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Reclamação ao STJ de decisões proferidas pelos Juizados Especiais Cíveis estaduais: quis custodiet ipsos custodes?

Complaints to the Superior Court of Justice against decisions in Small Claim Courts of Civil Procedure: quis custodiet ipsos custodes?

Resumo

Neste artigo analisa-se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que atribuiu competência ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para processar e julgar Reclamação em face de decisões proferidas pelos Juizados Especiais Cíveis estaduais. No acórdão, o STF decidiu que enquanto o legislador não criar as Turmas de Uniformização de Jurisprudência desses juizados, o STJ exercerá competência, em sede de reclamação, para controlar a identidade das decisões proferidas pelas turmas recursais dos Juizados Especiais Cíveis estaduais com a jurisprudência do Tribunal Superior. Duas hipóteses são trabalhadas visando à demonstração da inconstitucionalidade dessa Reclamação: a primeira levanta a possibilidade de o STF proferir decisões inconstitucionais; a outra é a inconstitucionalidade formal e material da Resolução STJ n. 12/2009, editada para disciplinar o procedimento da Reclamação no âmbito do STJ. Ambas levam à conclusão de que o STF desvirtuou o sistema dos juizados especiais cíveis.

Direito Constitucional; processo civil; Juizado Especial; ativismo judicial; Reclamação Constitucional

Abstract

This paper examines the decision of the Federal Supreme Court (STF) that attributed competence to the Superior Court of Justice (STJ) to adjudicate complaints against decisions made by Small Claim Courts of Civil Procedure. In its judgment, the Supreme Court decided that, while the legislator does not create the court to uniform Jurisprudence of these Courts, the Superior Court of Justice shall exercise jurisdiction over the complaints to control the identity of the decision rendered by the appellate divisions of the Small Claim Courts of Civil Procedure and the jurisprudence of Superior Court. Two hypotheses are handled aiming to demonstrate the unconstitutionality of this Complaint: the first raises the possibility of the Supreme Court render unconstitutional decisions; the other is the formal and material unconstitutionality of STJ Resolution No. 12/2009, issued to regulate the procedure of the Complaint within the STJ. Both lead to the conclusion that the Supreme Court misinterpreted the system of the Small Claim Courts of Civil Procedure.

Constitucional Law; Civil Procedure; Small Claims Court; Constitutional Complaint; Supreme Court activism

Introdução

Os Juizados Especiais são órgãos jurisdicionais competentes para o processamento de causas de menor complexidade, caracterizando sua atuação por meio de procedimento oral e sumaríssimo. O sistema dos Juizados Especiais foi gradativamente instituído com o propósito de efetivar o mandamento contido no art. 98 da Constituição da República. O escopo de sua criação, em conformidade com a norma constitucional, foi o de ampliar a garantia de efetiva proteção judicial, compreendendo o direito de acesso à justiça como meio de se obter, em tempo razoável e por meio de um procedimento simplificado, uma decisão jurisdicional eficaz para reparar lesões ou prevenir ameaças a direitos.

Os Juizados Especiais Cíveis, Federais e das Fazendas Públicas, municipal e estadual, instituídos, respectivamente, pelas leis n. 9.099/95, 10.259/2001 e 12.153/2009, integram um sistema, por se encontrarem unidos por princípios comuns, que lhes confere identidade e, ao individualizá-los, os distingue do sistema da justiça comum. Entretanto, verifica-se na prática judiciária uma crescente aproximação entre o sistema dos juizados e o da justiça comum mediante aumento do formalismo e da complexidade do procedimento, prejudicando, notadamente, a efetividade da tutela jurisdicional prestada pelos juizados especiais.

Neste trabalho, examina-se um caso de criação jurisprudencial de norma que se acredita não coadunar com os princípios norteadores dos Juizados Especiais. Trata-se do exame da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por ocasião do julgamento dos Embargos de Declaração (EDcl) no Recurso Extraordinário (RE) 571.572,1 1 STF, RE 571.572 ED, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe, 26-11-2009. que atribuiu competência ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para atuar como órgão de controle de legalidade das decisões proferidas por turmas recursais dos Juizados Especiais Cíveis estaduais. Frisa-se que o foco da análise não se estende ao Juizado Especial Federal nem ao Juizado Especial das Fazendas Públicas, municipal e estadual, ou seja, atém-se, exclusivamente, aos Juizados Especiais Cíveis estaduais.

O cerne da questão refere-se à análise da possibilidade de o STF proferir uma decisão inconstitucional ao atuar como legislador positivo e inovar o ordenamento jurídico. Isso aconteceu porque, até esse julgamento, o STJ não integrava o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis estaduais. Todavia, conforme decidido pelo Supremo, o STJ tornou-se competente para processar e julgar Reclamação Constitucional com a finalidade de dirimir divergência entre decisão proferida por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ consolidada em súmula ou em julgamento de recurso repetitivo. Essa situação anômala perdurará, de acordo com o STF, até o dia em que o legislador ordinário criar as Turmas de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Cíveis estaduais.

Serão avaliados, também, os impactos que essa decisão do STF produz em relação ao aumento de processos no STJ, bem como ao tempo de duração das ações propostas perante os Juizados Especiais Cíveis.

Para atingir os propósitos almejados, o trabalho discorrerá inicialmente sobre o arcabouço normativo dos recursos nos Juizados Especiais Cíveis, justificando a razão pela qual ele difere do sistema recursal da justiça comum. Prosseguindo, será apresentada a natureza da Reclamação Constitucional, principalmente aquela direcionada ao STJ e a controvérsia relativa à admissibilidade em face de decisões emanadas dos Juizados Especiais estaduais. Em seguida, será analisada a decisão proferida pelo STF com o propósito de verificar a possibilidade de esta Corte, guardiã da Constituição, proferir vereditos incompatíveis com a própria Constituição da República, cujas decisões produzem efeitos concretos prospectivos que inovam a sistemática processual vigente.

Enfim, estabelecidos os fundamentos que darão sustentação à conclusão, pretende-se demonstrar a hipótese relativa à possibilidade de a decisão do STF nos EDcl no RE 571.572 ser inconstitucional, cujo efeito, por arrastamento, irradiou-se para o STJ, contaminando os princípios constitucionais norteadores dos Juizados Especiais Cíveis.

1 Breves considerações a respeito dos Juizados Especiais Cíveis

Os bons fluidos democráticos trazidos com a Constituição da República influenciaram positivamente o Poder Judiciário, pois, além de normativamente romper as barreiras de acessibilidade, atribuiu-lhe a responsabilidade de assegurar, concretizar e realizar o mais básico dos direitos humanos que é o acesso à justiça. O regime anterior, a despeito de ditatorial, foi coerente, uma vez que, ao lado das barreiras constitucionais de acesso à justiça, instituiu uma técnica processual que frustrava a concretização e realização dos direitos.

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003)CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. Rio de Janeiro: Forense, 2003. discorre sobre as características predominantes no modelo de prestação jurisprudencial que foi adotado no regime antecedente à Constituição da República: individualista, tecnicista, elitista e conservador. Esclarece o autor que a prática de um contraditório meramente formal, sem qualquer compromisso com a igualdade substancial, edificado sobre um tecnicismo caracterizado pelo formalismo, em que as filigranas jurídicas sobrepujavam a realização do direito, aliado às barreiras econômicas, obstava o acesso à justiça, produzindo um sistema processual oneroso, “afastado da realidade das ruas, da sociedade, das transformações sociais, e assim utilizado com enfoque conceitual, técnico-científico, estagnado no tempo, longe da efetividade adequada” (CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. Rio de Janeiro: Forense, 2003., p. 41-42).

