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"A IMAGEM É UMA COISA QUE NÃO É A COISA": o artista entre as camadas do espelho1 1 . Uma versão preliminar das reflexões contidas neste artigo foi apresentada em encontro do FotoRio 2014 na cidade do Rio de Janeiro.

The Image Is a Thing that Is Not the Thing: The Artist Between the Layers of the Mirror

RESUMO

Em um passado distante, poucos tinham as ferramentas para a representação de si através dos (auto)retratos. Somente os artistas eram capazes de dizer ao mundo como era a percepção que tinham de si mesmos. A explosão da produção de imagens no mundo contemporâneo tem deflagrado novas formas de experiência da vida, em situações que parecem deslocar o sujeito do centro da experiência em favor do registro de um tempo presente que passa sem ser efetivamente experimentado. No campo da arte, surgem novas possibilidades de criação que atualizam questões abandonadas com o declínio da pintura no século XX.

palavras-chave:
autorretrato; representação; pintura; fotografia

ABSTRACT

In a distant past, few had the tools to represent themselves through the (self) portraits. Only the artists were able to tell the world how was the perception they had of themselves. The explosion of the image production in the modern world has triggered new forms of experiencing life, in situations that seem to dislocate the subject away from the center of the experience in favor of the registry of a time that passes without being actually experienced. In the field of art, there are new possibilities of art making that update issues dropped with the decline of painting in the twentieth century.

keywords:
self-portrait; representation; painting; photography


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Nas práticas contemporâneas de autorrepresentação das selfies, podemos enfrentar as lentes do dispositivo fotográfico sozinhos ou em grupos; nunca, no entanto, se está efetivamente sozinho, isolado no mundo. Ao contrário. Tendo em mente que o destino das imagens é, em geral, as assim chamadas "redes sociais", mesmo quando nos colocamos a sós diante das lentes, estamos muito distantes de uma situação de isolamento, de estar efetivamente sós.

É comum que nos posicionemos em frente à lente do dispositivo de captura de imagens com o auxílio de um extensor para deslocar o suposto sujeito do gesto fotográfico para uma situação exterior a nós, criando a ficção de um outro a testemunhar o momento e a disparar o ato fotográfico. Esse recurso favorece a incorporação desse outro como testemunha ocular do evento, incrementando seu grau de veracidade na construção de uma imagem do que acreditamos ser ou do que ao menos gostaríamos de ser.

Além disso, ao distanciar a lente do objeto a ser registrado, com ou sem o auxílio do selfie stick, espelho ou qualquer outro recurso, busca-se eliminar distorções desfavoráveis em decorrência da proximidade da lente, revelando a função e o destino dessas imagens: uma autorrepresentação favorável, quando não generosa, a ser estampada nas "redes sociais". Assumindo os benefícios da velocidade da apreensão do tempo, tenta-se fazer crer que efetivamente somos aquilo que queremos ser, construindo-se e difundindo-se uma imagem arquitetada no campo dos desejos.

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Diferentemente do que acontece na atualidade, em um passado distante, apenas os artistas tinham os recursos para a empreitada da representação de si. Antes do advento da fotografia, somente pintores, desenhistas e gravadores, escultores mais raramente, eram capazes de dizer ao mundo, através de um rico texto visual, como se viam e como se dava a percepção que tinham de si através de autorretratos. Em um processo de autorrepresentação construído com vagar, o pintor podia incorporar ao quadro frações de tempo, além de legitimar o registro de suas angústias, alegrias e desejos. Sempre entre uma pincelada e outra pincelada, entremeadas por longos períodos de observação e de reflexão a marcar o gesto mediado na percepção de si.

Em outras situações, era comum que o artista emprestasse seu talento para registrar a percepção que ele - o artista - tinha de um outro, transformado - esse outro - em objeto na arte do retrato. No entanto, essa representação tinha como matriz e origem algo exterior a esse outro, o olhar do artista, em um processo que mantinha esse outro na condição de objeto sem chances de ser alçado à categoria de sujeito. Apenas ao artista, com o uso apropriado das ferramentas e dos recursos necessários à realização do autorretrato, era concedido o enfrentamento do processo da (auto)representação em um movimento dialético que promove a colisão entre sujeito e objeto.

