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TÉCNICA, ARTE E DISPERSÃO

TECHNICS, ART AND DISPERSION

TÉCNICA, ARTE Y DISPERSIÓN

RESUMO

Ampliada pelo desenvolvimento tecnológico, a movimentação humana na contemporaneidade tem se configurado como diversas formas de dispersão (tanto físicas quanto ideológicas). Em sua expansão centrífuga, a dispersão desconsidera aspectos coletivos da rede inter-relacional em que existimos em prol de atitudes autorreferentes, tais como o crescimento econômico ou o utilitarismo. No entanto, a dispersão ganha um sentido distinto se refletida no campo da arte. Como mecanismo de coletividade, ela possibilita a reflexão sobre o altruísmo e a convivialidade, que elucidam laços sociais distintos à dispersão. Utilizam-se aqui métodos de investigação próprios às ciências humanas e às artes, com a intenção de propor a combinação entre imagens, símbolos e conceitos como metodologia condizente à pesquisa em antropologia e sociologia da arte.

coletividade; convivialidade; altruísmo; pós-humanismo; tecnologia

ABSTRACT

Expanded by technological development, human movement in contemporary times has been configured as several forms of dispersion (both physical and ideological). In its centrifugal expansion, the dispersion disregards collective aspects of the interrelational network in which we exist in favor of self-referring attitudes, such as economic growth or utilitarianism. However, dispersion takes on a different meaning if reflected in the field of art. As a mechanism of collectivity, it enables reflection upon altruism and conviviality, which elucidates social ties that oppose dispersion. Research methods specific to the humanities and the arts are used here as a means of proposing the combination of images, symbols and concepts as a consistent methodology for research in Anthropology and Sociology of Art.

Collectivity; Conviviality; Altruism; Post-Humanism; Technology

RESUMEN

Ampliada por el desarrollo tecnológico, la circulación humana en contemporaneidad se configuró como varias formas de dispersión (tanto físicas cuanto ideológicas). En su expansión centrífuga, la dispersión desconsidera cuestiones colectivas de la red inter-relacional en que existimos en nombre de actitudes auto-referentes, como el crecimiento económico o el utilitarismo. Sin embargo, la dispersión gana otro sentido cuando reflexionada en el campo del arte. Como mecanismo de coletividad, ella hace posible la reflexión acerca del altruismo y la convivialidad, que elucidan lazos sociales distintos a la dispersión. Son utilizados aquí métodos investigativos propios a las ciencias humanas y el arte, buscando proponer la combinación entre imágenes, símbolos y conceptos como metodología acorde con la pesquisa en antropología y sociología del arte.

colectividad; convivialidad; altruismo; posthumanismo; tecnología

1. INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre as relações entre cultura e sociedade, em uma obra que se tornou fundamental para a área de estudos culturais, Homi Bhabha afirma que: “A marca de nossos tempos é localizar a questão da cultura no reino do além” (2004, p. 1, grifo do autor)1 1 . No original: “It is the trope of our times to locate the question of culture in the realm of the beyond”. . Mesmo no século XXI, a abstração que cerca a investigação da arte dificulta a compreensão da mesma como “objeto social” que se relaciona diretamente a grupos humanos e a seus contextos. Com a intenção de elucidar essas relações, o conceito de “dispersão” é formulado e apresentado pelo presente artigo. Como ele se torna visível através da sociedade e de suas expressões políticas, ecológicas, econômicas etc., nos ateremos inicialmente à uma revisão bibliográfica do “pós-humanismo”, sobretudo em suas consequências antropológicas e sociológicas, em aspectos que tangem uma investigação da dispersão — o que se observa, sobretudo, no estudo de redes de inter-relação humana e não humana, incluindo a natureza e os símbolos nos elos de mutualismo que constituímos, e que nos constituem.

A partir dai, a análise de aspectos sociais e relacionais permite uma observação da arte em seu contexto — não no “reino do além”, para recapitular Bhabha, mas aqui: nas múltiplas expressões do presente que constituem nossas relações; inevitavelmente sociais e simbólicas. Tendo ressaltado o caráter social e contextual da dispersão, passaremos então à investigação desses mesmos parâmetros no campo da arte, especialmente através da coletividade que se estabelece a seu redor e assim desafia qualquer forma de dispersão.

Assim, um estudo da dispersão é uma proposta metodológica, que se situa principalmente nas áreas de antropologia e sociologia da arte, já que visa a se constituir como uma metodologia própria à arte em contexto. Essa proposta investigativa não se dá apenas através do estudo da dispersão, mas da combinação de mídias distintas do conhecimento humano, como conceitos e imagens, de forma igualitária, o que significa a consideração de metáforas, símbolos visuais e personagens literários como fontes efetivas do saber, assim como as múltiplas particularidades da escrita sobre arte, como as linguagens poética e imagética.

Partimos da sociedade para elucidar a arte. Mas, como em uma alavanca que retorna a força recebida em um movimento contrário, em nossa conclusão, apresentamos a arte como método de diagnóstico da dispersão na sociedade. Seu caráter coletivo e de constante “expansão” simbólica corresponde a alguns mecanismos sociais e econômicos que ganham lugar no estabelecimento de “convivialidades” — como será apresentado no decorrer do artigo. A sociedade também estabelece relações isentas de uma atitude autorreferente, o que se torna visível através de um estudo da arte em contexto, ao qual nos ateremos a seguir.

2. TÉCNICA E DISPERSÃO

Através da técnica (e, consequentemente, do fenômeno atual denominado tecnologia), chegamos a um nível de dispersão (de movimentos, objetivos, interesses, atuações e ideologias) que passa a atingir os extremos de nossas redes de inter-relação (também chamadas “vida”) de forma continuada — novamente no sentido de dispersões físicas, geográficas, individuais, mas ainda mais virtuais, e também na disparidade entre ideologias políticas, sociais etc. e, inevitavelmente, na utilização de recursos — reafirmando, em ações e comportamentos, o paradigma da terra como provedora unilateral de materiais, em detrimento da possibilidade antidicotômica da troca simbólica entre indivíduos. A possibilidade de presentear e ser presenteado, como elo social, é conhecida desde a década de 1920, através do conceito de “gift-giving”, de Marcel Mauss (1990)MAUSS, Marcel. The Gift: The Form and Reason for Exchange in Archaic Societies. London: W.W. Norton, 1990. , mas ainda resistimos a potencializá-la como prática, sobretudo em sua formulação como uma “via de mão dupla”: dar e receber, como apresentado de forma reiterada na obra de Adloff (2018a, 2018b). Com a relação entre técnica e dispersão, pretende-se aqui enfatizar as dificuldades e as zonas de conflito no estabelecimento de trocas simbólicas, como expresso por um dos aspectos que fundamentou a elaboração recente dos “Manifestos Convivialistas” (2014; 2020) na França. Reproduzimos aqui as frases de abertura do primeiro manifesto, que relacionam riqueza e poder ao desenvolvimento técnico: “Nunca antes a humanidade teve à sua disposição tal riqueza em recursos materiais e expertise técnica e científica. De forma geral, ela se tornou rica e poderosa além da imaginação de qualquer indivíduo nos séculos anteriores” (CONVIVIALIST MANIFESTO, 2014CONVIVIALIST MANIFESTO. Convivialist Manifesto. A declaration of interdependence (Global Dialogues 3). Duisburg: Käte Hamburger Kolleg. Centre for Global Cooperation Research, 2014., p. 21)2 2 . No original: “Never before has humanity had such a wealth of material resources and technical and scientific expertise at its disposal. Overall, it has become rich and powerful beyond the imagination of anyone in former centuries”. (CONVIVIALIST MANIFESTO, 2014, p. 21). Todas as traduções são dos autores do presente trabalho, exceto quando indicado diferentemente. . Tanto no sentido da disponibilidade material, quanto da riqueza e do poder: a técnica é sinônimo de dispersão. Enquanto os Manifestos denunciam o crescimento econômico como motivação fundamental da atividade humana, superior a qualquer outro aspecto social, político ou ecológico da sociedade atual, e, nesse sentido, destacam as dispersões entre classes sociais, ou mesmo através da poluição impensada que dispersa por completo a conexão entre um mundo almejado e aquele efetivamente construído, pretende-se aqui enfatizar a dispersão como o caminho que conduz a extremos da sobrevivência, sem que eles representem em nada a possibilidade de um universalismo plural, ou “pluriversalismo” — aludindo novamente à nomenclatura dos Manifestos (2014, p. 22; 2020, p. 72). A contínua sobrevivência nos extremos é completamente distinta do ideal universalista propagado pelo Iluminismo, ou mesmo da mentalidade expansionista (e colonialista) dos séculos XV e XVI, pois é um fenômeno em massa, que em um sentido atinge tanto o topo do Everest3 3 . A fila para subir o Monte Everest se configura como uma poderosa metáfora geográfica da existência nos extremos do planeta. Seu fundamento material é, inevitavelmente, o desenvolvimento tecnológico. As edições do Jornal The New York Times dos dias 18 de setembro e 14 de agosto de 2019 reportam o engarrafamento humano, que causou a morte de alguns alpinistas, e incluem a fotografia do escalador nepalês Nirmal Purja, que mostra a fila de pessoas no topo do monte. Disponível em: https://www.nytimes.com/topic/destination/mount-everest. Acesso em: 15 abr 2020. quanto em outro determina a existência de uma grande parcela da humanidade que convive cotidianamente com o extremo da miséria. Essa convivência obriga a confrontação com um cosmopolitismo da sobrevivência, ou com o “Cosmopolitismo do Pobre”, de Silviano Santiago (2004)SANTIAGO, Silviano. O Cosmopolitismo do Pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004., atestado também por Gilroy (2004GILROY, Paul. After Empire: Melancholia or Convivial Cultures, London, New York: Routledge, 2004., 2013GILROY, Paul. Postcolonialism and Cosmopolitanism: Towards a Worldly Understanding of Fascism and Europe’s Colonial Crimes. In BRAIDOTTI, Rosi et al. (eds.). After Cosmopolitanism. Londres, Nova York: Routledge, 2013, pp. 111-131.) e Appadurai (2013APPADURAI, Arjun. The Future as Cultural Fact: essays on the global condition. Nova York: Verso, 2013., 2018APPADURAI, Arjun. The Risks of Dialogue. São Paulo: Mecila Working Paper Series, no. 5, 2018.). Ambos (a subida do Everest e a miséria) são direções humanas, e cada uma delas representa uma face da dispersão técnica, cujo movimento centrífugo as coloca em constante negociação com a desorientação.