Visando superar os entraves para se assegurar a qualquer sujeito direito de acesso ao Judiciário, a Constituição da República concebeu, no art. 98, I, um sistema de prestação jurisdicional diferenciado: o sistema dos Juizados Especiais. Esse sistema, caracterizado pela acessibilidade e simplicidade procedimental, provê justiça em tempo oportuno e com baixo custo. Com efeito, houve aumento considerável do número de demandas judiciais.

Aqueles indivíduos privados de cidadania plena – em razão de as portas do Judiciário estarem cerradas para eles – passaram a ter acesso à justiça por meio dos Juizados Especiais. Dessa forma, esses juizados tornaram-se o locus adequado para extravasar a litigiosidade contida, relacionada aos direitos de pouco valor econômico, bem como aqueles conflitos cotidianos, de baixa complexidade jurídica, mas de alta relevância social.

A importância de dar vazão a essa litigiosidade represada é promover uma maior estabilidade social (WATANABE, 1985WATANABE, Kazuo. Juizados especiais de pequenas causas: Lei 7.244 de 7 de novembro de 1984. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.), impedindo o agravamento dos conflitos existentes. Na justiça comum, a relação custo/benefício em alguns casos representa, indiscutivelmente, uma barreira ao acesso. O elevado custo do processo e a desproporcionalidade entre o valor econômico pretendido e o dispendido não compensava reivindicar esses direitos em juízo.

Foi intuito do legislador, na linha de uma das ondas renovatórias do processo civil moderno, oferecer uma justiça bem mais informal pela simplicidade dos atos do novo processo, eminentemente participativa pela presença de conciliadores e diálogo com os litigantes, muito mais célere e, portanto, acessível a um número maior de cidadãos. (DINAMARCO, 2005DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2005., p. 769-770).

A promoção da igualdade social significa, também, assegurar acesso de todos os cidadãos à justiça, garantindo-se, assim, cidadania e efetiva justiça social (HERMANN, 2010HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos juizados especiais cíveis. Porto Alegre, 2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/tribunal_de_justica/corregedoria_geral_da_justica/colecao_administracao_judiciaria/doc/CAJ10.pdf. Acesso em: 9 abr. 2016.
http://www.tjrs.jus.br/export/poder_judi...
, p. 37).

Dessa forma, a fim de conferir concretude à norma constitucional, instituiu-se, por meio da Lei n. 9.099/95, um órgão jurisdicional de procedimento descomplicado, pouco oneroso, que observa um tratamento adequado às demandas de baixa complexidade e reduzido conteúdo econômico. O desenvolvimento de métodos de conciliação, a oralidade e a garantia de prestação jurisdicional em tempo razoável, além de, em alguns casos, dispensar a obrigação de representação por advogado, são características peculiares aos Juizados Especiais.

Enfim, com a criação dos Juizados Especiais, completou-se no ordenamento jurídico a universalização da garantia de efetiva proteção judicial para todo e qualquer conflito de interesses.

2 A exclusão do STJ do sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis estaduais

No que diz respeito aos recursos, a Lei dos Juizados Especiais emancipou-se da disciplina do Código de Processo Civil, implantando um sistema recursal típico. Primeiramente, a Lei n. 9.099/95 consagrou a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, sendo possível a discussão acerca de alguma questão incidental como preliminar do recurso a ser interposto em face da sentença (BONFIM, 2006BONFIM, Edilson Mougenot. Juizados especiais cíveis e criminais: Leis n. 9.099 de 26-9-1995, e 10.259. de 12-7-2001. São Paulo: Saraiva, 2006., p. 63). Essa vedação, conforme decidido pelo STF, não afronta o princípio constitucional da ampla defesa, posto que, em razão da irrecorribilidade das interlocutórias, as matérias decididas ao longo do procedimento não precluem, admitindo-se impugná-las no recurso interposto contra a sentença.2 2 STF, RE 576847, Rel. Min. Eros Grau, DJe, 7-8-2009.

O recurso previsto no art. 41 e seguintes da Lei n. 9.099/95 inaugura a fase onerosa do procedimento. Enquanto no primeiro grau de jurisdição, o serviço judiciário é gratuito, na fase recursal nos Juizados Especiais, além de se exigir o pagamento de preparo, há condenação em honorários sucumbenciais. Nessa fase recursal, também, encerra-se o ius postulandi da parte, sendo imprescindível a assistência técnica de advogado legalmente habilitado.

Admitem-se embargos de declaração no âmbito dos Juizados Especiais, pois, também nessa instância, há o dever de se prestar jurisdição de forma íntegra e inteligível. A Lei n. 9.099/95, além das situações previstas no Código de Processo Civil (CPC), contemplou outra hipótese de cabimento de embargos de declaração, a dúvida, absorvendo, portanto, todas as críticas direcionadas ao art. 535 do CPC, em sua redação original:

A dúvida é um estado de espírito, que se traduz na hesitação entre afirmar e negar algo. Toda dúvida é, necessariamente, subjetiva. Não se concebe que exista dúvida num acórdão, nem em qualquer outra decisão judicial: se o órgão decidiu, neste ou naquele sentido, há de ter por força superadas as dúvidas que possivelmente se manifestaram no espírito do julgador, ou dos julgadores, ou de algum ou alguns deles; e ainda, a admitir-se que a incerteza não se haja dissipado de todo, esse fenômeno psicológico não tem qualquer relevância jurídica. (BARBOSA MOREIRA, 2008BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. V., p. 551).

As decisões das turmas recursais podem ser impugnadas por Recurso Extraordinário, nas hipóteses contempladas no art. 102, III, da Constituição da República.

No que diz respeito ao STJ, sua jurisdição está afastada por força da Constituição. Com efeito, é inacessível aos Juizados Especiais Cíveis estaduais. O art. 105, III, da Constituição da República dispõe que o Recurso Especial somente é cabível contra decisões proferidas por Tribunais. As turmas recursais, a despeito de serem órgãos recursais ordinários de última instância, não se qualificam como tribunais, e a jurisprudência, tanto no STF, quanto no STJ, firmou posicionamento uníssono reconhecendo o não cabimento de recurso especial contra decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais.3 3 STF, RE 571.572-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe, 27-11-2009. -4 4 STJ, “Súmula 203 - Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”.

Dessa maneira, infere-se do texto constitucional que o STJ não detém jurisdição sobre os Juizados Especiais. A exclusão do STJ do sistema dos Juizados Especiais Cíveis pode ser explicada por vários motivos.

O ingresso no Juizado Especial Cível é opção do autor, considerando não ser absoluta sua competência. Dessa maneira, o autor, ao demandar no Juizado Especial, faz uma ponderação de valores. Ao escolher a jurisdição especial elege-se a simplicidade procedimental, a menor onerosidade e a celeridade como princípios mais vantajosos do que a segurança jurídica que a jurisdição ordinária poderia lhe proporcionar em razão de um procedimento mais complexo, com ampla recorribilidade e, consequentemente, com maior tempo de duração. Além disso, a Constituição da República, ao admitir que juízes leigos atuem nos Juizados Especiais, teleologicamente, os mantém mais próximos do senso comum de justiça do que da dogmática jurídica.

