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Périplos norte-atlânticos da sociologia contemporânea: a sociologia pragmática

North Atlantic journeys of contemporary sociology: the pragmatic sociology

LEMIEUX, Cyril. . La sociologie pragmatique.Paris: La Découverte, 2018. 127p.

Resumo

O texto introduz o livro La sociologie pragmatique (A sociologia pragmática), em que Cyril Lemieux delineia a ascendência e a filiação dessa nova corrente disciplinar e explicita os princípios, conceitos e métodos que a caracterizam. Além disso, o sociólogo francês discorre sobre os principais “campos de pesquisa” nela trabalhados e toma parte nos debates centrais que a têm atravessado, interna e externamente, nas últimas décadas. Ao fazer essa apresentação, a resenha busca ancorar a obra e a vertente preconizada em seu contexto de emergência e publicização, atentando às disputas posicionais que as enformam.

Palavras-chave:
sociologia pragmática; sociologia da ação; teoria social pós-bourdieusiana

Abstract

The text presents a review of Cyril Lemieux’s La sociologie pragmatique (The pragmatic sociology), in which the author features the origins and affiliations of this new disciplinary branch and describes its central principles, concepts and methods. The French sociologist also introduces the main “fields of research” developed through the pragmatic approach in the last few decades, advancing its main internal and external debates. This review seeks to anchor both the book and the pragmatic sociology it advocates in their context of emergency and publicization, taking into account the positional disputes shaping them.

Keywords:
pragmatic sociology; sociology of action; post-Bourdieusian social theory.

Como é comum nas apresentações de novos membros de uma linhagem, essa obra de introdução à chamada “Sociologia Pragmática” anuncia sua ascendência e filiação. Seu duplo berço seria a “antropologia das ciências e das técnicas”, desenvolvida por Michel Callon e Bruno Latour, e a “sociologia dos regimes de ação”, praticada por Luc Boltanski e Laurent Thévenot. Nasce, portanto, na França, do cruzamento de duas famílias com diferentes graus de distanciamento com relação ao quase-cânone bourdieusiano. Os antecedentes mais antigos, contudo, viriam do outro lado do Atlântico Norte, de “correntes americanas mal conhecidas na França”, nomeadamente o Interacionismo, a Sociologia de Irving Goffman e a Etnometodologia, mas também os Science Studies e mesmo o pragmatismo linguístico. Tal qual é de costume, a gênese remonta ainda a antepassados mais remotos e ilustres, isto é, às “correntes mais clássicas da disciplina”, como “o durkheimismo e, em menor medida, o pensamento estruturalista e a sociologia weberiana” (p. 7). Semelhantemente a outros ambiciosos esforços sintéticos, como os de um patriarca da Sociologia estadunidense como Talcott Parsons (2010)PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social. v. I e II. Petrópolis/RJ: Vozes , 2010., ainda que em percurso oposto, tais travessias norte-atlânticas são o lastro da iniciativa de sistematização e divulgação alvissareira do que seria “um novo estilo de pensamento” e “uma nova forma de interrogar o mundo” 1 1 Os trechos citados da obra resenhada são apresentados em tradução livre realizada pela própria autora. .

Na sucinta obra, entretanto, Cyril Lemieux continua empreendimentos individuais e coletivos de apresentar a Sociologia Pragmática (Lemieux, 2007 LEMIEUX, Cyril . À quoi sert l'analyse des controverses? Mil neuf cent. Revue d'histoire intellectuelle, v. 1, n. 25, p. 191-212, 2007.; Barthe et al., 2013BARTHE, Yannick et al. Sociologie pragmatique: mode d'emploi. Politix, v. 3, n. 103, p. 175-204, 2013.). Dessa vez, os “retratos” (portraits) da debutante já balzaquiana dão a ver, com nitidez, os “princípios”, os “conceitos” e os “métodos” dela característicos. Além disso, ele discorre concisamente sobre os principais “campos de pesquisa” trabalhados por meio dessa perspectiva nos últimas anos e ainda toma parte nos debates centrais que a atravessam interna e externamente. Assim se compõe o núcleo do livro, que é aberto por uma Introdução e fechado por uma Conclusão, que juntas somam seis páginas.