As passagens de pedestres em torno da estação de Shibuya, em Tóquio, ou os mercados de Delhi, que representavam a ação transformadora humana (em um sentido progressista e imbuído da dicotomia entre cultura e natureza), poderiam parecer ultrapassadas ideologicamente, mas continuam sendo imagens extremamente significativas; já que são metáforas da desorientação (e que, sobretudo, se comprovam existencialmente, pois continuam a existir) —, ambas são consequências imediatas da dispersão, que atua diretamente sobre nossos modos de vida e, assim, inevitavelmente, sobre o nosso senso de liberdade. Desorientação coletiva significa a insistência em movimentos individuais, autocentrados, baseados em vontades, preferências e atitudes deliberadas que se originam em hábitos e entendimentos de cada indivíduo, embora sejam amplamente fundamentados por um ethos que frequentemente corrobora a soberania do crescimento econômico, em detrimento da consideração de sua ampla inter-relação com diversos outros fatores fundamentais à existência. Uma multiplicidade de direções forma a “teia” de transeuntes em Tóquio, sem que ela seja exatamente criada como um tecido, pois muito antes o fenômeno é formado por consequências impensadas de escolhas individuais (estas sim) deliberadas. Por isso, as teias de aranha que são criadas a partir da conjunção de movimentos que levam a um fim específico não servem como modelo direto da ação humana, mas como forma de elucidar o oposto de uma teia autêntica: a desorientação. O mesmo seria verdadeiro em relação às atividades de um formigueiro — mas observe-se que, aqui, incluem-se diversos indivíduos, o que nos aproxima de uma imagem da coletividade. Nesse sentido, o caminho para alguma forma coletiva de “autogovernança” (self-government) passa pelo esclarecimento necessário das relações entre técnica e dispersão. Como essas permanecem não diretamente discutidas, e como usualmente são tratadas como “sintomas isolados”, torna-se evidente que o termo seja frequentemente relacionado a ações como: simple living, slow food, fair trade, ethics of care, the new ‘commons’ thinking etc., movimentos que, embora sejam urgentes para o contexto atual, não se apresentam como um sistema organizacional que cubra o escopo básico de uma “governança” (que incluiria: educação, saúde etc.) e não propõem para si tal função, mas justamente ajustam sintomas pontuais da “teia” humana. E esses sintomas devem ser deveras tratados, como esclarece Kopenawa (2015) – em um contexto distinto, mas igualmente urgente, da denúncia sobre a destruição da Amazônia, que é também a destruição do mundo como o conhecemos –, que ensina a compreender sintomas como pistas. Se todas as pistas que indicam a queda do céu estão dadas, a única alternativa é a ação condizente ao fato de que “ele vai desabar” (Ibidem, epígrafe). Ao serem compreendidos como sinais, os sintomas justamente nos ajudam a esclarecer a necessidade de se refletir a relação (praticamente intrínseca) entre tecnologia e dispersão, pois o avanço tecnológico atual parece simular o efeito contrário: a união. A era digital é frequentemente descrita por sua “convergência”, por criar relações antes impossíveis. Ela é conhecida como ferramenta que “une” os homens, o que o próprio termo inter-net dá a supor. Em um sentido imediato, os resultados visíveis, práticos e palpáveis dessa rede (net) possibilitam sim contatos antes inexistentes, mas ao mesmo tempo que o fazem, garantem que ações humanas que desconsideram a interdependência entre seres e seus entornos tomem proporções ainda maiores. Também a meta de um crescimento econômico que se coloca acima de quaisquer outros aspectos da vida humana é amplificada pela tecnologia — o que contribui consideravelmente com a imagem de ampliação da dispersão aqui tematizada.

A dispersão não é causada pelo desenvolvimento tecnológico em si e se apresenta ao longo da história da humanidade, por isso faz-se a opção em utilizarem-se aqui os termos técnica e tecnologia, com o objetivo de ressaltar sua relação histórica, referindo-se a técnica ao desenvolvimento de ferramentas e instrumentos antigos, enquanto a tecnologia se refere a aparatos complexos, cujo desenvolvimento atual é especialmente relacionado à tecnologia digital. É importante considerar-se que tanto os objetos técnicos quanto os tecnológicos têm a mesma função de se constituírem como meios de transformação do mundo, levados a cabo pela racionalidade humana, e o reconhecimento de sua relação histórica evita o equívoco de que a lida com a tecnologia seria algo novo, assim como uma possível dispersão amplificada por ela não o é, enquanto o pensamento que norteia a ideia de uma “modificação do mundo” é evidenciado arqueologicamente e pode se fundamentar nas funções do próprio corpo humano, tanto no caso de técnicas arcaicas quanto da tecnologia contemporânea, como se lê na obra do filósofo Vilém Flusser, que dedicou parte considerável de seus estudos à investigação das mídias: “As ferramentas imitam a mão e o corpo empiricamente; as máquinas mecanicamente; e os aparelhos, neurofisiologicamente” (FLUSSER, 2007, p. 38). Também Norbert Wiener (1965)WIENER, Norbert. Cybernetics. Or the control and communication in the animal and the machine. Second Edition. Nova York: MIT Press, 1965., desde os primeiros estudos sobre cibernética, apontou para similaridades no processamento de informações por máquinas e pela mente humana. A concepção da tecnologia como uma imitação do cérebro humano auxilia no reconhecimento do caráter deliberado das transformações tornadas possíveis através dela, assim como da responsabilidade de seu direcionamento — ainda que a tecnologia tenha sido, até o presente momento, amplamente tratada como uma caixa-preta, o que é reafirmado pelo interesse em seus resultados (out-puts) e, consequentemente, pela ignorância acerca dos procedimentos que se efetivam no interior obscuro da caixa. Partindo do modelo da fotografia e de sua “câmara escura”, Flusser (2008a) descreve a atuação da técnica como um processo cujo “interior” permanece desconhecido, enquanto o homem que opera a máquina justamente se torna seu funcionário ao ignorar a totalidade do procedimento do qual é parte. Dessa forma, o homem envolvido no fenômeno da técnica dispersa-se a si mesmo e a seu caráter humano, ao se perder no funcionamento da máquina. Ele serve ao processo que visa a apenas um e repetidamente o mesmo resultado, em detrimento da pluralidade de si mesmo e de seu entorno.

