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Um experimento hemodinâmico em sala de aula para ensino de biofísica da circulação

A classroom hemodynamic experiment to teach circulatory biophysics

Resumos

Neste artigo discute-se a implementação de um experimento adequado para o ensino de conceitos fundamentais da biofísica da ultrassonografia para fins de diagnóstico hemodinâmico e investigação da circulação arterial. Apresenta-se e discute-se um transceptor sônico de 10 MHz e a metodologia de proessamento de sinais de ecos doppler e a sua análise digital empregando softwares de análise acústica para obter informações sobre a velocidade do sangue na artéria carótida comum direita. Uma metodologia adequada para explorar o experimento em um grupo de alunos simulando um atendimento clínico também é apresentada.

experimento hemodinâmico; biofísica do circulatório


In this paper, it is discussed a setup of a suitable experiment to teach fundamental concepts about the biophysics of ultrasonography, aiming at hemodynamical diagnosis and arterial blood flow assessment. It is presented and discussed a sonic transceiver operating at 10 MHz and the methods of doppler echo signal processing and digital analysis employing acoustic analysis softwares to obtain informations about the blood velocity within the right common carotid artery. A suitable methodological approach to carry out an experiment with a student group simulating an actual medical exam is also presented.

hemodynamic experiment; circulatory biophysics


DESENVOLVIMENTO EM ENSINO DE FÍSICA

Um experimento hemodinâmico em sala de aula para ensino de biofísica da circulação

A classroom hemodynamic experiment to teach circulatory biophysics

Everton Lüdke1 1 E-mail: eludke@smail.ufsm.br. ; Paola Jardim Cauduro

Departamento de Física, Centro de Ciências Naturais e Exatas, Universidade Federal de Santa Maria, Campus Universitário, Santa Maria, RS , Brasil

RESUMO

Neste artigo discute-se a implementação de um experimento adequado para o ensino de conceitos fundamentais da biofísica da ultrassonografia para fins de diagnóstico hemodinâmico e investigação da circulação arterial. Apresenta-se e discute-se um transceptor sônico de 10 MHz e a metodologia de proessamento de sinais de ecos doppler e a sua análise digital empregando softwares de análise acústica para obter informações sobre a velocidade do sangue na artéria carótida comum direita. Uma metodologia adequada para explorar o experimento em um grupo de alunos simulando um atendimento clínico também é apresentada.

Palavras-chave: experimento hemodinâmico, biofísica do circulatório.

ABSTRACT

In this paper, it is discussed a setup of a suitable experiment to teach fundamental concepts about the biophysics of ultrasonography, aiming at hemodynamical diagnosis and arterial blood flow assessment. It is presented and discussed a sonic transceiver operating at 10 MHz and the methods of doppler echo signal processing and digital analysis employing acoustic analysis softwares to obtain informations about the blood velocity within the right common carotid artery. A suitable methodological approach to carry out an experiment with a student group simulating an actual medical exam is also presented.

Keywords: hemodynamic experiment, circulatory biophysics.

1. Introdução

A determinação experimental das propriedades biofísicas do ultra-som para fins diagnósticos e terapêuticos é fundamental para o ensino de biofísica universitária na educação de adultos em ciências da saúde como fisioterapia, medicina e medicina veterinária [1,2,3].

Entretanto, a dificuldade reside em selecionar experimentos específicos e de boa reprodutibilidade e implementação, dentro de um orçamento razoável. Destaca-se aqui que o uso de equipamento homologado para uso médico como ultra-sons vasculares com potencial de imagem possuem custo muito elevado e somente são encontrados em centros de atendimento de saúde como hospitais terciários altamente especializados, sendo portanto, recursos didáticos indisponíveis em salas de aula e laboratórios universitários de física básica.

Além disso, o principal requisito de um experimento ultrasonográfico em classes de biofísica voltada a ciências da saúde, no nosso entendimento, é expor conceitos de física ondulatória, propriedades de ondas mecânicas e o efeito Doppler acústico amplamente discutidos em livros de física básica [4], além de mostrar as técnicas envolvidas na aquisição e processamento analógico e digital dos sinais elétricos e as associações com as grandezas que eles representam, com fins de diagnóstico clínico.

Dentro dessa hipótese de trabalho, propomos nesse artigo um experimento simples para possibilitar aos alunos analisar dados hemodinâmicos dentro de uma metodologia interdisciplinar e que seja efetiva na explicação dos principais conceitos envolvidos na biofísica da ultrassonografia para fins diagnósticos.

