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Les Demoiseilles d’Avignon , de Picasso, entre a consagração e a contestação: notas sobre a crítica modernista e as contribuições feministas e pós-colonialistas à abordagem da pintura ** ** Agradecemos a Fabiana Garreta, da Autvis, pela presteza na orientação aos editores quanto à publicação de obras de Picasso.

Picasso’s Les Demoiselles d’Avignon between Consecration and Contestation: Notes on Modernist Criticism and the Contributions of Feminism and Post-Colonialism to Interpretations of the Painting

Les Demoiselles d’Avignon , de Picasso, entre la consagración y la contestación: apuntes acerca de la crítica modernista y de las contribuciones feministas y pos-colonialistas a la interpretación de la pintura

Resumos

O artigo percorre uma parcela da vasta fortuna crítica de Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso, focalizando os pontos de tangência e divergência entre parte da literatura mais canônica sobre a obra e determinadas interpretações que, a partir da década de 1970, tomaram-na como lugar privilegiado para exercer uma drástica revisão de critérios e categorias modernistas. Nesse percurso, discute algumas das sucessivas denúncias que correntes feministas e pós-colonialistas reservaram à pintura, amiúde identificada com os preconceitos ideológicos na gênese do modernismo. Por fim, em face dos problemas suscitados pela discussão bibliográfica e pela recente divulgação de documentos então inéditos, o artigo propõe uma breve incursão analítica, com o intuito de sinalizar caminhos ainda em aberto para a interpretação dessa obra.

Picasso; Les Demoiselles d’Avignon; feminismo; pós-colonialismo


The article follows a portion of the vast critical heritage of Picasso’s Les Demoiselles d’Avignon (1907) focusing on the convergences and conflicts between part of the most canonical literature and certain interpretations that, from the 1970s onwards, turned to this oeuvre by considering it as a privileged place in the revision of modernists criteria. It thus discusses the successive denounces raised by feminist art critics, whom most often identified Les Demoiselles with the ideological assumptions in the genesis of modernism. Finally, in the light of the bibliographical discussion and considering the recent exhibition of documents hitherto unpublished, the article proposes a brief analytical incursion, in order to underline the paths not yet explored in the interpretation of this painting.

Picasso; Les Demoiselles d’Avignon; Feminism; Post-Colonialism


El artículo comenta una porción de la vasta fortuna crítica de Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso, centrándose en los puntos de encuentro y divergencia entre parte de la literatura canónica sobre la obra y determinadas interpretaciones que, a partir de la década de 1970, la han tomado como lugar privilegiado para ejercer una contundente revisión de criterios modernistas. En este itinerario, discute las sucesivas denuncias que las corrientes feministas y poscolonialistas han destinado a la pintura, a menudo identificada con los prejuicios ideológicos en la génesis del modernismo. Por último, ante las problemáticas suscitadas por la discusión bibliográfica, el artículo propone una breve incursión analítica, visando señalar las posibilidades aún abiertas para la interpretación de esta obra.

Picasso; Les Demoiselles d’Avignon; feminismo; pós-colonialismo


I.

Conta-se que, não sem estupor, Georges Braque, ao ver Les Demoiselles d’Avignon ( figura 1 ), de Picasso, pela primeira vez, em 1907, teria dito: “é como se devêssemos trocar nossa dieta habitual por uma dieta de estopa e parafina” ( OLIVIER, 1965OLIVIER, Fernande. Picasso and His Friends. Nova York: Appleton-Century, 1965. , pp. 97-98)1 1 . A tradução é livre e de minha autoria, assim como todas as traduções de citações originais em francês e inglês que não tenham tido versões publicadas em língua portuguesa. O caso ao qual me refiro é relatado, com ligeiras diferenças entre as versões, por muitos dos que testemunharam o encontro de Braque com a pintura. Para um balanço entre as versões do fato, cf. SECKEL (1994) , especificamente páginas 227-230. .

Figura 1
Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon , 1907. Óleo sobre tela, 243,9 × 233,7 cm. Museu de Arte Moderna de Nova York, Nova York. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Mais de cem anos se passaram, e essa anedota segue causando espanto, não apenas por estabelecer um precioso equivalente ao asco que a pintura provocava, de início, em seus espectadores, mas também por sua alusão irônica ao papel que desempenham os hábitos – ou a renúncia a eles – na recepção de Les Demoiselles d’Avignon .

Caso estivesse arriscando um prognóstico, Braque não poderia ser mais preciso: essa é uma das pinturas sobre as quais mais se escreveu até hoje e, em retrospecto, olhar para sua fortuna crítica significa compreender que toda vez que a força do hábito parece imperar, algo ocorre para que mudem os costumes internalizados em nossa forma de ver. Sem dúvida, causar revertério parece ter sido um dos verdadeiros dons de Les Demoiselles d’Avignon . Tratemos, pois, de reviravoltas.

II.

Ainda que adequar-se a novos hábitos seja sempre delicado, para muitos dos que frequentavam o círculo próximo a Picasso, abrir mão do conforto de suas dietas habituais não parece ter sido um grande empecilho durante os anos de euforia imediatamente seguintes à criação de Les Demoiselles .

Tanto é assim que pouco tempo se passou até que André Salmon, sem transparecer qualquer pavor, pudesse definir as cinco figuras femininas naquela pintura como “problemas nus” (SALMON, 1912, p. 43). Pela primeira vez, dizia, a arte do jovem artista espanhol não se mostrava “nem trágica e nem passional”: o que se via eram “máscaras quase inteiramente livres de humanidade”, “números brancos em um quadro negro”.

Àquela altura, Les Demoiselles não era exatamente uma obra conhecida: o calendário marcava 1912 e, exceto aqueles que puderam testemunhar sua gênese no ateliê do artista, poucos conheciam a tela em seu estágio final. A pintura, conforme se dizia, era tida por inacabada por um Picasso insatisfeito, que a teria mantido, desde 1907, virada contra a parede de seu ateliê – onde permaneceria, por alguns anos, restrita aos frequentadores do círculo íntimo do artista, até sua aquisição, em 1924, pelo colecionador de arte Jacques Doucet2 2 . Nesse meio tempo, especula-se que a pintura tenha sido exibida apenas uma vez em Paris, no Salon d’Antin, em 1916, num momento em que Primeira Guerra Mundial restringia uma possibilidade ampla de circulação no campo das artes. Para mais informações a respeito dessa exposição, cf. COUSINS; SECKEL (1994) . . De modo que a tal “pintura-equação” se apresentava, para Salmon, como parte de uma “história anedótica sobre o cubismo”, isto é, como uma espécie de “exemplo que esclarecia o método de trabalho” (Ibidem, p. 41) de Picasso.

III.

Não me estenderei em relatar que, pouco depois de Salmon, também Kahnweiler, por vias distintas, após uma primeira reação de espanto, passou a enaltecer a importância que o incipiente método de trabalho desempenhou na gênese de Les Demoiselles . Em seus primeiros escritos, redigidos entre 1916 e 1920, exaltava “uma grande pintura com mulheres, panejamento e frutas” ( KAHNWEILER, 1949KAHNWEILER, Daniel-Henry. The Rise of Cubism. Nova York: George Whittenborn, 1949 [1920]. [1920], pp. 6-7)3 3 . Cumpre mencionar, a propósito, que esse ensaio, publicado em 1920 sob o título “Der Weg zum Kubismus”, era uma versão reelaborada de seu “Der Kubismus”, publicado em 1916. A respeito da diferença entre as versões, cf. RUBIN (1994) . , interrompida por decisão do artista, mas que expunha, não obstante sua propalada falta de unidade interna, a luta titânica contra os problemas formais que viriam a despontar alguns anos mais tarde na obra do artista. Tratar-se-ia, já para Kahnweiler, de uma obra decisiva para a compreensão das origens do Cubismo – mas uma obra que, por então, não desfrutava do prestígio que lhe seria atribuído posteriormente.

Isso aconteceria durante as cinco décadas seguintes, quando a literatura mais consagrada sobre a pintura a interpretará, em grande medida, também em vista do Cubismo e de seus problemas formais. Valorizaram-se, pois, a espacialidade plana da composição final da obra, o abandono de uma composição harmônica e agradável por uma estrutura rigorosa, a importância das máscaras africanas e oceânicas para a construção de uma morfologia angular das figuras pintadas, seu tratamento rígido e segundo pontos de vista alternados (Ibidem, pp. 10-11). Sumariamente, a ênfase interpretativa foi dada menos ao que estava sendo figurado e mais ao modo como aquilo que se figurava era articulado na estrutura da obra, ou, em outras palavras, ao “método” empregado por Picasso na realização de uma pintura cujos intuitos, conforme se concebia, não atendiam a uma vontade de representação ilusionística. Nesse ínterim, Les Demoiselles foi incorporada ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1937, e recebeu considerável atenção crítica, convertendo-se em um emblema definitivo para a pintura do século XX.

Até que, em 1972, Leo Steinberg publicará “O bordel filosófico” (STEINBERG, 1988 [1972], pp. 7-74), um ensaio decisivo para transformar a maneira como interpretamos Les Demoiselles . Nele, Steinberg iluminava aspectos fundamentais da pintura, como o papel desempenhado por uma noção de circunspecção, sua abertura em direção à fusão entre visão e tato, entre outros. Além disso, rejeitava a ideia de que Les Demoiselles seria uma espécie de exemplo preliminar do triunfo da forma sobre o conteúdo, reivindicando o sentido “sexual” da pintura – um traço marcante que, até então, não havia recebido suficiente atenção pela fortuna crítica de Picasso4 4 . Cabe ressaltar a publicação, dois anos antes, de ROSENBLUM (1970) , texto em que o tema está evidentemente em pauta, mas que focaliza a obra de Picasso entre 1920 e 1930. .

Quanto à ênfase conferida à sexualidade nessa pintura, a estratégia mobilizada por Steinberg para discerni-la consistia, de início, em revisitar alguns dos desenhos que antecederam sua realização ( figuras 2 e 3 ), submetendo-os a um olhar meticuloso5 5 . Alguns desses desenhos eram então desconhecidos no horizonte da crítica e foram trazidos à baila por Steinberg; outros, ainda, viriam a ser expostos somente anos depois, quando estudos revelaram a existência de mais de uma centena deles. Para uma relação mais completa dos carnets de Picasso, cf. SECKEL (1988) . . Ao fazê-lo, o autor notará que, desde o princípio, Les Demoiselles havia sido concebida como uma cena ambientada em um bordel; de fato, os primeiros esboços preparatórios não apresentavam somente as cinco prostitutas que vemos na tela final, mas também duas figuras masculinas posteriormente eliminadas: um estudante de medicina que, à esquerda, anunciava sua entrada no recinto com um crânio ou um livro entre as mãos e um marinheiro, sentado em meio às mulheres no bordel, onde hoje se vê um tampo de mesa com frutas. Todos habitavam um mesmo espaço; todos interagiam entre si.

Figura 2
Pablo Picasso, Estudo para o estudante de medicina, Carnet 3 , 1907. Grafite sobre papel, 19,3 x 24,2 cm. Museu Picasso-Paris, Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 3
Pablo Picasso, Estudo para Les Demoiselles d’Avignon, 1907. Grafite e pastel sobre papel, 47,7 x 63,5 cm. Öffentliche Kunstsammlung Basel, Basiléia. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Essa observação não era exatamente nova: antes de Steinberg, outros já haviam, à sua maneira, atentado para o mesmo fato. Alfred Barr Jr., diretor do MoMA quando Les Demoiselles foi adquirida e um dos que contribuíram decisivamente para reservar-lhe o estatuto de marco fundador da arte moderna, por exemplo, havia formulado a hipótese de que a presença do marinheiro e do estudante com um crânio entre as mãos era um indício de que a pintura teria sido concebida inicialmente como uma espécie de memento mori , cuja dimensão alegórica o jovem Picasso (antimoralista por princípio) não tardaria em suprimir (BARR Jr., 1939, pp. 57-60). Tratava-se, afinal, de dar os primeiros passos rumo à intrépida caminhada que conduziria à criação do Cubismo, na qual a narrativa do primado da superfície não poderia dar lugar a metáforas visuais.