Em uma tentativa de resgatar a técnica como forma de relação bilateral entre seres e ambiente, a literatura atual apresenta diversas propostas de “humanização da máquina”. Interessantemente, parte considerável da investigação de zonas de conflito entre homem e técnica enfocam sua atuação sobre a economia, reafirmando nossa relação com os produtos ou resultados da máquina (novamente, o output). Propostas como care-centered economy (PRAETORIUS, 2015PRAETORIUS, Ina. The Care-centered Economy. Rediscovering what has been taken for granted, economic and social issues. Publication Series on Economic and Social Issues, vol. 16. Heinrich Böll Foundation, Berlin, 2015.), convivial technologies (VETTER, 2017VETTER, Andrea. The Matrix of Convivial Technology: Assessing Technologies for Degrowth. Journal of Cleaner Production, pp. 1-9, 2017.), ou eco-innovation (PANSERA, 2011PANSERA, Mário. The origins and purpose of eco-innovation. Global Environment. v. 7/8, 2011, pp. 128-155.) atestam tal direção, ainda que os parâmetros que norteariam a avaliação de uma determinada tecnologia permaneçam bastante heterogêneos, como atesta Armin Grunwald (2009)GRUNWALD, Armin. Technology assessment: concepts and methods. In MEIJERS, Anthonie (ed.). Philosophy of Technology and Engineering Science. Handbook of the Philosophy of Science. North Holland: Elsevier, 2009, pp. 1103-1146., tornando extremamente difícil a definição de medidas ou procedimentos a serem seguidos no processo de desenvolvimento de uma nova tecnologia, por exemplo. Se tornadas possíveis e efetivas, tais avaliações nos aproximariam do ideal de Ivan Illich (1973)ILLICH, Ivan. Tools for Conviviality, New York: Harper & Row, 1973., o teólogo que propôs apenas permitir tecnologias que possam ser utilizadas pela sociedade como um todo, de maneira igualitária, já que o monopólio tecnológico por uma classe dominante significa o aumento da diferença de classes. Mas esse monopólio tecnológico não parece descrever grande parte das sociedades atuais de forma fidedigna? Tanto no sentido da relação “interna” da diferença de classes em uma sociedade quanto da política exterior, que usualmente sustenta a corrida armamentista e a “importância” da indústria de guerra. No entanto, ainda que se desenvolvam mecanismos precisos de avaliação tecnológica, continuaremos nos relacionando com os outputs da máquina, pois são os resultados de sua “ação” a fornecerem o fundamento de quaisquer avaliações, enquanto o aspecto que se pretende ressaltar aqui, através de imagens da “dispersão”, diz respeito à relação humana com a máquina. A “abertura” ou a revelação do interior da caixa preta é relacional e se baseia no conjunto de ações que antecedem quaisquer “resultados” e, precisamente nesse sentido, ela se configura como um entendimento, uma formulação teórica, ou como uma “visão” sobre a técnica.

Deve-se também considerar que muitas propostas urgentes e necessárias de de-growth, ou movimentos por uma economia ecológica, são alternativas que servem ao nível de desenvolvimento social de países do Norte Global, que, no entanto, podem atuar negativamente na diferença de classes de países do Sul e podem inclusive contribuir para que aumente a distância entre elas em sociedades frágeis como as de países do terceiro mundo, o que se efetiva não apenas economicamente, mas também através da simbologia que acompanha produtos gerados a partir de processos que resguardam a natureza, por exemplo — já que eles são consumidos apenas pelos ricos. Evidentemente, não se pretende aqui criar oposição a tais ações, sobretudo porque alternativas a efeitos negativos de processos globalizadores têm sido largamente investigados pela literatura (WIJEN et al., 2012WIJEN, Frank; ZOETEMAN, Kees; PIETERS, Jan; SETERS, Paul van. A Handbook of Globalisation and Environmental Policy: national government intervention in a global arena. Second Edition. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2012.; VAZQUEZ-BRUST, 2014), e assim como o Sul Global clama por alternativas que correspondam às suas especificidades, também o Norte o faz. E, provavelmente, o problema da importação pelo Sul Global de novas tecnologias eco-friendly ou de de-growth produzidas no Norte é de segunda ordem — não do desenvolvimento tecnológico em si, e sim de sua transferência cultural. Mas também desse aspecto nasce a necessidade da reflexão sobre técnica e dispersão, como tentativa de uma concepção teórica, que tenha a capacidade de identificar e sistematizar elementos, já que a dispersão não é sinônimo da tecnologia, mas o desenvolvimento tecnológico aumenta as proporções da dispersão. Por um lado, a dimensão da dispersão a torna mais visível, por outro, mais difícil de se abordar, pois o senso comum massivamente representado por uma coletividade global cria a fachada de uma suposta “verdade” contra a qual torna-se difícil falar, e ainda mais difícil ser ouvido. Por isso, não se propõe aqui uma crítica a ou restrição do objeto técnico ou de alguma forma específica de tecnologia, mas o reconhecimento de sua capacidade de, em sua dispersão, “atropelar globalmente” inúmeros aspectos da rede interrelacional em que estamos envolvidos, gerando resultados excludentes, autocentrados e danosos a essa mesma rede. Unindo os elementos apresentados até este ponto, propõe-se aqui uma primeira definição da dispersão a partir de sua ação na sociedade, incluindo efeitos políticos, econômicos e ecológicos: a dispersão é um conjunto de movimentos e concepções (físicos e abstratos) que atropelam aspectos de nossas redes de inter-relação (vida), já que são consequência de atitudes autocentradas, tanto de indivíduos quanto de grupos de indivíduos. Ela é ampliada pelo desenvolvimento tecnológico e se torna global através dele, mas não é sinônimo da tecnologia, nem de seus efeitos danosos, mas da compreensão e do uso da técnica como mecanismo autorreferente. Potencialmente, a tecnologia se apresenta como poderosa ferramenta ao combate da dispersão. Esta é o contrário de qualquer forma de convergência, que considere a pluralidade inter-relacional em que existimos — e sem a qual des-existimos. Nesse sentido, a dispersão é um atentado contra a sobrevivência coletiva. Ela simplesmente se expande em direção a todo o tipo de “extremos” e “limites”, desconsiderando o que se interpõe em seu caminho4 4 . A poesia brasileira provê exemplo de encontros inesperados, que representam dificuldades. Ainda assim, em detrimento do ganho individual e do auto-centramento, para-se para considerar a dificuldade e acolhe-se a mesma através da presentificação da memória, como representa Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “No Meio do Caminho”: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.” Ver: Cf. ANDRADE (2013, p. 36). .

3. LIBERDADE, ESPAÇOS HUMANOS E NOMADISMO

As múltiplas direções humanas, que frequentemente resultam em desorientação coletiva, são curiosamente relacionadas a um paradigma da liberdade (ou mesmo do livre-arbítrio) que é extremamente caro à humanidade. O breve pensamento sobre um formigueiro, sobre funções fixas de indivíduos, causa discordância (e resistência) imediata, porque a “liberdade” é uma aquisição central e fundante da estrutura social contemporânea. Mas essa “liberdade” de pessoas atravessando constantemente os cruzamentos de ruas (a liberdade de Shibuya) é essencial para o sistema econômico operante. Ela é claramente o resultado de uma estrutura humana estabelecida pelo capitalismo e que o sustenta. É por isso que assim como a “teia”, a “liberdade” também precisa ser escrita entre aspas. Pois “escolhemos livremente” todo o curso de uma vida: seguimos um processo educativo, uma profissão, a formação de uma família para mantermos um sistema operante e acabarmos mantendo também a dispersão: cruzando a esquina japonesa, cada hora pra um lado. Ir e vir, ir vir, mas para onde? Praticamente inexistem, sobre a face da terra, respostas a essa questão que não sejam autorreferentes. Na maioria inegável de seus gestos, nossa dispersão visa sim a algum tipo de ganho, que, ao percorrer correntes de ações concatenadas, usualmente termina na aquisição de dinheiro (uma meta autorreferente). Neste ponto, é indispensável a reflexão sobre a “liberdade” do homem em estruturas capitalistas: somos livres para fazer mais dinheiro? Da mesma forma, a busca por novas experiências, a formação profissional e educacional, a busca por segurança e por reconhecimento são autocentradas. Isso é tudo? E quem são aqueles que deveras precisariam de mais dinheiro nessa estrutura social? Não são exatamente aqueles que trabalham na remediação dos sintomas da dispersão? (“Juntando o lixo”, por assim dizer…).

O somatório de metas individuais na estrutura humana atual (que se deixa ilustrar bem pela metáfora da busca por dinheiro, que conduz uma maior busca e é seguida pelo desejo por mais dinheiro)5 5 . Esse antigo tema humano é representado na arte de diversos séculos. Um exemplo elucidativo da zona de conflito entre necessidades e fabricações é a fábula do pescador e de sua esposa, recontada pelos Irmãos Grimm, em que a esposa é constantemente tentada pela aquisição de novas posses, mesmo frente à simplicidade da vida de seu marido. Cf. GRIMM; GRIMM (1997). se relaciona diretamente a um aumento na dispersão (novamente de movimentos, interesses etc.). Focar as inúmeras direções desses movimentos, que vistos como um todo formam uma “onda” centrífuga em dispersão global, gera a ideia de uma maior liberdade na contemporaneidade. No entanto, o gesto de parar (stop!) e revisar a meta de cada movimento revela uma mesma direção: o enriquecimento, o apego pelo ganho, o paradigma de exploração da Terra e a consequente manutenção do sistema capitalista, de relações, modelos e hábitos sociais (já claramente falidos)6 6 . De acordo com o último relatório conjunto da ONU, UNICEF, WHO, United Bank e United Nations sobre mortalidade infantil (2015), 16 mil crianças morrem todos os dias e aproximadamente a metade dessas mortes tem como causa a fome e desnutrição. Um sistema humano que permite tais números evidentemente não tem entre suas prioridades o direito básico à sobrevivência, e por isso não pode ser considerado eficiente sob o ponto de vista da inter-relação entre seres, pois serve a parte deles, enquanto outros são excluídos. Independentemente do lucro que esse sistema seja capaz de gerar, da parcela da população que venha a ter acesso a bens fundamentais, ou da comparação com sistemas anteriores que possam ter sido ainda piores para a humanidade como um todo, uma única criança morta de fome já é indício de que o paradigma que sustenta a estrutura onde ela viveria precisa ser revisto. O relatório está disponível em: https://www.unicef.org/publications/files/Child_Mortality_Report_2015_Web_8_Sept_15.pdf. Acesso em: 1 mai 2020. . Então: onde está a liberdade em um sistema baseado no ganho autocentrado? — Neste ponto eu não me refiro ao lucro. Um “ganho autocentrado” não necessariamente se converte em moeda, mas usualmente tem valor e significado simbólicos que, no entanto, assim como o dinheiro, motivam a busca por mais ganho. Também não me refiro à primazia do crescimento econômico sobre aspectos sociais, políticos e ecológicos (nomeando-os sinteticamente), mas o “ganho auto-centrado” e o crescimento econômico parecem caminhar de mãos dadas, em um ciclo de autoalimentação em que se torna difícil separar o papel do indivíduo (ganho pessoal) e o da sociedade (crescimento econômico), pois eles se espelham e se retroauto-alimentam. Nesse ciclo, também o lucro serve como modelo simbólico para a tentativa de multiplicação do ganho individual. E assim, a questão da liberdade humana se confronta diretamente com o crescimento econômico, e faz com que a proposta de Serge Latouche (2009LATOUCHE, Serge. Farewell to Growth. Cambridge: Polity Press, 2009., 2010LATOUCHE, Serge. Degrowth. Journal of Cleaner Production. v. 18, 2010, pp. 519-522.) por uma “prosperidade simples” e por uma revisão do conceito de riqueza que a dissocie da quantificação monetária fomentem a construção de um espaço inter-relacional humano e não humano, a partir do qual se possa falar em liberdade.