A brevidade é sinal de uma reflexão amadurecida. O autor sabe a que veio. A nova publicização da corrente que se institucionaliza na academia francesa objetiva estatuir uma posição relacional e reflexivamente construída ao longo das últimas décadas. De acordo com o próprio Lemieux, ela teria surgido em meados dos anos 1980, no contexto em que a alternativa entre “o individualismo metodológico de Raymond Boudon” e “a teoria da reprodução social de Pierre Bourdieu” teriam chegado ao seu limite e aberto a necessidade urgente da construção de “outras posições” (Lemieux, 2018LEMIEUX, Cyril. La sociologie pragmatique. Paris: La Découverte , 2018. , p. 3).

Nesse sentido, são várias as tarefas do livro recém-publicado pela La Découverte (ainda sem tradução no Brasil). A obra traz panorama de origem, sistematização programática, balanço dos desenvolvimentos, respostas a críticas e posicionamentos em debates centrais das ciências sociais. Isso é feito nos termos de um estímulo ao aprofundamento das discussões e de um convite a novos adeptos. Ao deixar claras as premissas da Sociologia Pragmática, Lemieux exorta os não simpatizantes a explicitarem as razões em contrário e considera possível que mudem de posição.

Animado por esse espírito, no capítulo I o autor de Mauvaise presse (Lemieux, 2000LEMIEUX, Cyril. Mauvaise presse. Une sociologie compréhensive du travail journalistique et de ses critiques. Paris: Métailié, 2000. ) introduz os dez princípios fulcrais à vertente disciplinar. O primeiro deles é o empírico-conceitualismo, herdeiro do legado francês, que, de Durkheim e Simiand a Bourdieu, defenderia o “credo empírico-conceitualista”, e da tradição americana, que, da Escola de Chicago à Etnometodologia, assumiria o caráter incontornável da pesquisa empírica sem renunciar à exigência de elaboração conceitual (Lemieux, 2018LEMIEUX, Cyril. La sociologie pragmatique. Paris: La Découverte , 2018. , p. 10).

O segundo princípio também retoma Bourdieu, especialmente O ofício de sociólogo, e diz respeito à exigência de reflexividade. No entanto, leva em conta outras inflexões sociológicas, como a própria Etnometodologia, para sustentar que a reflexividade é propriedade atinente às ações sociais e ao senso comum, e não apenas ao arcabouço sociológico. Inclusive, um dos objetivos centrais da vertente é esclarecer a relação da sociologia com a capacidade crítica e reflexiva que existe no próprio mundo social.

Outro fundamento é o antireducionismo, que, contra o “vocabulário do utilitarismo”, parte do “princípio do social” concebido como “realidade sui generis” e evita reduzir as ações sociais a interesse e estratégia, escapando a formulações do tipo “x não é senão y” (p. 13). Tal concepção de ação postula a ideia de que “todos os agentes sociais são dotados de certas capacidades”. Com o princípio da capacidade, retomado da crítica de Garfinkel aos judgemental dopes de Parsons, luta-se “contra a naturalização das incapacidades”. Lemieux garante, contudo, que a noção de “competência” da Etnometodologia é mobilizada “sem colocar a agentividade como exterior às relações sociais” (p. 17).

De acordo com o princípio do internalismo, cabe à Sociologia Pragmática “seguir os atores em dois sentidos”: um deles consiste em “penetrar o interior de seu mundo social” e o outro a “levar a sério a maneira pela qual os atores definem as situações” (p. 19). A ideia de “definição da situação” é tributária da Escola de Chicago, mais especificamente de William Thomas, para quem “se os homens definem uma situação como real, ela é real em suas consequências”2 2 “If men define situations as real, they are real in their consequences”. (Thomas; Thomas, 1928THOMAS, William I.; THOMAS, Dorothy S. The child in America: behavior problems and programs. New York: A. A. Knopf, 1928., p. 571). Com isso, pretende-se construir uma “passarela” entre a sociologia pragmática e a tradição compreensiva de matiz weberiano, sem, contudo, restringir-se à tarefa compreensiva, como detalhado no capítulo metodológico do livro.

