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O fator econômico nas cartas de Graciliano Ramos: Vidas Secas e outras histórias

The economic factor in the letters of Graciliano Ramos: Vidas Secas and other stories

Resumo

Se Vidas Secas é o romance de Graciliano Ramos que mais diretamente trata a questão da pobreza e de suas consequências mais gritantes e como o próprio autor declara ser ele uma espécie de Fabiano numa de suas cartas, propôs-se neste artigo perquirir o universo epistolar do escritor, a fim de perceber de que modo esse livro publicado em 1938 perpassa a narrativa de vida de Graciliano, num momento específico em que se dá a produção e tentativa de distribuição de alguns dos capítulos-contos que compõem o romance. A leitura das correspondências do autor, em especial aquelas endereçadas ao tradutor argentino Benjamín de Garay e à esposa Heloísa, não somente revelaram um homem com imensos problemas financeiros tentando sobreviver como escritor, mas sobretudo revelaram um escritor que transformou a falta em potência, encontrando, como Fabiano, nas palavras, a força necessária para ir adiante e sonhar, como Baleia, com um mundo diferente.

Palavras-chave:
Graciliano Ramos; Cartas; Fator econômico; Vidas Secas

Abstract

If Vidas Secas is the Graciliano Ramos novel that most directly addresses the issue of poverty and its most striking consequences and as the author himself claims to be a kind of Fabiano in one of his letters, this article seeks to investigate the writer’s epistolary universe, in order to understand how this book, published in 1938, pervaded Graciliano’s life narrative at the precise moment in which he produced and attempted to distribute some of the chapters-tales that make up the novel. The readings of the author’s correspondence, especially the letters addressed to the Argentine translator Benjamin de Garay and his wife Heloísa, revealed not only a man with immense financial problems who was trying to survive as a writer, but also a writer who transformed scarcity into power, finding in words, as Fabiano, the strength necessary to go ahead and dream, like Baleia, of a different world.

Keywords:
Graciliano Ramos; Letters; Economic factor; Vidas Secas

Resumen

Si Vidas Secas es la novela de Graciliano Ramos que más directamente trata la cuestión de la pobreza y sus consecuencias más gritantes, y considerando que el propio autor declara en una de sus cartas ser una especie de Fabiano, se propuso en este artículo recorrer el universo epistolar del escritor, a fin de percibir de qué modo este libro publicado en 1938 sobrepasa la narrativa de vida de Graciliano, en un momento específico en que se da la producción e intento de distribución de algunos de los capítulos-cuentos que componen la novela. La lectura de las correspondencias del autor, en especial aquellas dirigidas al traductor argentino Benjamín de Garay y a la esposa Heloísa, revelaron no sólo un hombre con inmensos problemas financieros intentando sobrevivir como escritor, sino también un escritor que transformó la falta en potencia, encontrando, como Fabiano en las palabras, la fuerza necesaria para ir adelante y soñar, como Baleia, con un mundo diferente.

Palabras-clave:
Graciliano Ramos; Letras; Factor económico; Vidas Secas

As encrencas da vida me tornam selvagem,estou virando antropófago. Graciliano Ramos

Jogo de espelhos

Vidas Secas, quarta e última “ficção” de Graciliano Ramos (1938RAMOS, G. [Correspondência]. Destinatário: Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 29 ago. 1938. In: ALVES, F. C. Armas de papel - Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro. Prefácio de Francisco Alambert. São Paulo: Ed. 34, 2016. p. 311-313.), é o livro que mais diretamente trata a questão da pobreza e de suas consequências mais alarmantes:

Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. (RAMOS, 2018, p. 30-31RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.).

O signo da morte atravessa junto com a família de retirantes as páginas de Graciliano Ramos. No capítulo de abertura, após a confusão de pensamentos ocasionados pela fome, sinha Vitória decide, por desespero, matar o papagaio já que - provavelmente também por causa da penúria e escassez de alimento - “mudo e inútil”. A fome, ao contrário, é literalmente gritante. Eis a questão central da narrativa, conforme já observou o professor João Cezar de Castro Rocha (2015, p. 233ROCHA, J. C. de C. Vidas secas ou A atrofia das palavras. In: ROCHA, J. C. de C. Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria). Chapecó: Argos, 2015, p. 231-234.): “[...] Graciliano não pretendia representar pobres retirantes [...]. Pelo contrário, Graciliano esforçou-se por apresentar a pobreza em suas consequências mais graves: a atrofia da linguagem e a anemia do pensamento”. Pensamento inarticulado, raridade de palavras, onomatopeias, repetições, lacunas, incongruências e silêncios permeiam as Vidas Secas, aproximando a condição do homem à do animal e à da coisa.