A história da arte ocidental destaca obras de inúmeros artistas - em geral pintores - que escreveram as páginas da história da arte do retrato e da autorrepresentação. Um legado capaz de contar a história do homem através da percepção de si e do outro em imagens fixadas por pinceladas deitadas na superfície do quadro.

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Ao longo desse tempo histórico, os artistas enfrentaram uma equação instigante na criação dos autorretratos: como fazer com que sua visão alcançasse sua própria face e assim superar o dilema posto pelos olhos que veem e que não se deixam ver. Os artistas, pintores com maior frequência, recorreram à mediação de dispositivos diversos, tais como água parada, vidros, superfícies reflexivas etc., acabando por eleger o espelho "como um instrumento inestimável para a arte do autorretrato. Um espelho plano é uma superfície estática, bidimensional que exibe, através do reflexo, uma imagem tridimensional não estática"2 2 . WILSON, Dawn M. Facing the Camera: Self-Portraits of Photographers as Artists. The Journal of aesthetics and art criticism, v. 70, n. 1, 2012, p. 57. .

Mas, o que é efetivamente um espelho? O que ele revela, oculta ou subtrai? Quem é esse que através do espelho me olha? Quem é esse que vejo diante de mim, que comigo se parece, mas que teimo em não reconhecer? Quem é esse que me olha de "um lugar onde sei que não estou?" Como dito e escrito por Michel Foucault, o espelho projeta "um lugar sem lugar", faz com que eu me veja "lá onde não estou, em um espaço virtual, imaginário que se abre por trás da superfície; estou lá, lá onde não estou, uma espécie de sombra que me dá minha própria visibilidade, que permite que eu me veja lá onde não existo"3 3 . FOUCAULT, Michel. Of other spaces. Diacritics 16, primavera de 1986, p. 24. .

Fazendo eco com essas indagações e angústias, o grande romancista brasileiro João Guimarães Rosa perguntaria "mas que tipo de espelho é esse?", para em seguida lembrar-nos que "há-os 'bons' e 'maus', os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos [...] Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?", pergunta Guimarães Rosa para, logo em seguida, completar com analogias entre o espelho e a fotografia diante da precariedade do que se oferece à captura do visível:

Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes4 4 . GUIMARÃES ROSA, João. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 113-114. .

Para nós, neste ponto da história da cultura e da tecnologia, nos é dado a saber que as lentes e a fotografia, diante de suas limitações, potencialidades e superficialidades, não são capazes de provar ou comprovar coisa alguma.

O espelho, ao contrário, nos obriga a encarar nossas verdades em tempos distintos; o espelho reflete e nos obriga a refletir no enfrentamento de nosso presente atualizado em confronto com o que fomos e com aquilo que gostaríamos de ser. Através de suas camadas e da sucessão de imagens e de tempos que gera e comprime, o espelho nos arremessa impiedosamente contra a imagem que nutrimos de nós mesmos. O espelho, para além das tarefas e das banalidades cotidianas levadas a cabo por lâminas de barbear, escovas de dentes, pentes, pinceis de maquiagem e afins, nos projeta em autorretratos na vã expectativa de que venhamos a entender um pouco do que somos, enquanto ele permanece à espreita com seu olhar inquisidor a enfeitiçar-nos em nossa própria perplexidade.

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O uso do espelho na arte do retrato projeta a imagem do artista sobre si e para si, uma imagem que a ele se oferece nas práticas labirínticas do autorretrato. As supostas facilidades com que em vão tentam justificar a escolha do espelho pelo artista, o que em tese deixa-o sempre disponível diante de si mesmo, liberto assim da dependência de modelos e de outros motivos para o ofício da pintura, não consideram, entretanto, o enfrentamento de dificuldades interpostas pela exploração do "eu". A feitura de um autorretrato demanda uma ação dedicada e delicada com potencial para consumir um tempo alongado na observação e na reflexão desse "eu" que se oferece na imagem refletida no espelho.