O princípio do anti-essencialismo é preceituado também em consonância com o pragmatismo americano. Recusa-se a ideia de que a essência de uma coisa precede sua existência, com o postulado de que as coisas devem ser tomadas enquanto se fazem (“en train de se faire”). Expressão recorrente no livro, ela é utilizada com vistas a “evitar a reificação” e destacar a ideia de processo. Tal como para Anselm Strauss, para a Sociologia Pragmática o evidente no mundo social não é a imutabilidade, mas a mudança. Isso posto, a trilha de Garfinkel é novamente retomada para analisar as competências que os próprios atores mobilizam ao essencializar a realidade física e social na qual se movem. Diante disso, o princípio de resistência é evocado como fundamental para que não se tropece nem no relativismo, nem no “construtivismo simples”. Por oposição, o “construtivismo reflexivo” tomaria em conta a resistência que a materialidade do mundo opõe à ação e ao discurso dos humanos.

O princípio da simetria também é requerido no intuito de desnaturalizar o sentido da história e a dominação social”. Como David Bloor, busca-se tomar as assimetrias como algo em construção, uma vez que uma assimetria não explicaria sua própria perpetuação. Aliás, como Lemieux atribui caráter performativo à própria sociologia, ele sustenta que determinar os meios concretos pelos quais a assimetria se faz significa mostrar também que ela poderia ser desfeita e, sendo assim, constituiria uma tarefa política.

Outro pressuposto correlato é a heterogeneidade constitutiva do agir humano, ou pluralismo. Ele auxiliaria a não “superestimar a homogeneidade das forças engajadas no mundo social” e a “escapar à impressão de estabilidade, uniformidade e eternidade que as instituições produzem” (p. 31). Além disso, de acordo com esse princípio, as ações se desenrolam no único “nível” existente. Distanciando-se de várias perspectivas anteriores, especialmente de base marxista e freudiana, a Sociologia Pragmática prevê que não há um nível superficial e outro profundo da ação, mas vários “regimes de ação” que coexistem, como na formulação de Boltanski e Thévenot (1991BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. ). As noções goffmanianas de “distância do papel” e “comportamento regional” teriam sentido semelhante. No entanto, tal concepção é derivada também de cepas mais egrégias da tradição sociológica: a ideia weberiana de que podem existir vários tipos de orientação em uma mesma ação e o argumento durkheimiano acerca de um “laço sequencial que une práticas sagradas e profanas”.

O último princípio exposto é derivado dos mesmos ancestrais. A “concepção probabilista” da coerção social, intitulada de indeterminação relativa, estaria presente em formulações como “chances de poder”, em Weber, e “tendências ao suicídio”, em Durkheim. Se, no plano analítico, tal princípio permitiria “evitar a reificação das coerções sociais”, no plano político ele implicaria que “outro mundo social é possível, a despeito das regularidades sociais” (p. 35).

Ao final da espécie de tábula dos dez mandamentos da Sociologia Pragmática, Lemieux oferece uma espécie de prova dos nove, ou melhor, dos dez: quem respeita mais de sete deles filia-se a ela, quem pratica entre três e sete se aproxima dela, e quem emprega menos de três é a ela refratário. Lembra, porém, que sempre é tempo de mudar de posição.

À exposição dos princípios gerais, encadeia-se o capítulo sobre os conceitos centrais, que são divididos tematicamente de acordo com as elaborações da nova ramificação disciplinar acerca de três noções basilares à Sociologia: prática, conflito e sociedade. A concepção de prática é fundamentada nos conceitos de prova, regime e dispositivo. De difícil tradução, as provas ou testes (numa tradução livre e insatisfatória do termo épreuves) são o objeto por excelência da vertente pragmática, porque constituiriam situações sociais em que determinada realidade seria colocada em dúvida, desafiada. Lugar de uma relação de força, uma prova traria a experiência da vulnerabilidade da ordem social, colocando-a em teste, em exame, desafiando a doxa. Ao tomar esse tipo de situação como objeto privilegiado de análise, a perspectiva pragmática da sociologia se interessa particularmente por controvérsias e casos de disputa, ou seja, ocasiões em que a realidade social como algo fechado seria colocada à prova, em que o “caráter dóxico” do mundo seria estremecido. A investigação sociológica dessas provas seria enformada por “uma concepção extremamente dinâmica da vida social e dos processos cognitivos que a constituem” (p. 42).