Contudo, sublinha Rocha (2015ROCHA, J. C. de C. Vidas secas ou A atrofia das palavras. In: ROCHA, J. C. de C. Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria). Chapecó: Argos, 2015, p. 231-234.), essa mesma linguagem se transforma no último capítulo. Em “Fuga”, a partir do estabelecimento da conversa entre Fabiano e sinha Vitória, surge o sonho, a esperança de a família ir para diante:

Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitória, as palavras que Sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.(RAMOS, 2018, p. 244-245RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.).

Vidas Secas é um dos primeiros livros que Graciliano começa a escrever recém-saído da prisão, morando no Rio de Janeiro, no início de 1937 - antes dele, só A terra dos meninos pelados, publicado em 1939, escrito especificamente para um concurso de literatura infantil -, e sua produção pode ser acompanhada por algumas de suas cartas escritas à esposa Heloísa, ao tradutor argentino Benjamín de Garay, ao jornalista Octavio Dias Leite etc. Porém, é a carta de 12 novembro de 1945, endereçada a Antonio Candido, portanto quando o romance já havia sido publicado, que motiva este trabalho: “O que sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído a minha gente, como V. muito bem reconhece.” (RAMOS, 1945, p. 10RAMOS, G. [Correspondência]. Destinatário: Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 29 ago. 1938. In: ALVES, F. C. Armas de papel - Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro. Prefácio de Francisco Alambert. São Paulo: Ed. 34, 2016. p. 311-313.).

Esse jogo de espelhos de que fala Graciliano é parte da própria análise do destinatário da supracitada correspondência, segundo a qual, no texto memorialístico Infância (1945), do remetente, perpassa tamanha “interpretação literária” que este poderia ser tomado como último livro de ficção de Graciliano, em vez de Vidas Secas (CANDIDO, 2006, p. 70CANDIDO, A. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. 3a. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006[1956].), i.e., ficção e confissão habitam ao mesmo tempo as páginas do relato dos primeiros anos de vida do escritor alagoano.

A partir disso, propõe-se neste artigo perquirir o universo epistolar de Graciliano, por serem as cartas textos que, como as memórias, colocam o “eu” como centro da cena de escritura, a fim de perceber de que modo esse romance publicado em 1938 perpassa a narrativa de vida do autor, num momento específico em que se dá a produção e a tentativa de distribuição de alguns dos capítulos-contos que compõem o livro.

O fator econômico nas cartas e nos (capítulos-)contos

Afinal cá estou novamente em circulação e talvez em estado de servir, se é que não tenho qualquer peça importante do interior estragada. Um ano de ausência, meu caro Garay [...]. Creio que agora vou começar a trabalhar, embora ainda me sinta um pouco enferrujado. Posso mandar-lhe uns troços para revistas daí, os contos a que você se referiu em uma das cartas e que até agora não fabriquei. Você não me conseguiria mais de vinte e cinco pesos por conto, Garay? Julgo que lhe arranjarei uns dois ou três por mês, se você achar conveniente. Não me dedicarei exclusivamente a eles, porque preciso tratar do romance a que me referi - trabalho para uns dois anos , se não estou enganado. Por enquanto necessito escrever para jornais. E a colaboração que você me pediu e que iniciei ser-me-á útil. (MAIA, 2008, p. 43MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008., grifos meus).

O destinatário da supracitada carta de Graciliano Ramos, de 26 fevereiro de 1937, é Benjamín de Garay, tradutor argentino interessado pela literatura brasileira e importante difusor das nossas letras na Argentina, que viveu em São Paulo e no Rio de Janeiro em diferentes épocas, tendo trabalhado inclusive no Diário Carioca. Garay traduziu Urupês, de Monteiro Lobato, em 1921, e já em meados de 1935 se corresponde com Graciliano Ramos. Sua intenção àquela época era traduzir para o espanhol São Bernardo, que ganharia o título de Feudo Bárbaro, conforme também a supracitada carta. A correspondência, no entanto, é interrompida em virtude da prisão do autor de Palmeira dos Índios - “Um ano de ausência”.

