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O jogo no ensino de química e a mobilização da atenção e da emoção na apropriação do conteúdo científico: aportes da psicologia histórico-cultural

The game in chemical education and the mobilization of attention and emotion in the appropriation of scientific content: contributions of historical-cultural psychology

Resumo:

Este trabalho apresenta uma pesquisa empírica de cunho qualitativo que mostra algumas possibilidades do jogo didático para mobilizar a atenção e a emoção dos estudantes em aulas de química no ensino superior. Seu referencial teórico-metodológico é a psicologia histórico-cultural. Como resultado, a pesquisa mostra que o jogo permite que os estudantes fiquem mais atentos ao conteúdo do que numa aula comum, uma vez que a situação de regras e liberdade cerceada da atividade lúdica mantêm o aluno atento ao conteúdo científico atuando na sua zona de desenvolvimento próximo. No caso da emoção, vemos que o jogo pode deixar nos estudantes marcas emocionais que os ajudam a reconhecer sua capacidade de aprender ciência e torna o conteúdo mais facilmente compreensível e recordável.

Palavras-chave:
Ludicidade; Jogos; Ensino de química; Psicologia histórico-cultural; Ensino superior

Abstract:

This paper presents empirical research of a qualitative nature that shows how the didactic game mobilizes the attention and emotion of the students in the chemistry classroom in higher education. The theoretical framework used in the article is historical-cultural psychology. As a result, the survey shows that the game allows students to become more aware of the content than in an ordinary class, since the situation of rules and freedom within this playful activity keeps the student aware of the scientific content and its development. In the case of emotion, we can see that the game can have an emotional impact on students to help them recognize their ability to learn science and leave the content easier to understand and remember.

Keywords:
Playfulness; Games; Chemistry teaching; Historical-cultural psychology; Higher education

Introdução

O número de jogos na área de ensino de química vem crescendo muito. A tentativa de tornar as aulas mais divertidas e dinâmicas tem sido incessante por parte dos professores, que procuram vários modos de chamar a atenção dos alunos para a química. Com o Programa de Iniciação à Docência (PIBID), os jogos ganham mais destaque, uma vez que os professores em formação tendem a encontrar nos jogos um meio de pensar práticas "inovadoras" e que podem ser aplicadas no ensino médio, em diálogo com o professor da escola.

Se os jogos para o ensino de química aumentam a passos largos, o mesmo não acontece com as pesquisas sobre suas contribuições e limitações para o aprendizado dos conceitos químicos. De modo geral, as pesquisas na área são teoricamente frágeis e contribuem muito pouco para a reflexão do professor que inicia sua carreira ou já está em exercício. O que vemos é uma série de pesquisas sobre jogos no ensino de química que não evidenciam suas bases teóricas nem descrevem os aspectos metodológicos e os resultados necessários para se pensar uma prática lúdica consistente, explorando a máxima potencialidade dos jogos. A maioria dos trabalhos é um conjunto de impressões gerais sobre o uso de jogos em sala de aula, mas que discutem muito pouco o processo que envolve sua aplicação. Encontramos reforço para nossa afirmação sobre a carência teórico-metodológica do campo do lúdico em Garcez (2014, p. 136)GARCEZ, E. S. C. Jogos e atividades lúdicas em ensino de química: um estudo estado da arte. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.:

[...] verificamos nos trabalhos frases tais como "o jogo teve aceitação total pela turma", "melhorou o desempenho", "aumentou o interesse", "envolveu os discentes", "é legal", "é bom", "é motivador", entre outras, contudo, mostrando-se vazias em sua relação com o conceito de química e necessitadas de significado no processo de ensino e aprendizagem. Tais aspectos são encorajadores ao futuro professor que planeje utilizar do lúdico em sua sala de aula, mas, mantendo-se a discussão apenas nesse nível, além de não explorarmos o potencial do lúdico para o ensino de química, estabelecemos em nossos trabalhos discussões "vazias" e submetemos o campo de pesquisa a produções com pouca validação face a outros campos de pesquisa, dada sua baixa preocupação teórica e metodológica.

Diante de tal cenário e procurando contribuir com o campo do lúdico no ensino de ciências, este trabalho visa discutir, a partir dos resultados de uma pesquisa empírica, como os jogos na aula de química podem mobilizar a atenção e a emoção do aluno de modo a favorecer sua aprendizagem de conceitos.

Para sustentar nosso artigo, tomamos o referencial da psicologia histórico-cultural. No nosso entender, essa psicologia de base marxista pode oferecer elementos contundentes para pensarmos o lúdico na sala de aula e seu papel na aprendizagem de conceitos científicos(VIGOTSKI, 2009______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009., 2010______. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

O referencial teórico: elementos da psicologia histórico-cultural para entendimento da atenção e da emoção

A psicologia histórico-cultural é um arcabouço teórico que discute o papel do psiquismo humano na perspectiva do materialismo histórico-dialético.

Nessa perspectiva, o psiquismo é tomado como reflexo psíquico da realidade objetiva, e esse reflexo se constrói a partir das funções psicológicas.

No caso do ser humano, para além daquilo que nos é dado biologicamente ou em interação imediata com o meio, o psiquismo se desenvolve pela apropriação do legado histórico-cultural que é patrimônio da humanidade. É por meio da apropriação da cultura que o homem se humaniza de fato, tornando-se coetâneo de seu tempo.

Afirmar que a cultura é formadora do homem não significa negar sua matriz biológica, mas também não significa dizer que o psiquismo humano é mera sobreposição de fatores biológicos e sociais. A partir da apropriação cultural, o homem desenvolve uma segunda natureza, que contém a unidade dialética entre o biológico e cultural:

[...] o desenvolvimento do psiquismo humano resulta do entrelaçamento e das contradições instaladas entre as "duas linhas" que regem a vida humana, ou entre dois processos: o biológico e o cultural. Por essa orientação, afirmou a intervinculação e interdependência entre ambos, de sorte que o comportamento humano não resulta nem de um enraizamento biológico, nem de um determinismo social, mas da unidade contraditória instalada entre natureza e cultura por meio do trabalho, atividade que, por excelência, engendra a relação do sujeito com seu entorno físico e social (MARTINS; MARSIGLIA, 2015MARTINS, L. M.; MARSIGLIA, A. C. G. As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita. Campinas: Autores Associados, 2015., p. 20).

Assim, quando falamos em social e cultural na perspectiva da psicologia histórico-cultural, não o fazemos com uma pitada de social no biológico, mas como uma linha de desenvolvimento crucial que, na unidade contraditória com as características da espécie, (trans)forma o psiquismo do indivíduo.