A isso se liga o conceito de régime, declinado em “regime de ação” e “regime de engajamento”. Com ele, procura-se repensar a heterogeneidade constitutiva da ação enquanto pluralidade na própria ordem da ação, lembrando que não se trabalha com a ideia de um nível superficial e um nível profundo da ação. Como na formulação de Thévenot (2006THÉVENOT, Laurent. L'action au pluriel. Sociologie des régimes d'engagement. Paris: La Découverte , 2006.), a ação é pensada “no plural”, pois existiriam vários regimes de ação. O que faz com que os atores passem ou não de um regime a outro é a própria dinâmica interacional, que deve, então, entrar no foco analítico.

O conceito de dispositivo completa a trinca categorial que lastreia a concepção de prática da Sociologia Pragmática. A propriedade principal de um dispositivo seria agir sobre a ação, conduzindo os indivíduos a fazer o que eles não necessariamente fariam. Assumidamente “inspirada” no Foucault de Vigiar e punirFOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis/RJ: Vozes , 1999., tal visão enxerga o poder como simultaneamente coercitivo e habilitador. A partir dela, almeja-se estabelecer uma crítica política não apenas de pessoas (personnes), mas também de dispositivos.

Tal concepção sobre a prática colocaria o conflito no centro das análises, mas com “uma outra perspectiva sobre a conflitualidade”, baseada no estudo da “forma caso” (forme affaire). Ao contrário de um “escândalo”, em que o público concernido reafirma as normas transgredidas ao consensualizar sobre sua transgressão, um “caso” só se define enquanto tal porque abre o espaço do dissenso. Para Boltanski (1990BOLTANSKI, Luc. L'Amour et la justice comme compétences. Trois essais de sociologie de l'action. Paris, Métailié, 1990.), o “caso” é algo típico de sociedades modernas, “sociedades críticas” em que ocorre a “gestão pública dos conflitos”. Um caso se institui mediante uma operação de generalização ou politização, ou pelo “aumento da generalidade” (montée en généralité). Próximo à noção de “tipificação” de Alfred Schütz (1979SCHÜTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.), um caso é resultado de escalada generalizante de politização, de um esforço para despersonalizar e despsicologizar as situações individuais de crítica. Nessa perspectiva, as “operações críticas” realizadas no próprio mundo social são cruciais e, enquanto operações como “revelação”, “denúncia”, “administração de provas” e “justificação” abririam as disputas, os mecanismos de “compromisso” e “relativização” as fechariam.

O conceito de cité (cidade) é fundamental para lidar com o constante movimento de abertura e fechamento de disputas que caracterizaria as sociedades modernas, algo que só é possível porque estas seriam pluralistas do ponto de vista dos valores. De inspiração agostiniana, o conceito designa formas de estabelecimento de equivalências gerais às quais os atores recorrem para politizar as relações sociais. São universos valorativos que permitiriam às pessoas estabelecer entre elas formas de comparação universal nas ocasiões de crítica e justificação. Boltanski e Thévenot (1991BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. ) apontam a existência de seis cités: mercantil, cívica, industrial, doméstica, inspirada e da opinião. Boltanski e Chiapello (1999) BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalism. Paris: Gallimard , 1999.acrescentam a “cité par projets” (cidade por projetos) como própria à fase mais recente do capitalismo. A existência concomitante de todos esses mundos valorativos “tendencialmente incompatíveis” seria uma particularidade das sociedades modernas. Dotadas de diversas “economias de grandeza” e diferentes “regimes de engajamento”, a partir dos quais se estabelecem acordos e desacordos, nelas a crítica e o conflito seriam inescapáveis.

Tal argumentação implicaria em “uma outra visão da sociedade”, pensada como um processo sempre inacabado. Tal concepção processual é ligada à noção de “pessoa” (personne), por oposição a agentes”, “atores” ou “indivíduos”. Com a reiteração do “princípio da capacidade”, reforça-se a ideia de que há diferentes possibilidades de ação, contra a ideia de que o passado ou os constrangimentos estruturais são os principais definidores das práticas. A noção de pessoa é implicitamente oposta ao conceito de habitus, tal como aparece em Bourdieu, e explicitamente empregada em ruptura com o individualismo metodológico, uma vez que a Sociologia Pragmática não conceberia “os indivíduos in abstracto”, mas “a partir da obrigação que os constitui como pessoas, como membros de uma sociedade em que se reconhecem como tais” (p. 57). Isso porque as pessoas têm de fazer face à “gramática” da sociedade, isto é, ao conjunto de regras que elas tendem a respeitar em sua prática, e que o sociólogo pode perceber pelo trabalho de observação. Embora a noção de gramática apareça como uma espécie de mediador entre sociedade e pessoa e se estatua a possibilidade da ação, Lemieux não hesita em afirmar uma “posição holista próxima ao durkheimismo”, uma vez que se opõe à ideia de que as condutas humanas possam ser analisadas sociologicamente “sem levar em conta a existência de uma sociedade”.