A presença de juízes leigos nos Juizados Especiais decorre do reconhecimento do pluralismo, pois, tratando-se de cidadãos culturalmente próximos das partes, estarão habilitados a julgar respeitando as tradições e os costumes locais, aproximando as partes da justiça. Fatos jurídicos controvertidos, ainda que assemelhados, mas acontecidos em regiões geográficas distintas nesta imensa extensão territorial que é o Brasil, com etnias, realidades históricas, culturais, políticas, econômicas, sociais e modo de vida substancialmente diferente, devem ser valorados de forma diversa.

Nos Juizados Especiais Cíveis, o dissídio jurisprudencial, considerando sua competência para apreciar apenas conflitos envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, de pequena monta e de baixa complexidade, não causará nenhum abalo ao Estado Democrático de Direito. Tolera-se que as decisões emanadas desses órgãos jurisdicionais não se enquadrem na uniformidade de interpretação da legislação infraconstitucional realizada pelo STJ. Com isso, nos Juizados Especiais Cíveis, admite-se prescindir da legalidade estrita para se prestigiar a equidade como técnica decisória mais próxima da justiça material.

Consequentemente, a exclusão do STJ do sistema dos Juizados Especiais Cíveis foi uma opção consciente do legislador, considerando que essa interpretação do texto constitucional se atém aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Tanto é verdade que a Constituição da República franqueou acesso ao STF, como instância extraordinária, cuja função é assegurar a efetividade das normas constitucionais. As decisões dos Juizados Especiais estão sujeitas, portanto, ao controle difuso de constitucionalidade exercido pelo STF, mas não ao de legalidade.

Assim, diante do que até aqui se expôs, o STF extrapolou sua função de guardião da Constituição com manifesto abuso de poder ao atuar como legislador positivo e inovar o ordenamento jurídico para contemplar a possibilidade de ajuizar-se Reclamação para o STJ, nos seguintes termos:

Até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, o STF tem concluído pelo cabimento, em caráter excepcional, da reclamação insculpida no art. 105, I, ‘f’, da Carta Política, a fim de garantir a prevalência da interpretação da legislação conferida pelo Superior Tribunal de Justiça.5 5 STF, RE 584073 ED, Rel. Min. Rosa Weber, DJe, 9-10-2012.

É evidente a antijuridicidade do ativismo judicial exercido pela Suprema Corte em contraposição frontal à atuação do legislador.

3 A Constituição e o STJ

O STJ é o órgão constitucionalmente investido da função de uniformizar a interpretação das leis federais. Da mesma forma que o STF é um Tribunal da União, sendo classificado como órgão de convergência e de superposição. De convergência porque é responsável pela última decisão nas causas da justiça comum e da justiça federal. De superposição, tendo em vista que sua decisão se sobrepõe às decisões proferidas pelos órgãos inferiores da justiça comum, estadual e federal.

Sua competência é fixada pelo art. 105 da Constituição da República, que lhe atribui competências originárias e recursais, ordinária ou especial. Em síntese:

O STJ é a última instância da Justiça brasileira para as causas infraconstitucionais, não relacionadas diretamente à Constituição. Como órgão de convergência da Justiça comum, aprecia causas oriundas de todo o território nacional, em todas as vertentes jurisdicionais não-especializadas.6

Em relação aos tribunais constitucionais, decidiu o STF que as competências estão previstas na Constituição da República, expressa ou implicitamente.7 7 STF, ADI 2797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19-12-2006. Assim, se nem o legislador pode atribuir competências não previstas na Constituição às cortes constitucionais, muito menos podem decisões destes tribunais, ainda que advindas do Supremo. O STF “permanece, todavia, vinculado à Constituição, em particular à divisão constitucional das funções, e ele não deve imiscuir-se nas funções de outros órgãos” (HESSE, 1998HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: SAFE, 1998., p. 423).

Com efeito, examinando o texto constitucional, constata-se que os Juizados Especiais Cíveis estão fora da jurisdição do STJ. Isso se explica pelo fato de que “o juizado é órgão de natureza sui generis, que integra um verdadeiro apêndice da jurisdição comum, não compartilhando com ela suas características diferenciadas” (BONFIM, 2006BONFIM, Edilson Mougenot. Juizados especiais cíveis e criminais: Leis n. 9.099 de 26-9-1995, e 10.259. de 12-7-2001. São Paulo: Saraiva, 2006., p. 74), exigindo tratamento processual próprio.

Os Juizados Especiais Cíveis julgam conflitos de interesses envolvendo questões patrimoniais disponíveis entre agentes capazes, sendo, portanto, reduzido o impacto social, econômico e jurídico das decisões proferidas no seu âmbito. A informalidade, celeridade e simplicidade do procedimento não justificam mobilizar o STJ, que já está assoberbado de processos, para que encerre eventuais divergências jurisprudenciais no âmbito das turmas recursais. A inserção do STJ no sistema dos Juizados Especiais Cíveis implicou uma ruptura com os princípios norteadores desses órgãos, ferindo de morte os objetivos que se pretendia alcançar. Mais além, o cabimento do recurso especial para o STJ previsto no art. 105, III, da Constituição da República, se limita a decisões proferidas por Tribunais e, por essa razão, decisões proferidas pelas turmas recursais formadas por juízes de primeiro grau não detêm o status de tribunal.

As normas instituidoras dos Juizados Especiais e do STJ são constitucionais e, portanto, de mesma hierarquia, exigindo-se uma interpretação sistemática que confira efetividade a ambas. Com efeito, é lícito concluir que os Juizados Especiais situarem-se fora do alcance da jurisdição do STJ foi uma opção racional do constituinte. Sobre o tema, é válido o entendimento do ministro Fontes de Alencar, numa das primeiras considerações tecidas sobre o tema, quando do julgamento do REsp n. 21.664/MS:8 8 REsp n. 21.664/MS, Rel. Min. Athos Carneiro, DJ 15-12-1992.

A Constituição, quando quis tratar de Tribunais, o fez com toda clareza falando nos Tribunais de Justiça dos Estados e, eventualmente, na existência de Tribunais de Justiça Militar nos Estados por isso é que o art. 105, inciso II, ao falar do recurso especial para esta Corte, cuidou dos Tribunais Federais Regionais e dos Tribunais dos Estados, do Tribunal de Justiça e, eventualmente, do Tribunal de Justiça Militar. Não podemos dilargar o que a constituição diz.

A Constituição ao tratar da possibilidade da lei admitir recursos nas causas cíveis de menor complexidade, continua dizendo que aquela câmara recursal seria composta por juízes de Primeiro Grau. Isto a mim me basta para afastar a possibilidade de recurso especial do Juizado Especial para as causas cíveis de menor complexidade.

Essa posição encontra-se respaldada constitucionalmente e em perfeita sintonia com a principiologia dos Juizados Especiais. Em momento algum se pode perder de vista o fato de que esses órgãos destinam-se à resolução de conflitos individuais de menor complexidade, os quais dispensam a revisão de uma Corte Superior, até mesmo para garantir a celeridade, a simplicidade, a oralidade e demais princípios norteadores dos Juizados Especiais.