A 3 janeiro de 1937, Graciliano Ramos foi posto em liberdade após encarceramento sem acusação formal ou processo, passando a residir no Rio de Janeiro, primeiro na casa do amigo José Lins do Rêgo, e depois de pensão em pensão. Sem emprego e sem desejar voltar à terra natal, o autor de Angústia não viu outro modo de ganhar a vida que não fosse escrevendo,como ele mesmo declarou a Getúlio Vargas numa carta que nunca lhe foi entregue, datada de 29 ago. 1938 : “Adotei, em falta de melhor, uma profissão horrível: esta de escrever, difícil para um sujeito que em 1930 era prefeito na roça.” (RAMOS, 1938RAMOS, G. [Correspondência]. Destinatário: Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 29 ago. 1938. In: ALVES, F. C. Armas de papel - Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro. Prefácio de Francisco Alambert. São Paulo: Ed. 34, 2016. p. 311-313.). Por uma questão de sobrevivência, então, Graciliano recorre aos jornais nacionais e argentinos, entre eles La Prensa, Mundo Argentino, El Hogar etc., por intermédio de Benjamín de Garay.

Na supracitada carta de 26 fevereiro de 1937, Graciliano alude a certo pedido do tradutor a respeito de contos. A solicitação é mencionada numa carta ainda anterior à sua prisão, em 13 dezembro de1935:

Muito lhe agradeço a lembrança amável de publicar uma página minha nessa revista de trezentos mil exemplares. Mas é o diabo, seu Garay. Eu nunca escrevi contos, e nem sei se me seria possível, enchendo-me de boa vontade, arranjar uma história decente. Não lhe serviria um capítulo de um romance? Estou agarrado com unhas e dentes ao meu Angústia, que José Olympio quer publicar no princípio do ano vindouro. Se você achasse conveniente, eu escolheria um capítulo para El Hogar. Mas se não estiver pelos autos, acabou-se: vou ver se consigo fabricar o conto e morder os cem mil réis que a revista oferece. Qualquer dia destes mando o retrato que você deseja para a propaganda. Procuro um fotógrafo hábil que me transforme. (MAIA, 2008, p. 29MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

O conto e a fotografia eram necessários à publicidade da pretensa publicação de Feudo Bárbaro na Argentina. Sob o signo “mercantil”, portanto, destaca-se a declarada inaptidão de Graciliano que, desejoso de “morder” o pagamento prometido, de uma grande empresa (“revista de trezentos mil exemplares”), tentará se entregar à tarefa de “fabricação” do conto. Como se vê, contudo, “agarrado com unhas e dentes”, o corpo de romancista alagoano não parece poder se desvencilhar do Angústia, “artesania”. Assim, a motivação para o envio do “produto” se fez mais imperiosa quando, em 3 março de 1936, Graciliano é preso. Sem ter como sustentar a família da prisão, urgia conseguir os cem mil réis. Por intermédio de Heloísa, ele envia o conto e consegue o dinheiro, como mostram as cartas trocadas entre a esposa e o tradutor, entre março e julho de 1936 (MAIA, 2008, p. 33-38MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Também vale aqui pontuar o estilo de Graciliano, marcadamente (auto)irônico, que perpassa outras de suas correspondências, como nesta que se segue, de 22 abril de 1937. Estando em liberdade, a situação financeira precária do escritor de Palmeira dos Índios se mantém com o desemprego. Graciliano transforma-se, pouco a pouco, num fabricante de contos, num “explorar de jornais”:

[...] Agora preciso dar dinheiro à mulher da pensão e aumentar os lucros da Light . Para isso tenho de explorar alguém ou qualquer coisa e ser explorado pelo dono do jornal e pelo editor. Como não possuo bondes nem casas, lembrei-me de explorar um hospital, um médico, enfermeiros e a doença que me ia matando anos atrás. La Prensa quererá publicar isso, Garay? Não é precisamente o que você pediu, coisa regional e pitoresca: é delírio, complicação interior.[...] Vai o delírio, meu caro Garay. Se você quiser traduzi-lo e metê-lo num jornal que tenha dinheiro, ficar-lhe-ei muito obrigado. E não se esqueça de mandar-me um número. Não vi a tradução que você fez do meu conto Dois dedos, nem sei em que revista saiu (MAIA, 2008, p. 45MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008., grifos meus).

Além de esclarecer o nome do conto remetido em sua ausência, um ano antes - “Dois dedos” -, a escrita epistolar graciliana aparece, uma vez mais, marcada pelas relações econômicas de uma sociedade capitalista desigual. Não fazendo parte da classe dos empresários, Graciliano se põe tal um operário. A escrita, sua força de trabalho, aparece enquanto moeda de troca e, por vezes, surgirá expressamente por meio do signo do dinheiro. Leia-se o seguinte trecho da carta de 8 março de 1937, de Graciliano à esposa: “Mais tarde irei à cidade, levar este papel ao correio. Mas antes tentarei escrever cinquenta mil-réis de literatura.” (RAMOS, 2011, p. 254RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011., negritos meus).