Destacar isso é importante porque entender a unidade contraditória biológico-social é fundamental para entender o que Vigotski chama de funções psicológicas superiores (FPS) e funções psicológicas elementares (FPE). As funções psicológicas elementares são as legadas pela espécie, enquanto as funções psicológicas superiores são as que existem apenas nos seres humanos, por apropriação da cultura, cuja natureza é mediada por signos e que transformam o psiquismo imediato e involuntário num psiquismo mediato e volitivo (MARTINS, 2013MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.; MARTINS; MARSIGLIA, 2015MARTINS, L. M.; MARSIGLIA, A. C. G. As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita. Campinas: Autores Associados, 2015.; VIGOTSKI, 2009______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009., 2010______. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

Evidentemente, não há no psiquismo nada como um muro, por exemplo, que separe, de um lado, as FPS e, de outro, as FPE. Elas operam simultaneamente no indivíduo, como um processo funcional único e contraditório a serviço da inteligibilidade do real. "Trata-se, portanto, de reconhecer que o substrato de toda formação superior é a inferior, que se encontra nela negada e conservada, isto é, transformada pelo contínuo confronto entre as expressões culturais e naturais, respectivamente" (MARTINS, 2013MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013., p. 88).

É nesse sentido que podemos afirmar que, se, por um lado, nenhum processo é em si puramente elementar, porque a criança já nasce imersa numa cultura, por outro, ele só se desenvolverá plenamente como FPS se a criança se apropriar do legado cultural da humanidade. Quanto mais complexa e mais rica for essa apropriação, maior será a chance de se atingirem as máximas potencialidades dessas FPS e, desse modo, melhor será seu controle sobre sua conduta, o que implica, inclusive, o domínio dos processos elementares que ainda residem no funcionamento do psiquismo.

A atenção, por exemplo, é um processo funcional que é engendrado por aspectos elementares e superiores. A atenção involuntária é um reflexo de orientação que surge a partir de estímulos externos ao organismo. Nesse caso, o indivíduo presta atenção a alguma coisa, mas o motivo de sua atenção é externo, algo que está no ambiente. Vigotski (2010, p. 154)______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009. caracteriza a atenção involuntária como:

[...] aqueles atos que se surgem em resposta a quaisquer estímulos externos que nos atraem por sua força excessiva, interesse ou expressividade. Se em um quarto eu me torno todo ouvidos ao som de um disparo, isso pode servir como melhor exemplo de atenção não arbitrária [elementar].

A origem dessa atenção voluntária está sediada nas experiências culturais, que não se desenvolvem espontaneamente a partir dos dispositivos orgânicos. É pela aquisição da linguagem que os indivíduos vão aprendendo a se concentrar e a escolher de maneira deliberada o alvo de sua atenção. Ou seja, a linguagem torna-se o meio auxiliar, o instrumento mental que medeia a interação do homem com os estímulos externos e permite que ele escolha o objeto da atenção. Desse modo, é o indivíduo, por meio do signo, quem direciona a atenção voluntária, e não o estímulo externo.

Se a FPS atenção voluntária é uma aquisição social, ela não pode aparecer no indivíduo instantaneamente. Como diz Vigotski (2012, p. 143)______. Obras escogidas. Madrid: Antonio Machado, 2012. tomo 4., "elas [as FPS] não surgem de improviso, como algo acabado, não caem do alto em certo instante, mas têm uma grande história evolutiva". Podemos dizer, portanto, que aprendemos a ficar atentos nas aulas de ciências, e isso é uma conquista social. Ou seja, a atenção se desenvolve socialmente, e aprendemos a ficar atentos a conteúdos científicos.

Não só as funções ditas cognitivas são desenvolvidas socialmente. De acordo com a psicologia histórico-cultural, os sentimentos e as emoções também são aprendidos e desenvolvidos socialmente. Aprendemos a amar ou a ser egoístas no relacionamento com os outros.

A emoção não é alguma coisa a ser contida, mas ela precisa de direção, visto que o homem não pode viver ao sabor de seus impulsos imediatos, mas precisa de objetividade emocional para agir. Essa regulação das emoções vem pela via do sentimento e dos conceitos nele envolvidos (MARTINS, 2013MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.). O domínio das emoções é uma conquista social que permite que o próprio indivíduo domine sua conduta, e esse domínio só se atinge por meio do conhecimento do mundo e de si mesmo, ou seja, ele só se concretiza pela via conceitual.

Sentir envolve conceito e pensar envolve sentimento, e podemos dizer que sentir e pensar estão umbilicalmente unidos na formação dos indivíduos. Quem pensa e sente é o indivíduo, e qualquer cisão entre esses dois aspectos é artificial e falha e não caminha na direção de uma formação omnilateral. No entanto afirmar que o papel dos jogos é contribuir para a aprendizagem de conceitos científicos que promovam desenvolvimento é muito amplo, Martins (2013, p. 252, grifo do autor)MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013. afirma:

[...] o sistema de conceitos inclui os sentimentos e vice-versa, uma vez que o ser humano não sente simplesmente, mas percebe o sentimento na forma de seu conteúdo, ou seja, como medo, alegria, tristeza, ciúme, raiva etc. Portanto, os sentimentos são vividos como juízos, guardando sempre certa relação com o pensamento, na mesma medida em que o próprio pensamento não se isenta de diferentes graus do sentimento.

O aprofundamento do aporte teórico sobre a emoção e suas vinculações com os aspectos histórico-culturais foge ao escopo deste artigo. Aqui, atemo-nos às emoções mobilizadas e desenvolvidas pelos estudantes quando postos em atitude de estudo, discutindo-as em situações de ensino e a suas relações mútuas com a aprendizagem de conceitos.

No amplo bojo da discussão sobre emoções, colocaremos a lente deste artigo sobre as alegrias, angústias e os entraves à aprendizagem do conteúdo escolar frente a uma atividade de ensino. Isso significa que partimos do pressuposto de que a educação deve-se preocupar com o sentimento do educando, levando a sua vida os mais desenvolvidos sentimentos e valores morais, mostrando, por meio da arte, da poesia, da música ou da história, as dores e conquistas do passado da humanidade, valorizando emocionalmente as conquistas relativas aos saberes escolares, discutindo - e não naturalizando - o que as pessoas sentem.