Uma consequência direta do “desejo por ganho” é a redução imediata da pluralidade dos espaços humanos. Apenas um perfil específico cabe nas grandes cidades, por exemplo, enquanto todos os outros são expulsos para as periferias e frequentemente são esquecidos e deixam de existir com o passar do tempo7 7 . O Livro A Caverna, de José Saramago, retrata esse processo de forma simbólica. Uma família de oleiros assiste à progressiva desvalorização de suas peças de cerâmica, quando um shopping center é construído em sua região. Mas em sua dinâmica de “atropelamento” cego do contexto em que se insere, essa construção se depara com um sítio arqueológico que representa o chamado a deixar de olhar para as próprias sombras para ver o mundo “lá fora”. SARAMAGO (2000). . Nesse sentido, torna-se clara uma “homogeneização” do cotidiano, hábitos pessoais se tornam estranhamente parecidos, assim como metas pessoais de indivíduos humanos. As ovelhas de um pastor não encontrariam passagem no centro de São Paulo, e nem um pasto. Para a cerimônia do Quarup não se encontrariam troncos, penas e cores para os totens. Ainda menos se encontrariam almas de grandes líderes a serem homenageados. Nesse sentido, o conceito de “cidades vivas” apresentado por Hinchliffe e Whatmore (2006)HINCHLIFFE, Steve; WHATMORE, Sarah. Living Cities: Towards a Politics of Conviviality. Science as Culture, 15(2), 2006, pp. 123-138. e reafirmado por Houston (Houston et al., 2018HOUSTON, Donna; HELIER, Jean; MACCALLUM, Diana; STEELE, Wendy; BYRINE, Jason. Make Kin, not Cities! Multispecies Entanglements and ‘Becoming-World’ in Planning Theory. Planning Theory, 17(2), 2018, pp. 190-212.) como espaços de interação entre humanos e não humanos apresenta a multiplicidade como fundamento básico da vivacidade de tais espaços. O sumiço de tipos humanos (para não mencionar de animais e plantas) e de sua pluralidade está intrinsecamente relacionado à visão utilitária do mundo, que é o par perfeito do ganho individual, autocentrado, e assim a defesa por um antiutilitarismo que se multiplica na obra Alain Caillé (2000CAILLÉ, Alain. Gift and Association. In VANDEVELDE, Antoon (ed.). Gifts and Interests. Leuven: Peeters, 2000, pp. 47-55., 2008CAILLÉ, Alain. Anthropologie der Gabe, Frankfurt/Nova York: Campus, 2008.) tem efeito direto tanto sobre os espaços quanto sobre a questão da liberdade humana, além de fornecer elementos fundamentais ao estudo de fluxos culturais. Uma linha de metrô presta serviço mais útil e mais lucrativo que o pasto das ovelhas. Lembre-se aqui a descoberta de achados arqueológicos na construção do metrô de Atenas, na década de 1990. Várias das peças encontradas estão expostas para visitação dentro de diversas estações, dentre elas, a Estação Syntagma, na região central da cidade, em frente ao prédio histórico do Parlamento Grego8 8 . Detalhes sobre a escavação de diferentes estações, suas exposições e fotos estão disponíveis em: https://www.shaunbusuttil.com/stories/greece/ancient-athens-metro-archaeology. Acesso em: 1 mai 2020. . Note-se, no entanto, que a descoberta de sítios arqueológicos inteiros não é motivo suficiente para interromper as construções. A questão essencial acerca da redução de espaços humanos é que eles reduzem não só a existência do pastor ou do índio, mas da sociedade como um todo, uma vez que limita a extensão da rede inter-relacional onde existimos e, consequentemente, o horizonte existencial humano. A perda de um sítio arqueológico é uma perda de símbolos e, por isso é ontológica e coletiva, ainda que diversas parcelas da sociedade não o reconheçam. No entanto, com o passar do tempo, a des-existência de modos de vida distintos reduz as perspectivas do outro, do sobrevivente, assim como as da vítima, pois impede a visão da alteridade como possibilidade existencial para si mesmo. Ela manipula aspectos íntimos da formação humana, como a compreensão de sua estadia no mundo, como suas referências e crenças pessoais, já que as mesmas se dispersam a ponto de impedir a “vivacidade” de espaços, como uma cidade, e o remetimento entre perda simbólica individual e alteração de espaços de convivência é evidente. Frequentemente, a perda de símbolos e do fluxo de sua troca (que deveria ser constante) é diagnosticada através de sintomas do espaço relacional, não em indivíduos isolados, o que provavelmente se deve ao fato de que símbolos existem e se reificam na inter-relação.

FIGURA 1
Bertamaria Reetz e Rainer Bonk, O Rebanho Azul da Paz, 2009. Fotografia. Fonte: https://www.thebluesheepfarm.com/english/the-bluesheepfarm/. Acesso em: 23 mai 2020.

Quando pensada sob o ponto de vista de indivíduos humanos e de seus corpos, a dispersão toma a forma de um nomadismo urbano-cosmopolita que caracteriza fortemente a contemporaneidade. Inúmeros cargos em mercados de trabalho em áreas do conhecimento distintas têm, por exemplo, a função de viajar. Não apenas comerciantes (a exemplo dos antigos mercadores), não só empresários, mas cientistas, pesquisadores, artistas e todo o tipo de trabalhadores especializados. Ainda que seu movimento (constante) não trate de se configurar como um “habitar” no sentido usual do termo, as estadias temporárias modificam ambientes distantes ao redor de todo o mundo, transformando realidades díspares em cenários confortáveis, com cafés e quartos de hotel perfeitamente padronizados, independente do local onde se encontram. A real distinção entre o nomadismo atual e o do passado vai além de sua extensão em torno do planeta, ela se configura como um nomadismo coletivo. Enquanto cada indivíduo guarda locais de origem e destino, a massa humana diária em aeroportos, hotéis etc. provê evidências sobre o quanto uma coletividade nômade é essencial para a manutenção do mercado de trabalho como o conhecemos hoje. Em outra dimensão, trabalhadores não especializados também participam da massa nômade atual, através do fornecimento de mão de obra a grupos sociais que podem pagar pela mesma. No campo da arte, a manutenção do “exótico” continua a fundamentar a circulação de obras e pessoas. O nomadismo contemporâneo inclui não só a discussão do pós-humano, através da insistência em uma locomoção em massa, mas também os movimentos ecológicos, já que essa mesma locomoção ameaça a necessidade de diminuição da emissão de carbono, por exemplo. Se comparado ao nomadismo de grupos humanos do passado, ou mesmo de tribos indígenas atuais, o movimento humano contemporâneo tem as diferenças básicas de ser um fenômeno em massa e de visar ao ganho autocentrado. E, por isso, não pode ser exatamente comparado ao movimento de comerciantes, como, por exemplo, aqueles que percorriam a Rota da Seda, ou cruzavam desertos como nas antigas Anatólia e Pérsia e se albergavam junto a outros comerciantes em estruturas de um Caravanserai9 9 . O livro Tales of the Caravanserai (Fábulas da Caravanserai), de James Fraser (1833), imortalizou histórias sobre a pluralidade das trocas humanas em estruturas de Caravansarai no contexto da literatura inglesa do século XIX. , um entreposto à beira da estrada que evoca a estrutura de um “hotel” do passado, onde as caravanas se recuperavam de um dia de viagem e também trocavam informações e alimentavam estruturas locais. Sua diferença essencial em relação à mobilidade humana atual é o anonimato, já que hoje um número praticamente incontável de pessoas se cruza em aeroportos, hotéis e restaurantes através do planeta, sem que um indivíduo chegue a conhecer o outro — o que soaria como uma ideia absurda e contraproducente, pois a massa é nômade, não cada um de seus indivíduos (conhecer o outro? Trocar informações?). Na busca em massa por ganho e no anonimato, somos nômades de novo, baseados em uma mentalidade tanto utilitarista quanto liberalista. Jean-Claude Michéa atesta a relação entre o liberalismo moderno e a formação de uma sociedade baseada no interesse próprio na Europa do século XVII (2014, p. 123), que continua a povoar a mentalidade atual, insistindo na dicotomia que separa modos de vida do passado (a exemplo de sociedades indígenas) e o contemporâneo, urbano e cosmopolita, de maneira abissal e amplamente baseada em interesses próprios. A insistência nesse entendimento dicotômico fabrica a ilusão de uma distância intransponível entre modos de vida distintos, além de fomentar uma dita “certeza” de que herdar formas distintas, e talvez milenares como as dos índios, ou mercadores, não se aplica ao mundo contemporâneo, já que eles não se configuram como métodos. No entanto, a “volta ao passado” já está pronta. Somos nômades de novo, e a dispersão social é também invariavelmente uma dispersão de corpos, que, assim como apresenta Samsonow (2005)SAMSONOW, Elisabeth von. Was ist anorganischer Sex wirklich? Theorie und kurze Geschichte der hypnogenen Subjekte und Objekte. 15th. International Flusser Lecture. Köln: Walther König Verlag, 2005. a partir da consideração do corpo como mídia de interação tanto do indivíduo quanto de construção da sociedade, estende-se do social aos aspectos últimos do universal.