O autor de São Bernardo alude ao pedido de Miguel Franchini Neto, da Imprensa Brasileira Reunida (I.B.R Ltda.) , e comenta que escreveu nos últimos dias “cinco tolices”. Além disso, “como necessitasse de dinheiro para pagar a quinzena de pensão”, foi ao Observador Econômico , onde lhe pagaram cem mil réis por uma “miséria” que escreveu na casa do José Lins do Rêgo. Graciliano ainda fala sobre o encontro com Murilo Miranda e um prêmio da Revista [Acadêmica] , assunto que retorna em nova carta, de vinte dias depois:

D. Ló: Esta carta vai ser muito curta, que estou ocupado, fabricando um artigo encrencado para o Observador . Apesar de ter sido uma miséria o que escrevi, Olímpio Guilherme pediu-me outro de três páginas, uma coisa comprida, muito chata, mas que me vai render uns cem ou duzentos mil-réis. Por isso não posso fazer uma carta grande como as outras. [...] Por enquanto eu vou vivendo de artigos e do que o Murilo me tem arranjado. Aquele negócio da Revista está sendo pago aos pedaços. (RAMOS, G., 2011, p. 264-265RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011., grifos nossos).

É possível que uma das contribuições ao Observador de que fala Graciliano seja a crônica “O fator econômico no romance”, publicado no novembro de 15, de abril de 1937, deste jornal, e posteriormente compilado em Linhas tortas (1962). Nela, Graciliano critica a produção dos romancistas nacionais que, em sua maioria, desprezam os aspectos econômicos relacionados diretamente aos detalhes dos acontecimentos que permeiam suas narrativas, dando impressão de incompletude e inacabamento aos romances. Falta-lhes uma observação minuciosa, o estudo, a pesquisa sobre as relações econômicas, sem as quais é impossível tratar de relações sociais e políticas. Falta-lhes um olhar de baixo para cima: “Necessariamente o ofício dos seus homens deve ter contribuído para que as coisas se passassem desta ou daquela forma.” (RAMOS, 2002, p. 251RAMOS, G. Linhas tortas. 18a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: 2002.). Assim, contra a ideia romântica de que a “[...] frieza convém aos homens de ciência [e que o] artista deve ser quente, exaltado. E mentiroso”, Graciliano afirma que o romancista deve friamente deter-se nos fatos econômicos, procurando, sem ideias pré-concebidas, “dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que nos são conhecidas.” (RAMOS, 2002, p. 252RAMOS, G. Linhas tortas. 18a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: 2002.).

Vidas Secas insere-se nesse debate. Detenhamo-nos no capítulo “Contas”, por ora, no qual Fabiano, ao ir buscar seu pagamento com o patrão, sente-se roubado. A princípio, o sertanejo contesta o valor pago, afirmando que diferia daquele calculado por sinha Vitória, que tinha “miolo”, e que ela não teria errado. Diante da zanga do patrão que o toma por insolente, mandando-o procurar outra fazenda onde trabalhar; logo o vaqueiro, em postura cabisbaixa, aceita com falsa resignação o imposto pelo/do patrão.

Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.

Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se: Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. (RAMOS, 2018RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018., p. 185, grifos meus).

A submissão de Fabiano não é apenas relativa às questões sociais, mas antes às econômicas: “Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça”. É a condição de pobreza que faz com que tenhamos: “Um Fabiano bom para aguentar facão no lombo e dormir na cadeia.” (RAMOS, 2018, p. 208RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.).

Voltando às correspondências, se em 22 abril de 1937, Graciliano envia a Garay “O relógio do hospital”, como nos confirma uma carta escrita no mesmo dia à Heloísa (RAMOS, 2011, p. 274RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.); e, como o destinatário argentino havia lhe pedido uma “coisa regional e pitoresca”, Graciliano envia ao tradutor o conto “Baleia”, em missiva de 11 de maio de 1937:

[...] remeto-lhe outra história, um negócio de bicho, de alma de bicho. Será que bicho tem alma? Deve ter qualquer coisa parecida com isso, qualquer coisa que dê para a gente receber um cheque. Tenha a bondade de examinar essa questão psicológica e financeira, meu caro Garay. Veja se a alma da minha cachorra vale alguns pesos aí numa redação ou em sociedade protetora de animais. (MAIA, 2008, p. 49MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008., grifos meus).

Na correspondência, no entanto, estabelece-se uma tensão: alma versus cheque, psicologia versus finanças. Qual o “peso” da alma de Baleia?