O papel da escola é mais uma vez posto em relevo, visto que ela pode ajudar o estudante a lidar com seus sentimentos, mostrando-lhe o mundo por meio de conceitos, educando seu senso estético por meio da música, da poesia, da escultura etc. Trata-se de ensinar os jovens a sentirem a obra de arte, mostrando como ela condensa sentimentos de uma época.

Ainda que elas sejam muito importantes, não cabe só às artes esse papel formativo. Os professores das outras disciplinas também precisam mostrar que conhecer o mundo é bom e, com isso, podem proporcionar uma alegria que ultrapassa o prazer imediato - uma alegria pela cultura. Snyders (1996, p. 32)SNYDERS, G. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. explica melhor essa alegria escolar:

A alegria de esperar o que me parece constituir a propriedade característica da escola: a convivência com a "cultura cultivada" que culmina na relação entre o aluno e os mais belos resultados atingidos pela cultura, as grandes conquistas da humanidade em todos os campos, desde poemas até descobertas prodigiosas e tecnologias inacreditáveis. Alegria cultural, alegria cultural escolar [...].

Vimos que os processos funcionais têm natureza social e que seu desenvolvimento depende das apropriações culturais do indivíduo e, portanto, dos conceitos que ele aprende ao longo da vida. Não podemos negar que a escola tem um papel central no desenvolvimento do psiquismo humano, uma vez que sua finalidade precípua é ensinar os conceitos clássicos que a humanidade já conquistou.

Assim, a educação escolar tem um papel importante no desenvolvimento das máximas potencialidades dos indivíduos e em seu modo de conhecer a realidade. Entendemos, portanto, que uma escola que pretende concorrer para o desenvolvimento do psiquismo deve ensinar conceitos científicos, para que eles ajudem a transformar o modo como o indivíduo pensa, sente e atua no mundo.

E os jogos? Qual o papel do lúdico nisso tudo? Na sala de aula, os jogos precisam ser um meio de difundir conhecimento de modo a favorecer uma aprendizagem que enseje desenvolvimento. Ou seja, o jogo precisa promover diversão, mas, acima de tudo, deve ter uma função educativa que concorra para a aprendizagem de conceitos científicos.

No entanto, é muito vago afirmar que o papel dos jogos é contribuir para a aprendizagem de conceitos científicos que promovam desenvolvimento. Para conhecer os aportes e as limitações dos jogos em aulas de química, precisamos estudar melhor o papel dos jogos na mobilização de funções psíquicas superiores, em particular, a atenção e a emoção. Foi no sentido de concorrer para o avanço desses estudos que se desenvolveu a pesquisa apresentada aqui.

Procedimento metodológico

O cenário empírico: o jogo e os participantes

O estudo teve lugar na Universidade Federal da Bahia, na disciplina Complementos de Química, cujo objetivo é discutir fundamentos da química abordando desde a estrutura da matéria até seus processos de transformação. O componente tem carga horária de 68 horas e costuma ser oferecido às sextas-feiras, das 13h às 17h, no curso de Ciências Naturais, abrindo vaga para alunos do curso de Nutrição.

O objetivo do curso de Ciências Naturais é formar professores de ciências para o ensino fundamental. O curso visa formar um profissional que, no ensino de ciências, não dê prioridade à biologia, mas discuta também fundamentos da química, da física e da astronomia.

O jogo foi desenvolvido para ensino e avaliação do conteúdo de interações intermoleculares e foi programado para durar quatro horas. Para jogá-lo, a sala foi dividida em cinco equipes de seis alunos, montadas por eles próprios.

Para começar o jogo, a equipe 1 deveria escolher um número e responder à questão correspondente em três minutos. Depois disso, o professor avaliava se a resposta era satisfatória ou não. Se entendesse que estava incompleta ou errada, ele escrevia no quadro palavras ou conceitos equivocados da resposta.

Caso a equipe tivesse errado ou desse uma resposta incompleta, a questão passava para o outro grupo e este teria dois minutos para reformular a resposta. Se estivesse errada, passaria para outro grupo, e assim sucessivamente, até o último. Caso este também errasse, o professor dava a resposta completa esperada. A segunda rodada começava com a equipe 2, e assim sucessivamente.

Para o primeiro grupo, a questão valia 1 ponto e, à medida que passava para outros grupos, valia menos 0,2 pontos. Os pontos das 10 questões eram coletivos, e toda a sala ganharia ou perderia. Tratava-se, portanto, de um jogo colaborativo, e, não havendo disputa entre as equipes, todos torciam para que alguém acertasse o quanto antes. Quanto mais pontos a turma ganhasse, maior seria a conversão dessa pontuação em nota no fim do semestre. Seguem alguns exemplos de questões aplicadas no jogo:

A propanona (acetona) é muito usada como solvente industrial. Seu ponto de ebulição é de 56,5º C. O pentano tem aproximadamente a mesma massa molecular, e seu ponto de ebulição é de 36,1º C. Explique a diferença de PE dessas suas substâncias. A equipe escolhe um aluno que, de olhos fechados, deve identificar três sabores de chocolate dos cinco oferecidos. Se ele acertar, a equipe tem direito a responder: Por que o ponto de ebulição da parafina (C20H42) é maior que o da água (H2O), mesmo a parafina sendo apolar?

Durante o jogo, os estudantes estavam empolgados e pareciam se divertir bastante. A atividade se estendeu até perto das 18h20 (a aula terminava às 17h) e só acabou quando todas as questões foram lidas. As regras foram facilmente compreendidas, e não houve problemas no andamento do jogo. As equipes pareciam entrosadas e procuraram responder às questões usando o conhecimento científico.

As técnicas de coleta e análise dos dados

Para a coleta de dados foi explicado como seria a disciplina e que se faria naquela turma uma pesquisa, seguindo-se a leitura e o esclarecimento do termo de livre consentimento. Os menores de idade foram orientados a levar o termo para os pais assinarem, e esses termos foram devolvidos na aula seguinte2 2 Apesar de a pesquisa ter transcorrido na universidade, havia alunos com 16 e 17 anos. .

Para atingir o objetivo de pesquisa qualitativa (LÜDKE; ANDRÉ, 1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.) optamos pela observação como técnica inicial de coleta de dados. A ideia era observar como acontecia o jogo, que processos funcionais do psiquismo eram mobilizados e como se dava a interação entre pares.

Sendo o pesquisador o próprio professor da disciplina, a observação foi registrada por câmeras colocadas em dois pontos da sala. Complementando os dados da filmagem, gravaram-se em áudio todas as discussões das equipes. Esses registros se beneficiaram ainda de aparelhos celulares dos próprios estudantes, que os cediam ao pesquisador no fim da aula.