4. ALTRUÍSMO

Mas o que seria então o contrário da dispersão? Provavelmente não a tentativa de evitar o avanço da técnica em si, mas a reflexão detida sobre o uso que se faz dela, o que tem sido discutido há algumas décadas, especialmente a partir de “A Questão da Técnica”, de Heidegger (2007)HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica / trad. Marco Aurélio Werle. Scientiae Studia, 5(3), 2007, pp. 375-398., no qual a essência da mesma é apresentada como algo necessariamente distinto do objeto técnico em si. A partir do reconhecimento de seu caráter instrumental — da técnica como um meio para um fim —, torna-se evidente que ela atua em uma esfera distinta de seus próprios meios, já que a técnica visa a desvelar (entbergen) algo que permaneceria encoberto sem sua ação. Processos de “desvelar” e “encobrir” ocorrem frequentemente no campo da arte. Nesse sentido, também o pensamento de Illich é construído a partir da problemática apresentada por Heidegger, ainda que não se refira diretamente a ele, uma vez que enfoca o uso que se faz da técnica ao sugerir mecanismos que limitem seu avanço, o que também se observa atualmente em propostas de de-growth econômico, que, igualmente, questionam o uso da técnica. No entanto, em ambos os casos, um questionamento da técnica pode servir como ferramenta de transformação ou limitação do objeto técnico, o que não se lê em Heidegger.

FIGURA 2
Angela Corrias, Caravanserai Izadkhast, 2019. Fotografia. Localizada na antiga Rota da Seda, atual Irã.

Em um primeiro momento, o contrário da dispersão é seu diagnóstico (assim como se diagnostica um uso específico da técnica), que necessariamente inclui agentes envolvidos em processos de dispersão e, especialmente, as formas de inter-relação que se estabelecem entre eles. Essas inter-relações serão predominantemente conflituosas e incluirão o aspecto limítrofe da existência “em extremos” (sejam eles sociais, geográficos etc.), pois a dispersão é um processo que envolve “um ponto de fuga”, a partir do qual não uma convergência, mas uma divergência se institui. Em sistemas políticos frágeis, especialmente como os de países do terceiro mundo, a fuga da democracia, por exemplo, configura-se como mecanismo confortável de manutenção de um sistema oligárquico (imiscuído ao dito sistema democrático, já que uma democracia com divisão de classes não pode ser realmente democrática, e que, em diversos países com sistemas políticos frágeis, uma democracia de fachada tem sido usada para manter sistemas oligárquicos). Mas, ainda que haja aqui a referência a sistemas políticos e às suas consequências sociais, econômicas e ecológicas, o reconhecimento da dispersão como fuga significaria sim, em certa medida, uma postura individual — mantendo em mente o fato de que a vida privada frequentemente estabelece modelos que moldam a esfera pública. Adloff (2018b, pp. 9-10) destaca a centralidade dos processos de associação livre da sociedade civil, da reciprocidade e da possibilidade de “dar e receber” como oposição à existência exclusivamente material e monetarizada de uma sociedade. É necessária uma postura de sair de dentro de si mesmo (step back), olhar-se de fora e reconhecer a manutenção de um sistema imputado aos homens através da reprodução de modelos e concepções não devidamente refletidos, como o hábito de considerar a vida como um eterno lidar com consequências não planejadas, um constante remediar do presente, o que só é possível pela redução de horizontes existenciais, como se evidencia em classes sociais cujo acesso à educação, cultura e aos bens da sociedade como um todo é restrito. Nesse sentido, Paulo Freire (2011)FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011., em sua Pedagogia do Oprimido, apresenta a tendência dos pobres em reproduzir padrões de vida dos ricos, já que eles são seu único horizonte existencial. Metas que não se relacionem a nenhuma forma de crescimento econômico (pessoal ou coletivo) também representam o contrário da dispersão. Metas que não sejam baseadas em hegemonias culturais (que, por sua vez, também se baseiam na superestima do valor monetário e na busca por crescimento econômico), que incluam definitivamente a reciprocidade nas relações com outros homens e com outros seres, no sentido frequentemente difundido pela literatura pós-humanista. Mas, se as inter-relações entre seres são tomadas como fundamento para novas metas, estas precisam inevitavelmente incluir o altruísmo, já que este se configura como um mecanismo de convivialidade em situações de extremos,10 10 . O conceito de “convivialidade” surge no presente trabalho a partir das investigações conjuntas de diversos pesquisadores que compõe o Centro Mecila, em São Paulo. Trato aqui de apresentar o altruísmo como modo de convivência frente à dispersão, enquanto o escopo investigativo do Centro apresenta a convivialidade em inúmeros aspectos que incluem contextos políticos, sociológicos, legais, ambientais e culturais. Cf. MECILA (2017). como aqueles definidos pela dispersão, e também como a alternativa ao autocentramento, à que medida que considera a alteridade de forma essencial. A relação entre convivialidade e altruísmo é apresentada pela obra de Illich (1973)ILLICH, Ivan. Tools for Conviviality, New York: Harper & Row, 1973., que, presentificada no contexto de cadeias de dispersão com naturezas diversas, não se refere apenas ao binômio relacional entre “eu” e “outro”, mas se constitui como um fluxo inter-relacional, que tratamos de ressaltar aqui — pois é o fluxo que permite ao altruísmo ser pensado como um mecanismo de convivialidade, não apenas como uma postura individual e deliberada, mas antes como um método inter-relacional básico, que veremos, a seguir, exemplificado pela fruição da arte. Através do altruísmo, o movimento pós-humano atual, na investigação de “fluxos relacionais”, vê-se relacionado à Teologia da Libertação das décadas de 1960 e 1970 na América Latina (GUTIÉRREZ, 1971GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Liberación. Lima: Perspectivas, 1971.), especialmente através da obra de Illich (1973)ILLICH, Ivan. Tools for Conviviality, New York: Harper & Row, 1973.. Como apresenta Sérgio Costa, a Teologia da Libertação atuou como base ao desenvolvimento do pensamento de Ivan Illich, especialmente na fase em que o teólogo e filósofo vienense dirigiu o Centro Intercultural de Documentação (CIDOC) em Cuernavaca, no México, e estabeleceu diálogo com diversos autores latino-americanos (COSTA, 2019, p. 4). Para Illich, o avanço inexorável da técnica deveria ser refreado por ações deliberadamente altruístas e pela renúncia. Ilich denuncia qualquer sociedade que baseie seu desenvolvimento em aparatos técnicos como extremamente desigual, por não garantir a seus cidadãos o acesso aos mesmos. Nesse sentido, ele afirma que o controle sobre tecnologias sociais, incluindo infraestruturas e instituições, deve permanecer com a comunidade (ILICH, op. cit.). Em certo sentido, essa concepção é justamente recapitulada por movimentos pós-humanos atuais, apresentados anteriormente, tais como fair trade, ethics of care, ou the new ‘commons’ thinking. Muito interessantemente, todos eles regulam usos da técnica através de novos empregos da tecnologia, mas não necessariamente da abdicação à mesma — o que elucida, ao mesmo tempo, o pensamento de Heidegger e Illich, configurando-se como um “caminho do meio”, onde não só se questiona o uso, nem só se restringem os aparatos, mas colocam-se os mesmos para trabalhar contra uma dispersão que eles poderiam também amplificar.