Steinberg, todavia, confere uma interpretação distinta à decisão de Picasso de finalmente eliminar as figuras masculinas da pintura. Ainda que reconheça nos desenhos preparatórios uma espacialidade e dramaticidade eminentemente teatrais que, de fato, conferiam-lhes um estatuto aparentemente narrativo, mais do que refutar a possibilidade de uma embrionária verve alegórica na gênese da pintura, defendia que a ausência das figuras masculinas na estrutura final de Les Demoiselles resultava sobretudo de uma escolha por potencializar a dimensão sexual da obra, cujo mote jamais deixara de ser o encontro sexual em um bordel, muito embora o marinheiro e o estudante de medicina – antes os protagonistas desse encontro – tivessem sido eles mesmos excluídos da cena.

Dito de outra forma, se nos desenhos preliminares as prostitutas interagiam entre si e com as figuras masculinas (obedecendo a uma unidade espácio-temporal), na tela, uma alienação mútua revela-se entre as personagens, de sorte que cada uma delas passará a dirigir-se única e exclusivamente ao espectador fora do quadro. Este será, doravante, arrebatado para o centro da obra: é apenas em sua visão que as figuras se encontram reunidas. Mas não só: trata-se de um espectador que se vê interpelado pelo olhar implacável dessas cinco figuras femininas, de alguém que subitamente descobre a si mesmo sendo visto. De modo que a unidade de Les Demoiselles (todavia conhecida por suas rupturas estilísticas internas) passará a residir sobretudo em sua consciência – “na consciência perplexa de um observador que se vê visto” ( STEINBERG, 1988STEINBERG, Leo. The philosophical brothel. October, vol. 44, 1988 [1972], pp. 7-74. , p. 13).

IV.

De certa forma, “O bordel filosófico” impôs todo um novo sabor à nossa dieta habitual. E o fez de tal maneira que, de uma “pintura-equação”, Les Demoiselles se converteu em um cabal “embate entre os sexos” ( STEINBERG, 1988STEINBERG, Leo. The philosophical brothel. October, vol. 44, 1988 [1972], pp. 7-74. , p. 10), uma “metáfora visual do coito” (Ibidem, p. 24), materializada como uma enérgica “onda de agressão feminina” (Ibidem, p. 12).

Uma reviravolta sem igual, cujo impulso inicial, como não é de surpreender, foi semeado por Steinberg, insigne pelo vigoroso compromisso em formular “outros critérios”6 6 . Faz-se referência ao texto “Outro critérios”, publicado em STEINBERG (2008 , pp. 79-127). para a arte moderna e contemporânea – critérios para além daqueles assentados na vertente formalista, que, na esteira de Roger Fry, Clive Bell e, posteriormente, Clement Greenberg, haviam se tornado hegemônicos para a crítica de arte.

Mas os anos 1970 não foram apenas anos de revisão dos parâmetros que alicerçavam o formalismo greenberguiano. Eles viram também o florescer de um revigorado movimento feminista, empenhado não somente no ativismo político e social como também, no campo cultural, em uma intensa atividade de revisão e denúncia dos preconceitos enraizados tanto na produção quanto nas narrativas e discursos sobre arte. Não é fruto do acaso, portanto, que a partir de então a prerrogativa masculina do olhar em Les Demoiselles tenha sido sucessivamente denunciada e criticada7 7 . A primeira das denúncias mais significativas foi proferida por BROUDE (1980) . Ela referia-se à obra de Picasso como um todo e não especificamente a Les Demoiselles . . Se a pintura havia sido concebida como um “encontro sexual” cujo protagonista era o espectador, quem seria então esse espectador?

Carol Duncan foi a primeira a chamar atenção para o fato de que ele era não apenas implicitamente um homem, mas também branco, heterossexual e europeu. A autora o formulava ironicamente: se a pintura de Picasso se apresentava como “uma metáfora visual da penetração” ( STEINBERG; DUNCAN, 1990STEINBERG, Leo; DUNCAN, Carol. From Leo Steinberg. Art Journal, 49(2), Depictions of the Dispossessed, 1990, p. 207. , p. 207), como veio a formular Steinberg, as mulheres seriam “anatomicamente inaptas a experienciar seu significado pleno” ( DUNCAN, 1989DUNCAN, Carol. The MOMA’s Hot Mamas. Art Journal, 48(2). Images of Rule: Issues of Interpretation, 1989, pp. 171-178. , pp. 171-178). Quanto a “O bordel filosófico”, uma vez que pressupunha a universalidade desse observador, seria ele, por extensão, um ensaio androcêntrico.

Steinberg não tardou em refutar, e o ponto gerou uma contenda nas páginas da revista Art Journal (STEINBERG; DUNCAN, Op. cit, 1990). A réplica foi proferida em tom igualmente sarcástico: não eram os equipamentos anatômicos que impediam Duncan de entender suas proposições sobre Les Demoiselles d’Avignon: faltava-lhe mesmo imaginação. O que logo será rebatido: para Duncan, quem carecia de imaginação era precisamente Steinberg, que não conseguia conceber – para além de suas fantasias de poder e opulência – por que “as degradadas e obscenas Demoiselles são capazes de repelir e enfurecer uma mulher” (Ibidem).

É claro que a troca de farpas, nesse caso, é somente o epifenômeno de um embate mais denso que permeia a discussão sobre Les Demoiselles . Ao invés de nos determos na peleja motivada pelo tom bélico de Duncan e pela defesa reativa de Steinberg, sugiro refletir sobre alguns dos pressupostos subjacentes aos argumentos de Duncan, que talvez tenham sido – ainda que indiretamente – parte dos motivos pelos quais Steinberg não hesitou em desqualificá-los. Ao fim e ao cabo, “O bordel filosófico” segue dentre os ensaios mais relevantes a respeito da pintura em questão, não obstante as severas críticas que lhe foram dirigidas.

V.

Carol Duncan não poderia ser mais enfática ao definir Les Demoiselles como uma imagem de poder – não apenas por tematizar uma situação de sujeição sexual propriamente dita, mas por funcionar como artefato ideológico para o Museu de Arte Moderna de Nova York, que apresenta a tela como lugar de fundação da própria arte moderna. O que seriam as monumentais demoiselles senão as matriarcas do cubismo, cuja prole heroica de observadores masculinos habita o ambiente também masculinizado e aparentemente asséptico e neutro do museu?

Tratar-se-ia, evidentemente, de uma pintura de destaque, apropriada pelo MoMA justamente por adequar-se às premissas ideológicas e às políticas museológicas patriarcais que historicamente caracterizaram o museu8 8 . Cumpre mencionar que, em novembro de 2019, após um longo período de reforma, o MoMA expandiu suas dependências, abrindo-se a uma nova agenda multicultural (que responde a um histórico cada vez mais clamoroso de pressões e críticas de toda ordem). Nessa guinada, as demoiselles agora aparecem acompanhadas da monumental pintura American People Series #20: Die [Série Povo americano nº 20: Morra – ou morrer] (1967), da artista afroamericana, Faith Ringhold, que, quando jovem, estudara Picasso no museu e que, posteriormente, realizou a célebre pintura Picasso’s Studio (1991), na qual faz referência direta a Les Demoiselles d’Avignon . Para uma crítica a respeito da nova configuração do museu, cf. FOSTER (2020) . . A importância dessa pintura, trocando em miúdos, seria, ao contrário do que a aparente solenidade discursiva faria supor, indissociável de seu sentido sexual (ou melhor, pornográfico ) tácito, afiançado pela hierarquia que preside a relação do observador com o quadro, cuja posição vincula um “objeto”. Tal hierarquia, de resto, escancara a assimetria entre homem-mulher (antes evidente nos desenhos preparatórios) no regime da visualidade.

Sob essa ótica, portanto, se Les Demoiselles manteve-se, por quase um século, como um highlight do museu, foi justamente por ter se demonstrado uma ferramenta poderosa para asseverar ao espectador masculino a prerrogativa da visão – isto é, o seu lugar privilegiado em relação ao objeto observado –, proporcionando-lhe um momento revelatório sobre a mulher e, simultaneamente, sobre os rumos da arte moderna. Nesse encadeamento, as mulheres são excluídas da possibilidade de desfrutar da arena privilegiada da alta-cultura: elas poderão ver a obra, mas jamais estarão aptas a experienciá-la em seu sentido pleno.

Para sustentar seu argumento, Duncan cotejará a pintura com uma série de fotografias do corpo da mulher em propagandas de roupas íntimas da marca Penthouse espalhadas por pontos de ônibus em Nova York no final da década de 1980 ( DUNCAN, 1989DUNCAN, Carol. The MOMA’s Hot Mamas. Art Journal, 48(2). Images of Rule: Issues of Interpretation, 1989, pp. 171-178. , pp. 176-177). Segundo a autora, o artifício utilizado em ambos os casos é semelhante: manter sob disfarce o conteúdo pornográfico que preside às imagens, forjadas para estimular o desejo erótico em consumidores de gênero masculino e, assim, garantir-lhes sua superioridade sobre as mulheres. Essa superioridade só é possível conquanto as imagens sejam produzidas por homens e para o deleite de homens, em um processo que exclui as mulheres da cadeia produtiva e receptiva, retirando-lhes a possibilidade de desfrutar da imagem satisfatoriamente – de modo semelhante ao que ocorre no caso de Les Demoiselles .

A crítica ao uso ideológico que o Museu de Arte Moderna de Nova York tradicionalmente fez da pintura é fundamental, embora haja, na comparação com as imagens publicitárias, a meu ver, certa inconsistência. Isso porque subjaz à lógica do anúncio de roupas íntimas uma promessa de prazer ao observador masculino, ao menos no nível visual. E essa promessa, fator inseparável do elemento pornográfico da propaganda em questão, não se cumpre de forma satisfatória em Les Demoiselles d’Avignon.

Talvez esse seja o tendão de Aquiles dessa leitura, não obstante sua inegável importância histórica. Por prescindir de uma análise e discussão mais detida sobre a pintura lhe escapa o fato de que se Les Demoiselles , por certo, afirma a primazia de observadores masculinos, não podemos ignorar que a maior parte dos homens que a viu pela primeira vez nas condições privilegiadas do estúdio de Picasso não conseguiu reconhecer-se em sua condição de principais endereçados9 9 . Quanto a esse aspecto, Tamar Garb nota que uma das primeiras reações positivas à pintura partiu de Gertrude Stein. Cf. GARB (2001). . As reações, a exemplo do já mencionado caso de Braque, foram quase sempre estupefatas: as demoiselles lhes pareciam um “fracasso” ultrajante, “uma bagunça horrível”, “algo terrível e monstruoso”, “uma tragédia”. Um célebre crítico e jornalista francês chegou a sugerir a Picasso que tentasse a caricatura10 10 . Cf. SECKEL (1994) . Para uma interpretação que faz uso de um arcabouço psicanalista para estabelecer relação entre as reações estupefatas à pintura e o complexo de castração freudiana, cf. BOIS, 2001 , pp. 31-54. Para a relação mais abrangente, que se estende ao conjunto da obra de Picasso, cf. WOLLHEIM (2002) . Para uma elaboração recente dessa conexão, cf. FOSTER (1993) . .

Reconheçamos, é bem verdade, que a crítica de Duncan parte de uma necessidade militante e de uma vontade de intervenção, e não visa ser um estudo exclusivamente sobre Les Demoiselles d’Avignon – discutida sobretudo como peça fundamental de um conjunto mais extenso de obras do MoMA. Além disso, ela deve muito ao estímulo (direto ou indireto) do conceito de male gaze , elaborado e difundido através do ensaio “O prazer visual e o cinema narrativo” (1975), de Laura Mulvey – um artigo surgido no bojo dos estudos sobre cinema, crucial para o posterior desenvolvimento de uma crítica feminista no campo disciplinar da história da arte (MULVEY, 1983, pp. 437-453)11 11 . A influência do conceito de “ male gaze ” nos comentários feministas sobre Les Demoiselles foi notada por FLORMAN (2003 , p. 779). . De modo que permanecem em aberto algumas questões: haveria, de fato, um estímulo escopofílico em Les Demoiselles ? Seria possível pensar na experiência que a pintura proporciona como aquela do prazer ou do gozo visual, que dá sustento às teorias do male gaze ? Caso consideremos, como demonstra Steinberg, que grande parte do esforço de Picasso nos tantos desenhos preparatórios consistiu em eliminar as dimensões narrativas da versão final da pintura, segue válido analisá-la através de um modelo derivado do cinema clássico-narrativo?