Na seção 2, apresentamos a discussão do circuito de um transceptor sônico de 10 MHz para deteção do efeito Doppler vascular. Na seção 3, discutimos uma breve metodologia empregada na utilização do equipamento em uma aula prática. As conclusões finais são apresentadas na seção 4.

2. O transceptor de 10 MHz

O transceptor sônico é um dispositivo eletrônico que produz ondas de rádio frequência (RF) na mesma frequência f0 das ondas de ultra-som que se deseja emitir. Um transdutor piezoelétrico consiste em uma caneta de prova sônica que engloba duas cápsulas independentes, uma emissora e outra receptora que transformam os sinais elétricos em ondas de compressão e rarefação acústicas e vice-versa. O sinal de RF retornado pelo eco quando o ultra-som encontra uma junção de duas impedâncias acústicas diferentes possui uma frequência fD deslocada pelo efeito Doppler. Esse sinal é pouco intenso e deve sofrer um processo de amplificação antes de ser injetado em um circuito multiplicador (misturador) de sinais que produz um sinal elétrico de audiofrequência correspondente a frequência-diferença ou do batimento dos dois sinais de rádio. Uma vez que 10 MHz é frequência de ondas curtas, essencialmente o transceptor carrega um pouco da técnica de montagem de receptores de rádio de ondas curtas.

O esquema elétrico do transceptor desenvolvido para as medidas de dopplervelocimetria em 10 MHz é mostrado na Fig. 1 e a alimentação é feita por uma bateria alcalina de 9 V.


Os pulsos de 10 MHz são gerados por oscilador controlado a cristal de quartzo e o sinal é acoplado à sonda ultrassônica por meio de um transístor BF199. O sinal do oscilador com frequência f0 = 10 MHz pode ser verificado com um osciloscópio no ponto g2 do circuito, onde pulsos com amplitude de 1,2 Vpp (volts pico-a-pico) são visualizados e o valor correto da frequência emitida f0 pode ser medido com um frequencímetro digital.

O sinal recebido pela parte receptora da cápsula possui uma frequência alterada pelo efeito Doppler fD devido ao eco de um alvo em movimento (corrente sanguínea) é na ordem de 200 mV e recebe uma amplificação adicional por meio de um amplificador sintonizado que emprega um transístor UHF de baixo ruído BFR90.

A bobina L2 do amplificador consiste em um enrolamento de 35 espiras de fio esmaltado 26 AWG enroladas lado-a-lado sobre um tubo de plástico de 6 mm de diâmetro e 1,0 cm de comprimento, produzindo uma indutância aproximada de 3,7 µH e com núcleo de ar. O transformador de acoplamento de sinal L1 consiste em uma bobina similar a L2, com núcleo de ar, funcionando como enrolamento secundário, mas que recebe um enrolamento primário adicional de 8 espiras enroladas diretamente sobre o secundário, que recebe o sinal de retorno do ultra-som coletado pela sonda. Choques de RF comerciais de 3,7 µH construídos com núcleos de ferrite não podem ser usados em lugar das bobinas pela intensa atenuação do sinal que eles proporcionam e que destruiriam a sensibilidade do circuito. No protótipo construído, foi cortado uma faixa de 1,5 cm de largura de uma folha de papel ofício, a qual foi enrolada para produzir um tubo cilíndrico sólido de papel com 4 mm de diâmetro que permitiu uma boa fixação mecânica das espiras sobre essa forma com cola plástica.

Para calibrar o amplificador para o máximo ganho, liga-se o instrumento e ajusta-se os trimmers de 3-30 pF para que o sinal no ponto g1 mostrado na figura seja o de maior amplitude possível, que no protótipo é 2,1 Vpp e o sistema está pronto para a coleta de dados. O ganho obtido após a sintonia dos trimmers do estágio amplificador foi G = 10 log(Vs/Ve) = 24 dB.

Como sonda ultrassônica, recuperou-se uma cápsula usada de um equipamento doppler vascular portátil antigo, que é frequentemente encontrada em oficinas técnicas de manutenção de equipamento hospitalar e instrumentos biomédicos.