Continuando a coleta de dados, usamos a entrevista semiestruturada, que foi feita com os estudantes individualmente alguns dias após o jogo. Antes de elaborar as questões, o pesquisador assistiu aos vídeos das aulas e montou o guia para as entrevistas. Seguem algumas questões básicas da guia da entrevista semiestruturada.

  1. Você gostou da atividade? Por quê?

  2. Você acha que estava mais concentrado do que na aula? Por quê? Em que partes você ficou mais concentrado?

  3. Quais as maiores dificuldades que você tinha com o conteúdo e que o jogo ajudou a melhorar? Explique melhor como você achava que era o conteúdo antes e como no jogo você melhorou essa compreensão.

Segundo Oliveira (2000 apud VIÉGAS, 2007VIÉGAS, L. S. Reflexões sobre a pesquisa etnográfica em psicologia e educação. Diálogos Possíveis, Salvador, v. 6, n. 1, p. 102-123, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/reflexoes-sobre-a-pesquisa-etnografica-em-psicologia-e-educacao.html>. Acesso em: 13 mar. 2017.
http://docslide.com.br/documents/reflexo...
), a entrevista é um momento em que os participantes da pesquisa discutem e pensam com o pesquisador sobre o que foi observado, permitindo que ele entenda o ponto de vista dos entrevistados.

No caso específico deste estudo, a entrevista versava sobre as impressões dos estudantes sobre o jogo. Longe de querer ouvir apenas as avaliações positivas e sua relação com a aprendizagem, era preciso considerar as dificuldades apontadas em cada depoimento.

Os processos de análise de dados

Analisar os dados implica organizar todo o material dividindo-o em partes, relacionando essas partes e procurando tendências e padrões relevantes. Em seguida, essas tendências são reavaliadas, buscando relações e inferências num nível de abstração mais alto (LÜDKE; ANDRÉ, 1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.).

No entanto, analisar não é apenas descrever o conjunto de dados coletados na pesquisa. Como afirma Patto (2008, p. 184)PATTO, M. H. S. A teoria e a pesquisa. In: ______. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 167-192., "ciência não é sistematização do óbvio, pois a obviedade não coincide com o desvelamento do real". Descobrir o real numa pesquisa significa transformar os fragmentos em partes, com a mediação da teoria, articulá-las numa totalidade concreta, que rompe com o empírico imediato e o torna concreto pensado.

Esse processo de não sistematização do óbvio demanda criar categorias que passam pelo crivo do empírico, mas que são teoricamente articuladas. O olhar de construção categórico é teórico, portanto, o pesquisador deve ter clareza de que os dados não falam por si. Criar categorias a partir do material empírico é uma das etapas mais complexas da pesquisa, pois requer um mergulho nos dados e na teoria para ver além do que já foi dito teoricamente e, eventualmente, questionar proposições teóricas já postas. Analisar os dados de uma pesquisa é ver o que ainda não está posto ou de questionar o estabelecido.

No caso específico deste trabalho, a análise dos dados transcorreu da seguinte forma:

  1. Organização cronológica dos vídeos, do material escrito e das entrevistas, para ter uma visão do processo.

  2. Impregnação dos dados, etapa em que assistimos a todos os vídeos gravados e ouvimos diversas vezes as entrevistas para nos familiarizarmos com os dados de modo a perceber melhor como aconteceu o jogo e qual foi a dinâmica de cada grupo.

  3. Na terceira etapa, passamos a olhar os dados a partir de dois aspectos já definidos teoricamente e tratados durante a explicitação do objetivo de pesquisa: mobilização dos processos funcionais atenção e emoção.

No entanto, essa transcrição ainda não esclarece que elementos devem ser considerados relevantes na exposição dos resultados. Uma série de episódios e falas mostravam a interação entre os estudantes e seu envolvimento no jogo e a mobilização dos processos de atenção e emoção, mas esses aspectos ainda eram muito gerais e superficiais para engendrar alguma contribuição ao campo do lúdico. Tanto nos vídeos como nas entrevistas, houve muitas manifestações empíricas de atenção e falta de atenção, de emoção e falta de emoção.

Em suma, havia ainda uma série de dados empíricos que deveriam integrar categorias que nos ajudassem a entender o objeto de pesquisa. Era preciso um eixo norteador para a análise, uma vez que, sem ele, se arrolariam ao acaso alguns elementos e episódios, correndo risco de excluir da análise pontos importantes ou incluir outros não essenciais.

Onde encontrar esse eixo norteador? Os indícios da resposta estavam nos escritos de Vigotski, que nos mostrou o caminho metodológico que ele mesmo percorreu para estudar as relações entre pensamento e linguagem. A pista estava no que ele chamou de unidade de análise.

Segundo o autor bielorrusso, para estudar um fenômeno, é necessário encontrar a(s) unidade(s) de análise, ou seja, a(s) parte(s) indecomponíveis que contém(êm) as propriedades do todo. Eis a analogia com que ele explica o conceito:

Ao pesquisador que procurasse resolver a questão do pensamento e da linguagem decompondo-a em linguagem e pensamento sucederia o mesmo que a qualquer outra pessoa que, ao tentar explicar cientificamente quaisquer propriedades da água - por exemplo, por que a água apaga o fogo ou se aplica à água a lei de Arquimedes -, acabasse dissolvendo a água em hidrogênio e oxigênio como meio de explicação dessas propriedades. Ele veria, surpreso, que o hidrogênio é autocombustível e o oxigênio conserva a combustão, e nunca conseguiria explicar as propriedades do todo partindo das propriedades desses elementos (VIGOTSKI, 2009______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 5).

Ou seja, o conceito de unidade de análise nos ajuda a pensar no que é essencial para explicar as propriedades do fenômeno investigado. Seria, portanto, o eixo norteador da análise, uma vez que, a partir dele, se poderiam apreender os fundamentos do objeto pesquisado.

As perguntas, então, seriam: Qual a unidade de análise adequada a esta pesquisa? Que "moléculas" formadoras do objeto deste estudo orientariam a categorização dos dados?

Para respondê-las, voltamos novamente o olhar para nosso objeto de pesquisa e nos perguntamos do que ele efetivamente trata. A resposta: trata-se da investigação de um jogo (portanto, uma atividade) e de suas relações com a apropriação do conteúdo científico. Logo, essa seria nossa unidade de análise: a relação estabelecida entre os participantes e na mobilização dos processos funcionais emoção e atenção para apropriação do conteúdo científico.