VI.

Coube a Anna C. Chave, em 1994, examinar, pelo prisma feminista, o arsenal de respostas negativas a Les Demoiselles d’Avignon , proferidas sobretudo por espectadores homens que se sentiram atacados pela “violência” e “agressividade” da pintura, por sua “brutalidade” e pelo aspecto “monstruoso” e “cadavérico” das mulheres retratadas12 12 . Observe-se que mesmo Duncan via as demoiselles como “obscenas e degradadas”, conforme citado anteriormente. . Seu levantamento é acurado e não se detém somente nas primeiras respostas à pintura, mas na história de sua recepção em sentido amplo, encontrando mesmo em análises mais recentes os traços de uma relação hostil em relação ao corpo das figuras femininas em Les Demoiselles ( CHAVE, 1994CHAVE, Anna C. New Encounters with Les Demoiselles d’Avignon: Gender, Race and the Origins of Cubism. The Art Bulletin, 76(4), 1994, pp. 596-611. , pp. 596-611). Hostilidade essa que a própria pintura, segundo Chave, estimula: nela, o corpo feminino é um locus privilegiado para os ataques formais através dos quais a pintura de vanguarda, ao longo do século XX, impôs seu paradigma (que carrega implícita uma atitude viril e mesmo misógina em relação ao corpo das mulheres) (Ibidem, p. 610). Hostilidade que resulta, além disso, da “mimetização” de máscaras africanas que Picasso, encenando um descarado e desrespeitoso gesto de apropriação cultural, teria jocosamente utilizado para conceber os rostos das duas prostitutas à direita da tela, amiúde caracterizados pela fortuna crítica como “monstruosamente distorcidos quando cotejados às ‘‘comparativamente graciosas cortesãs ‘ibéricas’ no centro da composição’”13 13 . A autora, aqui, faz referência irônica ao difundido estudo de RUBIN (1983 , p. 630). .

Em meio a tão aterrador cenário de usura, Chave sinaliza sua disposição em identificar-se e solidarizar-se com as prostitutas em Les Demoiselles , vistas como vítimas de Picasso, dos espectadores e da sociedade ocidental. A reivindicação da autora, no entanto, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, não necessariamente implica desprestigiar a obra em questão. Pois se, para Chave, as demoiselles são a expressão da misoginia intrínseca à produção artística no século XX, elas podem também ser consideradas um emblema de sua falência. Trata-se do sintoma de “um medo que trespassa, em espiral, toda a sociedade ocidental do século XIX ao presente: o medo das mulheres e do Outro, incluindo-se o negro, com sua capacidade de usurpar o papel masculino e as prerrogativas ocidentais” (Ibidem, p. 606). Ou, em outras palavras, do mais evidente sintoma da crise da cultura ocidental, branca e falocêntrica, cinicamente convertido em seu maior monumento.

VII.

Transmutar as cinco demoiselles em um monumento que celebra a crise da sociedade falocêntrica é, sem dúvida, uma iniciativa provocativa e estimulante, fundamentada no exame de fontes de uma amplitude digna de exaltação. Ela possibilita, em termos gerais, uma compreensão perspicaz e abrangente de Les Demoiselles como uma obra desconcertante e problemática, capaz de tocar nas feridas em aberto de toda uma estrutura social patriarcal e da psique que lhe corresponde. Cabe sinalizar, ainda assim, que, em alguns momentos do texto, o argumento de Chave se fragiliza por sustentar-se em uma análise, em certo sentido, um tanto literal da pintura, na qual o corpo das prostitutas na tela é considerado como equivalente direto de referentes do mundo real, isto é, de mulheres de carne e osso. No esforço por identificar-se com as figuras representadas, a autora chega a comparar a condição das demoiselles com a situação atual de trabalhadoras sexuais do bairro do Brooklyn, nos Estados Unidos – incorrendo em uma postura certamente anacrônica, conforme notou Tamar Garb (2001GARB, Tamar. To kill the Nineteenth Century: Sex and spectatorship with Gertrude and Pablo. In: GREEN, Christopher (org.). Picasso’s Les Demoiselles d’Avignon. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 55-76. , p. 56). Essa não é uma questão menor: pois se o “ataque” de Picasso às prostitutas não pode ser dissociado de uma dimensão referencial que rege o universo da representação, ele tampouco é completamente alheio às convenções da linguagem que prescreviam a figuração do corpo feminino no século XIX.

Não que Chave tenha deixado de notar a “desidealização” a que Picasso submete a forma humana em Les Demoiselles d’Avignon . Talvez não fosse excessivo indagar, no entanto, em que medida tal “desidealização” não estaria também associada a uma radical “desvenutização” da figura feminina, para usar o termo cunhado por T. J. Clark em sua análise da recepção de Olympia , de Manet ( CLARK, 2004CLARK, T. J. A escolha de Olympia. In: CLARK, T. J. A Pintura da Vida Moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 129-209. ). Pois insisto: se as demoiselles foram vistas, por muitos de seus críticos, como figuras “masculinas”, “agressivas”, “sem forma humana”, e a pintura, como um todo, como algo “inacabado”, também a prostituta da pintura oitocentista parecera, para grande parte da multidão que se apinhava no Salão de 1865, uma coisa lamentável: ela era “masculina”, “não tinha forma humana”, seu corpo parecia “sujo” como carvão, ”informe”, “inconcebível”, “inqualificável”, e o quadro, como um todo, “inacabado” e “sem definição”.

Essa indignação só pode ser corretamente dimensionada quando ponderamos, como faz Clark, que o que estava em jogo, entre outras coisas, era uma crise sem precedentes quanto ao gênero nu na tradição artística ocidental – em especial, o nu feminino. Mantenhamos em vista a forma opulenta e a ornamentação vistosa que envolviam a figura feminina nas obras expostas em muitos dos salões de arte durante a segunda metade do século XIX e compreenderemos: a maneira como Olympia era representada parecia, sob muitos aspectos, estranha ou até contrária a muitos desses protocolos.

Evidentemente, os pouco mais de quarenta anos que separam as pinturas de Manet e de Picasso fazem com que o potencial disruptivo da “desvenutização” do corpo feminino seja algo relativizado, no caso de Les Demoiselles . Mas tampouco essas quatro décadas são o suficiente para que desconsideremos que, ao menos em parte, também as figuras femininas nessa pintura escandalizaram os espectadores por seu potencial de negar as convenções de beleza e decoro protocolares à representação do corpo feminino na arte do século XIX. E, ainda, por trespassarem – através da estridente intromissão de referências não ocidentais – as demarcações raciais entranhadas no sistema clássico da representação.

É justamente por isso que associar Les Demoiselles a uma expressão patente de misoginia por vezes soa, como dissemos, um pouco literal – o que nem por isso invalida a tese como um todo. Afinal, o fato de que Picasso prescinda radicalmente de lições convencionais de anatomia não implica necessariamente um ataque ao corpo em carne osso ou à anatomia em si, mas também um ataque a uma série de convenções que mediavam a representação do corpo feminino, isto é, a um determinado lugar-comum do corpo, disseminado em uma cultura de imagens onipresente.

Voltamos, portanto, à anedota inicial: embora essa atitude, em um primeiro momento, parecesse uma agressão ultrajante a quem quer que fosse, tratava-se, também, de uma investida contra sua dieta habitual. Não à toa, no intervalo de poucos anos, tornou-se cada vez mais corrente, no círculo de Picasso, a noção de que representações acadêmicas favoreciam a construção de uma ideia sentimental do ser humano. Um pequeno trecho da anedota de Salmon claramente demonstra:

Picasso também havia “meditado sobre geometria”, escolhendo orientar-se pelos artistas selvagens cuja barbárie ele não ignorava. Apenas compreendia, logicamente, que eles haviam almejado uma figuração real do ser que não correspondia à construção da ideia, na maioria das vezes sentimental, que dele fazemos. [...] Ele procura dar, então, uma representação total ao homem e às coisas. Eis o esforço das imagens bárbaras. Mas por tratar de pintura, de arte na superfície, Picasso deve criar fora das leis do academicismo e do sistema anatômico , situando essas personagens equilibradas num espaço rigorosamente calculado de acordo com a imponderável liberdade de movimento. ( SALMON, 1912SALMON, Andre. La jeune peinture française. Paris, Societé de Trente, 1912. , p. 46, grifos meus)

Enfatizando a recusa, por parte de Picasso, das convenções que regiam a representação do nu na arte acadêmica, Salmon, já em 1912, dava o tom à contraditória empreitada que Les Demoiselles veio a coroar. Mas as palavras do poeta incorporavam, ainda, mais um fator polêmico: segundo elas, a dessublimação da imagem idealizada do corpo feminino seria indissociável da relação ambígua que se estabelece entre as figuras femininas “ocidentais” e as personagens na porção direita da tela, a evocarem as máscaras africanas, incorporadas por Picasso como armas iconoclastas contra um academicismo protocolar. Retornaremos ao ponto mais adiante.

VIII.

Ao sugerir que as reações hostis à pintura de Picasso devem-se, ao menos parcialmente, a uma resistência do público em relação à recusa de determinadas convenções de linguagem, pretendo colocar a discussão em termos, mas jamais livrar os espectadores ou mesmo o artista das acusações de misoginia ou etnocentrismo que lhe foram imputadas.

Não deixa de ser curioso, de todo modo, que quando Chave publicou sua crítica à pintura, a linha que permitia associar misoginia e Les Demoiselles d’Avignon havia sido delineada – e, diga-se de passagem, em contornos nítidos, talvez mesmo com matizes mórbidos – pela célebre interpretação que William Rubin (ninguém mais, ninguém menos que o curador chefe de pintura do MoMA entre 1973 e 1988) empreendera mais de dez anos antes, estimulado pela publicação de “O bordel filosófico”, de Steinberg.

Já em 1983, Rubin havia publicado um primeiro artigo defendendo que a atitude ambivalente (entre medo, terror e admiração) de Picasso em relação às mulheres teria sido um dos principais propulsores na gênese de Les Demoiselles ( RUBIN, 1983RUBIN, William. From Narrative to “Iconic” in Picasso: The Buried Allegory in Bread and Fruitdish on a Table and the Role of Les Demoiselles d’Avignon. The Art Bulletin, 65(4), 1983, pp. 615-649. , p. 628). Nele, reconhecia os méritos de Steinberg em ressaltar o apelo sexual da pintura e em dissociá-la de uma interpretação protocubista. Discordava, no entanto, da abordagem dionisíaca e orgiástica da sexualidade em “O bordel filosófico”, segundo a qual as duas prostitutas à direita da composição eram concebidas como figuras imbuídas de força vital. Ao invés de vê-las como emblemas de liberação sexual e de vitalidade, Rubin preferia interpretá-las como figuras combalidas, inspiradas pelo medo da morte que assolava Picasso naquele momento14 14 . Cabe uma menção ao fato de que a análise de Rubin, mesmo em sua qualidade e refinamento, não está alheia à onda de abordagens biográficas da obra de Picasso constituídas em torno da mitologia que se fez de sua vida pessoal, na qual sobressaem relações ruidosas com muitas mulheres, frequentemente associadas à apreciação do desenvolvimento de sua trajetória artística. Para uma crítica desse tipo de abordagem, cf. KRAUSS (1981) . .

