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Editorial

O último número deste ano de Scientiæ zudia está inteiramente dedicado à atualização e desdobramentos do modelo da interação entre as atividades científicas e os valores (M-CV). Os artigos aqui reunidos foram preliminarmente apresentados no XXIV Seminário Internacio nal de Filosofia e História da Ciência e da Tecnologia que versou sobre o tema "Ciência, tec nociência, valores e sociedade", ocorrido durante o primeiro semestre de 2013 no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo. Os dois artigos iniciais elaboram uma atualização e detalhamento do M-CV que avança na compreensão da tecnociência atual, da qual revelam os mecanismos ligados às estratégias descontextualizadoras e ao ciclo fechado de pesquisa motivado por estas últimas, propondo como alternativa um regime de pesquisa multiestratégica, mais apropriado para a avaliação científica dos riscos e consequências das aplica ções tecnológicas em grande escala. Esses dois artigos são completados por artigos publicados em Estudos Avançados (28, 82, 2014; 29, 83, 2015), que exploram as implicações e possibilidades concretas da pesquisa multiestratégica e pelos demais artigos deste número que desenvolvem reflexões que procuram explicitar o vínculo existente entre a racionalidade científica e os valores em suas várias modalidades (éticas, sociais, políticas, cognitivas ou epistêmicas, religiosas). Encerra o número nota crítica que se debruça sobre o uso intensivo de agrotóxicos no Brasil, examinando essa questão de uma perspectiva pragmática compatível com o M-CV que se coloca na confluência entre a epistemologia e a ética.

Abre este número de Scientiæ zudia o artigo de Hugh Lacey e Pablo Rubén Mariconda, que, ao analisar a função dos valores na tradição da ciência moderna, complementa a divisão anterior das atividades científicas em três momentos (etapas) - adoção de estratégias de pesquisa; certificação de hipóteses e teorias; e aplicação do conhecimento científico -, acrescentando outros dois momentos: o de empreendimento (realização) da pesquisa, intermediário entre os dois primeiros momentos; e o de disseminação dos resultados científicos, intermediário entre os dois últimos. O concurso desses vários momentos engendra uma dinâmica entre teorias, estratégias e valores cognitivos que conduz das estratégias de pesquisa à aplicação do conhecimento obtido. Os autores mostram então - por meio de uma análise da dinâmica de pesquisa produzida pelas estratégias descontextualizadoras e aquelas sensíveis ao contexto e da introdução do ideal (valor) de abrangência do conhecimento científico - que o M-CV incorpora uma concepção de pesquisa científica compatível com o pluralismo de estratégias de pesquisa. Nesse percurso argumentativo, explicita-se o sentido para o M-CV dos ideais de imparcialidade, abrangência, neutralidade e autonomia, que são constituintes tradicionais da ciência moderna.

No segundo artigo, Hugh Lacey opera um desdobramento da argumentação anterior, para opor a pesquisa multiestratégica à tecnociência comercialmente orientada, mostrando que o M-CV fornece um instrumental que permite criticar a predominância nas instituições científicas atuais das estratégias descontextualizadoras e, ao mesmo tempo, apontar para alternativas de pesquisa. Alternativas estas que não recebem a devida atenção por parte dessas mesmas instituições, embora sejam particularmente promissoras na avaliação dos riscos e con sequências indesejáveis das aplicações tecnológicas, na medida em que possibilitam a pesquisa multiestratégica que combina pesquisa orientada por estratégias descontextualizadoras com pesquisa orientada por estratégias sensíveis ao contexto. Essa combinação de estratégias é particularmente capaz de satisfazer o ideal de abrangência, enquanto tende também a aumentar a manifestação dos ideais de imparcialidade e neutralidade.

Em seu artigo, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento do M-CV, Marcus Sacrini, após apresentar sinteticamente a perspectiva fenomenológica de análise da experiência, explora os principais aspectos da noção husserliana de "mundo da vida", com a qual se explicita a experiência ou vivência concreta na qual se insere o cotidiano das pessoas, constituindo o mundo ambiente (Umwelt) comum, o entorno cotidiano, no qual se desenrola a vida humana. Com esse movimento, o autor abre espaço à intencionalidade e à pluralidade de sentidos da experiência concreta em seu próprio desenrolar. Afiada a lâmina fenomenológica, ela é voltada para a análise da atividade científica, a qual ocorre por meio de uma correlação entre certa orientação do pensar/agir e um domínio a ser investigado. Na tradição da ciência moderna, o conhecimento se desenvolve segundo uma orientação teórica do pensar/agir a qual neutraliza, por meio das abordagens descontextualizadas, a riqueza intencional (de sentidos) da experiência concreta em vista de um conhecimento objetivo que revela uma camada constituinte básica do ser, isto é, um domínio de componentes materiais e leis naturais. A orientação teórica descontextualizadora é então ontologicamente reducionista porque remete a riqueza da experiência concreta que se desenrola no mundo da vida a essas camadas de interações objetivas: o nível físico-químico (matéria); o nível físico/químico/biológico (vida); o nível psíquico (psique), constituindo uma espécie de máquina de fundamentação ontológica no mundo da vida dos resultados das abordagens descontextualizadas.