Para os britânicos W. Ray Crozier e Paul Greenhalgh, essa "exposição prolongada" pode, em alguns casos, levar a um estado contaminado por pensamentos negativos que acabam por ser incrustados na representação do autorretrato, "na medida em que o quadro é um retrato expressivo do estado psicológico do artista ou porque o artista reproduz uma pose elegida, uma expressão facial etc. que comunicam certo estado emocional negativo"5 5 . CROZIER, W. Ray & GREENHALGH, Paul. Self-Portraits as presentations of self. Leonardo, n. 21, v. 1, 1988, p. 29. Disponível em: ‹http://www.jstor.org/stable/ 1578412›. Acesso em: 30 jul. 2014. .

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O advento da fotografia promoveu uma transformação substantiva na percepção do tempo na arte, opondo a ideia de uma exposição alongada, própria da natureza da pintura, ao mito do instante fotográfico, mesmo que a fotografia, em seus primeiros passos, tivesse ela mesma seu instantâneo como a condensação alongada de múltiplos instantes. E essa relação com o tempo distancia a arte da pintura da arte fotográfica. Na pintura, tempos distintos são comprimidos no quadro, registro final de instantes em sucessão que se alongam entre idas e vindas na criação do pintor.

Nesse aspecto, a pintura, ao comprimir tempos em sucessão, se aproxima vertiginosamente da arte fílmica. No caso dos autorretratos, nos quais se promove a captura de diferentes estados mentais e de humores distintos do artista-sujeito-objeto, a compressão de imagens parece conter o colapso de tempos que deixam suas marcas no objeto pictórico. Essa dinâmica da pintura é realçada por Gilles Deleuze em diálogo com a obra do pintor irlandês Francis Bacon, quando afirma que "na arte, tanto na pintura como na música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças. [...] A tarefa da pintura se define como a intenção de fazer visíveis forças que não o são"6 6 . DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica de la sensación. Madri: Arena Libros, 2005, p. 63-65. .

Em um apontamento específico sobre a obra de Bacon, Deleuze discorre sobre a capacidade do pintor irlandês de dar visibilidade a forças que não se pode ver, o que lhe garante posição destacada na história da pintura. Para Deleuze, essa potência de Bacon aparece na extensa série de cabeças e em especial nos autorretratos: "a extraordinária agitação dessas cabeças não advém de um movimento que a série supostamente recomporia, mas antes pelas forças de pressão, de dilatação, de contração, de esmagamento, de alongamento que se exercem sobre a cabeça imóvel"7 7 . Idem, p. 65. .

FIGURA 1:
Francis Bacon Three Studies for a Self-Portrait, 1973. Óleo sobre tela (Fonte: http://www.all-art.org/art_20th_century/)

É possível conjeturar, a partir de Deleuze, que a pintura de Bacon incorpora elementos fílmicos na captação e registro de forças invisíveis que nos assolam incessantemente a nos formatar, deformar e consumir. E não se deve confundir essa captura de forças com os compromissos distintos dos pintores futuristas com a dinâmica dos movimentos - visíveis - captados como rastros em ondas pictóricas. Em Bacon, tanto em seus autorretratos como em seus retratos, nos é dado a ver aquilo que sem os aparatos do sensível nos é vedado.

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Com todos os méritos, Francis Bacon integra uma longa e extraordinária linhagem de artistas - em geral pintores - que escreveram a história da cultura através da arte do retrato e da (auto)representação. Dentre esses artistas, é inegável o lugar de destaque de dois grandes pintores holandeses, Rembrandt e Van Gogh, sendo o segundo um admirador arrebatado do primeiro.

Em carta ao pintor e amigo Émile Bernard datada de 18888 8 . Émile Bernard tornou-se amigo de Van Gagh quando passou a trabalhar no ateliê de Cormon em Paris, ao lado de Toulouse-Lautrec, entre outros. , Van Gogh escreveu que, sempre que tinha a oportunidade de visitar o Museu do Louvre, se dirigia célere, "com um enorme amor em meu coração, aos holandeses, Rembrandt acima de tudo"9 9 . VAN GOGH, Vincent apud AUDEN, W. H. Van Gogh: a self-portrait (letters revealing his life as a painter). Greenwich, Connecticut: Nova York, 1961, p. 304. . A admiração de Van Gogh por Rembrandt se estendia para toda a obra do mestre holandês do século XVII, mas concedia um relevo especial a seus retratos e autorretratos. Van Gogh se deixava cativar pela ausência de complacência ou condescendência de Rembrandt diante do espelho no qual se via velho, maltratado pela intransigência do tempo a deixar marcas que vincavam seu rosto com rugas e pregas, em um autorretrato "cuja expressão se torna tragicamente triste, tragicamente melancólica", uma obra em que Rembrandt "pinta este homem velho que se parece com ele, um anjo sobrenatural com um sorriso de da Vinci"10 10 . VAN GOGH, Vincent apud AUDEN, W. H. Op. cit., p. 306. .