O processamento de Recurso Especial interposto contra decisões de turmas recursais de Juizados Especiais desvirtuaria todos os atos processuais realizados perante a primeira instância e os Colégios Recursais. Admitida a participação do STJ nos processos dos Juizados Especiais estaduais, toda a vantagem do autor quando optou por esse procedimento será anulada, sem lhe estender os benefícios que a justiça ordinária pode lhe proporcionar. Mais uma vez, é esclarecedor o entendimento jurisprudencial, nas palavras do ministro Sálvio de Figueiredo, também por ocasião do julgamento do REsp n. 21.664/MS:

O que me parece ainda mais relevante é que, acima de tudo o que está no plano do direito dogmático, a admissibilidade desse recurso especial feriria a própria teleologia do Juizado de Pequenas Causas, que hoje tem guarida na Constituição.

Essa instituição notável – que, evidentemente, tem deficiências, por estar no seu nascedouro, que tem obtido os mais relevantes resultados nos planos nacional e internacional – tem por objetivo agilizar a prestação jurisdicional, a simplificação e a informalidade. Se trouxermos as causas decididas nesse Órgão, de tamanha informalidade, a este Tribunal Superior, estaremos, data venia, fazendo o oposto do desejado pelo legislador, ao admitir, e agora obrigatoriamente no texto constitucional, essa instituição.

Por derradeiro, noticie-se que o não cabimento de recurso especial das decisões proferidas pelos Juizados Especiais é matéria pacificada na jurisprudência, conforme a Súmula n. 203 do STJ e o Enunciado n. 63 do FONAJE.9 9 STJ, “Súmula 203 – Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. FONAJE, Enunciado 63 – “Contra decisões das Turmas Recursais são cabíveis somente os embargos declaratórios e o Recurso Extraordinário”. Dessa maneira, tem-se que as decisões das turmas recursais desafiam, tão somente, embargos declaratórios e Recurso Extraordinário.

Esses são alguns motivos que permitem afirmar encontrarem-se os Juizados Especiais Cíveis absolutamente excluídos da jurisdição do STJ.

4 A reclamação para o STJ

Apesar de firmada posição no sentido da inadmissibilidade de Recurso Especial para o STJ, os litigantes não se deram por vencidos e, em razão do natural inconformismo que aflora diante de uma decisão desfavorável, passaram a utilizar sucedâneos recursais. Um dos sucedâneos recursais mais utilizados é a Reclamação, cuja finalidade é preservar a competência ou garantir a autoridade das decisões dos tribunais constitucionais (STF e STJ).

A natureza jurídica da Reclamação constitucional é polêmica, não havendo consenso a respeito. O ministro Celso de Mello catalogou uma série de posicionamentos teóricos a respeito desse instituto: ação, recurso ou sucedâneo recursal, remédio incomum, incidente processual, medida de Direito Processual Constitucional ou medida processual de caráter excepcional.10 10 STF, Rcl 336/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 15-3-1991.

A divergência acadêmica mantém-se na jurisprudência. No entendimento do STF, a reclamação não é recurso, nem ação, nem incidente processual; “situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal”.11 11 STF, ADI 2212/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ, 14-11-2003. Por sua vez, no entendimento do STJ, a reclamação é ação constitucional com eficácia inter partes.12 12 STJ, RCD nos EDcl na Rcl 13082, Min. Assusete Magalhães, DJe, 6-5-2014.

Essa polêmica é trazida tão somente a título ilustrativo, uma vez que o cerne da questão analisada refere-se ao fato de impugnarem-se decisões proferidas pelas turmas recursais dos Juizados Cíveis Estaduais por meio de Reclamação. O argumento de preservação da autoridade das decisões proferidas pelo STJ é insustentável, porquanto nenhuma decisão desse tribunal tem por destinatários os litigantes dos Juizados Especiais Cíveis. Essa é a razão pela qual se insiste na tese de que a Reclamação não se presta a esse desiderato, haja vista que, por força da Constituição da República, o STJ não tem jurisdição sobre os Juizados Especiais.

Dessa maneira, é descabida a Reclamação por ausência de objeto, haja vista inexistir autoridade das decisões ou integridade da competência do STJ a ser restaurada. Encontrando-se a turma recursal de Juizado Especial Cível fora do alcance da jurisdição do STJ não há como se afirmar afronta à sua competência ou desafio à autoridade de suas decisões. O STJ sumulou o entendimento de que a decisão de turmas recursais de Juizados Especiais estaduais não comporta Recurso Especial.13 13 STJ, AgRg no RMS 12218, Min. Castro Filho, DJ, 11-11-2002. Reconheceu, também, a inadequação da Reclamação por inexistência de previsão normativa de controle das decisões das turmas recursais especiais pelo STJ. Com efeito, “os Juizados, no âmbito da sua competência, representem a palavra final sobre a interpretação de lei federal”.14 14 STJ, AgRg na Rcl 2704/SP, Min. Teori Albino Zavascki, DJe, 31-3-2008.

Entretanto, pouco tempo depois do julgamento acima citado, o STJ tornou-se permeável à Reclamação, ainda que lhe tenha conferido caráter de exceção.15 15 STJ, Rcl 2547, Min. Eliana Calmon, DJe, 29-9-2008. Essa decisão, ao reconhecer a Reclamação como excepcional, não trouxe nenhuma novidade hermenêutica. Sua própria natureza, bem como a enumeração das hipóteses constitucionais de seu cabimento, já confere à Reclamação caráter excepcional. Sua peculiaridade decorre do seu escopo: o de garantir a competência e autoridade das decisões da Corte Superior, preservando a integridade da hierarquia do sistema processual (GÓES, 2006GÓES, Gisele dos Santos Fernandes. Reclamação constitucional. in: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ações constitucionais. Salvador: JusPodium, 2006., p. 505).

A Lei n. 9.099/95, deliberada e conscientemente, em sintonia com a Constituição da República, excluiu o STJ dos Juizados Especiais Cíveis. É a concretização do princípio da razoabilidade. As hipóteses de acesso ao STJ devem, necessariamente, estar previstas em norma constitucional. Inadmissível, portanto, atribuir-lhe novas competências que não se encontrem estipuladas na Constituição da República. “O Tribunal Constitucional não deve ser mais por suas valorações no lugar das valorações do legislador, tanto mais que a amplitude e indeterminação dos critérios de controle, muitas vezes, deixa espaço para valorações diferentes.” (HESSE, 1998HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: SAFE, 1998., p. 424).

A propósito, nas justiças especializadas, o ordenamento jurídico contempla a reclamação (GÓES, 2006GÓES, Gisele dos Santos Fernandes. Reclamação constitucional. in: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ações constitucionais. Salvador: JusPodium, 2006., p. 513), por previsão legal expressa. Nos Juizados Especiais Federais, instituídos pela Lei n. 10.259/01, conforme o art. 14, §4º, admite-se o incidente de uniformização de jurisprudência como meio de acessar o STJ em caso de a Turma de Uniformização decidir em contrariedade à súmula ou à jurisprudência dominante da Corte. O mesmo ocorre em relação aos Juizados das Fazendas Públicas, estadual e municipal, instituídos pela Lei n. 12.153/09. O art. 19 de referida lei contempla a mesma situação dos Juizados Federais, possibilitando o acesso ao STJ, quando decisão da Turma de Uniformização contrariar súmula ou jurisprudência do STJ.