De sua parte, Maurício de Carvalho Ramos procura articular o conceito de racionalidade, subjacente ao M-CV, com o valor do florescimento cognitivo, humano e da vida, o qual propõe como alternativa ao valor do progresso promovido pela ciência comercialmente orientada. Argumenta o autor que o florescimento é compatível com uma concepção de natureza humana que valoriza a singularidade e a individualidade, sem compromisso, entretanto, com o individualismo egoísta. O autor propõe então o que chama de "ética do florescimento", que combina um desejo de saber que mobiliza valores como a espontaneidade e a criatividade, supostamente mais compatíveis com a racionalidade subjacente ao M-CV, que o autor circunscreve como sendo, seguindo uma formulação de Lacey, uma disposição a agir de modo inteligente e responsável a razões, ou seja, uma razoabilidade corrente, que é justamente a marca do entrelaçamento entre a intencionalidade e a racionalidade no mundo da vida.

Valter Alnis Bezerra, no quinto artigo do número, propõe uma concepção filosófica do conhecimento e da racionalidade científicos, composta de duas dimensões estreitamente interligadas. A primeira é a concepção segundo a qual a coerência e os valores são constitutivos do conhecimento científico, característica que a afasta da imagem hipotético dedutiva, pro po sicional e realista da ciência. A segunda dimensão é a visão covariante de racionalidade cien tífica que incorpora a justificação coerentista (equilíbrio reflexivo na escala macro), além de admitir uma axiologia, atribuindo papéis para os valores. O autor argumenta a seguir que a combinação da dimensão do conhecimento, entendida segundo a primeira tese, com a dimensão da racionalidade covariante da segunda tese permite tratar de uma racionalidade em fluxo sem pontos fixos (novamente uma forma de razoabilidade, de uso corrente da razão científica), explicitando o contínuo compromisso entre contingência e invariância que se dá no curso da pesquisa. Apresenta, por fim, a compatibilidade entre a concepção exposta, nos seus elementos estruturais e dinâmicos, com o M-CV, com o modelo de Laudan e com a metateoria estruturalista, insistindo nos vínculos propiciados entre elas pela coerência e os valores.

Encerrando a série de artigos, Sylvia Gemignani Garcia parte de uma descrição da problemática moderna entre ciência e valores com foco na polaridade entre conhecimento instrumental e conhecimento reflexivo. Com o intuito de explorar as possibilidades das perspectivas reflexivas, a autora expõe duas proposições exemplares desse tipo de abordagem em suas explicações sobre as razões do extenso predomínio do conhecimento instrumental na contemporaneidade. O modelo da interação entre as atividades científicas e os valores (M-CV) é, então, objeto de sucinta exposição da crítica dos limites das abordagens descontextualizadoras (EDs) por meio da especificação dos papéis desempenhados pelos valores sociais e éticos na etapa M1 da adoção de uma estratégia de pesquisa, e na etapa M5 de aplicação do conhecimento científico, situando assim a proposta do pluralismo estratégico. Em seguida, aborda a sociologia de Pierre Bourdieu, expondo sua visão histórica do desenvolvimento da razão e sua análise da lógica singular do campo científico que possibilita a conquista coletiva de uma autonomia relativa. Para a autora, as duas análises ilustram as possibilidades das perspectivas histórico-racionalistas para o avanço do pensamento reflexivo e do entendimento dos processos de reprodução da organização e dos valores sociais dominantes.

Fecha este número de Scientiæ zudia, a nota crítica de Pablo Rubén Mariconda, que tal como o segundo artigo deste número, opera um desdobramento do M-CV ao aplicá-lo a uma demanda de avaliação ética sobre o que se configura como um caso típico de avaliação das con sequências das inovações tecnocientíficas comercialmente orientadas, a saber, a liberação comercial de sementes GM resistentes aos agrotóxicos Glifosato e 2,4-D. Após o texto da manifestação original feita em Brasília na audiência pública do Ministério Público Federal em 12 de dezembro de 2013, em face dos desdobramentos em curso, o autor tece comentários ulte riores em duas direções. Em uma vertente sociológica, apresenta sucintamente o sistema brasileiro de regulação biotecnológica e discute como ele favorece um estado de exceção tecnológi ca que gera um conjunto de fatos consumados a respeito das consequências desses organismos para a saúde e para o meio ambiente. Esse estado de exceção só pode ser vencido com o uso do Princípio de Precaução e fazendo que a pesquisa multiestratégica explore as alternativas e as consequências da agricultura agrobioquímica, dando espaço a outras perspectivas de valor e outras estratégias de pesquisa. Em uma vertente filosófica, analisa, da perspectiva da confluên cia entre a epistemologia e a ética, facultada pelo M-CV, as práticas correntes das empresas de biotecnologia agrícola, revelando nelas sérias faltas epistemológicas, na medida em que o recurso ao segredo da patente impossibilita o exercício da investigação científica objetiva, bem como sérias faltas éticas, quando continua uma aplicação tecnológica mesmo com provas cien tíficas certificadas de que é causadora de danos e malefícios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014
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