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Sobre o artigo ''A dinâmica relativística antes de Einstein''

CARTAS AO EDITOR

Sobre o artigo ''A dinâmica relativística antes de Einstein''

Cumprimento o editor pela iniciativa da edição especial dedicada a Einstein e felicito todos quantos contribuíram para a brilhante execução do projeto. Cumprimento em especial o professor Roberto de Andrade Martins pelo artigo em epígrafe [1]. Na verdade, vários estudiosos apontam que a Física necessária para a obtenção da relação massa-energia e da variação da massa com a velocidade estava disponível na década de 1890 [2]. Mas a riqueza de informações e a precisão dos argumentos fazem deste artigo uma referência indispensável sobre o assunto.

No entanto, antes que nos lancemos como iconoclastas (afinal, Einstein é um ícone da Física...), é necessário verificar se não há outras conjeturas possíveis, em alternativa às expostas pelo autor de que a história da Física poderia ter prescindido de seu nascimento e de que parece que, se Einstein tivesse morrido logo depois de publicar seus trabalhos de 1905, isso não teria feito nenhuma diferença significativa no desenvolvimento da relatividade especial. A análise do autor cinge-se a aspectos relacionados com a relatividade especial. Mas, ao referir-se, na primeira frase acima transcrita, à história da Física de um modo geral, pode induzir seu leitor a atribuir um caráter mais geral a suas afirmativas. Impõe-nos, então, buscar alternativas também de caráter mais geral.

Com relação à relatividade especial, o Professor Martins esclarece que as duas teorias surgidas no início do século XX, a de Lorentz & Poincaré e a de Einstein, possuíam o mesmo conteúdo empírico, sendo impossível distinguir, por qualquer experimento, uma da outra. Sendo, então, ambas igualmente competentes, talvez a Física pudesse mesmo haver seguido seu curso sem a presença de Einstein. O valor de uma teoria, contudo, está também na sua capacidade de municiar mãos e mentes dos pesquisadores em direção a novas descobertas e, para esse fim, a formulação de Einstein mostrou-se mais fecunda. O desenvolvimento posterior foi de fato realizado por outros, conforme detalha o autor, mas em grande parte graças à formulação didática (conforme as suas palavras) elaborada por Einstein, que, assim, condicionou fortemente tudo o que veio após ele. Mas o Professor Martins tem razão: se, depois de 1905, Einstein houvesse largado a Física para tornar-se um virtuoso violinista (prefiro esta hipótese à da sua morte prematura...), talvez não fizesse mais falta. Já havia cumprido a sua parte.

Olhando agora a questão de um ponto de vista mais geral, devemos nos perguntar se a história da Física prescindiria das contribuições de Einstein à física estatística, à física quântica e à relatividade geral. Para não alongar demasiadamente esta carta, limitarei a discussão ao tema ''física quântica''.

Em 1900, Max Planck inventou a mecânica quântica, ao propor uma solução para o problema da radiação de cavidade. Tratava-se de um problema que já se arrastava por demasiado tempo e que já começava a deixar os físicos um tanto embaraçados. Planck, como é sabido, supôs que a energia de oscilação dos radiadores elementares nas paredes da cavidade seria quantizada, uma suposição que contrariava frontalmente a mecânica newtoniana. Deste modo, sua solução resultou mais embaraçosa do que as dificuldades que viera superar. Como atribuir qualquer conteúdo físico a tal suposição? Segundo o próprio Planck, tratou-se de uma hipótese puramente formal, e não refleti muito sobre ela, mas apenas sobre o fato de que, sob quaisquer circunstâncias, custasse o que custasse, um resultado positivo (para o problema da radiação de cavidade) tinha de ser obtido [3].

Em 1905, Einstein apresentou outra solução para o problema. Sua solução propunha que a (energia da) luz consiste em um número finito de quanta de energia, localizados em pontos do espaço, que se movem sem se dividir e que podem ser absorvidos ou gerados somente como unidades integrais [4]. A solução de Einstein é completamente diferente e independente da de Planck, conforme pode-se ver simplesmente comparando-as:

1. Planck deduziu a lei que governa a radiância espectral da cavidade a partir de primeiros princípios, um dos quais era a sua inverossímil restrição ao movimento dos osciladores físicos. Já Einstein partiu dos dados experimentais, conforme descritos pela fórmula de Wien e, interpretando-os à luz da Termodinâmica e da Mecânica Estatística, mostrou que eram compatíveis com a hipótese de uma ''estrutura granular'' para a radiação eletromagnética. Einstein não usou, em sua argumentação, o postulado de Planck, nem sequer o mencionou.

2. As hipóteses de Planck e de Einstein não são equivalentes nem implicam necessariamente uma na outra. Segundo Planck, um oscilador elementar só pode oscilar com determinadas energias, mas, numa situação de equilíbrio, pode ficar oscilando indefinidamente em um desses ''estados permitidos'', absorvendo uma quantidade indefinida de energia e reemitindo essa mesma quantidade, pois a radiação eletromagnética com a qual interage é considerada, em princípio, contínua no tempo e no espaço. Segundo Einstein, sendo a radiação eletromagnética constituída por quanta de energia, a energia dos osciladores somente poderá variar, mediante interação com essa radiação, por quantidades predeterminadas, mas nada impede que outros mecanismos, por exemplo, perdas por atrito, façam com que a energia dos osciladores varie de maneira contínua.