Não sei se já lhe terá chegado um conto que mandei para El Hogar ou Mundo Argentino, uma história de cachorro. Seria magnífico se você pudesse meter isso em La Prensa, mas provavelmente esses senhores não gostam de bichos. A minha cachorra é um animal ordinário e cheio de peladuras. (MAIA, 2008, p. 54MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

“Peladuras” ao mesmo tempo em que significa sofrimento, desastre, desgraça, aponta para o ato de “pelar”. Dentre as acepções possíveis deste, destaque-se: 1. Tirar pelo por pelo; 2. Desnudar(-se); ou ainda 3. Ter verdadeira predileção por; gostar muito de. Graciliano deixa claro, pelo tom das cartas a Garay, que se trata de predileção, não há “nada melhor do que essa cachorra” (MAIA, 2008, p. 59MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.). E, além, Graciliano, por meio de Baleia, se desnuda, como é possível ler na carta à Heloísa, de 7 de maio de 1937:

[...] Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra,um troço difícil,como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nos desejamos. A diferença é que eu desejo que eles apareçam antes do sono, [...] mas no fundo todos somos como a minha cachorra e esperamos preás. É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro. (RAMOS, 2011, p. 276-277RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011., negritos nossos).

Se “Baleia” é o primeiro dos contos enviado a Buenos Aires, em Vidas Secas ele aparece como nono capítulo e tem o seguinte desfecho:

[...] Baleia queria dormir. Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria cheio de preás, gordos, enormes. (RAMOS, 2018, p. 181RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.).

E voltamos ao “fator econômico no romance”, em que Graciliano defende que o romancista deve “estudar” os seus personagens, prezando pela verossimilhança. O sonho-delírio de Baleia só poderia ser aquele por causa da miséria em que ela vivia e que compartilhava com Fabiano e os meninos. É a pobreza, a condição econômica a base para o desejo do animal. A primazia do autor de Palmeira dos Índios é imprimir no conto, além da voz do narrador - “Baleia queria dormir” -, a perspectiva do animal, a voz da cachorra: “um Fabiano enorme”, “num pátio enorme, num chiqueiro enorme”. Tudo é maior que Baleia. A doença, a miséria.

Para além do fator econômico, leia-se a carta de 23 novembro de 1949, de Graciliano para a sobrinha Marili, na qual ele tece alguns comentários a respeito do conto de estreia dela, “Mariana”, que ele mesmo levou a Álvaro Lins para fins de publicação. Em vez de elogiá-lo, o “Mestre Graciliano” limitou-se a julgá-lo “apresentável” e apontou alguns dos defeitos do texto:

Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores de menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. (RAMOS, 2011, p. 293-294RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011., grifos meus).

Baleia é um pedaço de Graciliano, suas peladuras e desejos expõem aquilo que o autor é. Essa aproximação entre Vida e Arte, entre criador e criatura, está lá estampada na supracitada correspondência de 7 de maio de 1937: “estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito dum literato alagoano”. Baleia é-nos apresentada em sua vulnerabilidade (doente, sendo sacrificada, delirando, morrendo), mas também em sua lealdade e fraternidade. É por meio de um simples desejo animal, um sonho-delírio de acordar num mundo cheio de preás gordos e enormes, de uma felicidade e fartura a ser com-partilhada com Fabiano e os meninos, que Graciliano coloca em jogo uma questão ética acerca da subjetividade. Tal como a cachorra, o sujeito se dá como construção a partir da abertura ao outro; o sentido da vida no ser-com.

Jacques Derrida, em O animal que logo sou (a seguir), publicado em 1999, afirma que é ao outro, humano ou inumano, que cabe a pergunta de quem é este que eu sou: “Quem sou eu então? Quem é este que eu sou? A quem perguntar, senão ao outro?” (DERRIDA, 2002, p. 18DERRIDA, J.O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002.). Parafraseando o filósofo franco-argelino, em se tratando de Graciliano, a quem perguntar senão à Baleia?

De volta às missivas, em 1º julho de 1937, Graciliano envia o conto “Um pobre diabo”, e mostra-se preocupado com a acolhida do conto sobre a alma da cachorra “Baleia”, mencionando o projeto a que ele estaria atrelado:

Como vai a minha Baleia? Trabalho numa série de contos regionais; quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos, etc. Se a minha ‘Baleia’ for bem recebida aí, mandar-lhe-ei, caso você ache conveniente, umas histórias semelhantes, lá para o fim do ano, que é quando espero concluir o trabalho. Poderemos publicá-las em espanhol; primeiro em jornal, depois em livro. Antes disso vamos ver como tratam a cachorra doente. (MAIA, 2008, p. 57MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Diante da negativa em relação ao conto sobre o animal, em carta de 8 novembro de 1937, Graciliano dispara:

Fiz como lhe prometi, umas histórias do Nordeste, com bichos e matutos: tentei mostrar o que se passa no interior desses animais. Caso você ache conveniente, mandar-lhe-ei alguns, que, se não estiverem muito ruins, podemos introduzir no mercado, pouco a pouco, a fim de não espantarmos o consumidor. A propósito: julgo que você não gostou da minha Baleia. É pena, pois não tenho nada melhor que essa cachorra. Quer ver os parentes dela? Se não quer, está acabado, não falemos mais nisso. (MAIA, 2008, p. 59MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008., grifos meus).

O emprego de palavras como “mercado” e “consumidor”, atrelados a uma estratégia de marketing, dá a impressão de que a feitura de Vidas Secas é ditada pela lei da oferta e da procura: “Fiz como lhe prometi”. A carta imediatamente anterior a esta da mesma forma trabalha com a possibilidade de uma distribuição mais “rentável” para o autor, se for vertida para o espanhol: “primeiro em jornal, depois em livro”.

Graciliano, ainda em Maceió, a 17 agosto de 1935, surpreso e agradecido pela escolha de Garay em traduzi-lo, faz a seguinte observação:

A tradução que o senhor deseja fazer ser-me-á muito vantajosa: vai encher-me de vaidade, sentimento natural em todos os sujeitos que escrevem, e pôr-me em contato com os escritores do resto da América do Sul, que desgraçadamente sempre têm estado longe de nós. É uma vergonha. Conhecemos a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia e até Portugal, mas ignoramos a América, apesar de falarmos quase a mesma língua. Admirável o trabalho que, desde 1914, o senhor tem tido para aproximar os brasileiros dos hispano-americanos. (MAIA, 2008, p. 23MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Mas, para além da satisfação e vaidade do autor traduzido, a epístola seguinte, de 30 setembro de 1935, entre os dois correspondentes acrescenta:

Recebi a sua carta de 7 e o volume de contos de Monteiro Lobato. Que extraordinário trabalho você está realizando aí! Acabo de ler em espanhol algumas histórias brasileiras que ainda me eram desconhecidas. Não é interessante que um livro escrito em S. Paulo ou no Rio precise ir a Buenos Aires e passe a outra língua para ser lido em Alagoas? (MAIA, 2008, p. 26MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

As cartas que versam sobre a vontade e a necessidade de verter os textos nacionais para língua estrangeira dialogam com uma crônica de Graciliano Ramos, escrita no ano em que saem Vidas Secas. “Romances”, publicada originalmente no Diário de notícias, em 3 julho de 1938, trata com ironia acerca da desconfiança do público leitor brasileiro que, mesmo diante da boa recepção pela crítica e da grande publicidade dos editores, procuram os livros franceses em vez da “mercadoria de casa”. A fim de combatê-la, Graciliano sugere a colocação de “rótulo estrangeiro” no “artigo indígena”:

Se não temos outro meio de convencer o freguês de que fabricamos coisas boas, por que não nos serviremos da contrafação? Em certos casos ela deveria até ser obrigatória. Nessa coisa de literatura, por exemplo. Evidentemente, apesar do otimismo reinante, não temos livros exportáveis. Mas poderíamos vender alguns para fora e depois comprá-los de novo, exatamente como fazemos com certos produtos, que saem daqui e voltam melhorados, empacotados e recomendados por uma gente qualquer, que julgamos superiores. Os romances brasileiros custam uma ninharia e envelhecem nas prateleiras dos editores. Os romances franceses estão pela hora da morte e são procurados com avidez. O governo, se se ocupasse com isso, mandaria passar algumas novelas indígenas para o francês. Talvez elas não fossem vendidas lá fora. Não faria mal. Viria para aqui a tiragem toda. Vendo-as em línguas de branco, o público arregalaria o olho, convencer-se-ia de que estava diante de mercadoria boa e cairia no logro: daria vinte mil-réis por uma brochura que aqui se vende por seis. (RAMOS, 2002, p. 142RAMOS, G. Linhas tortas. 18a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: 2002.).

