediações necessárias para se apropriar, teoricamente, do movimento do real. Assim, a produção do conhecimento aqui exposto segue a trilha de compreender os fundamentos que iluminam o presente e as expressões contemporâneas e particulares das quais tratam, com o compromisso de entender as características das formações sócio-históricas das realidades estudadas, apreender as novas configurações entre Estado-mercado mundial e o movimento das classes e, fundamentalmente, os fenômenos produzidos como caldo cultural emanado desse contexto.

É fato que o contexto das saídas para a crise mundial, para além das questões objetivas, tais como o aprofundamento das desigualdades, o aumento do desemprego, do pauperismo, da informalidade, da devastação ambiental, dentre outras, vem acompanhado da eliminação de direitos de proteção social, perseguição e genocídio das populações negras, indígenas, quilombolas, jovens de periferia, mulheres, movimentos LGBTQI+, e ganha força e expressão sobre as questões subjetivas, por meio de um projeto de reforma intelectual e moral conduzido pelas burguesias mundiais e suas frações mais reacionárias e conservadoras, cujo maior fenômeno e ameaça é a ascensão de movimentos de extrema-direita de espectro transnacional.

As contrarreformas de caráter ultraneoliberal que desregulamentaram o mundo do trabalho e as sociabilidades coletivas, aliadas à organização das direitas em nível internacional, dão o tom da profunda regressão dos processos civilizatórios, realinhando e reatualizando os mecanismos, formas e meios de dominação burguesa, pela via do Estado e dos aparelhos privados de hegemonia, de onde se destacam a mídia, as igrejas e as chamadas organizações da sociedade civil, representadas pelos intelectuais do capital.

A ofensiva das direitas, entranhadas nos governos nacionais com ramificações internacionais, inclui desde a formação de quadros intelectuais e militantes para o seu projeto até uma amplificada e cada vez mais eficiente rede de informações que vão desde as redes sociais até a organização e fortalecimento de corporações para adequar e conformar modos de vida, valores, ideias, representações do sujeito neoliberal. Cabe também destacar, nesse processo, a profusão de igrejas de cariz neopentecostal que aglutinam um exército de seguidores em torno das suas propostas e ideologias e que põe, no centro das discussões, a valorização da família, da tradição, do trabalho como prosperidade e moralização das formas de ser e de viver.

Os estudos retratados neste número da Revista enfocam diversos aspectos relacionados à profusão, capilaridade e incidência destes movimentos políticos e/ou religiosos sobre as práticas e lutas sociais, revelando o permanente tensionamento e disputas em torno de pautas de garantias de conquistas, especialmente das minorias, e de criminalização das suas resistências, em face da ofensiva moral sem limites que tem pesado sobre o direito à vida.

Fundamentalismos, meios midiáticos que difundem fake news, negacionismos da ciência, irracionalismos e revisionismos históricos operam de forma molecular e sofisticada, encontrando em governantes de plantão as justificativas para as suas iniciativas alienadoras e reprodutoras da ordem social burguesa.

Na esteira dessa dinâmica mais geral, as eleições de Trump, nos Estados Unidos e de Bolsonaro no Brasil, são exemplares do percurso e de ações dos movimentos de extrema-direita no Continente. Não que eles não existissem, mas, o contexto da crise capitalista aguçou os arroubos contrarrevolucionários, potencializando o que já vinha sendo assistido nos países europeus, por meio das manifestações xenofóbicas, racistas, machistas, de ódio aos imigrantes e aos novos pobres das nações desenvolvidas. Cenário mais que favorável para que os governos buscassem legitimar a violência institucional contra os grupos subalternizados e assumissem a coerção como prática cotidiana e naturalizada. No Brasil, em particular, o governo neofascista de Jair Bolsonaro, tem cumprido esse papel, apoiado em uma base parlamentar e militarista.

O ascenso de movimentos nacionalistas, conservadores e reacionários no mundo provocou, pari passu, a mobilização de setores da sociedade, com destaque para a onda de protestos protagonizadas pelos movimentos feministas e movimentos antirracistas, que imprimiram dinâmicas de organização criativas e souberam dar visibilidade e capilaridade as suas reivindicações.

Desde o ponto de vista econômico, a gestão da crise passou pelo apagamento das chamadas experiências neodesenvolvimentistas ou social-liberais, levadas a cabo em diversos países da América Latina a partir dos anos 2000, e consequente recuperação dos princípios econômicos liberais que permitiriam, por meio de programas de ajustes e reformas, baixar os custos de reprodução da força de trabalho e impulsionar os lucros capitalistas. A conciliação de classes e a “nostalgia do fordismo”, tal como conhecemos, não abriga mais possibilidades nesse contexto, seja pela impossibilidade de compatibilizar democracia e capitalismo, seja porque o capitalismo financeirizado e as frações rentistas das classes dominantes não aceitam qualquer compromisso para distribuir a riqueza socialmente produzida.

São estas as linhas gerais e tendências apontadas nos textos publicados. Muitos deles refletiram, à luz do cenário da pandemia da COVID 19, a permanência, o aprofundamento das desigualdades e o esgarçamento das formas coletivas de sociabilidade, marcadas pela coexistência de formas arcaicas e modernas de superexploração da força de trabalho e novas formas de subsunção real do trabalho ao capital.

Contraditoriamente, a tragédia social que estas formas históricas de dominação burguesa produzem cotidianamente em todo mundo, também impulsionam lutas. E as perspectivas de renovação das lutas são sinalizadas nos textos da Revista, demonstrando que os/as pesquisadores/as têm acumulado análises e reconhecido as necessidades e possibilidades de compreensão analítica dos processos sociais pela via da análise histórica e totalizadora de cada situação concreta. O que implica considerar que as organizações das classes subalternas têm o desafio de incorporar as bandeiras e as pautas dos diversos movimentos sociais em presença e dar sentido e direção ao “novo” que ainda não pode aparecer.

Recife, 30 de novembro de 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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