No ponto d verifica-se um sinal residual de 10 MHz com amplitude de 80 mV ou menos que será eliminado pelo amplificador operacional JFET TL071, que age como pré-amplificador de áudio frequência para amplificar os níveis do sinal de batimento fD-f0, que é diferente de zero devido ao efeito doppler do sinal refletido de volta à cápsula pela corrente sangínea. O batimento da frequência é produzido pelo transístor tétrodo duplo-fet BF981 onde o sinal no dreno (d) é proporcional ao produto das voltagens alternadas do oscilador a cristal e o sinal amplificado de retorno da sonda de ultrassom. Se a cápsula estiver em contato com um alvo fixo, fD = f0 e não haverá som audível no conector de saída do circuito.

Na presença do fluxo arterial, o sinal de áudio cujo desvio espectral de frequência é proporcional a fD-f0 está disponível no conector de saída. Usando qualquer programa de análise temporal e espectral de sinais de áudio como o Audacity, Wavepad ou Spectrogram 16, o aluno identifica o aparecimento dos pulsos quando a sonda ultrassônica é colocada sobre a artéria carótida esquerda e a melhoria do sinal quando um gel ultrassônico é colocado entre a cápsula e a pele.

Como o circuito da Fig. 1 tem a frequência determinada somente pelo cristal utilizado, pode-se empregar qualquer cristal oscilador entre 8 e 10 MHz que é a faixa de operação das cápsulas de ultrassom vascular encontradas no mercado brasileiro.

3. Análise do experimento

A Fig. 2 mostra a geometria de localização da artéria carótida comum direita, primeiramente por meio da palpação digital do pulso carotídeo e colocando-se a sonda com um ângulo de aproximadamente 30 graus com o plano paralelo ao eixo do pescoço (ângulo de insonação ϕ), para a qual a análise hemodinâmica será feita.


Para o processamento dos dados, os alunos identificam os pulsos e medem a sua largura temporal e frequência. Por meio da função de análise de espectro por transformada de Fourier de um dado pulso fornece o desvio de frequência e o aluno estima fD-f0 pela análise espectral do sinal audível produzido na saída do circuito da Fig. 1.

As alterações em frequência do feixe de ultra-som recebido com respeito àquela do ultra-som emitido f0 são devido ao eco devido à diferença de impedância acústica Z0 entre o tecido sanguíneo e os tecidos vizinhos como vasos e músculos.

Assim, as alterações em frequência do ultra-som emitido produzida pela corrente sanguínea são proporcionais à sua velocidade V com respeito à cápsula, ao ângulo entre o feixe de onda do ultra-som e o vaso insonado (ϕ = ângulo de insonação).

A frequência Doppler fD é calculada pela fórmula:

A atividade prática é melhor conduzida com a turma dividida em grupos de três alunos onde um é examinado, um anota os dados e o outro realiza o exame.

Sabendo que a impedância acústica do sangue é Z = 1,66×106 e a a sua densidade é ρ = 1,06×103 kg m-3 o aluno primeiramente calcula a velocidade do som nesse meio Vc em unidades m s-1.

Depois, o aluno localiza a artéria carótida comum direita no seu (sua) colega pelo método semiotécnico da palpação [5] e calcula a velocidade do fluxo sanguineo ascendente ao cérebro, V, medindo a diferenca em frequência entre o ultra-som emitido e o recebido, usando o verso da folha de roteiro do experimento para cálculos. Valores encontrados são na ordem de 50-70 cm s-1 e o gráfico das ondas de velocidade pode ser ajustado em função do tempo (Fig. 3). Como alternativa metodológica, pode-se incluir a pesquisa semiológica da pulsação do fluxo sanguíneo da artéria braquial e a medida da sua velocidade, sendo que os alunos podem consultar um livro de anatomia para tentarem repetir o roteiro do experimento com um outro vaso importante para a circulação.


Os alunos podem empregar o mesmo equipamento para medir a velocidade do sangue arterial em outros pontos do corpo humano onde a semiologia clínica prevê a deteção dos batimentos cardíacos como a artéria radial, dorsal do pé e tibial anterior, provendo o aluno com a familiarização da técnica.

Depois que a velocidade da corrente sanguínea arterial foi estimada, o valor encontrado para o "paciente" pode ser comparado com critérios hemodinâmicos de fluxo carotídeo publicado em estudos médicos [6], para que os alunos possam entender o significado do termo "exame normal" em ciências da saúde e os critérios de inclusão de um dado exame como "normal".