Como mecanismo de convivialidade, o altruísmo atua através da tecnologia e não a restringe em si, pois ele é uma forma de convivência que serve à rede inter-relacional como um todo (e não a algumas parcelas da mesma), estabelecendo assim uma relação de responsabilidade pelo que se apresenta frente a cada um dos indivíduos nela envolvidos — resguardando suas capacidades individuais de relação e a própria rede, que hoje inclui a tecnologia. Ao refletir a técnica, Vilém Flusser ressalta sua capacidade de “aproximar o distante” através do conceito de telemática. Segundo ele: “Este é o primeiro presságio do que a telemática significa: trazer o distante para bem perto” (FLUSSER, 2008b, p. 248)11 11 . No original: “Das ist die erste Vorahnung dessen, was Telematik bedeutet: Ferne ganz nah bringen”. , e essa aproximação, ainda de acordo como o autor, significa imediatamente a tomada de responsabilidade em relação ao que se experiencia, ao que vem até nós, independente de sua distância original, geográfica, uma vez que a mesma é transposta pela tecnologia e, nesse sentido: “A telemática tem a empatia como fundamento. Ela aniquila o humanismo em favor do altruísmo (FLUSSER, 2008b, p. 251)12 12 . No original: “Die Telematik hat Empathie als Basis. Sie vernichtet den Humanismus zugunsten des Altruismus”. . Ao mencionar a dimensão desse altruísmo “global” tornado possível pela tecnologia e pela aproximação do distante, em seus últimos seminários na Universidade de Bochum, na Alemanha, no início da década de noventa, Flusser não menciona Illich, nem a Teologia da Libertação, mas retoma a referência cristã. Em suas palavras: “Eu acredito que a telemática é a técnica do amor ao próximo” (Ibidem, p. 251)13 13 . No original: ““Ich glaube, die Telematik ist die Technik der Nächstenliebe” , o que transmite ao ouvinte (ou leitor) a dimensão da responsabilidade sobre a qual ele se refere ao refletir sobre a técnica, para enfim relacionar essa responsabilidade que advém da relação distante tornada próxima com o próprio conhecimento. “Existem relações que são tão fortes, e a responsabilidade mútua é tão grande, que elas constituem o centro do conhecimento”14 14 . No original: “Es gibt Bindungen, die so stark sind, und die gegenseitige Verantwortung ist so groß, dass sie das Zentrum des Wissens bilden”. (2008b, p. 251). Conhecer é relacionar.

Pensando processos de dispersão como “zonas de conflito” de difícil diagnóstico (justamente pelo aspecto disperso de seus elementos), uma das formas de inter-relação que vai de encontro à sua tendência em reproduzir parâmetros de hegemonias econômicas e culturais é o altruísmo — que, por ser um mecanismo de convivialidade, é também uma forma de conhecimento. Sendo o conhecimento parte da rede inter-relacional que compomos, não é preciso esperar desenvolvimentos limítrofes da tecnologia para só então se perceber a relação estreita entre técnica e altruísmo — que, na obra de Illich, configura-se como um caminho para a renúncia. Qualquer tipo de técnica, assim como o fenômeno contemporâneo denominado tecnologia, estabelece formas de inter-relação entre seres. A técnica em si é uma expressão da inter-relação, e quando esta é pensada a partir da equanimidade dos envolvidos, em detrimento de hegemonias, de atitudes autorreferentes ou do crescimento econômico, ela necessariamente inclui a intenção altruísta. Não é preciso alcançarem-se altos níveis de dispersão e consequente desigualdade para que se reconheça a técnica como meio de consideração da alteridade. É necessário o diagnóstico de direcionamentos e inter-relações que incluam a meta altruísta (que, novamente, se fortalece em uma esfera individual para ser partilhada socialmente). Esse diagnóstico pode vir a existir em qualquer ponto da história da técnica — que talvez signifique a história da própria humanidade e, de forma alguma, estaria relacionada apenas às consequências últimas de seu uso.

O contrário da dispersão, como posso vê-lo hoje, significa ter uma visão que considere a interação e a interdependência entre criaturas. E, ao mencionar uma “visão”, tem-se aqui a intenção deliberada de se apontar o altruísmo como mecanismo de convivialidade capaz de atuar sobre essa rede inter-relacional, além de se defender também que a esfera de atuação da reflexão crítica seja sim, em um primeiro momento, o indivíduo, para que, a partir de coletivos e redes de interação, possa-se falar em uma esfera pública, esta agora democrática. Essa “nova visão” precisa considerar o indivíduo não como cavaleiro solitário a galgar os confins da terra, mas como o contrário: o indivíduo cada vez mais condizente, presente, atuante e pertinente na/à rede que o circunda. O que não significa uma apologia ao “localismo”, à atuação exclusiva em nossas vizinhanças, pois a “rede que nos circunda” e da qual somos parte amplia-se inexoravelmente, e o faz sim tecnologicamente, tanto em sentido espacial quanto temporal. Ou seja: estamos mais próximos do “distante” e respondemos mais rápido a ele. Inclusive em sentido global. É relevante que essa visão que compreende a interação entre criaturas de forma equânime não ganhe um sentido exclusivamente científico, como na necessidade de se rastrear, experimentar e catalogar cada mínimo detalhe das interações químicas, físicas ou planetárias de criaturas ou elementos – o que, em grande parte, tem sido um valioso ponto de partida de estudos pós-humanos e, como matéria de estudo da interação, urge que seja feito, e o deve ser, só não exclusivamente. Não proponho tal ênfase como prioridade da investigação da interação entre criaturas por duas razões básicas: primeiro porque a vastidão (o escopo) da interdependência entre seres é maior do que a racionalidade humana, segundo porque nossa ciência é uma ferramenta dessa mesma racionalidade. Neste ponto dialogo com o Antropólogo Stelio Marras (2018)MARRAS, Stelio. Por uma Antropologia do Entre: reflexões sobre um novo e urgente descentramento do humano. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. n. 69, abr. 2018, pp. 250-266. que, por sua vez, dialoga com Isabelle Stengers e Ilya Prigogine (1997) e afirma que “viver mostra-se urgentemente como entreviver” (MARRAS, op. cit., p. 256), o que atesta a necessidade de formação de alianças com outros seres, especialmente não humanos, cujos direitos representariam para nós um verdadeiro “alargamento moral” (Ibidem, p. 264). A proposta de uma nova visão vai em outra direção: a de buscar atitudes que considerem a alteridade em cada interação que se nos apresenta (fazer-se responsável pela inter-relacionalidade), independente dos indivíduos sobre os quais elas atuarão, inclusive não humanos. Essa atitude tira o foco do ser humano autocentrado, daquele que deve sempre “tirar proveito” das interações e da ideia de que alterar a visão sobre o lugar e a situação do homem no mundo seria um assunto excessivamente abstrato e grandioso, que possuiria pouca inter-relação com a vida ordinária de indivíduos ordinários, e de que essa seria uma discussão concernente apenas aos governantes e intelectuais. Qualquer ser humano é capaz de deliberar sobre suas atitudes em detrimento da escolha por efeitos de suas ações exclusivamente em benefício próprio, o que algumas cadeias inter-relacionais apresentam como modelo básico de fruição, como veremos no caso da arte.