Dando novo fôlego às abordagens iconográficas da pintura (ressaltadas outrora por Alfred Barr Jr. (1939, pp. 57-60) e posteriormente abandonadas por Steinberg), para, então, acrescer-lhes de uma marcada dimensão psicobiográfica, Rubin definia Les Demoiselles como fruto dos estertores tanatofóbicos de Picasso, impulsionados pela misoginia que lhe era intrínseca e que se manifestava ora em sua arte, ora em sua personalidade e psicologia tipicamente “masculinas”.

Ora, e não é surpreendente que tal diagnóstico ostentasse, em última análise, afirmações semelhantes às de Chave (nas quais a autora, inclusive, baseara-se), embora não pudesse situar-se em um espectro ideológico mais oposto15 15 . A aproximação foi ironicamente assinalada por KRAMER (1984) . ? Isto é, se Rubin naturalizava a misoginia de Picasso como fator biográfico inerente à sua psique tipicamente masculina e à sua verve criativa, Chave a problematizava enquanto construção histórica e social. Ambos, no entanto, partiam de um pressuposto em comum: situar Picasso como homem de sua época para desvelar as motivações de Les Demoiselles d’Avignon e, desta forma, fornecer uma interpretação à pintura, compreendida como resultado de uma reação fóbica de Picasso ao corpo da mulher – isto é, ao corpo da mulher de carne e osso.

Mas Rubin iria além. Alguns anos após publicar seu primeiro artigo sobre Les Demoiselles , reelaborará sua tese de que a pintura se alicerça numa oscilação ambivalente entre Eros e Tânatos e passará a defender veementemente que as duas figuras à direita da composição teriam sido inspiradas não só pelo temor de Picasso em relação às mulheres, mas também pelo terror que a memória traumática do rosto metamorfoseado de prostitutas sifilíticas “degeneradas” teria provocado no jovem Picasso, na ocasião de visitas regulares que fez ao hospital-prisão feminino de Saint-Lazare, situado nas proximidades de Paris ( RUBIN, 1994RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. , pp. 57-59).

Com essa interpretação, além de restaurar o antigo sentido de vanitas que alguns haviam visto na gênese de Les Demoiselles (cujo significado alegórico não mais residiria na caveira antes carregada pelo jovem estudante de medicina nos esboços preparatórios, mas estaria agora plasmado nas cabeças “monstruosas” das prostitutas sifilíticas à direita da composição), Rubin também minimizava (ao menos no nível formal) o impacto que o contato com as máscaras africanas teria causado em Picasso – fator frequentemente evocado pela literatura quando o tema é a radical plasticidade das figuras femininas em questão. Em suas palavras:

Em 1983, quando sugeri retificar a interpretação histórica de Steinberg de modo a conceber o psicodrama da pintura menos como uma ode a Eros do que como um estado de agonização entre Eros e Tânanos, eu sentia que a cabeça da puta [ whore ] agachada encarnava tudo aquilo sobre mulheres que despertava o ódio, o medo, a raiva e a repulsa de Picasso. [...] Onde a África (ou qualquer outra fonte tribal) se encaixa morfologicamente na cabeça dessa figura agachada? Estou convencido de que em nenhum lugar. [...] Quando Picasso sondou seu inconsciente e procurou em sua memória os rostos mais assustadores que havia visto, certamente terá encontrado as assoladas e distorcidas cabeças das sifilíticas congênitas que ele tinha visto em Saint-Lazare. Essas sifilíticas eram, além disso, modelos para as máscaras Pende em questão. [...] O estilo Pende, no entanto, era público, coletivo, tradicional. O ponto de partida de Picasso havia sido seu próprio estilo de vanguarda. E sua solução constituiu um ato a um só tempo singular e privado. ( RUBIN, 1994RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. , pp. 114-115, grifos presentes no original)

O diagnóstico – que dissociava a forma das figuras à direita da composição de qualquer influência direta da arte africana para associá-las ao corpo “degenerado” da mulher – ecoava nas declarações abertamente contraditórias de Picasso, que por vezes pareciam concernir antes às preocupações do artista no momento de sua fala do que a seu trabalho no momento referido pela fala. “Arte negra? Não conheço” ( ZERVOS, 1942ZERVOS, Christian. Pablo Picasso. Paris: Cahier d’Arts, 1942, v.2. , p. 10), teria seriamente replicado o artista a um crítico, em 1920, ao ser questionado sobre a influência de máscaras africanas em sua obra. Algo diametralmente oposto do relato – mas com ele conciliável, ao menos na interpretação de Rubin – que o próprio Picasso faria a André Malraux anos mais tarde, em 1939, a respeito de sua primeira visita ao Museu Etnográfico do Trocadéro (hoje, Museu do Homem), em Paris, em 1907, poucos meses antes do término de Les Demoiselles d’Avignon:

Sempre falamos da influência dos Negros sobre mim. O que fazer? Todos adorávamos fetiches [...]. Quando eu fui ao velho Trocadéro, foi repulsivo. O cheiro. Eu estava completamente sozinho. Eu queria ir embora de lá. Mas não fui. Eu fiquei. Eu fiquei. Eu entendi que aquilo era muito importante: algo estava acontecendo comigo, certo? As máscaras não eram como quaisquer outras esculturas. De modo algum. Elas eram coisas mágicas. [...] Elas eram contra tudo – contra os espíritos desconhecidos, aterrorizantes. Eu olhava todos os dias para esses fetiches. Até que entendi: eu também sou contra tudo. Eu também penso que tudo é desconhecido, que tudo são inimigos. Tudo! Não só pequenos detalhes, mas as mulheres, crianças, bebês, tabaco, o jogo... tudo. [...] Eu descobri então porque eu era pintor. Sozinho, naquele museu assustador, com as máscaras, os bonecos de pele vermelha, os manequins empoeirados. Les Demoiselles d’Avignon deve ter me ocorrido justamente naquele dia, mas jamais por causa das formas: porque tratava-se da minha primeira pintura de exorcismo, sim! ( MALRAUX, 1996MALRAUX, André. La tête d’obsidienne. In: Ouevres Complètes. Paris: Gallimard, 1996, pp. 696-697, v.3. , pp. 696-7)16 16 . A conversa foi narrada por Malraux em 1974.

Exorcizar os fantasmas de um inconsciente aterrorizado: eis o papel elementar dos artefatos “tribais” na obra de Picasso. Quanto ao modelo alternativo às “leis do academicismo e do sistema anatômico” que Salmon tão logo havia associado à matriz africana no trabalho do artista, não parecia ser ele o fator determinante. Para Rubin, eram as distorções anatômicas causadas pela sífilis (as quais o autor chega a reproduzir em uma nota, e que, por comparação, ironicamente enchem as demoiselles da vitalidade que o autor defende não existir) as grandes responsáveis pela plasticidade do corpo na pintura ( RUBIN, 1994RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. , pp. 130-131). Picasso – homem de seu tempo, afetado pela atração e pela repulsa que sentia por prostitutas, bem como por um temor irracional a doenças venéreas – só poderia ter visto nessas mulheres a imagem da deformação.

IX.

Durante quinze anos, Rubin fora, como dissemos, curador do departamento de pintura do MoMA (bem como um dos mais reconhecidos intérpretes da obra de Picasso e um intelectual de prestígio, autor de estudos importantes sobre arte moderna e contemporânea), o que lhe permitia apresentar suas hipóteses de um lugar privilegiado. Em 1984 – no interregno entre seu primeiro artigo sobre Les Demoiselles e a publicação de seu detalhado estudo sobre a pintura –, foi o curador de uma das mais controversas exposições do museu, “‘Primitivism’ in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern”, mostra que fazia de Les Demoiselles uma de suas peças-chave17 17 . Para catálogo, cf. RUBIN (1984) . . Nessa ocasião, pôde testar e desenvolver muitos dos raciocínios que basearam seu estudo posterior sobre a pintura. Pôde difundir a ideia de que ela havia sido impulsionada pela relação de medo e atração de Picasso em face das mulheres, cristalizada, hoje, em grande parte dos estudos mais recentes sobre a obra. Mas mais importante: enfatizando a centralidade do relato de Malraux a respeito da visita de Picasso ao Museu Trocadéro, pôde defender que a pintura nascera de um ato de exorcismo, e que este seria o principal elo entre Picasso e a matriz africana.

A exposição fincava seus alicerces em uma argumentação divergente: por um lado, apresentava uma série de máscaras de procedências diversas na África e na Oceania, dispostas lado a lado com a pintura, de modo a ressaltar a notória semelhança entre os objetos. Por outro lado, sustentava que, a despeito da suposta conexão, Picasso não poderia ter visto aquelas máscaras em 1907, quando pintou Les Demoiselles . Como resposta à aparente contradição nos termos, Rubin defendia a existência de uma “afinidade eletiva entre o tribal e o moderno”, procurando assim desvincular-se das desgastadas noções de influência causal e de primitivismo evolutivo, que amiúde atribuíam a Matisse, Derain, Vlaminck e, posterior e decisivamente, a Picasso a “descoberta da arte tribal”. Dessa perspectiva, não haveria quaisquer vínculos formais diretos entre Les Demoiselles d’Avignon e as máscaras em questão, em geral propostas como fonte para a pintura: era sobretudo um “pensamento selvagem” ou um primitivismo intuitivo o que unia os termos em questão.

Ora, não é difícil supor que uma abordagem como essa – que propunha destituir o caráter antinaturalista das demoiselles da influência direta da arte africana para atribuí-lo à relação de erotismo e repulsa que o corpo patologizado da mulher despertava em Picasso – tenha gerado um amplo debate e uma série de denúncias à época. Além disso, a posição de Rubin instilaria uma vigorosa disputa em torno do emprego e da validade epistemológica da noção de “primitivismo”, cujos pressupostos ideológicos – consolidados em grande parte da historiografia modernista – pareciam cada vez mais evidentes e foram objeto de diversas críticas, dedicadas ao labor ainda hoje imprescindível de revisão historiográfica18 18 . Para críticas publicadas no calor da hora, cf., entre outros, McEVILLEY (1984) , DANTO (1984) , CLIFFORD (1985) , BOIS (1985) , FOSTER (1996 [1987]). . A polêmica continuou em vigor mesmo décadas depois, quando Simon Gikandi publicou um artigo no qual denunciava de forma veemente o lastro etnocêntrico e colonialista do conceito de “afinidades eletivas”, mobilizado por Rubin (recorrendo a uma fórmula de Goethe) para descrever os nexos “naturais” que ligariam a arte moderna à arte “primitiva” (GIKANDI, 2003).

A denúncia de Gikandi é contumaz: ao qualificar a relação entre a obra de Picasso e a arte africana como uma relação de afinidade, confiando excessivamente nas declarações do próprio artista de que os objetos tribais em seu ateliê seriam antes testemunhas do que modelos propriamente ditos, Rubin estaria, afinal, estabelecendo uma “esquemata” – ou “estigmata” – de diferenciação, baseada em uma distinção entre o tipo de intertextualidade que a obra de Picasso estabeleceria, por um lado, com a pintura dos mestres da tradição ocidental e, por outro, com a arte tribal. A intertextualidade referida à arte tribal operaria somente no nível afetivo e subconsciente, ao passo que aquela relativa à tradição europeia constituiria um autêntico modelo e fonte de estímulo intelectual. Nessa seara, a arte africana emergiria desidratada, e sua influência sobre a arte moderna seria minimizada, quando não apaziguada. “A luta por um Picasso puro, que não tenha sido contaminado pela África, é, em última instância, a luta para assegurar a ideologia estética do alto modernismo” (Ibidem, p. 466), dirá Gikandi.

No mais, ao psicologizar a relação entre Picasso, o corpo feminino e o continente africano e ao conceber as “máscaras africanas em Demoiselles antes como instrumentos para acentuar os temas da sexualidade e da morte do que como modelos” (Ibidem, p. 468) ou como fonte de inspiração direta, Rubin estaria reforçando as estereotipadas conotações sexuais e o primitivismo ideologizado da pintura – ao invés de reconhecer sua plasticidade e potência formal como fonte de interesse para Picasso.

A acusação não carece de relevância: de fato, supor tamanha assimetria hierárquica – quando o caso em questão é a pintura de Picasso – parece, na melhor das hipóteses, duvidoso.