É preciso justificar o motivo do tratamento diferenciado dispensado pela lei aos Juizados Especiais Federais, aos das Fazendas Públicas, estadual e municipal, e aos Juizados Especiais Cíveis. É juridicamente razoável admitir que as leis estruturantes dos juizados tenham reconhecido peculiaridades em cada um deles, dispensando-lhes um tratamento normativo singular. Ressalvados os Juizados Especiais Cíveis, os demais juizados processam e julgam conflitos instaurados entre o cidadão e o Poder Público, atraindo, nessa hipótese, regras constitucionais que se impõem nas relações de Direito Público.

O art. 37 da Constituição vincula a administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios ao princípio da legalidade. O art. 5º, caput, assegura a igualdade de todos perante a lei, sem discriminação de qualquer natureza. Dessa maneira, os Juizados, Especial Federal e das Fazendas Públicas, estadual e municipal, não podem transigir com a legalidade, sob pena de incorrerem em grave violação do direito fundamental de ser tratado isonomicamente perante a lei.

Nos Juizados Especiais Cíveis, a seu turno, a situação é totalmente diversa. Os princípios norteadores do juizado (oralidade, simplicidade, economia processual, celeridade e informalidade) permitem o juízo de equidade, o que é recomendável, considerando a natureza dos conflitos de interesses ali solucionados e as grandes diversidades existentes no país. Assim, impossibilitar o acesso ao STJ, no caso dos Juizados Especiais Cíveis, tanto pela via recursal, quanto pela da reclamação, objetiva manter fidelidade aos princípios norteadores desses juizados.

Era esse o entendimento prevalecente na teoria e na jurisprudência. Todavia, com o advento do malsinado julgamento dos EDcl no RE 571.572 pelo STF, extinguiu-se o consenso.

5 A decisão nos EDcl no RE 571.572 pode ser inconstitucional?

O precedente que embasa o cabimento da reclamação para o STJ contra decisões dos Juizados Estaduais – EDcl no RE 571.572, relatados pela ministra Ellen Gracie – foi proferido em 26 de agosto de 2009, pelo Pleno do STF. Tratava-se de Recurso Extraordinário interposto por uma empresa de telefonia em face de decisão proferida pela Turma Recursal do Estado da Bahia, que teve a repercussão geral reconhecida. A decisão da Turma Recursal baiana dissentiu da jurisprudência do STJ sobre a matéria.

No julgamento dos EDcl no RE 571.572, o STF, mesmo inexistindo pedido a respeito, decidiu pelo cabimento de reclamação para o STJ de decisões proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis. O fundamento do voto vencedor, proferido pela ministra Ellen Gracie foi o da preservação da autoridade das decisões do STJ, na qualidade de órgão constitucionalmente investido da função de preservar a integridade das normas infraconstitucionais. Diante do silêncio da Lei n. 9.099/95, que não prevê instrumentos que permitam manter a integridade da jurisprudência do STJ, decidiu a maioria da Corte Constitucional o seguinte:

Entretanto, não existe previsão legal de órgão uniformizador da interpretação da legislação federal para os juizados especiais estaduais, podendo, em tese, ocorrer a perpetuação de decisões divergentes da jurisprudência do STJ. [...].

Todavia, enquanto não for criada a turma de uniformização para os juizados especiais estaduais, poderemos ter a manutenção de decisões divergentes a respeito da interpretação da legislação infraconstitucional federal. [...]

Desse modo, até que seja criado o órgão que possa estender e fazer prevalecer a aplicação da jurisprudência do STJ, em razão de sua função constitucional, da segurança jurídica e da devida prestação jurisdicional, a lógica da organização do sistema judiciário nacional recomenda que se dê à reclamação prevista no art. 105, I, f, da CF amplitude suficiente à solução do impasse.

Interessante observar o paradoxo dessa decisão: ela ofende o princípio da reserva da lei, na medida em que inova o ordenamento jurídico mediante a criação de um instituto de natureza processual, a Reclamação para o STJ. Para garantir a legalidade, pratica-se uma inconstitucionalidade.

De acordo com a Constituição da República, a competência para legislar é privativa do Congresso Nacional. Vislumbra-se nesse acórdão, que atropelou o Poder Legislativo, uma fundamentação precária, o que lhe priva de legitimidade e obediência aos princípios democráticos. O acórdão, laconicamente fundamentado, implica usurpação de competência legislativa, rompendo com o princípio da separação de poderes. Dessa forma, não há dúvida alguma quanto à vulneração do art. 2º da Constituição da República. Nesse sentido, é pertinente a advertência de Helmut Simon (1996SIMON, Helmut. La Jurisdicción Constitucional. In: BENDA et al. Manual de Derecho Constitucional. Madrid: IVAP/Marcial Pons, 1996., p. 824):

La decisión constitucional por una democracia con división de poderes veda una interpretación sin límites que, eludiendo la reforma constitucional, difumine las lindes entre interpretación y potestad normativa y haga sub-repticiamente soberano a quien únicamente es custodio de la Constitución.

O acórdão é extra petita porque a questão referente à Reclamação para o STJ não tinha sido ventilada no acórdão recorrido, nem constado de pedido do recorrente no Recurso Extraordinário. Dessa maneira, o STF carecia de competência para tratar da questão porque a jurisdição está vinculada ao princípio da demanda. Outra razão decorre da ausência do imprescindível prequestionamento. Ao desconsiderar esse fato, a Suprema Corte malferiu o art. 102, III, da Constituição, e indevidamente prestou jurisdição originária onde não lhe competia decidir, além de haver atuado de ofício em razão da ausência de pedido a respeito do que foi decidido.

Os limites da atuação da Suprema Corte estão postos na Constituição da República e, uma vez ultrapassados esses lindes, desborda-se para o arbítrio, deixando o Tribunal de ser legítimo intérprete da Constituição. A qualidade de guardião constitucional que o art. 102 reconhece ao STF não lhe atribuiu, de maneira alguma, a função de legislador positivo.

Além disso, a segurança jurídica propalada no voto condutor do acórdão dos EDcl no RE 571.572 encontra-se ameaçada pela infidelidade da Suprema Corte a seus precedentes. A respeito da reclamação instituída regimentalmente pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), o STF decidiu pela inconstitucionalidade formal e material do instituto, motivando o acórdão o princípio da separação de poderes e a competência privativa do legislador, nos seguintes termos:

No tocante ao cabimento da reclamação no processo trabalhista, observem que, de há muito, o Supremo assentou a necessidade de esse instrumento estar previsto em lei no sentido formal e material, não cabendo criá-lo por meio de regimento interno. [...] Realmente, não se pode cogitar de disciplina em regimento interno, porquanto a reclamação ganha contornos de verdadeiro recurso, mostrando-se inserida, portanto, conforme ressaltado pelo Supremo, no direito constitucional de petição. Cumpre, no âmbito federal, ao Congresso Nacional dispor a respeito, ainda que o faça, ante a origem da regência do processo do trabalho, mediante lei ordinária. Relativamente ao Supremo e ao STJ, porque o campo de atuação dessas Cortes está delimitado na própria Carta Federal, a reclamação foi prevista, respectivamente, no art. 102, I, l, e no art. 105, I, f. Assim, surge merecedora da pecha de inconstitucional a norma do Regimento Interno do TST que dispõe sobre a reclamação. Não se encontrando esta versada na CLT, impossível instituí-la mediante deliberação do próprio Colegiado.16 16 STF, RE 405.031, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15-10-2008, Plenário, DJe, 17-4-2009.