5. ARTE E COLETIVIDADE

Qualquer movimento autenticamente globalizador precisa incluir mecanismos que deem voz à coletividade. Como construção conjunta, a arte se constitui como um modelo de participação coletiva. Mesmo em períodos históricos em que a noção de obra e, consequentemente, de autoria, cresceram em relevância, como nos períodos clássicos e românticos da arte europeia, em detrimento de corporações de artistas características da Idade Média, por exemplo, a fruição das obras continuou a ser extensamente relacionada à forma e aos mecanismos específicos de sua recepção. Ainda que a figura do artista exista em diversos grupos humanos, a arte se mantém como um fenômeno coletivo: ela é feita com o público e inexiste sem o mesmo. Note-se aqui a diferença entre afirmar uma arte feita “com” ou “para” o público. Enquanto o primeiro caso insere o público no processo de criação, o segundo caso inclui a ideia de um produto (a arte como produto feito para um alvo) e de sua possível comercialização. Note-se também que uma arte feita com o público não significa uma sociedade utópica de artistas, mas assume o processo criativo como diálogo que não se passa apenas “dentro” da mente de alguma figura criadora (cujo estereótipo romântico é frequentemente representado por certo distanciamento social), mas que opera em cadeias de síntese de elementos que são “externos” àquela mente, que são experienciados por todo um conjunto de indivíduos. O fato de que artistas se detêm em tentativas de sintetizar os elementos que compõe seu entorno, enquanto outros indivíduos o fazem de forma secundária, aponta para a pluralidade de motivações, tendências e atividades que constituem uma coletividade. A figura do artista exemplifica a variedade de expressões intrínseca à sociedade e, nesse sentido, não se difere de outros fazeres. E, novamente, assim como todas as formas de atuação que compõem uma sociedade, a arte é feita para o outro. O elemento altruísta é condição fundamental para sua existência. Também por esse motivo a arte se vê em uma situação limite frente à dispersão tecnológica e econômica da contemporaneidade: ou sua expressão se adapta ao “produto” ou ela perde sentido para o grupo humano que sofre processos de dispersão. Ainda sobre o altruísmo, é necessário recapitular a teoria de Mauss (1990)MAUSS, Marcel. The Gift: The Form and Reason for Exchange in Archaic Societies. London: W.W. Norton, 1990. sobre o “presentear” como gesto não utilitário, que é um elemento primordial e fundante das interações entre homens. No caso da arte, esse presentear significa presentear símbolos. E esses símbolos vêm da experiência cotidiana de inúmeros elementos que compõe nosso entorno, que é essencialmente relacional. Assim, a arte tem a capacidade de nos situar simbolicamente em nossas redes inter-relacionais. Mais do que a imagem de um ambiente, as experiências humanas têm lugar em uma rede extremamente densa de inter-relações, por isso ela é melhor descrita como uma interface (sem lado de dentro e de fora) do que como uma caixa preta (como aquela que relacionamos à tecnologia). A ação de experienciar algumas dessas interações, ou mesmo apenas alguns de seus aspectos, e sintetizar seus elementos em forma de expressão que pode ser partilhada com outros indivíduos é o que se dá através da arte. E a razão fundamental para o ciclo experiência–síntese–expressão–partilha é a possibilidade de compartilhar sentidos da rede de inter-relações da qual todos somos parte, elucidá-la, iluminar suas cores, processos, características etc., que dizem respeito diretamente à vida de cada um dos indivíduos presentes (componentes) na inter-relação. Assim, pode-se concluir que a arte descrita aqui atua como um antídoto contra qualquer forma de niilismo15 15 . Sobre a não queda no niilismo frente os desafios de uma existência ordinária, recordamos a obra de James Joyce, especialmente através da figura de Leopold Bloom, o herói contemporâneo em sua dignidade frente à mera existência. JOYCE (2012) , já que ela ressalta o sentido das inter-relações e, ao fazê-lo, cria-os nesta mesma partilha. Por isso, a arte é uma forma de convivialidade, cuja condição de existência permanece sendo a razão não utilitária. Elementos que impedem ou dificultam seu fluxo também permanecem os mesmos que fomentam a dispersão humana: um crescimento econômico soberano e sua aceleração tecnológica, que, no caso da arte, relacionam-se diretamente ao estabelecimento de produtos comerciais. Eles podem ser representados pelo esforço em se inserirem caixas-pretas entre os fluxos da interface inter-relacional humana. As caixas geram espaços, brechas que interrompem a fluidez relacional, de forma que se torna necessário sempre manter em mente seu modus operandi, de forma a não tropeçar.

A imagem da interface representa um entendimento da rede interrelacional humana e não humana na qual a separação entre indivíduos e ambiente não se sustenta, pois, independente da natureza de qualquer inter-relação, ela continua a se constituir como um fluxo. E todos os fluxos são interrelacionais. Esses fluxos humanos e não humanos são essenciais à arte. Eles não precisam estar relacionados ao universalismo de uma cultura hegemônica, como denunciam estudos do cosmopolitismo e estudos pós-coloniais, já que ambos lidam diretamente com classes dominantes e seus sistemas hegemônicos. No contexto dos fluxos culturais não existe a ideia de que todo fluxo teria como fonte uma cultura hegemônica, nem de que “trânsitos culturais” são mais “transferências” do que “trânsitos”, pois os fluxos interrelacionais são cotidianos e antecedem em muito a relação de dominância entre países constituídos como tal. Sua existência tem sido um mecanismo de criação e transmissão da arte não apenas há séculos, mas há milênios da história humana. Negá-lo em uma crítica ao universalismo hegemônico é também negar um método básico de estabelecimento e propagação da arte. Em outras palavras: questionar-se o universalismo não pode significar uma negação aos fluxos interrelacionais. Neste ponto é importante notar que assim como as “fronteiras” entre homem e ambiente, ou homem e animal, caem por terra em interfaces relacionais, também as designações de fluxos culturais, artísticos, econômicos etc., perdem sentido, pois eles só existem em inter-relação. Desse modo, condições e características econômicas das inter-relações são matéria-prima da arte, assim como cores ou palavras. O único aspecto realmente essencial, nesse caso, no sentido de uma condição para a existência de fluxos interrelacionais, é a coletividade (que não é só humana e que não tem uma meta exclusiva, como a produção de arte ou a geração de lucro, por exemplo), que, por sua vez, significa necessariamente o interesse pelo outro (ADLOFF, 2018b, p. 8), já que a alteridade é a condição básica para qualquer tipo de expressão.

Considerando-se que tudo o que se cria, cria-se para o outro — no sentido de uma expressão cuja meta é a partilha, deve-se ressaltar o fechamento, ou o desinteresse, como método de aniquilação cultural, social etc., como o contrário da coletividade, que garante a fruição através do diálogo (APPADURAI, 2018APPADURAI, Arjun. The Risks of Dialogue. São Paulo: Mecila Working Paper Series, no. 5, 2018.), que desvela e ao mesmo tempo encobre aspectos do material dialógico, o que, naturalmente, atua como recriação e florescimento do grupo humano em questão, enquanto o não estabelecimento de diálogo pode servir como sintoma do oposto: do desinteresse e de processos que conduzem à aniquilação cultural. Neste ponto, a discussão acerca de um “lugar de fala” precisa também reconhecer sua existência em uma interface relacional, estabelecendo diálogos a partir da “linguagem” de grupos específicos, mas não desconsiderando o papel essencial de uma “língua estrangeira” para seu próprio discurso, ou seja: o reconhecimento de um grupo específico se dá por outros grupos, o que significa uma horizontalização dos “lugares” e um convite equânime ao diálogo.

A arte tanto se efetiva na dimensão da convivialidade que frequentemente ela nega estruturas hegemônicas, tanto culturais quanto econômicas, e floresce em situações limítrofes de opressão e descaso, o que confirma a tese de Sérgio Costa (2019)COSTA, Sérgio. The Neglected Nexus between Conviviality and Inequality. São Paulo: Mecila Working Paper Series no. 17, 2019. acerca de uma conexão entre convivialidade e desigualdade. Por essa razão, a expressão artística atua na revelação de processos mantenedores de estruturas ilógicas de poder, como descreve Mbembe (2001)MBEMBE, Achille. On the Postcolony. Berkeley et. al: Univ. California Press, 2001. acerca da sociedade camaronense, na participação conjunta de classes distintas em um mesmo ritual, que acentua seus papeis sociais desiguais. No contexto brasileiro, expressões cuja origem remontam à escravidão, como a capoeira, ou aquelas que representam especialmente a parcela negra da sociedade, como o samba, passam por processos de apropriação pela classe dominante, da forma que lhes apraz, sem, no entanto, alterar conceitos fundamentais de valorização da arte europeia que a relacionam à qualidade artística, enquanto expressões brasileiras continuam a ser compreendidas como manifestações populares (o que significa que elas não são consideradas formas de arte). Essa apropriação frequentemente significa a substituição de mecanismos de convivialidade gratuitos, como os encontros e a transferência de conhecimento musical que tem lugar em uma roda de choro, por exemplo, por produtos comerciais. Neste ponto, também a relação entre poder público e a manutenção de orquestras sinfônicas ressalta uma forma de valorização da arte europeia, que serve à propaganda relacionada a uma suposta qualidade. Há décadas a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) serve como exemplo da “qualidade” do Governo Estadual de São Paulo, além de prover um modelo para a transformação de outras orquestras, como a Sinfônica de Minas Gerais (OSMG), que deu origem à Orquestra Filarmônica, em 2008, e que serviu de grande material de propaganda para o então governador de Minas e futuro candidato à presidência da república, Aécio Neves. A sustenção de orquestras pelo poder público tem sido condição básica de sua existência e manutenção no cenário brasileiro, sem a qual o fechamento de muitas delas pareceria inevitável. Ao mesmo tempo, a natureza da propaganda que se instaura em torno das orquestras, como imagens de qualidade e excelência, que devem ser entendidas como qualidades dos governos que as apoiam, tem efeito depreciativo sobre a produção artística local. Note-se aqui que governos se associam à imagem da cultura europeia, mas não ao samba, ou a um grupo de Folia de Reis, por exemplo, o que evidencia o local “de fronteira”, a situação limítrofe da arte no Brasil. Precisamente nessa esfera de tensão entre convivialidade e desigualdade, de um lado a classe dominante se associa à “excelência de uma arte europeia”, ainda que frequentemente desconheça qualquer aspecto técnico da mesma, e que deveras não se interesse pelos mesmos, enquanto de outro lado a existência praticamente exclusiva em ambientes urbanos tem servido como motivação para o estabelecimento de práticas culturais que recuperam formas de convivialidade igualitária, o que determina negociações típicas ao cosmopolitismo de Gilroy (2004GILROY, Paul. After Empire: Melancholia or Convivial Cultures, London, New York: Routledge, 2004., 2013GILROY, Paul. Postcolonialism and Cosmopolitanism: Towards a Worldly Understanding of Fascism and Europe’s Colonial Crimes. In BRAIDOTTI, Rosi et al. (eds.). After Cosmopolitanism. Londres, Nova York: Routledge, 2013, pp. 111-131.). Aspectos culturais usualmente empregados como fonte de discriminação perdem sua força, como se observa na intensificação dos carnavais de rua, onde expressão musical e instrumentos de origem africano-brasileira passam a ser reconhecidos como próprios à população urbana. E, assim, o círculo do nosso argumento se fecha novamente: se a princípio discutimos a dispersão social e suas consequências, para então chegarmos à arte, agora partimos da arte e chegamos de volta às manifestações políticas e econômicas da sociedade.