Se tratamos de uma atividade que implica a forma de apropriação do conhecimento científico, era necessário observar para onde e como se dirigia a atenção dos estudantes durante a atividade. Vimos que a atenção ajuda o indivíduo a tomar consciência do objeto, de modo que era essencial avaliar o foco que atraía a concentração dos estudantes durante o jogo. Nossa análise da atenção foi sintetizada na categoria "Jogo didático, sua potencialidade para mobilizar o processo funcional atenção e suas implicações na apropriação do conteúdo".

Quando se fala em atividades que envolvem ludicidade, o apelo ao aspecto emocional e sentimental é altamente destacado e parece haver um consenso que essas atividades mobilizam sentimentos e emoções para a atividade de estudo. Assim, entendemos que valia a pena analisar como os aspectos emocionais, tão amplamente citados na literatura, estão presentes na atividade proposta e como eles se relacionam com a apropriação do conhecimento. Nos resultados, a síntese dessa análise aparece na categoria "emoções nos jogos didáticos: marcas que contribuem para a atividade de estudo".

Cumpre esclarecer que, embora essas categorias possam parecer óbvias, dado que o referencial teórico e a introdução já indicaram que nossa análise incluiria articular conteúdos científicos e processos funcionais, sentimos a necessidade de apresentar o processo e os percalços da análise, para que o pesquisador (sobretudo o iniciante) saiba que esse processo não é trivial e que às vezes funciona como uma caixa preta, como se o pesquisador já soubesse de antemão o que encontrará e analisará.

Resultados e discussão

A partir das categorias enunciadas acima, passamos à exposição dos resultados.

Jogo didático, sua potencialidade para mobilizar o processo funcional

atenção e suas implicações na apropriação do conteúdo

Já vimos que a atenção voluntária é uma conquista social e que seu desenvolvimento depende das aquisições simbólicas do indivíduo. Aprende-se a prestar atenção.

A queixa da falta de atenção dos estudantes em sala de aula é constante. É cada vez mais difícil manter os alunos atentos à nossa fala: eles se dispersam facilmente, ficam inquietos e logo aborrecidos.

Se a formação da atenção voluntária é um processo social, entendemos que a escola tem responsabilidade no desenvolvimento dessa função. Ao nos referirmos à escola, assinalamos que o desenvolvimento das funções deve ser responsabilidade de todos os professores, desde o ensino básico até o ensino superior. Ter clareza sobre isso, o professor não pode imputar ao aluno a responsabilidade individual e biológica por sua falta de atenção, mas deve buscar formas de desenvolver essa atenção voluntária.

Para entendermos melhor o papel do jogo no desenvolvimento da atenção voluntária, recorremos aos depoimentos de dois alunos sobre a relação entre concentração, atividade lúdica e aprendizagem de conceitos:

Pesquisador: Você ficou mais concentrado no jogo do que na aula?

Will 3 3 Os nomes são fictícios e foram escolhidos pelos próprios estudantes. : Foi diferente, foi legal, foi melhor. Eu achei melhor. Por que, às vezes, a aula em si fica um pouco maçante. Aí, você acaba ficando como se fosse agoniado, você quer parar um pouquinho para entender o que aconteceu e, como não tem isso, você dá aquela sequência toda. Isso faz você perder umas partes, e aí você acaba não pegando tanto o assunto. No jogo, eu ficava mais leve e, assim, eu não tinha tantas lacunas de ficar agoniado, porque eu não ficava. Eu ficava "de boa", então, era mais fácil me concentrar.

Pesquisador: Você fica mais concentrado do que em aula? Em que parte você ficou mais concentrado?

Chico:Mais no jogo do que na aula. Prestei mais atenção à parte do jogo que não era para o meu grupo: eu tentava anotar o máximo do que o pessoal estava falando, para, quando chegasse em nós, nós tivéssemos algo mais completo.

Pesquisador: Você acha que essa atenção foi maior do que quando o professor fica só falando?

Chico: Sim.

Pesquisador: Você tem ideia de por quê?

Chico:É porque está havendo uma interação com os colegas dos outros grupos. Aí, eu consigo me concentrar mais. Quando fico sozinho, eu fico disperso. Qualquer coisa tira minha atenção.

Essas falas dos estudantes levam a refletir sobre a distração e as dificuldades de atenção em sala de aula, especialmente durante uma exposição mais longa do professor. Isso mostra a importância de se trabalhar e mobilizar a atenção voluntária para o conteúdo da química.

A fala de Will mostra como ele fica "agoniado" quando só o professor fala e chama a aula de "massiva". Poderíamos seguir, como fazem muitos dos que trabalham com jogos, tecendo críticas às aulas "tradicionais", nas quais o professor fala muito. No entanto, se o conteúdo da fala do professor for rico, não há problema que ele fale muito, mas precisa estar alerta para perceber se esse aluno desenvolveu a atenção necessária para focar no que ele está dizendo.

O caso de Chico mostra claramente que ele precisa do outro para conseguir prestar atenção. Essa conduta frente à atividade de estudo mostra a necessidade de se trabalhar com a atenção voluntária do indivíduo, uma vez que, sozinho, ele não consegue ficar atento.

Ambos os estudantes apontam que ficaram mais concentrados com o jogo e, portanto, mais atentos do que na aula regular. Para explicar isso, precisamos pensar que, no jogo, os estudantes estão envolvidos numa situação cujo foco muda constantemente. Ora falam os alunos, ora fala o professor, ora se faz uma pergunta etc. Com a mudança contínua de foco, se mobiliza bastante essa atenção ainda pouco desenvolvida, que ainda carrega traços fortes de sua origem elementar, involuntária.

Mas qual é a vantagem disso? Se o jogo é conduzido para ser efetivamente educativo, todas as vezes que o estudante mudar de foco, ele estará em contato com os conceitos envolvidos. Os colegas não estão falando de qualquer assunto, mas discutindo o conteúdo; o professor também está discutindo o conteúdo, como o próprio jogo. Por analogia, diremos que o jogo deveria funcionar como uma sala de espelhos: aonde quer que "olhe" ou se "distraia", o estudante estará diante dos conceitos científicos.

Ao entrar em contato com o conteúdo em diversos momentos, o estudante poderá se concentrar mais no conceito e ir-se apropriando dele. Apostando na unidade do psiquismo, podemos dizer, que quanto mais o estudante dominar os conteúdos científicos, mais ele desenvolverá o pensamento, mais conseguirá entender a importância desse conteúdo e mais conseguirá se concentrar voluntariamente.