Porém, caberia atribuir tal assimetria exclusivamente ao argumento de Rubin quando, em realidade, a “esquemata da diferenciação” por ele instituída sustenta-se ela mesma em declarações do próprio Picasso? Não seria, afinal, o mesmo sistema de valores também contíguo à forma eminentemente ambígua com que também o artista, à sua época, incorporou a matriz africana às suas preocupações estéticas?

A resposta de Gikandi à última dessas interrogações é uma afirmação peremptória. Isso porque no cerne do “modernismo primitivista” de Picasso residiria, na visão do autor, uma meticulosa e bem delimitada separação entre objetos de arte africanos e corpos , a saber, corpos de seres humanos reais. Ao artista, naquele momento, interessavam somente os primeiros em detrimento dos segundos: Picasso, como nota Gikandi, quando falava em “Negros”, referia-se antes aos artefatos do que às pessoas (GIKANDI, 2003, p. 456)19 19 . Gikandi refere-se a uma carta de Picasso a Kahnweiler, datada de 11 de agosto de 1912: “We bought some blacks [ des négres ] at Marseilles and I bought a very good mask and a woman with big tits and a young black.”, citada em STALLER (2001) . Poderíamos adicionar, também, o início do supracitado relato de Malraux sobre a visita ao Trocadéro: “On me parle toujours de l’influence des Nègres sur moi [...]”. Cf. MALRAUX (1996, p. 17). – o que lhe permitia manter-se a uma distância relativamente segura dos domínios do Outro.

Em última análise cumpriria, portanto, reformular a pergunta inicial: haveria, de fato, alguma África na obra de Picasso? Afinal, “mesmo em seu ‘período negro’”, que ocorre após a realização de Les Demoiselles d’Avignon , entre 1906 e 1908, “Picasso parecia preferir o objeto africano ao corpo ‘inaculturado’ africano” (Ibidem, p. 459), constatará Gikandi.

Para sustentar seu argumento, o autor recorre a um raciocínio fundado na periodização da obra de Picasso, defendendo que, durante os anos que antecederam a realização de Les Demoiselles , isto é, de sua adolescência até os períodos azul e rosa – quando Picasso estaria preocupado com temas e formas “classicizantes” da história da arte –, o artista teria se voltado à figuração do negro uma única vez, em 1895, quando realizou uma série de estudos acadêmicos a modo naturalista ( figura 4 ), que reforçavam muito da visão estereotipada sobre o corpo negro, concebido como desvio do cânon greco-romano.

Figura 4
Pablo Picasso, Estudo acadêmico , 1895-1897. Grafite sobre papel, 47,3 x 31,8 cm. Museu Picasso, Barcelona. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Naquela época, argumenta Gikandi, mesmo tendo realizado tais desenhos – usualmente cópias ou esboços que partiam de modelos em gesso –, o jovem Picasso não teria nunca visto, de fato, nenhum africano (Ibidem, p. 469). Isso aconteceria pela primeira vez somente alguns anos mais tarde, em 1900, durante a Exposição Universal de Paris, quando o artista teria encontrado negros “à disposição” no pavilhão colonial – fato que teria sido estranhamente eliminado de sua memória nos anos subsequentes, mas que retornaria inscrito na forma explosiva de Les Demoiselles d’Avignon , quando o corpo negro veio a servir como uma espécie de mediador na “valorização da distorção e da dissimetria como parte do [seu] método e assinatura próprios” (Ibidem, p. 463).

Ocorre, no que concerne à disciplina história da arte, que tal mecanismo inconsciente de defesa ou recalque – cuja pedra angular seria uma abstração prévia do confronto traumático com o Outro e os fins seriam a purificação ou o expurgo – não poderia encontrar correspondência satisfatória senão em um discurso eurocêntrico, ávido por confinar a África ao inconsciente artístico de Picasso20 20 . Cumpre mencionar, que, conforme destacado por BAIGES (2014 , p. 217), se é bem verdade que ao longo das últimas décadas a historiografia passou a valorizar a função apotropaica das máscaras africanas na gênese de Les Demoiselles , em um primeiro momento, a presença da arte negra no Cubismo era descrita em termos predominantemente formalistas, diferentemente do que sugere o texto de Gikandi. .

Essa é uma tese audaciosa, uma vez que estabelece um paralelo flagrante entre o eurocentrismo da interpretação de Rubin (e, por extensão, da narrativa então consolidada pelo MoMA) e a atitude fetichista e mistificadora de Picasso em relação à África. Trata-se, por isso mesmo, de uma apreciação de extrema relevância no que diz respeito à revisão do modernismo como um todo, sobretudo em sua vertente primitivista. Arrisco-me a afirmar, contudo, que, ponderadas com o devido vagar, tanto a proposição de que o que dá lastro a uma historiografia eurocêntrica é a separação precisa e muito bem delineada, por parte de Picasso, entre corpos e objetos africanos quanto a hipótese de que a realização de Les Demoiselles d’Avignon teria sido possibilitada por uma abstração do encontro traumático com a África merecem atenção ainda mais detida. Pois uma série de desenhos e esboços para a pintura revelados a público pelo Museu Picasso-Paris em 1988 e, posteriormente, a coleção de fotografias de Picasso exposta pela primeira vez em 1995 sugerem um itinerário ainda mais complicado21 21 . Para os catálogos, cf. SECKEL (1988) , BALDASSARI ([1995] 1997). .

X.

Se transitarmos do panorama artístico ao pano de fundo macrocultural, constataremos que, ainda que omissões sejam mais ou menos recorrentes, não é nenhuma incógnita que o colonialismo, como processo histórico, tenha sido condição sine qua non para a incorporação da escultura africana em Les Demoisellles – o que não necessariamente significa que a pintura seja reflexo das políticas coloniais ou mesmo que a elas responda como simples e pura adesão22 22 . Patricia Leighten, inclusive, recorre a uma reconstituição política do debate entre os defensores e os detratores do colonialismo para argumentar que Les Demoiselles expressa um posicionamento anticolonialista. Cf. LEIGHTEN (1990) . . O primeiro grau da equação, de todo modo, deriva de uma variável simples: a disponibilidade que permitiu com que os artistas no início do século tivessem acesso às máscaras procedentes da África e da Oceania remonta, em última instância, às expedições coloniais e às transações comerciais assimétricas entre a França e seus domínios extracontinentais.

Mas há, ainda, ao menos uma variável adicional nessa equação: durante as décadas que antecederam a execução de Les Demoiselles , não somente as máscaras africanas, mas muitos outros produtos diretamente vinculados aos mercados coloniais circulavam entre o público francês. Dentre eles, fotografias e postais – os chamados cartões postais ilustrados – que retratavam a população negra, e sobretudo as mulheres africanas, a partir de um viés “etnográfico”, cuja aparente objetividade frequentemente escamoteava um conteúdo sexual implícito. Produtos como esses marcaram época enquanto protagonistas de um novo filão no mercado de fotografias e, como era de se imaginar, não passaram incólumes à atenção dos mais diversos artistas.

Um deles, surpreendentemente, era Picasso. Uma análise detida das mais de quinze mil fotografias conservadas atualmente nos arquivos do Museu Picasso-Paris revelou que o artista possuía – dentre diversos cartões de visitas, fotografias estereoscópicas e outras traquitanas caras à cultura oitocentista europeia – ao menos quarenta postais estampados com imagens de Edmont Fortier, um fotógrafo francês que trabalhava em Dacar e que se fez célebre por sua vasta produção de fotos captadas durante uma viagem realizada no interior do continente africano entre 1905 e 1906.

O interesse do artista por esse gênero de imagens chama atenção não só porque sua relação com a linguagem fotográfica era frequentemente caracterizada, até então, como circunstancial, mas também porque a própria natureza dessas imagens de cunho “orientalista” e etnográfico contrasta brutalmente com a manifesta recusa ao “exotismo” oitocentista pela qual Picasso se tornou conhecido23 23 . “Permitam-me acrescentar que odeio ‘exotismo’”, teria dito Picasso, por exemplo, em ocasião registrada nos diários de Apollinaire e mencionada por BALDASSARI ([1995] 1997, p. 9). .

Em meio às tais fotografias, uma chama atenção particular ( figura 5 ): trata-se de uma imagem retratando um grupo de nove mulheres sudanesas que parecem se sentir pouco à vontade e que, dispostas em pose eminentemente frontal e em duas fileiras, desviam o olhar embaraçado enquanto sustentam vasos sobre as cabeças. Anne Baldessari, uma das curadoras do Museu Picasso-Paris, em estudo que ressalta as equivalências estruturais entre a fotografia e a pintura de Picasso (o arranjo e a disposição geral das modelos, sua frontalidade hierática, sua iconicidade, o isolamento entre elas e a relação de implacável alteridade expressa em seus olhares), sugerirá: “uma fonte africana para Les Demoiselles d’Avignon24 24 . Cf. Ibidem, pp. 45-62. .

Figura 5
Edmond Fortier, Tipos de mulheres , 1906. Postal fotográfico.

Uma proposição redentora, é claro. Rendentora, a princípio, porque as ressonâncias entre ambas as imagens se fazem ver e vêm acompanhadas de considerável esforço documental e, em seguida e sobretudo, porque, se estivermos inclinados a reconhecê-las, nos será revelada uma solução rápida e descomplicada a um problema caro à historiografia da pintura moderna: a identidade das figuras femininas em Les Demoiselles d’Avignon . Elas seriam inspiradas não só por máscaras, mas por corpos e rostos de mulheres africanas.

Se nos convencermos dessa ideia, hipóteses como as de Gikandi, que se inclinam a interpretar o elemento africano em Les Demoiselles como uma espécie de “retorno do recalcado” purificado pela inscrição formal, parecem um pouco deslocadas. Se assim o for, por outro lado, deparamo-nos com uma asserção tão espantosa que é preciso que nos ocupemos dela.

Espantosa, em primeiro lugar, porque, como notou Carlo Ginzburg, dificilmente poderíamos chamar de “fonte africana” uma imagem tão eminentemente europeia (GINZBURG, 2002, p. 127). Europeia não somente porque sua procedência é diretamente colonial, como afirmamos anteriormente, e tampouco apenas porque o “tema” ou “objeto” da fotografia são mulheres africanas, ao passo que o “fotógrafo” ou “sujeito” que as retrata (bem como sua audiência), são todos europeus, mas também e principalmente porque a imagem em questão está organizada de acordo com fórmulas e hierarquias de uma tradição pictórica específica – uma tradição ocidental. Ou, dito de outro modo, as mulheres sudanesas nessa imagem são dispostas artificialmente por Fortier de modo a recriar uma espécie de friso do Paternon ( figura 6 ), isto é, uma forma clássica por excelência.

Figura 6
Friso do Partenon, face norte, bloco N VI, século V a.C. Mármore. Atenas, Grécia.

Nesse caso, a estratégia adotada pelo fotógrafo merece esclarecimento. Afinal, abeirar-se de realidades não europeias submetendo-as a modelos clássicos é, como também notou Ginzburg, característica recorrente de uma atitude exotizante que provém, em última instância, de um olhar profundamente etnocêntrico e paternalista: “pretende-se transmitir ao espectador uma sensação de diversidade domesticada. [...] Um lugar comum que a Alemanha nazista e a Itália fascista retomaram da antropologia do século XIX” (GINZBURG, 2002, p. 127) algumas décadas mais tarde. Uma sensação de diversidade domesticada, além disso, é o que permite que essas fotografias sejam veiculadas como produtos para satisfação erótica – ou para o prazer visual – sem que o consumidor necessariamente se sinta ameaçado, agredido ou consternado.

Mas sejamos francos: no caso de Les Demoiselles , o que está em jogo – ainda que aceitemos a fotografia de Fortier como uma espécie de fonte para a pintura – é uma estratégia de apropriação de natureza um pouco distinta. Supondo que assim o seja, permito-me realizar um breve exercício comparativo entre alguns dos desenhos preparatórios e a fotografia em questão, com o intuito de indicar a forma eminentemente ambígua e pouco ortodoxa como Picasso acolhe elementos retirados tanto da fotografia de Fortier quanto da vasta cultura figurativa clássica, interpolando-os sem, necessariamente, subjugar um ao outro.