E continua Van Gogh na elaboração de sua estima pela obra de Rembrandt, exaltando-lhe as qualidades, descrevendo-a com entusiasmo incontido para o amigo Émile Bernard, tentando fazê-lo entender a grandiosidade da obra do mestre holandês, na qual seria possível encontrar a "pintura de toda a humanidade, ou melhor, de toda a república, através dos simples recursos do retrato. Isso absolutamente em primeiro lugar"11 11 . Idem, p. 309. .

Nascido em 1606 em Leiden, Holanda, Rembrandt Harmenszoon van Rijn construiu um legado excepcional para a história da arte, do qual faz parte um conjunto de cerca de 85 obras catalogadas como autorretratos, pintados, gravados ou desenhados12 12 . De acordo com os estudos realizados sob a chancela do Stichting Foundation Rembrandt Research Project. (STICHTING FOUNDATION Rembrandt Research Project. A corpus of Rembrandt paintings IV. Dordrecht, Holanda: Springer, 2005, p. 158) , obras que se situam entre os mais extraordinários autorretratos da história da pintura.

7

Pintados com regularidade ao longo de mais de quarenta anos, Rembrandt gravou em seus autorretratos suas angústias, alegrias, perplexidades, escrevendo uma crônica visual que registra a passagem do tempo e suas marcas na representação do corpo do artista, em especial em sua face. O historiador e crítico de arte Roger Fry, em texto de 1921, enaltecia as qualidades expressivas do pintor, seu pleno e absoluto domínio da técnica e dos meios pictóricos, "no manuseio do trabalho rápido do pincel nesta surpreendente notação da forma!" O crítico não esconde seu espanto e sua exaltação: "que coordenação miraculosa entre olho e mão. [...] O que Rembrandt fez se tornou quase uma personificação mitológica, uma figura ideal: mas ideal e universal sem perder nada da aguda particularidade do individual"13 13 . FRY, Roger. A self-portrait by Rembrandt. The Burlington Magazine for Connoisseurs, v. 38, n. 219, jun. 1921 p. 262-263. Disponível em: ‹http://www.jstor.org/ stable/861291›. Acesso em: 30 jul 2014. .

Recuando ainda um pouco mais no tempo e ancorando nossas reflexões em um estudo do final da século XIX (1899), tomamos emprestado as visões da vida, da arte, da ética e da estética da historiadora e teórica norte-americana Estelle May Hurll, visões que, inelutavelmente, carregam as marcas de outro tempo. A historiadora salienta a dedicação e a obstinação de Rembrandt em retornar sucessivas vezes ao mesmo modelo, pintado e repintado incansavelmente em uma investigação minuciosa e exaustiva das expressões entalhadas no semblante e no corpo do próprio pintor. Neste ponto, Estelle May Hurll lembra que, para Rembrandt, "havia um modelo que estava sempre à disposição, pronto para acatar suas ordens. Ele tinha apenas que se posicionar diante do espelho e lá estava o modelo pronto para posar em qualquer posição e com a expressão que ele [Rembrandt] desejasse"14 14 . HURLL, Estelle M. Rembrandt: a collection of fifteen pictures and a portrait of the painter. Boston: Houghton, Mifflin & Co., 1899, p. 91. .

