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Ciência, tecnologia e sociedade

Science, technology and society

EDITORIAL

Ciência, tecnologia e sociedade

Science, technology and society

Descortinamos, no limiar deste terceiro milênio, com os avanços no domínio de novas abordagens metodológicas e de novos processos biotecnológicos, o descompasso mencionado por alguns analistas, devido ao fato do espectro de possibilidades de conhecimentos e inovações, no campo da ciência e tecnologia, não ser acompa-nhado em velocidade com a competência necessária para gerenciá-los, inclusive no desempenho de um papel catalisador visando à mudança social. Este alerta é pertinente porque, mesmo com esses progressos, vivemos tempos ainda demarcados por assimetrias sociais e econômicas, tempos em que há uma sensibilidade mais aguda para os direitos humanos, tempos de riqueza tecnológica que deveriam ter os problemas reais como referência fundamental, conferindo à produção científica um profundo sentido social. Tempos também para uma reflexão mais ambiciosa em relação ao contributo da ciência e tecnologia em prol de um futuro possível, com o pensamento voltado para o que sentenciava, na década de 40, Walter Oswaldo Cruz, um dos mais lúcidos cientistas brasileiros: "Meditai se só as nações fortes podem fazer ciência ou se é a ciência que as torna fortes".

Nesse cenário, torna-se relevante considerar que a ciência e suas aplicações são indispensáveis para o desenvolvimento das sociedades, conduzindo a que se atribua à pesquisa funções políticas e sinaliza a necessidade de uma percepção da trilogia ciência/tecnologia/sociedade, num "sentido mais coerente com a nossa realidade e com o futuro que a sociedade deseja construir"1 Atualmente, com a globalização impondo novas formas de organização social baseada no conhecimento e pela facilidade com que se desloca o conhecimento é essencial, da parte dos pesquisadores, que adotem uma visão humanística, que relacionem seus estudos às necessidades e às realidades sociais, concedendo prioridade às pesquisas socialmente úteis e culturalmente relevantes.2

Impõe-se, então, que os pesquisadores procurem se manter sadiamente inquietos, nas formas de vivência e nas rotinas do convívio, e não esqueçam o que judiciosamente aconselha Gauer,3 da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: "Mais importante do que o desenvolvimento de novos conhecimentos no campo da ciência e tecnologia é, com toda a certeza, o uso que a sociedade dará para estes conhecimentos." Opinião semelhante manifesta Macedo,4 ao sugerir "... um novo contrato entre ciência e sociedade, de modo que o progresso científico se oriente à resolução dos grandes problemas que a humanidade sofre". Daí nos defrontarmos frequentemente com dois grandes desafios: Como criar a ponte entre conhecimento e aplicação? Como realizar o controle social da ciência e tecnologia e de seu uso correto, e como atender às suas dimensões humanas? A propósito, vale a recomendação de Morin, citado por Petraglia et al.5 de cultivar "... um conhecimento que seja capaz de religar as duas culturas: a humanista e a científica. A primeira é uma cultura de reflexão e de integração das idéias na vida, ao passo que a segunda está baseada na compartimentação e no aumento exponencial dos saberes e das informações".

Outrossim, neste mundo novo da tecnociência, condiz ter presente que a aplicação do conhecimento envolve sérios problemas éticos, pois a ciência não se restringe a interpretar o mundo, mas a transformá-lo; que a mudança implica sensibilizar, mobilizar e construir capacidades e não pode ser vista como ameaça, porém considerada uma oportunidade. Admite Martinelli, citado por Diskin L,6 "... que a sociedade evolui passando por estágios de mudanças, e nós também somos parte integrante das mudanças e não seus espectadores". Portanto, a responsabilidade social dos pesquisadores exige que se comprometam com elevados padrões éticos, devendo ser essa a diretriz primeira a pautar toda a experiência científica, conforme a percepção de Alho,7 da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul "Convém que no meio técnico-científico as reflexões éticas condicionem as decisões e possam também desempenhar um papel prospectivo, como um sistema de alarme prévio ou um sensor de perigos".

Julgamos pertinentes estas ponderações porque os avanços da tecnociência, além de concorrerem para a inclusão social, vêm alimentando o imaginário do prolongamento e da melhoria da vida humana, e com o sequenciamento dos genes já são previstos saltos significantes na medicina preventiva e na prática médica. Tais circunstâncias exigem a compreensão de que a biotecnologia é apenas uma ferramenta para atingir as finalidades humanas, e amplia-se o consenso de que cabe à bioética e aos direitos humanos orientar o seu caminho, traçando os seus limites e impedindo os seus eventuais abusos, e os riscos existentes não devem ser ocultados na hora de decidir sobre as aplicações.

Inegavelmente, justifica-se uma estreita articulação entre ciência e ética, mormente em face dos progressos, a passos cada vez mais largos, no campo da saúde e da reprodução humana, onde as condutas têm imensas repercussões, no presente e no futuro da vida humana. A respeito, são animadoras as conclusões de Cordeiro,8 da Fundação Oswaldo Cruz, "Vivemos um momento de amadurecimento e inflexão para a C & T brasileira. As estratégicas conferências de C & T e inovação e a recém-aprovada Lei da Inovação ajudam a criar um ambiente estimulante para que as empresas aumentem seus investimentos em desenvolvimento tecnológico e inovação com universidades e institutos de investigação".

Afinal, diante da evidência de que a inteligência e a imaginação assumem papel cada vez mais importante na criação de valor, é indispensável que os pesquisadores disponham de tempo para compartilhar o conhecimento de forma concreta na rotina diária e ganha relevância a gestão do conhecimento, pela relação direta que tem com a capacidade de inovação. Por sua vez, a ciência requer tanto o exercício da responsabilidade social e da solidariedade, por parte dos executores, como a concessão de financiamento progressivo de longo prazo. A nosso ver, somente assim será capaz de oferecer contribuições importantes à comunidade e concorrer para que o século XXI venha a situar-se, realmente, na posição que a humanidade ansiosamente reclama e merece: O século da vida.

Bertoldo Kruse Grande de Arruda

Presidente do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira, IMIP

Referências

1. Dagnino R. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: De Paulo A, Mello CJ, Nascimento Filho LPN, Koracakis T. Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil; 2004.

2. UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) A ciência para o século XXI: uma nova visão e uma base de ação. Brasília (DF): 2003.

3. Gauer GC. Um caminho estreito: ética, ciência e técnica. In: Ciência e Ética: os grandes desafios. Porto Alegre: Edipucrs; 2006.

4. Macedo B. Ciência para a vida e para o cidadão. In: Ciência e cidadania: Seminário Internacional de Ciência de Qualidade para Todos. Brasília (DF): UNESCO; 2005.

5. Petraglia I, Pena-Vega A, Almeida C. Edgard Morin: religar a ciência e os cidadãos. São Paulo: Cortez, 2003.

6. Martinelli M. Ser é ensinar. In: Diskin L, Martinelli M, Migliori RF, Espírito-Santo RC. Ética, valores humanos e transformação. São Paulo: Peiropólis; 1998. v. 1

7 Alho CS. Ética no desenvolvimento científico e tecnológico: questões da genética atual. In: Ciência e Ética: os grandes desafios. Porto Alegre: Edipucrs; 2006.

8 Cordeiro R. Só as nações fortes podem fazer ciência? Rádis: Comun Saúde 2006; (44): 19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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