Ao ousado desafio de pensar o conflito tendo Durkheim como pano de fundo correspondem algumas diretrizes metodológicas, tema do terceiro capítulo do livro. A primeira delas consiste em “olhar o mundo social mais de perto”: focar nas interações dos atores entre si e com o ambiente, bem como nos julgamentos e elementos da situação que seriam invisíveis de longe. Atenção especial é prescrita às “micro-provas”, pois elas levariam à “raiz dos processos de politização”, já que ocorrem quando as tensões e problemas ainda não constituem, para os atores concernidos, motivos de contestação da ordem social em sua generalidade. Já a “pesquisa por coleções de casos” seria o procedimento para compreender os mecanismos sociais e institucionais e os dispositivos organizacionais e jurídicos que tornam mais difícil (ou mais fácil) que as pessoas questionem a realidade. Com a ambição de politizar o real, a Sociologia Pragmática buscaria ainda inovar nas técnicas de descrição. Ao postular a “descrição fina”, ela aconselha o sociólogo - sim, sempre no masculino - a “situar-se próximo ao curso da ação; atentar aos processos de generalização e se preocupar com os dispositivos”, já que estes teriam “papel nas chances que os atores têm de gerir a conflitualidade inerente às suas práticas” (p. 68).

Outra prescrição radica na relação entre “compreender melhor e compreender-se melhor” e insta a trocar a “falsa posição de neutralidade por um verdadeiro esforço de distanciamento”. Isso seria possível por meio da “tomada de consciência da própria posição do pesquisador”, cujas razões de agir e de se indignar também seriam produzidas socialmente.

Já a lição metodológica de que “não se deve começar a pesquisa por onde deveríamos terminá-la” postula que é preciso respeitar a “ordem das tarefas da sociologia”: a descrição e a compreensão seriam as “tarefas tecnicamente primeiras” (TTP); a previsão, a explicação e a crítica constituiriam as “tarefas tecnicamente segundas” (TTS). A articulação entre elas seria possível pela “análise gramatical da ação”: relacionar as ações e julgamentos dos atores estudados aos conjuntos de regras (ou gramáticas) da comunidade em que se inserem. Colocar as regras em perspectiva possibilitaria apreender a “sua gênese, os mecanismos sociais de sua transmissão, bem como sua reapropriação inventiva” (p. 79).

A crítica sociológica deveria ser fundada, portanto, nas “normas da própria comunidade e sua maneira de definir a situação”. O “desvio compreensivo” tributário de correntes interacionistas antecessoras serviria para “mostrar que existe uma contradição entre as práticas efetivas e as expectativas morais ligadas às regras” (p. 80). A proposta é ligar a compreensão da ação com a crítica dos dispositivos. Com isso, tanto análise explicativa como análise preditiva seriam possíveis. Logo, a vertente pragmática tem a expectativa de alcançar uma sociologia capaz de descrever, compreender, prever, explicar e criticar a ação social.

O capítulo quatro apresenta os campos de pesquisa nos quais esse tipo de sociologia já estaria à mostra: trabalho, economia, Estado, movimentos sociais, meio ambiente e riscos, saúde, arte e cultura e mídia. Em diálogo interno à vertente que busca ao mesmo tempo circunscrever e ampliar, Lemieux elege trabalhos como exemplares dela, desculpando-se junto a colegas que eventualmente não apareceram no seu “retrato”. Já no quinto capítulo, a conversa é estendida também ao campo alargado da sociologia. Nele são expostos os “debates internos e externos” que atravessam a perspectiva pragmática. As principais críticas que ela tem recebido são passadas em revista e respondidas com diferentes níveis de elaboração.