XI.

Em 1988, alguns anos antes que se trouxesse à tona a coleção de fotografias de Picasso, uma grande exposição dedicada a Les Demoiselles d’Avignon recuperou e expôs em conjunto, pela primeira vez, como mencionamos, os quinze carnets de Picasso, que continham os aproximadamente mil estudos preliminares para a hoje célebre pintura. A quantidade de documentos inéditos sobre uma obra realizada mais de sete décadas antes e cuja recepção fora marcada por uma aura de mistério, polêmicas e reviravoltas despertou, como era de se supor, considerável atenção crítica.

Nessa ocasião, além dos carnets , alguns pequenos desenhos realizados em 1907 causaram certo alvoroço. Refiro-me a uma série de desenhos informais, em folhas soltas e páginas de catálogos, estudos de morfologia e proporção do corpo humano, baseados em formas geométricas losangulares. Tratava-se de desenhos esquemáticos, que faziam alusão a sistemas e códigos de medidas herméticos e até hoje indecifrados, conformando uma espécie de diagrama, bastante sui gereris , de proporções do corpo aos moldes acadêmicos ( figuras 7 e 8 ).

Figura 7
Pablo Picasso, Estudo de proporções , 1906-7. Lápis sobre papel, 36,3 x 83,6 cm. Museu Picasso-Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 8
Pablo Picasso, Estudo de proporções , 1906-7. Lápis sobre papel, 36,3 x 83,6 cm. Coleção privada. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

De um lado, havia aqueles que encaravam tais desenhos como indício contrário à tese de que a anatomia não teria qualquer interesse para Picasso, salvo como parâmetro a ser deformado, distorcido e destruído25 25 . Cf., entre outros, DAIX (1988) , STALLER (1997) , GINZBURG (2002) , KARMEL (2003 , p. 58), GREEN (2003 , pp. 45-46). . Outros, por sua vez, mantinham-se firmes em rechaçar a possibilidade de que a anatomia, em sentido amplo, tivesse desempenhado qualquer papel na gênese de Les Demoiselles 26 26 . Cf. BOIS (1988) , especialmente páginas 137-138. .

Não pretendo, aqui, adentrar nos meandros dessa discórdia. Entretanto, não posso deixar de notar um curioso detalhe: se postos lado a lado, os desenhos em questão e a fotografia apontada por Anne Baldessari como “fonte africana” para Les Demoiselles revelam ter mais em comum do que um juízo apressado desconfiaria.

Antes, porém, de dedicar-me a qualquer propósito comparativo, permitam-me algumas considerações, com o simples intuito de situar a existência desse exercício singular na produção e trajetória de Picasso. De uma perspectiva ampla, esses pequenos diagramas – elaborados entre abril e maio de 1907 – parecem ser, como defende Pepe Karmel, uma espécie de formulação sintética para um dilema que vinha se delineando na produção de Picasso naquele período: como conciliar o caráter aparentemente contraditório entre um modo escultural de representar o corpo humano (ao qual Picasso teria se dedicado alguns meses antes, no inverno de 1906/1907) e a presença de elementos decorativos (banidos, em um primeiro momento, para reaparecer, ato contínuo, pouco antes da invenção de tais diagramas geométricos) ( KARMEL, 2003KARMEL, Pepe. Picasso and the Invention of Cubism. New Haven: Yale University Press, 2003. , p. 58)?

Para os fins de minha análise, deixarei de lado as especificidades do dilema em questão, limitando-me a apontar que tanto o modo escultural quanto o modo decorativo a que Karmel se refere teriam sido inspirados por objetos de uma mesma tradição: a arte grega. Um torso de origem jônica ( figura 8 ), ou modelos de pintura em terracota em estilo ático ( figura 9 ), para citar alguns exemplos que Picasso teria encontrado à disposição nas inúmeras visitas que fazia ao Louvre no período.

Figura 9
Artista desconhecido Torso masculino , estilo jônico, ca. 479 a.C. Mármore, 132 cm (altura). Museu do Louvre, Paris.

Em um primeiro momento, a hipótese de que os diagramas geométricos em questão tenham sido inspirados por um retorno a fontes gregas não causa estranhamento, sobretudo em vista do renovado e bem documentado interesse de determinados círculos parisienses e, em especial, de Picasso pela tradição clássica naquele período27 27 . Quanto ao interesse de Picasso pelo classicismo, cf. COWLING (2002 , pp. 114-200). . Mas, se nos dispusermos a nos afastar momentaneamente das referências clássicas e recordarmos que, precisamente nessa época, Picasso teria adquirido seus cartões etnográficos de Fortier, outras possibilidades se abrirão.

Note-se, por exemplo, como a compleição física da demoiselle de dois dos desenhos preparatórios ( figuras 11 e 12 , realizadas no período preciso em que Picasso estaria engajado no desenvolvimento do que Karmel define como modo “escultural”) faz ressoar a disposição e as feições da mulher de cócoras à direita da fotografia de Fortier ( figura 13 ). Observe-se, ainda, como a estrutura corporal das figuras nesses desenhos parece, por sua vez, sintetizada na edificação linear e de proporções alargadas da figura humana nos diagramas anatômicos em questão.

Figura 11
Pablo Picasso, Busto , 1906. Aquarela sobre papel, 54,8 × 71,8 cm. Museu de Arte Moderna, Centro George Pompidou, Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 12
Pablo Picasso, Demoiselle sentada , 1906-7. Aquarela sobre papel, 62,6 × 46 cm. British Museum, Londres. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 13
Edmond Fortier, Tipos de mulhere s, 1906 (detalhe). Postal fotográfico.

O mesmo ocorre com desenhos de veia decorativa. O pequeno estudo ( figura 16 ) que, segundo Karmel, é base para a síntese geométrica daqueles diagramas anatômicos parece remeter, por exemplo, tanto a uma das figuras femininas presentes na foto de Fortier quanto a um desenho a óleo em grandes proporções ( figuras 14 e 17 ), de marcadas feições “primitivizantes”, no qual tanto as proporções quanto as formas losangulares dos esquemas anatômicos realizados em abril e maio se fazem ver abertamente.

Figura 16
Pablo Picasso, Carnet 8 , 1906-7. Lápis sobre papel, 44,5 × 57,5 cm. Museu Picasso-Paris.© Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 14
Pablo Picasso, Estudo para Demoiselles d’Avignon , Carnet 10, 1906-7. Lápis sobre papel, 42,4 × 34,6 cm. Museu Picasso-Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 17
Pablo Picasso, Nu de costas com braços elevados , 1906-7. Lápis e aquarela sobre papel, 32,8 × 52 cm. Museu Picasso-Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Caso desejássemos, prosseguiríamos até nos darmos conta de que o quebra-cabeça – no qual cada desenho parece imiscuir-se numa cadeia que o vincula aos outros e estende-se infinitamente – permite soluções variadas. Ao invés de tentar decifrar cada uma delas, atenho-me ao fato de que o sem-número de relações que se oferecem nos dá pistas para compreender o modo como Picasso incorpora a fotografia de Fortier nos estudos preparatórios de Les Demoiselles .

Ela está lá, não há dúvida. Está em muitos dos estudos sobre a pose e a expressão de cada uma das demoiselles . Está, também, surpreendentemente amalgamada naqueles pequenos diagramas anatômicos, fundida a uma série de fragmentos visuais recolhidos de culturas figurativas heterogêneas, entre elas, a tradição greco-romana. Repito: entre elas, a tradição greco-romana. Ora, mas não havíamos antes argumentado que um dos fatores que distinguia a estratégia de apropriação de Picasso das formas de representação de Fortier era justamente o fato de que o fotógrafo, na contramão de Picasso, recorria a modelos clássicos para aproximar-se de realidades que lhe eram extrínsecas?

De uma perspectiva ampla, é difícil negar que tanto o cartão postal retratando mulheres sudanesas seminuas de Fortier quanto os estudos preparatórios de Les Demoiselles (que se apropriam dele para extrair, ainda que informalmente, um esquema anatômico) só podem ser devidamente mesurados em face de um debate caro à cultura de imagens oitocentista, profundamente marcada pela empreitada colonial: o debate em torno da distinção e hierarquia entre as raças, amparado pelo surgimento da antropologia biológica [physical antropology] e suas intersecções com o universo da arte28 28 . Para um balanço sobre a relação entre a antropologia biológica e ideias artísticas, cf. MICHAUD (2019 , pp. 52-68). . Ambos (o postal e os estudos) estavam, de uma forma ou de outra, imersos num ambiente no qual sobressaía, com cada vez mais visibilidade, um conjunto de ideias germinadas desde o século XVIII, ou mesmo antes, que ganham estatura considerável no século seguinte, quando uma série de estudos cientificistas passaram a dirigir-se à imagem do corpo negro para formular teorias a respeito de toda a “evolução” da humanidade. Disseminaram-se, por então, um sem-fim de diagramas anatômicos que costumavam colocar lado a lado os diferentes “tipos” humanos, comparando-os (sempre em vista do ideal clássico) e escalonando-os em esquemas lineares artificiais, em busca de evidências empíricas que permitissem medir o corpo segundo parâmetros de um sistema cujo valor mais elevado seriam as “proporções ideais” do paradigma greco-romano. Na maior parte dos casos, eles atendiam a uma vulgata evolucionista, que se punha a serviço de noções de diferenciação racial justificadas pelas mais atrozes teorias de superioridade, ou, em outras palavras, de racismo científico.

Não à toa, após revelarem-se pela primeira vez os primeiros diagramas anatômicos de Picasso e, posteriormente, a existência de fotografias de Fortier dentre seus arquivos pessoais, muitos foram os que, como David Lomas (1993)LOMAS, David. A Canon of Demormity: Les Demoiselles d’Avignon and Physical Anthropology. Art History, 16(3), 1993, pp. 424-446. e Jane Cohen (2015)COHEN, Jane. Staring Back: Anthropometric-style African Colonial Photography and Picasso’s Demoiselles. Photography & Culture, 8(1), 2015, pp. 59-80. , se prontificaram a contextualizar o surgimento de Les Demoiselles em vista desse debate. Quanto ao emprego dos postais de Fortier por Picasso, Cohen demonstrou que procediam de um interesse do artista por um arsenal de fotografias comerciais que incorporavam o estilo “antropométrico”, voltado ao estabelecimento de um padrão de medidas anatômicas comparativo que se prestava ao paradigma de diferenciação racial. Quanto aos estudos anatômicos que antecederam a execução da pintura, Lomas buscou demonstrar que, ainda que fossem parte de um esforço de “destruição do cânone greco-romano”, eram inevitavelmente legatários de todo o debate da antropologia biológica e de sua iconografia da prostituta e do negro – fundamentada em estereótipos “altamente denegridos [denigratory] de alteridade” (LOMAS, 2003, p. 427), ora concebidos como emblema da degeneração do ideal clássico, ora tidos como espécimes “primitivos” e desproporcionais do ser-humano.