Enfim, os precedentes do STF confirmam a inconstitucionalidade da decisão que criou a Reclamação para o STJ de decisões proferidas pelas turmas recursais dos Juizados Especiais Cíveis.

O STF, ao inobservar os limites que o self-restraint impõe à Corte, proferiu uma decisão atentatória ao regime democrático mediante a usurpação de competência privativa do legislador. Nesse sentido, é válida a advertência de Pier Paolo Portinaro (Apud ZAGREBELSKY; PORTINARO; LUTHER, 1996PORTINARO, Pier Paolo. Il grande legislatores e il custode dela costituzione. Apud: ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörg. Il futuro dela costituzione. Turim: Einaudi, 1996. p. 5-35., p. 30):17 17 “Tendenza di poteri giurisdizionali ad assumere surrettiziamente funzioni legislative, irdgv

A tendência de o poder jurisdicional assumir sub-repticiamente funções legislativas leva os intérpretes a alertarem a respeito de um constitucionalismo ético, patentemente antidemocrático. Para dizer em uma sentença: a excessiva confiança conferida ao guardião da constituição acabará por torná-la na constituição de quem deveria guardá-la.

A legitimidade que o STF tem para proferir a última palavra sobre interpretação constitucional não lhe confere poderes ilimitados. Assim, decisões da Corte que transbordam os limites estabelecidos pela Constituição são ilegítimas. A Constituição não pode estar à mercê do STF, conformando-se às suas decisões.18 18 Situação assemelhada ocorreu em relação ao julgamento da ADPF 153, no qual o STF confirmou a validade da Lei de Anistia. Todavia, decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos que dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, as disposições da Lei de Anistia brasileira, ao impedirem a investigação e sanção pelas graves violações de direitos humanos, carecem de efeitos jurídicos. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010). Na maioria das vezes, a Suprema Corte desconhece ser “impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas” (HÄBERLE, 1997HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1997., p. 14), isto é, grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública.

Uma vez extrapolado pelo STF o poder que a Constituição lhe conferiu, há a possibilidade de rescindir sua decisão com fundamento no art. 485, inc. V, do CPC. A rescindibilidade das decisões do STF evidencia a possibilidade de a Corte Suprema proferir acórdãos inconstitucionais.

6 A repercussão da decisão no EDcl no RE 571.572

A decisão do STF foi acolhida pelo STJ e nem se poderia esperar algo diverso, tendo em vista que ao obedecê-la ampliaram-se os poderes do tribunal. Dessa forma, o STJ, considerando o que foi decidido pelo Pleno do Supremo Tribunal nos EDcl no RE 571.572, editou a Resolução n. 12 de 2009.

Ao disciplinar o cabimento da Reclamação estabeleceu que sua admissibilidade é “para dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, processados na forma do art. 543-C do Código de Processo Civil”. A resolução estabelece que o acesso ao STJ, por meio da Reclamação, se dá quando a decisão reclamada violar súmula ou acórdão em Recurso Especial Repetitivo. Essa limitação foi estabelecida visando evitar a proliferação das reclamações oriundas dos Juizados Especiais.

Essa resolução, contudo, é formal e materialmente inconstitucional. A inconstitucionalidade formal decorre do fato de Regimento Interno não poder instituir a Reclamação, além de carecer, o STJ, de competência para legislar sobre processo, atribuição privativa do Congresso Nacional. Materialmente, a restrição das hipóteses de cabimento contraria o art. 105, III, ‘f’, da Constituição da República, que diz textualmente ser cabível reclamação para o STJ para preservar sua competência e garantir a autoridade de suas decisões. Sem ressalvas, portanto. E, nesse caso, a Constituição é autoaplicável porque o STJ, na qualidade de corte constitucional, tem sua competência definida diretamente pela norma constitucional. Foi o que decidiu o STF:

No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação à dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual.19

Não foi sem razão, portanto, que o ministro Marco Aurélio, em seu voto, manifestou estranhamento sobre o que estava sendo decidido nos EDcl no RE 571.572 ao pontuar que “o mais interessante é que não se chega ao Superior na via da recorribilidade e se chegará mediante um sucedâneo recursal, ou seja, a reclamação!”.

Nesse passo, os Juizados Especiais em foco estariam fora do alcance da jurisdição do STJ, seja por não integrarem a justiça comum, já que possuem regramentos específicos de processamento de suas causas, seja porque as turmas recursais não podem ser qualificadas como tribunal. Assim, é incabível Recurso Especial contra decisões proferidas em última instância pelos Juizados Especiais Cíveis estaduais.

Considerando que os limites de competência do STJ estão definidos na Constituição, é de manifesta inconstitucionalidade a inovação normativa advinda com a Resolução n. 12/2009, ampliando suas competências.

7 A incompetência do STF para legislar acerca de matéria processual

Noutro aspecto, é inconteste que somente através de legislação federal criam-se normas de direito processual, conforme art. 22, I, da Constituição de 1988.20 20 Reconhece-se a força normativa do RISTF, aprovado sob a égide da Constituição de 1969, que conferia competência normativa primária ao STF e que foi recepcionado pela Constituição de 1988. Nesse sentido, a criação pelo STF de instrumento processual para acesso ao STJ evidentemente introduz no sistema processual brasileiro uma hipótese de sucedâneo recursal, até então inexistente. O Supremo ultrapassou sua função de guardião da Constituição e adentrou seara privativa do Poder Legislativo.

No mesmo diapasão está a Resolução n. 12 de 2009 do STJ, que prevê a hipótese de reclamação contra decisões das turmas recursais dos Juizados Especiais estaduais. Essa Resolução estabelece o cabimento, prazo e forma de processamento da reclamação constitucional.

Evidente, portanto, a inconstitucionalidade da Reclamação para o STJ em relação a decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais estaduais, por ser esse Tribunal absolutamente incompetente para tal fim, além de não obedecer à forma prescrita na Carta Maior para criação de norma processual.

8 A inconstitucionalidade material da decisão dos EDcl no RE 571.572

Além dos vícios formais, expostos anteriormente, a decisão do STF encontra-se viciada em razão da matéria. A Reclamação dos Juizados Especiais estaduais para o STJ é totalmente descabida em virtude de várias incompatibilidades com a Constituição da República.

8.1 A incompatibilidade da Reclamação com o sistema dos Juizados Especiais

Reitera-se que os Juizados Especiais Cíveis tem por pilares os princípios da simplicidade, oralidade, informalidade, conciliação e celeridade. Destarte, para garantir um procedimento especial que realizasse esses princípios foram criados órgãos especiais, de primeira e segunda instância, além de regras processuais próprias para o processamento e julgamento das demandas de sua competência.

Demonstrou-se, de acordo com a Constituição da República, que os juizados especiais estaduais não estão submetidos à jurisdição do STJ. Permitir a interposição de Recurso Especial, de técnica processual requintada por ser um recurso de fundamentação vinculada, cujo procedimento se distancia dos princípios dos Juizados Especiais, desvirtuaria por completo todo o sistema.

Seria paradoxal a concepção de um procedimento que até o julgamento de segundo grau pelas turmas recursais é célere e simples, mas, ao final, desemboca em um dos recursos mais complexos do sistema processual brasileiro em razão dos seus rigorosos pressupostos constitucionais. Ao admitir-se acessibilidade ao STJ não se justificaria a opção pelo procedimento dos Juizados Especiais. Nessa hipótese, o princípio da segurança jurídica mitigado no sistema dos juizados, bem como a inexistência de uma cognição plena, verticalizada e exauriente, sem nenhuma compensação jurídica, esvaziaria os Juizados Especiais.