À crítica de que se esqueceria das desigualdades sociais, Lemieux contesta que a Sociologia Pragmática se esforça para descrever e compreender as práticas sociais através das quais as desigualdades sociais são objetivadas, sem recorrer ao que chama de “pattern das desigualdades para explicar, prever e criticar o mundo social” (p. 106). Acerca da admoestação de negligenciar a dominação e a violência, ele afirma que, por pretenderem uma “sociologia da ação política” voltada às capacidades de autotransformação dos coletivos humanos, ao invés de “uma sociologia do pathos”, autores como Latour e Callon não colocariam a questão da dominação em termos morais, mas em termos políticos. E acrescenta que, embora “fundamentalmente otimista”, nela não se ignora o sofrimento e a injustiça. Antes, a ela interessam as maneiras de limitá-los e repará-los. Já Boltanski e Thévenot se dedicariam a uma sociologia ao mesmo tempo política e moral, mas buscariam mostrar que a condenação da injustiça, quer seja feita pelos atores ou pelos pesquisadores, não é expressão de algo arbitrário, mas um ato que encontra seu fundamento no horizonte do senso comum de justiça próprio a uma sociedade. Contudo, as duas correntes nutririam “o princípio do antiessencialismo e a decorrente recusa de naturalizar e de irreversibilizar as relações de dominação” (p.108).

Diante da crítica de que a Sociologia Pragmática superestimaria a “transparência do mundo social”, Lemieux aponta que o conceito de prova (épreuve) faz com que a noção de prática não seja definida por oposição à de reflexividade. A concepção de práxis repousaria sobre a ideia de que a interação produz necessariamente um mínimo de reflexividade. Assim, o “princípio de não consciência”, de Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2015BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis/RJ: Vozes, 2015.), teria um sentido apenas “gradual e relativo”, não absoluto. A tarefa da corrente que advoga seria justamente atentar às situações e dispositivos que encorajam ou diminuem a reflexividade, sendo que própria sociologia poderia ser considerada um desses dispositivos.

Quanto às condenações de relativismo, o autor de Mauvaise presse (Lemieux, 2000LEMIEUX, Cyril. Mauvaise presse. Une sociologie compréhensive du travail journalistique et de ses critiques. Paris: Métailié, 2000. ) concede que, por adotar os princípios da simetria do internalismo, a vertente pragmática “radicaliza o imperativo relativista que constitui as ciências sociais”. Todavia, os conceitos de resistência, prova, gramática e sociedade serviriam como “freios antirrelativistas” (p. 111). O último julgamento de que se defende seria o oposto desse e acusaria a Sociologia Pragmática de ser a-historicista, ou seja, de não ser suficientemente relativista. Em resposta, ele aponta que ela se ocupa justamente da história no processo de se fazer (en train de se faire). Não obstante, admite que a “herança estruturalista” dos trabalhos sobre as cités de Boltanski e Thévenot merece atenção especial, ainda que os autores as considerem como realidades históricas e socialmente construídas. Logo, essa crítica seria pertinente aos trabalhos que dão centralidade aos ideais coletivos, posto que recoloca a exigência sociológica de, ao se considerar “a transcendência enquanto experiência social, não negligenciar o plano da imanência das relações socio-históricas” (p. 114).

Como fechamento, o autor, que se coloca como porta-voz de um grupo, conclama o campo geral da sociologia ao debate, reafirma o pedigree da corrente que preceitua e assevera que não pretende defini-la de maneira doutrinal, mas fazer proposições com vistas a “compreender melhor o trabalho de pesquisa e a possibilidade de agir politicamente sobre o mundo social” (p. 116). A própria Sociologia Pragmática é concebida em processo de feitura e o final do livro se faz com a publicização de “direções” dos trabalhos em andamento. Além de trabalhos individuais, nomeadamente a rearticulação com a tradição estruturalista de Boltanski, o aprofundamento do princípio do pluralismo de Latour, a aproximação com o pragmatismo filosófico de Antoine Hennion, a balística das controvérsias e das causas coletivas de Francis Chateauraynaud, a sociologia processual dos dispositivos de Nicolas Dodier e a investigação sobre o papel social dos valores de Nathalie Heinich, Lemieux destaca os trabalhos coletivos do Laboratoire Interdisciplinaire d’Études sur les Reflexivités sediado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (LIER - EHESS), criado em 2013. Dirigido pelo próprio Lemieux, o laboratório da prestigiosa instituição francesa teria uma inflexão dupla: as “especificidades da modernidade” e a “produção social da reflexividade”. São problemáticas vistas como correlatas, uma vez as sociedades modernas são concebidas como críticas e potencialmente reflexivas. À proposta de continuidade da aparentemente interminável discussão sobre a modernidade, que encontra em Weber seu precursor, se acrescentaria uma aproximação com a tradição durkheimiana, na medida em que se busca conceber o idealismo moral dos atores, sem reduzi-lo ao agir estratégico ou enxergá-lo como um simples elemento cultural entre outros.