6. CONCLUSÃO

A dispersão foi conceituada no decorrer deste trabalho como todo movimento que desconsidere a rede inter-relacional da qual somos parte em prol de atitudes autocentradas, tanto em uma esfera individual quanto coletiva — tanto através do utilitarismo quanto do crescimento econômico que inclua a internacionalização do prejuízo, ou de qualquer tipo de privilégio político ou social. Movimentos de dispersão são amplificados pelo incremento tecnológico da contemporaneidade, mas não são causados por ele, tendo sua presença diagnosticada também em contextos e momentos históricos em que o papel da tecnologia é pequeno ou raro. No entanto, o uso que se faz da tecnologia está diretamente relacionado à dispersão.

Na arte, observa-se também um movimento expansivo e de direção centrífuga, que se espalha através de redes interrelacionais, tanto espacialmente quanto temporalmente. No entanto, ele não necessariamente se relaciona à atitude autocentrada e não se amplia a partir da desconsideração de inúmeros outros aspectos interrelacionais, já que a arte inclui esse movimento em seu ciclo estético através da fruição e da difusão de obras, processos e ideias que, ao serem transmitidos, expandem-se em sentido interrelacional e se constituem coletivamente. Mas o contrário também pode ser observado. Em alguns casos, a arte pode ser relacionada à propaganda, pode se configurar como produto comercial, ou pode servir como forma de difusão ideológica que privilegie a atitude autorreferente, cuja consequência direta seria a dispersão, o que se observa na atualidade sobretudo através da manutenção de um paradigma universalista, que dificulta a compreensão da arte como objeto epistêmico, a coloca como expressão intangível e ainda se associa frequentemente ao essencialismo e a hegemonias culturais, sociais e econômicas – o que precisa ser tornado amplamente visível, para que seja devidamente questionado.

Em um planeta onde grande parte da troca entre indivíduos é determinada pela monetarização e pelo lucro, é bastante óbvia a tendência de geração de “produtos comerciais”, que permeiam aspectos diversos da vida cotidiana (não necessariamente relacionados à monetarização), como se vê no campo artístico e na relação escorregadia entre obra de arte e produto comercial. No entanto, como o ciclo estético conhece (e se baseia em) movimentos centrífugos que não dispersam as relações, mas as presentificam ao fazer com que os homens as revisitem e, assim, tornem-se eles mesmos ativos na inter-relação, a arte não perece frente à sua comercialização, mas adapta a dispersão a seu próprio ciclo coletivo — o que, no entanto, pode significar imensa transformação estética, que usualmente é reconhecida através do esvaziamento e da perda de expressões. Esse processo tem duas consequências imediatas: a primeira é de que a arte serve como ferramenta de dispersão ainda mais poderosa que a técnica em si, já que ela contribui para que ideologias permaneçam veladas em sua própria difusão — o que acontece constantemente. A segunda é de que a investigação do próprio ciclo estético pode revelar a corrupção de processos de fruição e esclarecer relações hegemônicas e autorreferentes, usualmente veladas por paradigmas universalistas e essencialistas. Nesse sentido, trabalhos futuros precisam investigar a atuação de tais paradigmas, assim como a relação da arte, como forma simbólica, com a dispersão. O conceito deve também ser investigado em estudos de caso, e a junção metodológica entre formas de investigação próprias às ciências humanas e às artes, como a combinação entre conceitos e imagens, pode também continuar a ter seu escopo delimitado — caminhando em direção a uma metodologia própria à antropologia e sociologia da arte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

  • 1
    . No original: “It is the trope of our times to locate the question of culture in the realm of the beyond”.
  • 2
    . No original: “Never before has humanity had such a wealth of material resources and technical and scientific expertise at its disposal. Overall, it has become rich and powerful beyond the imagination of anyone in former centuries”. (CONVIVIALIST MANIFESTO, 2014CONVIVIALIST MANIFESTO. Convivialist Manifesto. A declaration of interdependence (Global Dialogues 3). Duisburg: Käte Hamburger Kolleg. Centre for Global Cooperation Research, 2014., p. 21). Todas as traduções são dos autores do presente trabalho, exceto quando indicado diferentemente.
  • 3
    . A fila para subir o Monte Everest se configura como uma poderosa metáfora geográfica da existência nos extremos do planeta. Seu fundamento material é, inevitavelmente, o desenvolvimento tecnológico. As edições do Jornal The New York Times dos dias 18 de setembro e 14 de agosto de 2019 reportam o engarrafamento humano, que causou a morte de alguns alpinistas, e incluem a fotografia do escalador nepalês Nirmal Purja, que mostra a fila de pessoas no topo do monte. Disponível em: https://www.nytimes.com/topic/destination/mount-everest. Acesso em: 15 abr 2020.
  • 4
    . A poesia brasileira provê exemplo de encontros inesperados, que representam dificuldades. Ainda assim, em detrimento do ganho individual e do auto-centramento, para-se para considerar a dificuldade e acolhe-se a mesma através da presentificação da memória, como representa Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “No Meio do Caminho”: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.” Ver: Cf. ANDRADE (2013, p. 36).
  • 5
    . Esse antigo tema humano é representado na arte de diversos séculos. Um exemplo elucidativo da zona de conflito entre necessidades e fabricações é a fábula do pescador e de sua esposa, recontada pelos Irmãos Grimm, em que a esposa é constantemente tentada pela aquisição de novas posses, mesmo frente à simplicidade da vida de seu marido. Cf. GRIMM; GRIMM (1997)GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Der Fischer und seine Frau. Kaltenkirchen: Elatus Verlag, 1997..
  • 6
    . De acordo com o último relatório conjunto da ONU, UNICEF, WHO, United Bank e United Nations sobre mortalidade infantil (2015), 16 mil crianças morrem todos os dias e aproximadamente a metade dessas mortes tem como causa a fome e desnutrição. Um sistema humano que permite tais números evidentemente não tem entre suas prioridades o direito básico à sobrevivência, e por isso não pode ser considerado eficiente sob o ponto de vista da inter-relação entre seres, pois serve a parte deles, enquanto outros são excluídos. Independentemente do lucro que esse sistema seja capaz de gerar, da parcela da população que venha a ter acesso a bens fundamentais, ou da comparação com sistemas anteriores que possam ter sido ainda piores para a humanidade como um todo, uma única criança morta de fome já é indício de que o paradigma que sustenta a estrutura onde ela viveria precisa ser revisto. O relatório está disponível em: https://www.unicef.org/publications/files/Child_Mortality_Report_2015_Web_8_Sept_15.pdf. Acesso em: 1 mai 2020.
  • 7
    . O Livro A Caverna, de José Saramago, retrata esse processo de forma simbólica. Uma família de oleiros assiste à progressiva desvalorização de suas peças de cerâmica, quando um shopping center é construído em sua região. Mas em sua dinâmica de “atropelamento” cego do contexto em que se insere, essa construção se depara com um sítio arqueológico que representa o chamado a deixar de olhar para as próprias sombras para ver o mundo “lá fora”. SARAMAGO (2000).
  • 8
    . Detalhes sobre a escavação de diferentes estações, suas exposições e fotos estão disponíveis em: https://www.shaunbusuttil.com/stories/greece/ancient-athens-metro-archaeology. Acesso em: 1 mai 2020.
  • 9
    . O livro Tales of the Caravanserai (Fábulas da Caravanserai), de James Fraser (1833), imortalizou histórias sobre a pluralidade das trocas humanas em estruturas de Caravansarai no contexto da literatura inglesa do século XIX.
  • 10
    . O conceito de “convivialidade” surge no presente trabalho a partir das investigações conjuntas de diversos pesquisadores que compõe o Centro Mecila, em São Paulo. Trato aqui de apresentar o altruísmo como modo de convivência frente à dispersão, enquanto o escopo investigativo do Centro apresenta a convivialidade em inúmeros aspectos que incluem contextos políticos, sociológicos, legais, ambientais e culturais. Cf. MECILA (2017).
  • 11
    . No original: “Das ist die erste Vorahnung dessen, was Telematik bedeutet: Ferne ganz nah bringen”.
  • 12
    . No original: “Die Telematik hat Empathie als Basis. Sie vernichtet den Humanismus zugunsten des Altruismus”.
  • 13
    . No original: ““Ich glaube, die Telematik ist die Technik der Nächstenliebe”
  • 14
    . No original: “Es gibt Bindungen, die so stark sind, und die gegenseitige Verantwortung ist so groß, dass sie das Zentrum des Wissens bilden”.
  • 15
    . Sobre a não queda no niilismo frente os desafios de uma existência ordinária, recordamos a obra de James Joyce, especialmente através da figura de Leopold Bloom, o herói contemporâneo em sua dignidade frente à mera existência. JOYCE (2012)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2020
  • Aceito
    11 Nov 2020
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