Evidencia-se, portanto, a razoabilidade da impossibilidade de interposição de Recurso Especial nos sistema dos Juizados Especiais Cíveis. Esse sistema deixaria de ser atrativo por se despir de qualquer vantagem a justificar a opção, carregando consigo grandes moléstias do processo contemporâneo, que são o formalismo e a morosidade.

A ratio essendi dos Juizados Especiais é exatamente a possibilidade de oferecer um procedimento descomplicado, célere e econômico a ponto de admitir o ius postulandi da parte no primeiro grau. Os juizados são uma instância de elevado nível democrático, na medida em que, ao privilegiarem a composição consensual e a oralidade, prestigiam a autonomia e a participação do cidadão.

Nada disso encontra correspondência com os procedimentos instaurados perante o STJ. Ademais, as causas propostas perante os Juizados Especiais Cíveis são de natureza estritamente privada. O interesse público que as reveste realiza-se mediante a resolução célere e eficaz dos litígios submetidos aos juizados.

Nesse aspecto, não há motivo para que esses conflitos sejam levados à revisão de um órgão superior para controle de legalidade das decisões.

8.2 A manutenção do veto presidencial

Analisando-se o processo legislativo que culminou na promulgação da Lei n. 9.099/95, constata-se, mais uma vez, que a inexistência de uma Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Cíveis estaduais foi uma opção do legislador. Não houve omissão. A manutenção do veto presidencial se deu pelo acolhimento de seus fundamentos, que é inexistência de interesse público a justificar a criação de turmas nacionais de uniformização.

Derrui-se, assim, o argumento principal utilizado pelo STF para atribuir competência ao STJ para apreciação de causas oriundas dos Juizados Especiais Cíveis estaduais. Como se vê, diferentemente do procedimento de Juizados Especiais Federais e da Fazenda Pública, que contam com Turmas Nacionais de Uniformização da Jurisprudência, a lacuna deixada pelo legislador na Lei n. 9.099/95 não é um vácuo normativo. Trata-se de um ato discricionário do Congresso, revestido de legitimidade democrática, que considerou inconveniente e inoportuna a criação de uma instância de uniformização nos Juizados Especiais Cíveis.

Observa-se no art. 47 do PL n. 1.480/89 (BRASIL, 1989BRASIL . Projeto de Lei n. 1.480-A, de 1989. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=25233. Acesso em: 20 fev. 2014.
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/...
), que culminou na Lei n. 9.099/ 95, que havia previsão de se criar, no âmbito dos tribunais estaduais, turmas de uniformização de jurisprudência. Ocorre que esse dispositivo foi vetado, sob o fundamento de incompatibilidade com o sistema dos Juizados Especiais, que deveriam permitir um acesso à prestação jurisdicional a seus usuários de forma célere. O veto foi mantido, concluindo-se que o legislador escolheu pela abreviação do procedimento para, com isso, evitar o desvirtuamento dos princípios norteadores dos Juizados Especiais Cíveis.21 21 “O art. 47 do projeto de lei deve ser vetado, com fundamento no interesse público, porque a intenção que norteou a iniciativa parlamentar foi propiciar maior agilidade processual, o que não aconteceria com a sanção deste dispositivo, visto que ele ensejaria o aumento de recursos nos tribunais locais, em vez de sua diminuição. Daí, não mais haveria brevidade na conclusão das causas, contrariando todo o espírito que moveu a proposição e que traduz o anseio de toda a sociedade brasileira.” (BRASIL, 1995).

A uniformização de entendimento entre as turmas recursais na mesma unidade federativa está contemplada no Provimento CNJ n. 7 (2010)CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento de n. 7, de 7 de maio de 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_corregedoria/provimentos/provimento_07.pdf. Acesso em: 10 mai. 2014., que determina a instituição de Turmas de Uniformização estaduais, presidida por um desembargador. Inexiste, todavia, Turma Nacional de Uniformização, bem como meio de acesso ao STJ, pois tanto o legislador, quanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não foram além da criação das turmas de uniformização estaduais.

A superveniência das leis que instituíram os Juizados Especiais Federais e os das Fazendas Públicas, estadual e municipal, não altera a situação dos Juizados Especiais Cíveis estaduais. Os fundamentos que motivaram a criação dos outros juizados são totalmente diversos das razões que levaram à criação do Juizado Especial Cível. A Lei n. 9.099/95 visou ampliar o acesso à justiça e, assim, contribuir para o fortalecimento da cidadania. Por sua vez, os Juizados Federais e das Fazendas Públicas visaram, precipuamente, à redução das taxas de congestionamento da justiça comum.

Incide, no caso, o § 2º do art. 2º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, que dispõe que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. A posterioridade das leis n. 10.259 e 12.153, portanto, é indiferente ao sistema instituído pela Lei n. 9.099/95. A recíproca não é verdadeira; as duas leis posteriores à Lei n. 9.099/95 aplicam-na de forma subsidiária.

Frise-se, ainda, que os juizados estaduais não se confundem com os demais. Há grandes diferenças a distingui-los, a começar dos sujeitos envolvidos. Nos juizados especiais estaduais os litígios envolvem pessoas naturais ou de direito privado. Nos demais, necessariamente há a presença da fazenda pública estadual ou federal. Essa diferença subjetiva justifica o procedimento diferenciado estabelecido pelas leis que os regem.

Nesse passo, não tratando apenas do interesse particular de resolução de um conflito, como nos Juizados Cíveis Estaduais, nos Juizados das Fazendas Públicas envolvem-se interesses do Estado em conflito com os interesses do cidadão. Portanto, a necessidade de uniformização da jurisprudência e uma forma de acesso ao STJ são imprescindíveis visando à concretização do princípio da igualdade perante a lei. Por essas razões, não se justifica a imposição, pelo Judiciário, da instituição de algo expressamente rechaçado pelo Poder Legislativo.

8.3 Os efeitos da decisão do STF

O fato de a Reclamação ter sede constitucional não foi considerado na decisão do STF, pelo que franqueou amplo acesso ao STJ. A Corte Suprema não deveria desconhecer que atender aos parâmetros constitucionalmente estabelecidos é um requisito imprescindível para se acessar a corte superior.

Pois bem, a Constituição não contempla a possibilidade de das turmas recursais cíveis se ascender ao STJ por uma simples razão: a reclamação objetiva manter a autoridade e competência do STJ. Entretanto, como os Juizados Especiais Cíveis não estão sob a jurisdição desse tribunal superior, as turmas recursais estão imunes à autoridade e competência do STJ.

Contudo, a decisão do STF propiciou vasta utilização desse sucedâneo recursal assoberbando ainda mais o STJ. Segundo relatório do CNJ, em 2013, a taxa de congestionamento do STJ foi de 51,5%, sendo a carga de processos por ministro de aproximadamente 20 mil/ano (CNJ, 2013CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório justiça em números 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf. Acesso em: 12 mai. 2014.
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-j...
). Tem-se notícia, ainda, de que:

Em 2009, quando se atribuiu ao STJ a função de órgão unificador das decisões desses juizados, foram distribuídas 150 reclamações na Segunda Seção (que julga casos de direito privado). Até o último dia 6 de outubro de 2011, os ministros se depararam com o total de 2.300 reclamações, número que tende a crescer, segundo avaliação dos próprios magistrados. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Excesso de reclamações ameaça conquistas da Justiça especial estadual. Portal do STJ, 1º nov. 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103824. Acesso em: 21 fev. 2014.
http://www.stj.jus.br/portal_stj/publica...
).