Não só pela mudança de foco, o jogo tem o potencial de fazer com que os alunos se concentrem mais em determinado ponto. A existência de regras, a liberdade controlada do jogo e esse fator emocional do divertimento que está implícito em toda atividade lúdica permitem que o aluno preste mais atenção a determinado foco.

Vejamos, nos episódios abaixo, como isso acontece:

Episódio 1: A questão tratava da diferença entre ligação química e interação intermolecular. Essa equipe só teria chance de responder à questão se as três seguintes errassem.

Mafalda: Por que a ligação química não pode ser quebrada?

Peter: Pode ser quebrada, só que a necessidade de energia é maior.

Mafalda: Mas, na ebulição, não entra, não quebra.

Peter: No ponto de ebulição, vai ser a quebra da interação entre as moléculas.

Astrid: Entendeu?

Mafalda: As interações intermoleculares, então, são mais fracas que a ligação, e na ebulição não quebra. Entendi.

Episódio 2: Os estudantes estavam discutindo por que o plástico não absorve água, enquanto o papel absorve. A questão tinha acabado de passar por eles, e eles não tinham acertado completamente.

Talvez: Eu troquei a coisa toda!

Tecnécio: O plástico tem hidrocarboneto. Por isso que não interage com água.

Talvez: Dipolo instantâneo-dipolo induzido gera cargas parciais mais fracas e, como tem uma estrutura diferente, não vai se dissolver.

Tecnécio: Não é dissolver, não dissolve.

[Outros estudantes olham para as estruturas e se fixam na conversa entre Talvez e Tecnécio]

Talvez: Eu disse dissolver? Como são diferentes, eles não interagem, não. Não interagem entre si.

Tecnécio: Tem interação semelhante na interação entre si.

Talvez: Pode ser uma coisa mais complexa, e a gente nem sabe, porque eu falei isso, na hora. Só se ele não ouviu.

[Eles param de discutir o conteúdo, os outros componentes do grupo mexem no celular ou conversam, até Tecnécio retomar sua fala]

Tecnécio:O de cima interage menos ainda [refere-se à estrutura do plástico]. Interage menos que o papel normal, porque, como...

Talvez: Tem a presença de hidrocarbonetos.

Tecnécio: Em algumas cadeias de hidrocarbonetos, a interação se torna menor, e por isso não absorve.

Will: "Absorve" é a palavra.

Talvez: Semelhante dissolve semelhante, meu irmão.

Tecnécio: Quando você põe hidrocarboneto, a semelhança cai. Absorve menos - a semelhança está bem baixa.

No episódio 1, a questão era relativamente fácil e era bem provável que não chegasse ao grupo que a discutia. Os alunos poderiam se dispersar, mas vemos que eles continuam discutindo e procurando elaborar uma resposta.

No episódio 2 percebemos que, mesmo a questão já tendo passado pela equipe, seus componentes continuam discutindo, o que mostra o quão focados eles ficaram na questão. Isso é importante porque se manteve a mesma atenção com que o jogo começou; as discussões continuaram e eram qualificadas, como podemos ver nas falas de Tecnécio e Talvez. Isso mostra o quanto a atmosfera lúdica favorece o foco do estudante no conteúdo por mais tempo, concorrendo para o desenvolvimento da atenção voluntária.

Na entrevista, tivemos a oportunidade de perguntar a alguns estudantes por que eles continuaram discutindo mesmo tendo passado sua vez. Eles responderam:

Will: A gente estava discutindo para aprender mais. Porque a gente estava empolgado, então, ficava discutindo para entender melhor, criar a resposta certa. A gente se empolgava na hora e ficava discutindo um com o outro. Perdia a noção e ficava lá, porque a gente estava gostando de estar ali.

Talvez:Porque a gente estava gostando do jogo, do assunto e, como a gente conversa muito e tem uma interação, aí, cobra um do outro, brincando [...].

Pois bem, essa situação de jogo e de diversão de que os alunos gostam mostra a possibilidade de eles ficarem mais atentos ao foco do conteúdo, mais até do que ficam quando não estão em situação de jogo, uma vez que discutem até quando não seria necessário ao jogo.

Neste ponto, resgatamos um excerto de Vigotski (2008, p. 35)VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Rio de janeiro, n. 8, p. 23-36, jun. 2008. sobre o potencial da brincadeira:

[...] a brincadeira cria zona de desenvolvimento iminente na criança. Na brincadeira, a criança está sempre acima da média da sua idade, acima do seu comportamento cotidiano; na brincadeira, é como se a criança estivesse a uma altura equivalente a uma cabeça acima da sua própria altura. A brincadeira em forma condensada contém em si, como na mágica de uma lente de aumento, todas as tendências do desenvolvimento; ela parece dar um salto acima do seu comportamento comum.

Trata-se, portanto, de aproveitar essa lente de aumento criada pelo jogo e convertê-la em aquisição real do psiquismo, fazendo com que o aluno ganhe, transformando sua atenção voluntária e sua concentração durante o jogo.

Isso significa que qualquer jogo serve? Não. O jogo só terá potencial se for investido de conteúdo. Sem isso, a sala de espelhos não terá o que refletir, e o aluno estará diante de uma situação vazia, que contribuirá pouco ou nada para seu desenvolvimento.

Por fim, o professor precisa ter em mente que, ao final, ele deve prescindir do jogo (MESSEDER NETO; MORADILLO, 2014MESSEDER NETO, H. S.; MORADILLO, E. F. Motivação e ludicidade na aprendizagem de química: uma análise a partir da psicologia histórico-cultural. In: ENCONTRO NACIONAL DE JOGOS E ATIVIDADES LÚDICAS NO ENSINO DE QUÍMICA, 1., 2014, Goiânia. Anais... Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2014. p. 121-128. Disponível em: <http://www.jalequim.com.br/subpaginas/livroderesumos/docs/LIVRO_DE_RESUMOS.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2017.
http://www.jalequim.com.br/subpaginas/li...
) . Seu alvo será antes o desenvolvimento da atenção para além do jogo. Na idade adulta e na adolescência, o jogo deve servir como andaime e ser retirado à medida que os estudantes avançam na apropriação do conhecimento científico e aumentam sua atenção voluntária.