De fato, a apropriação de Picasso de imagens das mais diversas procedências (entre artefatos de culturas materiais não ocidentais29 29 . Utilizo “não ocidentais” visando apenas estabelecer um marcador mais ou menos indeterminado de procedências diversificadas, sem qualquer pretensão de descrição ou definição de um vasto arsenal de culturas específicas somente por oposição à cultura ocidental. , diagramas anatômicos, fotografias “orientalistas” etc.) não deixa de remeter a essa ampla cultura de imagens em circulação na sociedade finisecular, obcecada por estabelecer parâmetros anatômicos, supostamente capazes de reger a “evolução” de toda a humanidade. Ainda assim, a maneira com que Picasso articula esse reservatório de imagens (do qual se apropria sem pudor) é bastante distinta daquela que prevalecia em grande parte das teorias cientificistas em vigor que as embasavam. Isso porque estas últimas valiam-se, primordialmente, de duas premissas que lhe são essenciais – a da superioridade do cânon greco-romano e a da comparação entre as supostas raças e suas respectivas culturas. E no caso de Picasso, nenhuma dessas premissas parece imperar soberana: em seus esboços e desenhos preparatórios, elementos recolhidos de matrizes heterodoxas não obedecem à lógica da contraposição hierárquica , mas são justapostos ou mesmo aglutinados, até fundirem-se em um amálgama inextricável. Afinal, o que são os seus esquemas esboçados em pequenas folhas avulsas senão, para usar as palavras de Pepe Karmel (2003KARMEL, Pepe. Picasso and the Invention of Cubism. New Haven: Yale University Press, 2003. , p. 58), uma espécie de reductio ad absurdum de todo o sistema de medidas anatômicas, que amparava o surgimento dessas tantas teorias cientificistas? Eles semeiam, enfim, um esforço de reinvenção anatômica, ou de invenção de novas anatomias – anatomias cada vez mais geometrizadas e sintéticas –, que, mais tarde, eclodiriam com força na obra de Picasso. Em última instância, as diversas fontes das quais se extraem esses diagramas concatenam-se a tal ponto que o discernimento de cada uma delas se torna impossível: tanto é assim que a presença do esquema de superposição proporcional de losangos dos diagramas anatômicos a que nos referíamos pode ser rastreado não só em Les Demoiselles d’Avignon , mas mesmo em pinturas cubistas posteriores que, num primeiro momento, não parecem dever nada nem às fotografias de Fortier, nem à tradição clássica30 30 . Para a presença desses diagramas em pinturas cubistas, cf. HIROMI (2015) . .

Dito de forma simples: naquele momento, Picasso não parecia se contentar em seguir à risca categorias que amiúde se impunham na cultura parisiense da virada do século, que insistia na comparação hierárquica entre a figura do negro e a imagem do corpo na tradição greco-romana. Isso não significa que as hierarquias tenham, em si, caído por terra em sua obra, mas que o esforço por fundir imagens de tradições figurativas frequentemente posicionadas em espectros opostos era, sem dúvida, parte de um árduo desafio frente à multiplicidade de imagens de uma cultura urbana que despontava, sempre assombrada pela disponibilidade visual do expugno colonial.

É claro que um desafio nunca oferece respostas simples ou unívocas. Prova disso, a meu ver, são os tantos caminhos que Picasso dá mostras de querer seguir, mas que, muitas vezes, não lhe parecem satisfatórios. Uma solução considerada pelo artista e, posteriormente, abandonada, pode ser identificada se dirigirmos nossa atenção a um pequeno desenho, também realizado em folha de estudos avulsa no ano de 1907 ( figura 20 ), no qual se constata, ao que tudo indica, um laço figurativo tanto com desenhos ao modo decorativo de Picasso quanto com detalhes da fotografia de Fortier ( figura 17 ). A julgar pelo conhecimento de Pierre Daix, tratava-se de um projeto para uma escultura de cariátide que nunca foi levado a cabo (DAIX, 1988, 518)! Pois bem, não seria demasiado didático que o esforço por reunir e sintetizar tantas imagens de procedências diversas fosse cristalizado, no fim das contas, na forma de uma coluna grega, um emblema do belo e do funcional, cujas proporções celebram o corpo do homem em suas medidas?

Figura 20
Pablo Picasso, Folha de estudos, 1907. Nanquim sobre papel, 22,5 x 17,5 cm. Museu Picasso-Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

XII.

Elaborar soluções para problemas e descartá-las quando os resultados não satisfazem é parte integrante de qualquer processo de criação. Em tal caso, cumpre recordar que também os esquemas anatômicos aos quais me referi anteriormente foram parcialmente abandonados por Picasso, e sua relevância para a versão final da pintura segue bastante controversa. A existência desse conjunto de estudos, não obstante, faz-nos atentar para um ponto fundamental: ao longo do extenso período em que se dedicou à concepção de Les Demoiselles d’Avignon , Picasso não estava preocupado em simplesmente “destruir” ou “deformar” o cânone, como frequentemente se diz, mas também em articular modelos heterodoxos, nos quais se encontrassem engastados vestígios de culturas figurativas diversas.

Ora, mas a deformação a que se faz menção, seria possível objetar, ocorre justamente na versão final da pintura, quando as operações iconoclastas que Picasso aplica à figura do corpo da mulher (ou, mais especificamente, às figuras do corpo da prostituta e do corpo da mulher negra) têm lugar. Não seria também essa, enfim, a tal “desvenutização” à qual se fez referência anteriormente?

Sob determinado ponto de vista – isto é, caso consideremos como paradigma as diretrizes prescritas para a representação do corpo feminino pela academia no século XIX –, certamente. Afinal, toda vez que utilizamos a palavra “deformar” para designar certa operação plástica, admitimos a existência de determinada “forma” como modelo, que, mesmo desfeito ou desarticulado, permanece sendo o ponto de partida.

Entretanto, quando analisamos Les Demoiselles , falar em “deformação” me parece demasiado estreito. Pois o que a justaposição de fontes heterodoxas no processo de gestação dessa pintura evidencia é precisamente a dissolução da ideia unitária de modelo – ou da ideia de cânone, concebido como um conjunto deles – e das prerrogativas de autoridade que lhe são intrínsecas.

Anos mais tarde, em uma de suas afirmações que ressoam a clichê e que nem sempre são confiáveis, Picasso o teria formulado em palavras simples: “a formação acadêmica em beleza é uma farsa. As belezas do Partenon, as das vênus, ninfas e narcisos são todas uma mentira. A arte não consiste na aplicação de um cânone da beleza, mas no que o instinto e o cérebro podem conceber para além de qualquer cânone”31 31 . Para a presença desses diagramas em pinturas cubistas, cf. HIROMI (2015) . .

De um ponto de vista abrangente, Les Demoiselles não é apenas uma obra inaugural do modernismo por ter operado a destruição das formas vigentes ou a distorção da anatomia humana. Trata-se de uma obra que revela, também, a crise de modelos anatômicos universais, que devem ser não só deformados, mas também revisitados, ampliados e fundidos a matrizes heterogêneas, de extração ocidental e não ocidental.

Em suma, essa atitude, por ir de encontro a uma noção unitária de cânone, prescinde, como dissemos, de um princípio de comparação hierárquico, que atravessava grande parte do cientificismo oitocentista. Muitas de suas premissas e implicações, entretanto, seguem à espera de um escrutínio ainda mais minucioso. Há poucos anos, em 2015, por exemplo, o historiador da arte francês Eric Michaud publicou um estudo com a pretensão de traçar uma genealogia da história da arte em face das noções de raça que atravessavam a consolidação da disciplina enquanto tal. Nele, entre muitas outras coisas, Michaud aponta a eclosão, a partir de meados do século XIX, de um novo interesse de pesquisadores europeus por buscar, através do olhar sistemático aos monumentos do passado, provas tangíveis de características imutáveis (físicas e morais) de grupos étnicos contemporâneos (MICHAUD, 2019, pp. 185-199). Tratar-se-ia do que logo veio a ser caracterizado como a “persistência das raças” – um produto bastante explícito do pensamento racializado, que, em consonância com a antropologia biológica à qual nos referíamos anteriormente, procurava encontrar no estudo da arte a salvaguarda para teorias sobre populações inteiras, do passado ao presente, sob o pretexto de continuidade antropomórfica.

Um dos defensores dessa abordagem era, precisamente, E.-T. Hamy, curador do Museu do Trocadéro até o início de 1907 e professor de antropologia do Museu de História Natural de Paris. Em um de seus estudos, Hamy chega a colocar fotografias de monumentos antigos e sujeitos contemporâneos lado a lado, com o intuito de identificar as “ressonâncias étnicas” entre eles – o que lhe permitia transitar entre a apreciação de culturas materiais diversas, a caracterização de “tipos” fisionômicos não ocidentais, seus costumes e tradições ( figura 21 ) ( HAMY, 1907HAMY, Ernst-T. La figure humaine dans les Monuments chaldéens, babyloniens et assyriens. Bulletins et Mémoires de la Société d’anthropologie de Paris 8, n. 8, 1907, pp. 116–132. , pp. 116-132). Um princípio semelhante transparecia na organização que Hamy imprimira ao Trocadéro, no qual “objetos etnográficos” eram classificados e dispostos, como argumenta Christopher Green, de acordo com uma taxonomia “instrutiva” que visava introduzir os visitantes ao modo como populações denominadas “selvagens” ou “semicivilizadas” atualmente viviam (GREEN, 2003, pp. 56-57). Em ambos os casos, residia a convicção de que era possível encontrar, em obras antigas, a imagem do sujeito contemporâneo, em um processo que tendia a nivelar, através da procura por traços de permanência, seres-humanos e objetos produzidos por seus supostos antepassados.

Figura 21
Comparação feita por E.-T. Hamy, em 1907, entre o perfil de um homem curdo do século XX e fragmento de tábua da dinastia Ur-Nina (Mesopotâmia), ca. 2500 a.C. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/bmsap_0037-8984_1907_num_8_1_6988#bmsap_0037-8984_1907_num_8_1_T1_0120_0000 Acesso em: 15 jul. 2020.

Em termos gerais, esse era, portanto, o museu etnográfico que Picasso teria encontrado na visita que antecedeu a realização de Les Demoiselles . Seria leviano, é claro, traçar uma rota que, sem mais mediações, vinculasse o pensamento de Hamy à obra de Picasso. Ainda assim, caberia indagar em que medida o método de trabalho de Les Demoiselles – que transita entre fotografias de mulheres contemporâneas sudanesas, máscaras africanas, esculturas antigas, modelos anatômicos, entre outros, fundindo-os a partir de um movimento oscilante entre imagens de objetos e de sujeitos – abraça, ou não, pressupostos ideológicos semelhantes, no seio do projeto expográfico do Trocadéro.

Esse, no entanto, é um assunto complexo, e adentrar em seus meandros exigiria mais cuidado e cautela do que permitem as exíguas linhas que nos restam. Por ora, limito-me a assinalar o mais evidente: que esse é mais um dentre os tantos caminhos ainda em aberto, capazes de revelar que novas interpretações de Les Demoiselles d’Avignon – com sua vasta fortuna crítica – são tão possíveis quanto necessárias e não devem jamais esgotar-se. Bibliografia

Figura 10
Artista desconhecido, Pintura em estilo ático , ca. 750 a.C. Fragmento de cerâmica, ca. 58 cm. Museu do Louvre, Paris

Figura 15
Edmond Fortier, Tipos de mulheres , 1906 (detalhe). Postal fotográfico.

Figura 18
Pablo Picasso, Nu com braços elevados , 1906-7.Lápis e aquarela sobre papel, 51,4 × 83,4 cm. Museu Picasso-Paris. © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2020

Figura 19
Artista desconhecido, Pintura em estilo ático (detalhe), ca. 750 a.C. Fragmento de cerâmica, ca. 58 cm. Museu do Louvre, Paris.