FIGURA 2:
Rembrandt Autorretratos datados de 1629, c. 1629, c. 1629, 1633, 1634, 1640, 1659, 1661 e 1669 (da esquerda para a direita, de cima para baixo): Óleo sobre tela ou sobre madeira (Fontes diversas)

FIGURA 3:
Robert Mapplethorpe Self-Portrait as Cross-dresser, 1980. fotografia (Fonte: http://www.mocp.org/)

FIGURA 4:
Cindy Sherman Untitled Film Still #14, 1978. fotografia (Fonte: http://memsk.ru/sherman-film-stills/original/)

FIGURA 5:
Nan Goldin In My Hall, Berlin, 2013. fotografia (Fonte: http://fraenkelgallery.com/exhibitions/)

O conjunto de autorretratos de Rembrandt, ao nos remeter a uma crônica visual sobre o tempo e suas marcas na imagem do artista, parece alinhavar uma sucessão de instantes que, de certa maneira, recuperam a noção do instante mítico da fotografia, ou mesmo uma representação dos instantes que nós, alojados no conforto da história, dedicamos à apreciação desse conjunto de quadros, alinhados em uma sucessão que desconhece o tempo consumido em sua própria realização. Diante desses autorretratos, observados com as perspectivas culturais, éticas e estéticas dos tempos atuais, tempos que testemunham a explosão e o bombardeamento de imagens a atravessar nossos corpos e mentes a cada instante, somos induzidos a uma leitura que parece apontar aqueles autorretratos como uma sucessão de imagens quase instantâneas, imagens que criam elas mesmas seu rastro, seu lastro e sua história, imagens que se projetam como uma sucessão de instantes e que parecem desconhecer a real dimensão do tempo.

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A observação atenta dos autorretratos de Rembrandt e Bacon - e poderiam ser muitos outros - nos confronta e nos faz enfrentar com vigor a cultura do instantâneo, do imediato, do veloz, do que é passageiro, do que passa e já é passado, que parece nos cercar e nos enredar. Uma cultura que, de alguma maneira, parece impor sua matriz sobre a vida, sobre a morte e sobre a percepção das coisas do mundo na contemporaneidade. A autorrepresentação acompanha os parâmetros da vida social - e não poderia ser diferente -, refletindo as necessidades de cada um de nós em diferentes tempos da história. Os britânicos W. Ray Crozier e Paul Greenhalgh lembram que "a implicação de tudo isso é que o autorretrato terá diferentes significados para as pessoas em tempos diferentes"15 15 . CROZIER, W. Ray & GREENHALGH, Paul. Op. cit., p. 30. .

Em momentos distintos do passado e do presente histórico, assim como em distintas latitudes e culturas, nos deparamos com um processo lento e permanente de reorientação das percepções que deitamos sobre nós mesmos, as percepções do "eu", acompanhando as mudanças éticas e culturais que reformatam a vida social. De tempos em tempos, sem aviso prévio, esse processo - lento e permanente - passa por uma desconstrução e por uma aceleração diante de inovações no campo da tecnologia ou em consequência de tragédias naturais ou patrocinadas pelo desatino dos humanos como, por exemplo, as guerras. A partir desses momentos, os modos que representam a centralidade do homem no mundo entram em processo de questionamento e de colapso, acompanhando novas formas de relacionamento e de organização das relações sociais. Em relação a outros momentos da história, Crozier e Greenhalgh lembram que, enquanto as mudanças sociais deflagram alterações na concepção do "eu" e na importância das aparências como forma de representação, "elas induzem a mudanças no papel e na autoconcepção do artista, e isso está evidente na ascensão em popularidade do autorretrato e no declínio do retrato"16 16 . Idem, ibidem. .

9

Alguns artistas têm sabido explorar as possibilidades de produzir com os meios que se oferecem à arte na contemporaneidade, buscando compreender os permanentes processos de mudança, reorganização e reformatação da vida social, aliados às novas possibilidades das técnicas e das tecnologias. Diante da produção de artistas como Robert Mapplethorpe, Cindy Sherman, Nan Goldin, para citar apenas alguns que se debruçaram sobre as representações do "eu" na contemporaneidade, nos deparamos com novas questões a informar a arte da representação do "eu". Se antes o pintor parecia escrutinar o espelho na busca de "verdades" que ali se escondiam, que ali pareciam adormecidas, em nossa era, dominada por incertezas, ambiguidades e pela velocidade de registros que carregam sua própria obsolescência, novas questões atravessam a produção de arte contemporânea. Essas questões afrontam as superficialidades do cotidiano ao mesmo tempo em que assumem sua vulnerabilidade diante de nossa reconhecida incapacidade de apreender o mundo em suas plenas complexidades. O artista norte-americano Robert Mapplethorpe atacou, de maneira radical, as percepções correntes acerca da arte do retrato no campo da fotografia, aliando o domínio de uma estética clássica a questões de ordem política e ideológica que emprestaram à sua obra dimensão e identidade singulares.