3. Einstein conclui que o quantum de energia luminosa vale E = (R/N)bn, onde R é a constante universal dos gases, N o número de Avogadro, n a freqüência da radiação e b uma constante empírica que provém da fórmula de Wien. Pode-se mostrar que (R/N)b equivale à constante de Planck h, mas Einstein não o fez. Admitindo-se essa equivalência, vê-se que a expressão E = hn serve para calcular tanto ''os quanta de energia'' de Planck quanto ''a energia dos quanta'' de Einstein. O jogo de palavras enfatiza que, apesar da semelhança formal e da equivalência numérica, o conteúdo físico de ambas a propostas é inteiramente diferente. Planck quantizou uma grandeza física, a energia dos osciladores; o quantum de Einstein é, ele próprio, um ente físico.

Fica claro, assim, que, ao abordarem o mesmo problema, Planck e Einstein encontraram, cada um, uma solução inteiramente original e independente. Não seria exagero afirmar que, em 1905, Einstein inventou a física quântica pela segunda vez. Após 1905, ele continuou a pautar o desenvolvimento desse novo ramo da Física. Em 1907, justificou teoricamente o postulado de Planck (mas ainda não usou o h) e aplicou-o ao estudo do calor específico dos sólidos. Bem depois, vieram os famosos coeficientes A e B. E caso Einstein não estivesse lá para traduzir, fazer publicar e estender o trabalho de Bose, a estatística quântica não haveria tomado os rumos que tomou [5].

A discussão assim compartimentada mascara um pouco o papel relevante desempenhado por Einstein em 1905. Na verdade, nada do que ele publicou, publicou isoladamente. O que ele fez foi atacar em bloco várias questões em aberto na Física de então e a todas respondeu em bloco. Por outro lado, se Einstein não houvesse sido físico, é óbvio que a Física haveria continuado. Os avanços da Física, de certa forma, independem dos físicos. Soluções para antigos problemas trazem sempre em seu bojo problemas novos e, a cada passo, várias pessoas dedicam-se ao mesmo tempo, em vários lugares do mundo, ao mister de resolvê-los. Se não fosse Einstein, seriam outros; se não fosse em 1905, seria mais tarde; se não fosse tudo de uma vez, seria em várias etapas. Mas, na Física não existe uma verdade absoluta acerca dos fenômenos naturais (embora Einstein, ao que parece, acreditasse existir) e nem existe um único caminho possível. Como seria a solução encontrada por outros? Seria ela igualmente abrangente e fecunda? Como seria a Física hoje? E de que maneira ter-se-ia desenvolvido a nossa civilização tecnológica? Impossível saber. Então, a Física é hoje como é e a tecnologia desenvolveu-se do modo como se desenvolveu por que houve Einstein em 1905, e isto é tudo.

O que importa é avaliar devidamente a importância da obra de Einstein para nossa cultura e nossa civilização. Talvez devamos começar com a seguinte questão: qual parte da Física mais diretamente influenciou nossas idéias e nossas vidas? Respondamos de maneira direta: foi a física quântica. É claro que, para a Física, como ciência, a relatividade é igualmente importante. Mas a relatividade nos obriga a revisar os conceitos mais fundamentais, como as noções de espaço e tempo, de matéria e energia e conduz-nos a grandes discussões cosmológicas, como a finitude do universo e a existência de buracos negros. É a física quântica que esmiúça a constituição íntima da matéria e provê ao homem os métodos e procedimentos que o tornam capaz de dominar a natureza, domínio este do qual resulta, em última análise, a tecnologia. Nossa civilização caracteriza-se muito mais pelo progresso material do que pelos avanços das idéias e das concepções filósóficas. Em termos de Física, está, certamente, sob o impacto dominante da física quântica.

Mas, se é assim, como explicar a popularidade da teoria da relatividade em detrimento da física quântica? E porque a associação biunívoca, quase exclusiva de Einstein com a primeira? Neste ponto, estou de acordo com o Professor Martins. Eis um interessante fenômeno sócio-cultural a ser investigado por historiadores da ciência, sociólogos, antropólogos, psicólogos das multidões... No que nos diz respeito, na qualidade de professores de Física, conscientizemo-nos de que estamos diante de um equívoco histórico à espera de reparação.

Paulo Henrique Dionísio

IF/UFRG

Referências

[1] R.A. Martins, Rev. Bras. Ens. Fis. 27, 11 (2005).

[2] Frase extraída, a título de exemplo, do artigo Eletromagnetismo Clássico: Uma Ponte para a Física Moderna, de Délcio Basso. In: Cláudio Galli (org.), Sobre Volta, Batatas e Fótons (EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003), p. 31-50.

[3] H. Fleming, Max Planck e a Idéia do Quantum de Energia. In: M. Hussein e S. Salinas (Orgs.). 100 Anos de Física Quântica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2001), p. 10.

[4] A. Einstein, O Ano Miraculoso de Einstein: Cinco Artigos que Mudaram a Face da Física. Organização e Introdução de John Stachel (Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2001), p. 202.

[5] E. Segrè, Dos Raios-X aos Quarks (Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1987), p. 101-102.

Resposta do autor

Parece-me que houve um pequeno equívoco do autor da carta, que se baseou na seguinte citação do meu artigo, quando falo sobre Einstein: ''a história da física poderia ter prescindido de seu nascimento". Bem, a frase completa que escrevi é a seguinte: ''Mas praticamente todos os resultados físicos da teoria da relatividade especial surgiram antes de Einstein, e nesse sentido a história da física poderia ter prescindido de seu nascimento''. Ou seja, a frase completa mostra claramente que estou me referindo apenas aos resultados físicos da teoria da relatividade especial e não a toda a física. Ou seja, ao contrário do que a carta diz, eu não estava me referindo à história da física de um modo geral. Por isso, a crítica contida na carta não procede.

Roberto Martins

IF/Unicamp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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