Utilizando-se do humor, Graciliano se coloca contra a postura acrítica do mercado consumidor tupiniquim, que prefere o que vem de fora. Assim, as conversas com Garay demonstram que Graciliano acreditava que a “roupagem” hispânica em seus bichos e matutos poderia cair bem. Aliás, como caiu em “O relógio do hospital”, conforme carta de 8 novembro de 1937:

Recebi ontem uma carta de La Prensa, um cheque e a tradução de O Relógio do Hospital, coisas que me chegaram quando eu mais precisava delas. Ótimo o seu trabalho, até senti inveja. Com roupa argentina, bem cortada e bem cosida, espichado numa página de jornal estrangeiro e importante, vi-me diferente de mim mesmo, não me reconheci. Você é um bicho, Garay, e eu lhe estou muito obrigado, tanto pela tradução como pela nota com que me apresentou ao público da sua terra. Achei razoável o pagamento - setenta pesos. Se me fosse possível meter de quando em quando uma colaboração em La Prensa, eu teria dupla vantagem: exploraria o seu país e veria talvez os meus produtos valorizados na imprensa brasileira. Realmente as revistas de Buenos Aires pagam tão mal como as daqui, mas um jornal grande e rico tira a gente de sérias dificuldades. (MAIA, 2008, p. 59MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

A carta de março de 1938, a esse mesmo destinatário, traz a notícia de publicação de Vidas Secas; e, mesmo acreditando que o correspondente argentino não havia se agradado daquela gente sertaneja, Graciliano transparece esperanças de mudar a opinião do outro: “[...]Mas não tem dúvida: mandar-lhe-ei o volume para você ver os meus bichos juntos.” (MAIA, 2008, p. 71MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.). Como ele já havia escrito, tentara “mostrar o que se passa no interior desses animais”, a começar por Baleia, depois enviando “Mudança”, “Festa”, “Fabiano” e “Cadeia”, e em carta de 13 dezembro de 1937 reafirma: “Não sei não, Garay. O meu bárbaro pensamento é este: um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito bem a humanidade. E ficarei nisto, enquanto não me provarem que os arranha-céus têm alma.” (MAIA, 2008, p. 69MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Apesar da questão pecuniária, Graciliano insiste em oferecer os capítulos-contos de Vidas Secas, explicando que, ainda que a família sertaneja - composta por quatro humanos e uma cadela - seja quase muda e apresente uma linguagem monossilábica e gutural e um pensamento desarticulado, arrevessado, ela existe e sonha! Seus contos são mais que regionais, falam de alma, de pessoas, de animais, da fome, mas também da esperança que existe em todos nós. É isso o que seu projeto literário é, um conjunto de “Pequenas verdades, essas que nos são conhecidas”.

Criador e criatura: da falta de recursos à potência da palavra

Derrida (2002DERRIDA, J.O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002.) afirma que, à medida que os textos vão ficando mais autobiográficos, os animais que nos olham se multiplicam, “[...] saltam cada vez mais selvagemente aos olhos” (DERRIDA, 2002, p. 67DERRIDA, J.O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002.). Naquele momento em que Graciliano Ramos escreve para mil jornais e começa a arquitetar um projeto de escrita de “contos regionais e pitorescos”, ele se vê tal um selvagem, um “antropófago”, com as “encrencas da vida”, como declara a Garay, na carta de março de 1938, que abre este trabalho.

Lembremo-nos de que Vidas Secas encerra o ciclo de ficções gracilianas, de modo que os próximos livros do autor serão suas memórias de infância (1945) e do cárcere (1953), e seu relato de viagem (1954). Assim, se Candido (2006CANDIDO, A. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. 3a. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006[1956].) afirma que Infância seria o último dos livros de ficção de Graciliano Ramos, dado a sua criação literária, aqui forço a tomar o conto “Baleia” e quem sabe até Vidas secas como sendo o primeiro dos textos autobiográficos do autor, na medida em que as cartas revelam um jogo de espelhos que é pura bios.

Leiamos trecho anterior da mesma carta de 7 de maio de 1937 à Ló:

[...] Quando nos separamos, ficamos certos de que eu teria tempo para cavar a vida, para esperar o fim das vacas magras, e dois meses depois você muda e quer que vivamos pelo menos cinco pessoas numa pensão com duzentos e cinquenta mil-réis, que é produto dos cinco artigos a que alude. Eu esperava resolver isso com calma, [...] Mas a resolução de nos juntarmos agora desorienta-me. Não há recursos para vivermos aqui. [...] Posso abandonar tudo isto e voltar para Alagoas. Será um desastre completo e chegarei aí morto de vergonha. [...] Abandonarei todos estes sonhos, sairei daqui sem me despedir de ninguém, passarei em Maceió algumas horas, escondido e seguiremos todos para o sertão, onde criaremos raízes, não falaremos em literatura e nem consentiremos que os meninos peguem em livros. (RAMOS, G., 2011, p. 274-275RAMOS, G. Cartas. Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011., negritos meus).