Por outro lado, talvez seja Cindy Sherman quem melhor revela em sua produção as incertezas e indefinições dos tempos atuais. Ao contrário das verdades perseguidas por artistas de outros tempos em seus autorretratos, somos capazes de atravessar a vasta produção de "retratos" de Cindy Sherman sem que alcancemos uma pista sequer de quem, efetivamente, se posiciona diante da câmera na construção de uma "ficção do eu". Em cenários (re)construídos, Cindy Sherman surge representando dramas em situações que mascaram sua identidade como pessoa, ao mesmo tempo em que parecem enfatizar o caráter fluido de sua identidade como artista, o que a autoriza a assumir uma natureza camaleônica em favor da arte. Uma natureza capaz de subtrair da artista sua própria identidade como pessoa em favor de uma encenação e da ênfase na instituição arte, quase a afirmar que, no território da arte, tudo é possível, até mesmo um processo de metamorfose permanente entre diversos "eus". Tudo isso cercado pelo mistério de "um drama cujos detalhes não são fornecidos", conforme apontado pelo crítico norte-americano Douglas Crimp: "a ambiguidade da narrativa corre paralela à ambiguidade do eu, que tanto atua na narrativa como é seu criador"17 17 . CRIMP, Douglas. A atividade fotográfica no pós-modernismo. In: Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 99-129. .

Apontando ainda em outra direção, a fotógrafa norte-americana Nan Goldin, consciente das formatações e reformatações impostas por diferentes instâncias da vida social contemporânea, recorre à arte e aos dispositivos fotográficos como ferramentas para garantir algum controle sobre sua própria história, sobre sua vida e o mundo que a cerca. Neste sentido, Nan Goldin sugere que "os instantâneos são tirados por amor para lembrar pessoas e lugares, e para partilhar tempos. Eles são a criação de uma história ao registrar a história"18 18 . ART AND SMOKE. Nan Goldin. Disponível em: ‹http://www.artandsmoke.com/nan-goldin/›. Acesso em: 20 jul. 2014. .

A artista cuida com zelo do registro de instâncias de sua vida pessoal de maneira que isso não venha a ser assumido por outros que, assim, poderiam editar sua própria vida ou ao menos a percepção que dela se teria através dos possíveis registros. Da mesma maneira, a artista entende que os registros fotográficos em momentos de dificuldades em sua vida pessoal podem funcionar como uma chave para a superação das dificuldades presentes. Nas palavras da artista, "você se sente deslocado e então fazer autorretratos se torna um meio de você se agarrar a você mesma"19 19 . NEW YORK TIMES MAGAZINE. Self-portraits; Nan Goldin. Nova York, 7 maio 2000. Disponível em: ‹http://www.nytimes.com/2000/05/07/magazine/self-portrait-nan-goldin.html›. Acesso em: 18 jul. 2014. .

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O desprestígio da arte pictórica acarretou o descrédito de gêneros que orientaram e dominaram a arte por séculos, como o gênero do retrato e do autorretrato. No entanto, a vitalidade presente nas práticas de grande contingente de artistas contemporâneos testemunha a permanência e o vigor de representações que nos situam no mundo, representações que inevitavelmente se acomodam e se reformatam diante das imposições dos tempos atuais, mas que, ao mesmo tempo, confirmam o interesse nas representações do "eu" como questão central no campo da arte. Para além das superficialidades que acompanham o fascínio pelas imagens e pela autorrepresentação como forma de socialização nesses tempos rasos, tem sido possível testemunhar a consolidação de novas possibilidades do fazer artístico que atualizam questões abandonadas em paralelo ao declínio da pintura no século XX.