Emoções nos jogos didáticos: marcas que contribuem para atividade de estudo

A cisão entre pensamento e emoção já foi esclarecida quando discutimos a psicologia histórico-cultural, e já foi dito que é perigoso entender o aluno fragmentado, que ora pensa, ora sente, pois se pode incorrer no erro de pensar que chegou a hora de trabalhar a emoção/sentimento e que, para isso, seria preciso abandonar os conceitos científicos que povoam a escola.

Defendemos que os jogos precisam entrar nas salas de aula para favorecer a apropriação do conhecimento científico e, assim, também se trabalharão as emoções. Isso parece ser um problema para alguns pesquisadores. Vejamos o que nos diz Rabello (2013, p. 99)RABELLO, R. S. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. In: D'ÁVILA, C. M. (Org.). Ser professor na contemporaneidade: desafios, ludicidade e protagonismo. 2. ed. Curitiba: CRV, 2013. p. 91-105.:

[...] entre os professores que carregam a convicção de que seu papel é de transmitir conteúdo, as atividades lúdicas só devem existir na escola se o objetivo for a transmissão, a fixação e avaliação dos conteúdos. Hoje, o professor é visto não como um sujeito que ensina repassando conteúdos alheios à experiência de vida do aluno, mas como alguém que sabe organizar o ensino, utilizando atividades lúdicas e estéticas como forma de atingir a plenitude do sujeito.

Não podemos deixar de reforçar que é equivocado acreditar que se podem trabalhar atividades lúdicas e estéticas sem vinculá-las a transmissão, fixação e avaliação do conteúdo na escola. Advogar a plenitude do sujeito é lutar para que ele se aproprie do conhecimento científico.

O que pretendemos mostrar com nossa pesquisa neste ponto é que é possível mobilizar aspectos emocionais do estudante sem abdicar do conteúdo científico. Vejamos os aspectos emocionais que Chico aponta na entrevista sobre o jogo:

Pesquisador: Você acha que ficou mais motivado para estudar química depois do jogo? Por quê?

Chico:De manhã, eu estava almoçando com a Astrid e comentando com ela que eu já tinha aceitado o fato de que tinha perdido a matéria [...] Lembro que, durante o jogo, eu disse a ela que mudei de opinião. Agora, tenho quase certeza de que eu não vou perder, porque o jogo me fez meio que acordar.

Pesquisador: Você acha que esse acordar foi em que aspecto?

Chico:Porque percebi, durante a interação, que eu não era tão burro quanto pensava. Eu conseguia pensar em alguma coisa e dizia "meu Deus, eu consegui". Às vezes, a resposta era de um grupo e a gente já estava discutindo. Aí, eu dava algumas ideias e estava certo e eu dizia ao grupo: "Eu falei aquilo!". Me descobri mais capaz durante o jogo. Agora, depois do jogo, eu passei a estudar mais, porque vi que tinha potencial.

Destacamos que essa fala de Chico mostra o quanto o processo de escolarização pode e deve ser repensado. A imagem de "burro" que Chico constrói de si mesmo é resultado de uma sociedade e de uma escola sem sentido, que são responsáveis por sequestrar a imagem de ser pensante do indivíduo. Nesse sentido, entendemos que o jogo pode ser uma forma de melhorar a autoconsciência dos estudantes. A atmosfera lúdica permite que eles se arrisquem um pouco mais, deem sua opinião e interajam com os colegas. Com isso, o estudante vai se tornando mais consciente do que sabe, do que não sabe e de sua capacidade de aprender.

Reside aí a grande importância dos aspectos emocionais que o jogo pode mobilizar. Quando Chico se sente mais capaz e entende que pode ir em frente, é possível afirmar que essa atividade resgata elementos essenciais à aprendizagem do estudante e que, às vezes, escapam ao professor numa situação de sala de aula. Chico entende que não é "burro" e que tem potencial para estudar química.

A postura de Chico mudou muito depois do jogo. Passou a interagir e perguntar mais nas aulas e realmente conseguiu ser aprovado na disciplina. Isso não significa que o jogo seja a melhor alternativa e que resolverá os problemas da escola, mas significa que o tocou para que entendesse que poderia avançar e mudou a forma como ele entendia a si mesmo e a disciplina de química.

No entanto, esse reconhecimento da potencialidade do estudante só será possível se a atividade tiver conceitos científicos para que, durante o jogo, ele seja capaz de pensar e responder. Ou seja, o jogo deve lhe exigir mais do que ele poderia fazer sozinho, mas que poderia realizar em grupo e com o professor. (VIGOTSKI, 2009______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.).

Fazemos, neste momento, questão de chamar atenção para os professores e licenciandos que elaboram o jogo querendo fazer com que os alunos gostem da atividade e que, desse modo, se aproximem do professor e melhorem a relação entre eles. Isso é muito comum entre professores que usam músicas ou "macetes" para animar os estudantes. Esse professor tipo "show" age mais como um encantador de serpentes, porque o jogo ou essas músicas despertam emoções de cunho imediato, que aproximam, de fato, o estudante do professor, mas o afastam do conteúdo.

O despertar de emoções/sentimentos só será útil se levar à mudança dos motivos do estudante e, a partir do jogo, ele queira ir além e aprender conceitos químicos.

Vejamos como o jogo mobilizou emocionalmente Efigênia, a ponto de ela seguir pensando em "moléculas" depois da aula e até sonhar com elas:

Pesquisador: Você acha que ficou mais motivada para estudar química depois do jogo? Por quê?

Efigênia: Sim. Eu não sei, professor, mas eu até sonhei. Fui o caminho todo pensando nas moléculas de água, na minha cabeça. Por ter sido divertido, prático e os conceitos terem ficado mais claros. Acho que ajuda a estudar mais.

Essas marcas que ficaram em Efigênia, responsáveis por fazê-la sonhar e ir no caminho pensando sobre moléculas, mostram como uma atividade lúdica pode ser emocionalmente colorida, e uma atividade emocionalmente colorida é mais lembrada:

As reações emocionais exercem a influência mais substancial sobre todas as formas do nosso comportamento e os momentos do processo educativo. Queremos atingir uma melhor memorização por parte dos alunos ou um trabalho melhor sucedido do pensamento, seja como for devemos nos preocupar com que tanto uma quanto a outra atividade seja estimulada emocionalmente. A experiência e estudos mostram que o fato emocionalmente colorido é lembrado com mais intensidade e solidez do que um fato indiferente. Sempre que comunicamos alguma coisa a algum aluno devemos procurar atingir o seu sentimento. Isso se faz necessário não só como meio para melhor memorização e apreensão, mas também como objetivo em si. (VIGOTSKI, 2010______. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 143).