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  • STEINBERG, Leo; DUNCAN, Carol. From Leo Steinberg. Art Journal, 49(2), Depictions of the Dispossessed, 1990, p. 207.
  • WOLLHEIM, Richard. A Pintura como arte / trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
  • ZERVOS, Christian. Pablo Picasso. Paris: Cahier d’Arts, 1942, v.2.
  • 1
    . A tradução é livre e de minha autoria, assim como todas as traduções de citações originais em francês e inglês que não tenham tido versões publicadas em língua portuguesa. O caso ao qual me refiro é relatado, com ligeiras diferenças entre as versões, por muitos dos que testemunharam o encontro de Braque com a pintura. Para um balanço entre as versões do fato, cf. SECKEL (1994)SECKEL, Helène. Anthology of Early-Commentary on Les Demoiselles d’Avignon. In: RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. , especificamente páginas 227-230.
  • 2
    . Nesse meio tempo, especula-se que a pintura tenha sido exibida apenas uma vez em Paris, no Salon d’Antin, em 1916, num momento em que Primeira Guerra Mundial restringia uma possibilidade ampla de circulação no campo das artes. Para mais informações a respeito dessa exposição, cf. COUSINS; SECKEL (1994)COUSINS, Judith; SECKEL, Helène. Chronology of Les Demoiselles d’Avignon. In: RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994, pp. 145-206. .
  • 3
    . Cumpre mencionar, a propósito, que esse ensaio, publicado em 1920 sob o título “Der Weg zum Kubismus”, era uma versão reelaborada de seu “Der Kubismus”, publicado em 1916. A respeito da diferença entre as versões, cf. RUBIN (1994)RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. .
  • 4
    . Cabe ressaltar a publicação, dois anos antes, de ROSENBLUM (1970)ROSENBLUM, Robert. Picasso and the Anatomy of Eroticism. In: BOWIE, Theodore; CRISTENSON, Cornelia (eds.). Studies in Erotic Art. Nova York: Basic Books Inc Publishers, 1970, pp. 337-350. , texto em que o tema está evidentemente em pauta, mas que focaliza a obra de Picasso entre 1920 e 1930.
  • 5
    . Alguns desses desenhos eram então desconhecidos no horizonte da crítica e foram trazidos à baila por Steinberg; outros, ainda, viriam a ser expostos somente anos depois, quando estudos revelaram a existência de mais de uma centena deles. Para uma relação mais completa dos carnets de Picasso, cf. SECKEL (1988)SECKEL, Helène (ed.). Les Demoiselles d’Avignon, cat. exp., Musée Picasso, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1988. .
  • 6
    . Faz-se referência ao texto “Outro critérios”, publicado em STEINBERG (2008STEINBERG, Leo. Outros Critérios: Confrontos com a Arte do Século XX / trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008. , pp. 79-127).
  • 7
    . A primeira das denúncias mais significativas foi proferida por BROUDE (1980)BROUDE, Norma. Picasso, Artist of the Century (Late Nineteenth). Arts Magazine, 55, 1980, pp. 84-86. . Ela referia-se à obra de Picasso como um todo e não especificamente a Les Demoiselles .
  • 8
    . Cumpre mencionar que, em novembro de 2019, após um longo período de reforma, o MoMA expandiu suas dependências, abrindo-se a uma nova agenda multicultural (que responde a um histórico cada vez mais clamoroso de pressões e críticas de toda ordem). Nessa guinada, as demoiselles agora aparecem acompanhadas da monumental pintura American People Series #20: Die [Série Povo americano nº 20: Morra – ou morrer] (1967), da artista afroamericana, Faith Ringhold, que, quando jovem, estudara Picasso no museu e que, posteriormente, realizou a célebre pintura Picasso’s Studio (1991), na qual faz referência direta a Les Demoiselles d’Avignon . Para uma crítica a respeito da nova configuração do museu, cf. FOSTER (2020)FOSTER, Hal. Mudança do MoMA / trad. Sônia Salzstein. ARS, 18(38), 2020, pp. 315-327. .
  • 9
    . Quanto a esse aspecto, Tamar Garb nota que uma das primeiras reações positivas à pintura partiu de Gertrude Stein. Cf. GARB (2001).
  • 10
    . Cf. SECKEL (1994)SECKEL, Helène. Anthology of Early-Commentary on Les Demoiselles d’Avignon. In: RUBIN, William (ed.). Studies in Modern Art, n. 3, Nova York: The Museum of Modern Art and Thames and Hudson, 1994. . Para uma interpretação que faz uso de um arcabouço psicanalista para estabelecer relação entre as reações estupefatas à pintura e o complexo de castração freudiana, cf. BOIS, 2001BOIS, Yve-Alain. Painting as a Trauma. In: GREEN, Christopher (org.). Picasso’s Les Demoiselles d’Avignon. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 31-54. , pp. 31-54. Para a relação mais abrangente, que se estende ao conjunto da obra de Picasso, cf. WOLLHEIM (2002)WOLLHEIM, Richard. A Pintura como arte / trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2002. . Para uma elaboração recente dessa conexão, cf. FOSTER (1993)FOSTER, Hal. Primitive Scenes. Critical Inquiry, n. 20, 1993, pp. 69-102. .
  • 11
    . A influência do conceito de “ male gaze ” nos comentários feministas sobre Les Demoiselles foi notada por FLORMAN (2003FLORMAN, Lisa. The Difference the experience makes in ‘The Philosophical Brothel’. The Art Bulletin, 85(4), 2003, pp. 769-783. , p. 779).
  • 12
    . Observe-se que mesmo Duncan via as demoiselles como “obscenas e degradadas”, conforme citado anteriormente.
  • 13
    . A autora, aqui, faz referência irônica ao difundido estudo de RUBIN (1983RUBIN, William. From Narrative to “Iconic” in Picasso: The Buried Allegory in Bread and Fruitdish on a Table and the Role of Les Demoiselles d’Avignon. The Art Bulletin, 65(4), 1983, pp. 615-649. , p. 630).
  • 14
    . Cabe uma menção ao fato de que a análise de Rubin, mesmo em sua qualidade e refinamento, não está alheia à onda de abordagens biográficas da obra de Picasso constituídas em torno da mitologia que se fez de sua vida pessoal, na qual sobressaem relações ruidosas com muitas mulheres, frequentemente associadas à apreciação do desenvolvimento de sua trajetória artística. Para uma crítica desse tipo de abordagem, cf. KRAUSS (1981)KRAUSS, Rosalind. In the name of Picasso. October, vol. 16, 1981, pp. 5-22. .
  • 15
    . A aproximação foi ironicamente assinalada por KRAMER (1984)KRAMER, Hilton. The Primitivist ‘conundrum’. On ‘Primitivism’ in 20th Century Art, on MoMA. The New Criterion, 3(4), 1984, pp. 1-7. .
  • 16
    . A conversa foi narrada por Malraux em 1974.
  • 17
    . Para catálogo, cf. RUBIN (1984)RUBIN, William (org.). “Primitivism” in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern, cat. exp. Nova York: The Museum of Modern Art, 1984, v. 2. .
  • 18
    . Para críticas publicadas no calor da hora, cf., entre outros, McEVILLEY (1984)McEVILLEY, Thomas. T. Doctor Lawyer Indian Chief: “’Primitivism’ in 20th Century Art” at the Museum of Modern Art in 1984. Artforum, n. 23, 1984, pp. 54–60. , DANTO (1984)DANTO, Arthur. Defecting Affinities: ‘Primitivism’ in 20th Century Art. The Nation, n. 1, 1984, pp. 590-592. , CLIFFORD (1985)CLIFFORD, James. Histories of the Tribal and the Modern. Art in America, 73(4), 1985, pp. 166-171. , BOIS (1985)BOIS, Yve-Alain. La pensée sauvage. Review of the exhibition and the catalogue. Art in America, 73(4), 1985, pp. 178-188. , FOSTER (1996FOSTER, Hal. O inconsciente “primitivo” da arte moderna ou pele branca, máscaras negras. In: FOSTER, Hal. Recodificações: Arte, espetáculo, política cultural / trad. Duda Machado. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, pp. 237-268. [1987]).
  • 19
    . Gikandi refere-se a uma carta de Picasso a Kahnweiler, datada de 11 de agosto de 1912: “We bought some blacks [ des négres ] at Marseilles and I bought a very good mask and a woman with big tits and a young black.”, citada em STALLER (2001)STALLER, Natasha, A Sum of Destructions: Picasso’s Cultures and the Creation of Cubism. New Haven, Conn.: Yale University Press, 2001. . Poderíamos adicionar, também, o início do supracitado relato de Malraux sobre a visita ao Trocadéro: “On me parle toujours de l’influence des Nègres sur moi [...]”. Cf. MALRAUX (1996, p. 17).
  • 20
    . Cumpre mencionar, que, conforme destacado por BAIGES (2014BAIGES, Mayte. Los discursos poscolonialista y feminista sobre el arte moderno: la crítica de Les Demoiselles d’Avignon. Quintana, n. 13, 2014, pp. 211-219. , p. 217), se é bem verdade que ao longo das últimas décadas a historiografia passou a valorizar a função apotropaica das máscaras africanas na gênese de Les Demoiselles , em um primeiro momento, a presença da arte negra no Cubismo era descrita em termos predominantemente formalistas, diferentemente do que sugere o texto de Gikandi.
  • 21
    . Para os catálogos, cf. SECKEL (1988)SECKEL, Helène (ed.). Les Demoiselles d’Avignon, cat. exp., Musée Picasso, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1988. , BALDASSARI ([1995] 1997).
  • 22
    . Patricia Leighten, inclusive, recorre a uma reconstituição política do debate entre os defensores e os detratores do colonialismo para argumentar que Les Demoiselles expressa um posicionamento anticolonialista. Cf. LEIGHTEN (1990)LEIGHTEN, Patricia. The White Peril and l’Art Nègre: Picasso, Primitivism and Anticolonialism. Art Bulletin, 72(4), 1990, pp. 609-630. .
  • 23
    . “Permitam-me acrescentar que odeio ‘exotismo’”, teria dito Picasso, por exemplo, em ocasião registrada nos diários de Apollinaire e mencionada por BALDASSARI ([1995] 1997, p. 9).
  • 24
    . Cf. Ibidem, pp. 45-62.
  • 25
    . Cf., entre outros, DAIX (1988)DAIX, Pierre. L’historique des Demoiselles d’Avignon révisé à l’aide des carnets de Picasso. In: SECKEL, Helène (ed.). Les Demoiselles d’Avignon, cat. exp., Musée Picasso, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1988, pp. 490-545. , STALLER (1997)STALLER, Natasha. Gods of Art: Picasso’s Academic Education and its Legacy. In: Marilyn MCCULLY (ed.). Picasso, The Early Years, 1892-1906, cat. exp., New Haven e Londres, 1997, pp. 67-81. , GINZBURG (2002)GINZBURG, Carlo. Além do exotismo: Picasso e Warburg. In: GINZBURG, Carlo. Relações de força. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 118-137. , KARMEL (2003KARMEL, Pepe. Picasso and the Invention of Cubism. New Haven: Yale University Press, 2003. , p. 58), GREEN (2003GREEN, Christopher. Picasso, Architecture and Vertigo. New Haven, Londres: Yale University Press, 2003. , pp. 45-46).
  • 26
    . Cf. BOIS (1988)BOIS, Yve-Alain. Painting as a Trauma. Art in America, 76(6), 1988, pp. 131-173. , especialmente páginas 137-138.
  • 27
    . Quanto ao interesse de Picasso pelo classicismo, cf. COWLING (2002COWLING, Elisabeth. Picasso: Style and Meaning, Londres: Phaidon, 2002. , pp. 114-200).
  • 28
    . Para um balanço sobre a relação entre a antropologia biológica e ideias artísticas, cf. MICHAUD (2019MICHAUD, Eric. The Barbarian Invasions: A Genealogy of History of Art / trad. Nicholas Huckle. Cambridge: MIT Press, 2019. , pp. 52-68).
  • 29
    . Utilizo “não ocidentais” visando apenas estabelecer um marcador mais ou menos indeterminado de procedências diversificadas, sem qualquer pretensão de descrição ou definição de um vasto arsenal de culturas específicas somente por oposição à cultura ocidental.
  • 30
    . Para a presença desses diagramas em pinturas cubistas, cf. HIROMI (2015)HIROMI, Matsui. De l’apprentissage du dessin à la naissance d’une nouvelle représentation du corps humain. Colloque Revoir Picasso, Museu Picasso-Paris, março de 2015. .
  • 31
    . Para a presença desses diagramas em pinturas cubistas, cf. HIROMI (2015)HIROMI, Matsui. De l’apprentissage du dessin à la naissance d’une nouvelle représentation du corps humain. Colloque Revoir Picasso, Museu Picasso-Paris, março de 2015. .
  • *
    Este artigo deriva da minha pesquisa de mestrado, que contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sob o número do processo 2017/20620-4.
  • **
    Agradecemos a Fabiana Garreta, da Autvis, pela presteza na orientação aos editores quanto à publicação de obras de Picasso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2020
  • Aceito
    20 Jul 2020
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