Os alunos também podem comparar as propriedades do sons doppler com alguns exemplos de doenças obtidas em pacientes de ambulatório vascular de hospitais-escola para verificar a fisiopatologia de doenças relacionadas ao tabaco, sedentarismo e hipercolesterolemia como a doença carotídea que leva a alterações do perfil hemodinâmico pela estenose vascular. Os alunos podem debater sobre o efeito da vida moderna sobre a gênese de doenças cardiovasculares na forma de seminários posteriores à realização do experimento. Arquivos .wav com a dopplervelocimetria de doenças conhecidas ou resultados publicados com a técnica de ultrassonografia [7] podem ser disponibilizados pelo professor para análise comparativa na discussão do experimento em classe.

Livros de anatomia descritiva [8] e topográfica [9] devem ser disponibilizados para os alunos, para que reconheçam os padrões anatômicos importantes do pescoço como o trígono carótico e a região axilar medial onde as medidas serão realizadas, possibilitando que firmem os conceitos cirúrgicos mais relevantes, a critério da experiência do professor que irá conduzir esse experimento e da importância de se estabelecer conexões interdisciplinares de conceitos entre diferentes disciplinas como anatomia, fisiologia e técnica cirúrgica, além de teorias pertinentes a exames cínicos para diagnóstico vascular [7].

A turbulência do fluxo sanguíneo no ventrículo esquerdo do coração também pode ser analisada de forma qualitativa com o equipamento proposto, colocando-se um amplificador de média potência e um alto-falante para que a classe possa perceber o fenômeno pela audição dos sons durante o processo da fase sistólica cardíaca. Nesse caso, a sondagem experimental deve ser feita na região entre os focos aórtico e mitral entre os arcos costais posteriores [8]. Entretanto, a interpretação da turbulência em regiões intervalvares da câmara cardíaca seja bem mais complexa e além dos objetivos didáticos propostos no presente trabalho. O leitor pode alterar frequência do circuito para 2,4 MHz usando um cristal oscilador apropopriado, quadruplicar o número de espiras de cada bobina e usar um transdutor de 2,4 MHz para obter uma maior abrangência do feixe do ultrassom para obter melhor cobertura em área do ventrículo esquerdo.

4. Conclusões

Nesse artigo apresentamos um experimento que, embora seja relativamente complexo de ser construído, se mostrou muito eficaz como recurso didático para estudo experimental de propriedades hemodinâmicas fundamentais.

As primeiras impressões sobre o experimento é que os alunos visualizam os conceitos e os discutem com mais eficácia e segurança pessoal.

Uma proposta de trabalho apresentada aqui sugere uma metodologia experimental para uso da ultrassonografia para fins diagnósticos, dentro de uma abordagem interdisciplinar com outros conteúdos relevantes em ciências da saúde como anatomia topográfica, descritiva e fisiologia e os conceitos de normalidade no exame clínico, o que é particularmente difícil de ser entendido pelos alunos de biófísica com o professor empregando métodos de ensino tradicionais de caráter puramente teóricos.

Recebido em 19/12/2012

Aceito em 17/2/2013

Publicado em 26/9/2013

Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

  • [1] W.D. O'Brien, Prog Biophys Mol Biol 93, 2125 (2007).
  • [2] E.A.C. Garcia, Biofísica (Makron Books, São Pauo, 2000), 2Ş ed.
  • [3] C.F. Carvalho, M.C. Chammas e G. G. Cerri, Ciência Rural 38, 872 (2008).
  • [4] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física 2 - Gravitação, Ondas e Termodinâmica, (Editora LTC, São Paulo, 1996), 4Ş ed., p.138-154.
  • [5] C.C. Porto, Semiologia Médica (Ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005), 5Ş ed., p. 509-516.
  • [6] D.W. Holdsworth, C.J.D. Norley, R. Frayne, D.A. Steinman and B.K. Rutt, Physiol. Meas. 11, 219 (1999).
  • [7] P. Pimentel, in: Angiologia e Cirurgia Vascular: Tópicos Atuais, editado por J.B. Thomaz (Ed. Revinter, São Paulo, 2000), p. 13-27.
  • [8] K.L. Moore, A.F. Dalley, Anatomia Orientada para a Clínica, Cap.8-Pescoço, Guanabara Koogan, p. 889-927 (1999)
  • [9] W. Thiel, Atlas Fotográfico Colorido de Anatomia Humana - Cabeça e Pescoço (Editora Revinter, São Paulo, 2004), p. 16-29.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      19 Dez 2012
    • Aceito
      17 Fev 2013
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