O próprio ato de jogar já desperta sentimentos que são importantes para a aprendizagem. Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Rio de janeiro, n. 8, p. 23-36, jun. 2008. mostrou que é o objetivo que decide o jogo. No nosso caso, trata-se de um jogo cujo objetivo é responder questões, e os estudantes farão de tudo para respondê-las (mobilizar seus conhecimentos), para ter a satisfação de ganhar o jogo. É agradável ganhar, e isso pode significar acertar questões que têm conteúdo; portanto, é necessário mobilizar o conhecimento. Isso significa que os sentimentos mobilizados durante o jogo podem levar à mobilização de conhecimentos científicos e, assim, a atividade torna-se porta de entrada para o entendimento da ciência que o professor deseja ensinar.

Conclusão

O objetivo deste trabalho foi investigar à luz da psicologia histórico-cultural a mobilização dos processos funcionais do psiquismo atenção e emoção frente a uma atividade lúdica em sala de aula.

No que tange à atenção voluntária, os resultados apontaram que a atmosfera lúdica permite que o estudante se concentre mais no conteúdo, dirigindo seu foco para a discussão dos conceitos envolvidos na atividade. No entanto, a partir do referencial que sustenta nossa pesquisa, advogamos que não é qualquer jogo que favorece o desenvolvimento e a mobilização da atenção para o conteúdo de química: a atividade pensada e desenvolvida deve ter um conteúdo científico desafiador para o estudante, exigindo dele foco e raciocínio lógico. Os resultados aqui apresentados se coadunam com o que defende Martins (2013, p. 300)MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013. quando trata da relação entre o processo de escolarização e o desenvolvimento da atenção:

Não se trata, porém, de preterir que a atenção se fixa melhor quando se exige da pessoa um trabalho mental ao seu alcance, ou seja, não se olvida o nível de desenvolvimento real, mas, igualmente, não se perde de vista que o referido trabalho deve conter desafios e demandar algum esforço na direção da superação da atenção espontânea, involuntária durante toda a vida da pessoa. [...] Colocar o desenvolvimento da atenção voluntária como tarefa da educação escolar implica sabê-la dependente da realização de uma vasta gama de atividades que a colocam como requisito.

Os conteúdos científicos também foram propulsores da análise da mobilização do processo funcional emoção. As possibilidades de se arriscar e errar no jogo permitem que o estudante desenvolva sua consciência a respeito do que sabe e do que precisa aprender sobre o conteúdo envolvido no jogo. Atento a isso, o professor que adota uma estratégia lúdica pode ajudar o estudante a criar um vínculo emotivo com a matéria que ensina.

As marcas emocionais que o jogo pode imprimir à aprendizagem no ensino de ciências só têm sentido se se superar a dicotomia entre pensar e sentir, entre afeto e cognição. Isso significa que, para que as impressões emocionais timbradas no estudante sejam efetivamente relevantes, é preciso que o conteúdo presente no jogo ajude o estudante a entender a realidade. O professor que adota uma atividade lúdica deva ter como horizonte um processo educativo que advogue a mobilização de "sentimentos intelectuais":

A educação escolar aqui defendida é um processo que interfere diretamente na formação multilateral dos educandos, ciente de que os conteúdos dos próprios sentimentos outra coisa não são senão conceitos. Na mesma medida, ciente também de que os conteúdos escolares mobilizadores dos pensamentos incluem "sentimentos intelectuais", isto é, os sentimentos mobilizados pela atividade mental requerida na construção do conhecimento. Uma educação escolar apta, portanto, à formação e promoção de sentimentos intelectuais positivos, imprescindíveis tanto na atividade de quem aprende quanto na de quem ensina. (MARTINS, 2013MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013., p. 306, grifos nossos).

Como já dissemos, o lúdico no ensino de química ainda precisa avançar muito em seu aspecto teórico-conceitual. Temas como motivação, ludicidade na divulgação científica e atividades lúdicas na formação de professores são exemplos de aspectos ainda pouco explorados quando nos referimos ao tema. Aspectos relativos à apropriação do conteúdo e à análise da interação entre pares na situação de jogo também merecem ser mais problematizados e investigados em outros estudos.

Entendemos que, para aplicar o lúdico de maneira não espontânea e com todo o seu potencial, ainda temos uma grande estrada teórica e prática a pavimentar. Esperamos que este artigo seja mais um ladrilho nesta trajetória.

  • 2
    Apesar de a pesquisa ter transcorrido na universidade, havia alunos com 16 e 17 anos.
  • 3
    Os nomes são fictícios e foram escolhidos pelos próprios estudantes.

Referências

  • GARCEZ, E. S. C. Jogos e atividades lúdicas em ensino de química: um estudo estado da arte. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.
  • LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
  • MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.
  • MARTINS, L. M.; MARSIGLIA, A. C. G. As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita Campinas: Autores Associados, 2015.
  • MESSEDER NETO, H. S.; MORADILLO, E. F. Motivação e ludicidade na aprendizagem de química: uma análise a partir da psicologia histórico-cultural. In: ENCONTRO NACIONAL DE JOGOS E ATIVIDADES LÚDICAS NO ENSINO DE QUÍMICA, 1., 2014, Goiânia. Anais... Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2014. p. 121-128. Disponível em: <http://www.jalequim.com.br/subpaginas/livroderesumos/docs/LIVRO_DE_RESUMOS.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2017.
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  • PATTO, M. H. S. A teoria e a pesquisa. In: ______. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 167-192.
  • RABELLO, R. S. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. In: D'ÁVILA, C. M. (Org.). Ser professor na contemporaneidade: desafios, ludicidade e protagonismo. 2. ed. Curitiba: CRV, 2013. p. 91-105.
  • SNYDERS, G. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • VIÉGAS, L. S. Reflexões sobre a pesquisa etnográfica em psicologia e educação. Diálogos Possíveis, Salvador, v. 6, n. 1, p. 102-123, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/reflexoes-sobre-a-pesquisa-etnografica-em-psicologia-e-educacao.html>. Acesso em: 13 mar. 2017.
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  • VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Rio de janeiro, n. 8, p. 23-36, jun. 2008.
  • ______. A construção do pensamento e da linguagem São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • ______. Obras escogidas Madrid: Antonio Machado, 2012. tomo 4.
  • ______. Psicologia pedagógica São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2015
  • Aceito
    02 Nov 2016
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