Nessa apresentação dos desdobramentos atuais, fica nítida a forma como a vertente pragmática concebe a sociologia como um empreendimento necessariamente teórico & empírico. Coerente com seu “credo empírico-conceitualista”, a “preocupação em não separar jamais” a pesquisa empírica da conceitualização teórica é reafirmada na exposição dos trabalhos em curso. Essa é uma das linhas de força da corrente preconizada no livro. E, no caso específico de Lemieux, tal atitude permite que, embora se dedique a um esforço teórico sintético, ele não incorra na veleidade de uma “grande teoria” acima de qualquer lastro empírico.

Não obstante, tanto as iniciativas individuais quanto os esforços coletivos dão a ver que as pretensões teóricas não são poucas. Ao contrário, o livro é mais uma iniciativa de garantir que a Sociologia Pragmática seja reconhecida pelo nome de batismo e que, no panteão da disciplina, apareça no rol de frente do retrato da geração seguinte a Bourdieu, Boudon, Giddens, Habermas... Trata-se, afinal, do mesmo álbum de família, já que boa parte de seus trabalhos continuam problemáticas marcantes do momento precedente, como a teoria da ação, a preocupação correspondente com a reflexividade e a inquietação sobre as idiossincrasias da modernidade. Contudo, contemporâneos com temáticas semelhantes, como o grupo de Heidelberg, por exemplo, não aparecem sequer como componentes do cenário. Mas os vizinhos não costumam mesmo figurar nas fotos de família... O tratamento que esses tópicos recebem abaixo da linha do Equador tampouco aponta no enquadramento. Assim, o périplo entre a tradição estadunidense e a herança europeia passa por longitudes diferentes de latitudes semelhantes. Não é, pois, inopinado que nos deparemos, ao final da odisseia, com as paragens das sociedades “modernas”, “pluralistas”, “críticas” e “reflexivas” (p. 117).

Ao que tudo indica, se a Sociologia está “em processo de realização”, tais disputas são um de seus componentes. Para além das disputas posicionais, cabe destacar que é admirável a clareza com que Lemieux apresenta os aspectos principais da perspectiva com que trabalha. Trata-se de um notável exercício de reflexividade que serve de inspiração aos demais praticantes do ofício sociológico. Aliás, qualquer tipo de atividade científica ou intelectual tem a ganhar com a explicitação de suas premissas. Nesse sentido, o livro traz contribuições por sistematizar, de maneira clara e concisa, uma das importantes vertentes da sociologia contemporânea, por buscar influir na agenda teórica, metodológica e empírica da disciplina e por instigar, de forma inegavelmente embasada, o debate mais amplo acerca de questões essenciais à teoria social, como as problemáticas da ação, da crítica, do conflito e da relação entre teoria e realidade social.

Outro ponto digno de destaque, à guisa de fechamento, é o caráter ambicioso da proposta apresentada. Talvez seja exagerado imaginar que a sociologia possa ser, como o livro anuncia, descritiva, compreensiva, preditiva, explicativa e crítica. Não obstante, é bem-vindo o chamado à busca pela relevância epistêmica e política da área e soa auspiciosa a aposta feita no seu caráter performativo. Afinal, a sociologia não é apenas um sismógrafo do mundo social, mas algo que pode ajudar a estremecê-lo.

Referências

  • BARTHE, Yannick et al Sociologie pragmatique: mode d'emploi. Politix, v. 3, n. 103, p. 175-204, 2013.
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  • BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis/RJ: Vozes, 2015.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis/RJ: Vozes , 1999.
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  • SCHÜTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
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  • THOMAS, William I.; THOMAS, Dorothy S. The child in America: behavior problems and programs. New York: A. A. Knopf, 1928.
  • 1
    Os trechos citados da obra resenhada são apresentados em tradução livre realizada pela própria autora.
  • 2
    “If men define situations as real, they are real in their consequences”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2018
  • Aceito
    02 Abr 2019
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