Enquanto isso, a explosão das imagens no mundo social contemporâneo tem deflagrado novas formas de experiência e de apreensão da vida em sociedade, gerando situações ordinárias que parecem deslocar a experiência do sujeito do centro das práticas da vida vivida em favor de um registro exterior ao sujeito, registro de algo que, embora presente, passou sem ser efetivamente vivido, sem ser efetivamente experimentado. Como o caso do jovem que, ao dar as costas para o papa que passava em visita à sua cidade, se posicionou virtualmente ao lado do papa na imagem capturada pelo dispositivo empunhado à distância do braço. Para o jovem, pouco parecia importar o fato de que, na realidade, ele havia dado as costas ao papa e que assim não pôde sequer ver o papa que passava: privilegiava-se o registro em detrimento da experiência; privilegiava-se o registro de uma experiência que não se vivenciou, sacrificava-se a experiência pelo registro de uma não experiência, uma experiência que de fato não se realizou.

Ou, para dizer o mínimo, que se efetivou na precariedade, a nos lembrar, conforme anotado por Jean-Luc Nancy, que "a imagem é uma coisa que não é a coisa: uma coisa que se distingue essencialmente da outra"20 20 . NANCY, Jean-Luc. The ground of the image. Nova York: Fordham University Press, 2005, p. 2. .

  • 22
    Poema visual de Wlademir Dias-Pino, publicado em 1971.
  • 1
    . Uma versão preliminar das reflexões contidas neste artigo foi apresentada em encontro do FotoRio 2014 na cidade do Rio de Janeiro.
  • 2
    . WILSON, Dawn M. Facing the Camera: Self-Portraits of Photographers as Artists. The Journal of aesthetics and art criticism, v. 70, n. 1, 2012, p. 57.
  • 3
    . FOUCAULT, Michel. Of other spaces. Diacritics 16, primavera de 1986, p. 24.
  • 4
    . GUIMARÃES ROSA, João. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 113-114.
  • 5
    . CROZIER, W. Ray & GREENHALGH, Paul. Self-Portraits as presentations of self. Leonardo, n. 21, v. 1, 1988, p. 29. Disponível em: ‹http://www.jstor.org/stable/ 1578412›. Acesso em: 30 jul. 2014.
  • 6
    . DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica de la sensación. Madri: Arena Libros, 2005, p. 63-65.
  • 7
    . Idem, p. 65.
  • 8
    . Émile Bernard tornou-se amigo de Van Gagh quando passou a trabalhar no ateliê de Cormon em Paris, ao lado de Toulouse-Lautrec, entre outros.
  • 9
    . VAN GOGH, Vincent apud AUDEN, W. H. Van Gogh: a self-portrait (letters revealing his life as a painter). Greenwich, Connecticut: Nova York, 1961, p. 304.
  • 10
    . VAN GOGH, Vincent apud AUDEN, W. H. Op. cit., p. 306.
  • 11
    . Idem, p. 309.
  • 12
    . De acordo com os estudos realizados sob a chancela do Stichting Foundation Rembrandt Research Project. (STICHTING FOUNDATION Rembrandt Research Project. A corpus of Rembrandt paintings IV. Dordrecht, Holanda: Springer, 2005, p. 158)
  • 13
    . FRY, Roger. A self-portrait by Rembrandt. The Burlington Magazine for Connoisseurs, v. 38, n. 219, jun. 1921 p. 262-263. Disponível em: ‹http://www.jstor.org/ stable/861291›. Acesso em: 30 jul 2014.
  • 14
    . HURLL, Estelle M. Rembrandt: a collection of fifteen pictures and a portrait of the painter. Boston: Houghton, Mifflin & Co., 1899, p. 91.
  • 15
    . CROZIER, W. Ray & GREENHALGH, Paul. Op. cit., p. 30.
  • 16
    . Idem, ibidem.
  • 17
    . CRIMP, Douglas. A atividade fotográfica no pós-modernismo. In: Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 99-129.
  • 18
    . ART AND SMOKE. Nan Goldin. Disponível em: ‹http://www.artandsmoke.com/nan-goldin/›. Acesso em: 20 jul. 2014.
  • 19
    . NEW YORK TIMES MAGAZINE. Self-portraits; Nan Goldin. Nova York, 7 maio 2000. Disponível em: ‹http://www.nytimes.com/2000/05/07/magazine/self-portrait-nan-goldin.html›. Acesso em: 18 jul. 2014.
  • 20
    . NANCY, Jean-Luc. The ground of the image. Nova York: Fordham University Press, 2005, p. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2015
  • Aceito
    10 Ago 2015
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