O autor de Caetés vivia mesmo uma vida difícil como tentei mostrar até aqui, com a procura incessante por oportunidades de publicação a fim de conseguir quaisquer 25 pesos, cem ou duzentos mil-réis de literatura. Passou a fabricar contos, publicar crônicas em jornais, corresponder-se com tradutores e editores para “cavar a vida”. Teve de lidar com algumas frustrações, como ao ver afundar o projeto de tradução de São Bernardo em Feudo Bárbaro, como mostram as cartas entre maio e julho de 1938 (MAIA, 2008, p. 73-80MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.), e ao não ter agradado ao tradutor argentino com seus estimados bichos e matutos.

Apesar das dificuldades, nem por isso desejava voltar à terra natal, como mostra a supracitada correspondência. Tanto na cidade nordestina como na carioca, no entanto, a vida de Graciliano parece envolta pelo signo da morte. Em Alagoas, aparece como fato, sentença inevitável; no Rio, apenas como uma possibilidade. Na primeira, a única ação possível para Graciliano, já que “morto” de vergonha, seria “esconder-se” ou “enterrar-se”, por isso, “criar raízes”. Na segunda, ao contrário, há um sonho como o do casal de retirantes, Sinha Vitória e Fabian: “Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia.” (RAMOS, 2018, p. 245RAMOS, G. Vidas Secas. Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.).

Graciliano e Heloísa ficam no Rio, de onde este escreve a outro tradutor argentino, Raúl Navarro, em novembro de 1938:

Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão. Depois que redigi esses infames relatórios, os jornais e o governo resolveram não me deixar em paz. Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos, hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis - Caetés, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e Angústia, em 1936. Evidentemente, isso não dá uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances. (MAIA, 2008, p. 123MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Graciliano Ramos dá-nos, pois, uma deixa. Ao explorarmos suas cartas, contamos algumas dessas histórias, seja a de parte da sua vida, seja a parte em que ele deu vida à, como no caso de Vidas Secas e de alguns contos e crônicas. A produção de muitos desses tiveram o fim de monetização, apontando assim para o mundo da produção, para a sociedade da divisão do trabalho, para a dificuldade financeira por que passou Graciliano Ramos e para o complicado ofício de ser escritor. Também nos foi possível ler um pouco a respeito da produção e da expectativa de recepção da narrativa que fala de como a pobreza afeta aquilo mesmo do que nos valemos para contá-la, a linguagem.

É bem verdade que, naquele momento de escrita dos capítulos-contos que formariam o romance Vidas Secas, há de se observar: os dois, Heloísa e Graciliano, deviam estar retardando, temerosos. Ela, um pouco mais que ele, Fabiano, digo, Graciliano. Mas, decidiram-se e ficaram naquela “terra civilizada”.

A falta de recursos se transformou em potência nas mãos de Graciliano, que encontrou, como Fabiano, nas palavras a força necessária para ir adiante, sempre esperançoso de encontrar, antes do sono, um mundo cheio de preás enormes. E compartilhá-lo.

Referências

  • CANDIDO, A. Ficção e confissão Ensaios sobre Graciliano Ramos. 3a. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006[1956].
  • MAIA, P. M. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos: Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Organização e apresentação de Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • DERRIDA, J.O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
  • RAMOS, G. Cartas Nota de Heloísa Ramos. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • RAMOS, G. [Correspondência]. Destinatário: Antonio Candido. Rio de Janeiro, 12 nov. 1945. In: CANDIDO, A. Ficção e confissão Ensaios sobre Graciliano Ramos. 3. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006[1956], p. 9-12.
  • RAMOS, G. [Correspondência]. Destinatário: Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 29 ago. 1938. In: ALVES, F. C. Armas de papel - Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro Prefácio de Francisco Alambert. São Paulo: Ed. 34, 2016. p. 311-313.
  • RAMOS, G. Linhas tortas 18a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: 2002.
  • RAMOS, G. Vidas Secas Edição comemorativa de 80 anos. Rio de Janeiro: Record, 2018.
  • ROCHA, J. C. de C. Vidas secas ou A atrofia das palavras. In: ROCHA, J. C. de C. Por uma esquizofrenia produtiva (Da prática à teoria). Chapecó: Argos, 2015, p. 231-234.
  • SALLA, T. M. O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista “Cultura Política”. . 2v, 721f. Tese (Doutorado em Comunicação) - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27152/tde-04112010-142858/pt-br.php >. Acesso em: 3 mar. 2017.
    » http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27152/tde-04112010-142858/pt-br.php

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2019
  • Aceito
    31 Ago 2019
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