Percebe-se, enfim, que a “simples orientação do STF” produziu efeitos catastróficos, necessitando ser prontamente revista.

Considerações finais

O sistema dos Juizados Especiais Cíveis estaduais restringe-se ao processamento e julgamento de ações individuais ajuizadas por pessoas capazes visando tutela jurídica de direito patrimonial disponível. O interesse público envolvido nesse modelo de justiça refere-se ao dever do Estado de universalizar o acesso à justiça e assegurar garantia de efetiva proteção judicial.

A realização dos propósitos desse sistema levou o constituinte e o legislador a excluírem os Juizados Especiais Cíveis da alçada do STJ. Contudo, a malsinada decisão do STF no EDcl no RE 571.572 possibilitou ao STJ editar a Resolução n. 12/2009, na qual se disciplinou a admissibilidade de Reclamação contra decisões de turmas recursais cíveis estaduais.

Confrontada a decisão do STF com a Constituição da República, constatou-se sua manifesta contrariedade ao texto constitucional, nos aspectos formal e material. A inconstitucionalidade formal decorre do fato de o STF não deter competência legiferante. A material advém do fato de que, por meio de uma distorção da compreensão do que seja ativismo judicial, materializada no referido acórdão, o STF criou, ao arrepio das normas constitucionais, a Reclamação para o STJ de decisões emanadas do sistema dos juizados especiais cíveis.

A questão enfrentada era a admissibilidade de o guardião da Constituição, o STF, proferir decisões incompatíveis com a norma suprema. Desenganadamente, a resposta é afirmativa porque o ordenamento jurídico contempla a possibilidade de rescisão das decisões inconstitucionais, por meio de ação rescisória fundada em violação literal de disposição do texto constitucional.

O julgamento dos EDcl no RE 571.572 feriu gravemente o escopo da Lei n. 9.099/95. Essa lei visa, por meio dos Juizados Especiais Cíveis, prestar tutela jurisdicional gratuita, célere, de procedimento simplificado, informal e oral, além de prestigiar a conciliação, e, assim, democratizar o acesso à justiça.

A repercussão da decisão do STF é a pior possível por contribuir para um maior assoberbamento do STJ com milhares de novas reclamações, até então inadmissíveis. Além disso, a possibilidade de se ascender ao STJ significa o desvirtuamento do sistema dos Juizados Especiais Cíveis, tornando-o uma opção menos vantajosa do que litigar na justiça comum.

Ficou demonstrado, ainda, que o acórdão do STF não possui fundamentos aptos a sustentá-lo, tendo em vista a circunstância de que os Juizados Especiais Cíveis estaduais são imunes à jurisdição do STJ. A Constituição é inconteste nesse sentido, pois os juizados não integram a justiça comum, tampouco as turmas recursais qualificam-se como tribunais.

Contrariamente aos Juizados Especiais Federais e aos das Fazendas Públicas, o legislador optou por não prever uma Turma de Uniformização da Jurisprudência dos juizados estaduais, tendo em vista obediência aos princípios informadores. Não se trata de omissão legislativa, mas de decisão consciente do legislador.

Por fim, o instrumento da reclamação ao STJ é cabível somente na preservação da autoridade e competência dessa Corte, não devendo ser utilizado como sucedâneo recursal, conforme sugeriu o STF. Em face da imunidade jurisdicional dos Juizados Especiais Cíveis estaduais em relação ao STJ, concluiu-se que a Reclamação contra decisões desses juizados não têm nenhuma razão de ser.

Enfim, a despeito de todas as questões de constitucionalidade arguidas, a decisão do STF permanece incólume há cinco anos, levando-nos a questionar quis custodiet ipsos custodes?

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  • WATANABE, Kazuo. Juizados especiais de pequenas causas: Lei 7.244 de 7 de novembro de 1984. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.
  • 1
    STF, RE 571.572 ED, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe, 26-11-2009.
  • 2
    STF, RE 576847, Rel. Min. Eros Grau, DJe, 7-8-2009.
  • 3
    STF, RE 571.572-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe, 27-11-2009.
  • 4
    STJ, “Súmula 203 - Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”.
  • 5
    STF, RE 584073 ED, Rel. Min. Rosa Weber, DJe, 9-10-2012.
  • 6
    Conheça o STJ. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=293. Acesso em: 15 abr. 2014.
  • 7
    STF, ADI 2797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19-12-2006.
  • 8
    REsp n. 21.664/MS, Rel. Min. Athos Carneiro, DJ 15-12-1992.
  • 9
    STJ, “Súmula 203 – Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. FONAJE, Enunciado 63 – “Contra decisões das Turmas Recursais são cabíveis somente os embargos declaratórios e o Recurso Extraordinário”.
  • 10
    STF, Rcl 336/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 15-3-1991.
  • 11
    STF, ADI 2212/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ, 14-11-2003.
  • 12
    STJ, RCD nos EDcl na Rcl 13082, Min. Assusete Magalhães, DJe, 6-5-2014.
  • 13
    STJ, AgRg no RMS 12218, Min. Castro Filho, DJ, 11-11-2002.
  • 14
    STJ, AgRg na Rcl 2704/SP, Min. Teori Albino Zavascki, DJe, 31-3-2008.
  • 15
    STJ, Rcl 2547, Min. Eliana Calmon, DJe, 29-9-2008.
  • 16
    STF, RE 405.031, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15-10-2008, Plenário, DJe, 17-4-2009.
  • 17
    “Tendenza di poteri giurisdizionali ad assumere surrettiziamente funzioni legislative, irdgv
  • nterpreti preoccupati mettono in guardia dal rischio di scivolamento in uma forma di costituzionalismo etico latentemente antidemocrático. Per dirla com uma formula: l’eccessivo credito tributato al custode dela costituzione finirebbe per portare ala costituzione dei custodi.”
  • 18
    Situação assemelhada ocorreu em relação ao julgamento da ADPF 153, no qual o STF confirmou a validade da Lei de Anistia. Todavia, decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos que dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, as disposições da Lei de Anistia brasileira, ao impedirem a investigação e sanção pelas graves violações de direitos humanos, carecem de efeitos jurídicos. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Gomes Lund et al. (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brazil. Preliminary Objections, Merits, Reparations, and Costs. Julgamento em 24-11-2010. Disponível em: <www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 27 jun. 2016.
    www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/...
    ).
  • 19
    STF, ADI 2797. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 19-12-2006.
  • 20
    Reconhece-se a força normativa do RISTF, aprovado sob a égide da Constituição de 1969, que conferia competência normativa primária ao STF e que foi recepcionado pela Constituição de 1988.
  • 21
    “O art. 47 do projeto de lei deve ser vetado, com fundamento no interesse público, porque a intenção que norteou a iniciativa parlamentar foi propiciar maior agilidade processual, o que não aconteceria com a sanção deste dispositivo, visto que ele ensejaria o aumento de recursos nos tribunais locais, em vez de sua diminuição. Daí, não mais haveria brevidade na conclusão das causas, contrariando todo o espírito que moveu a proposição e que traduz o anseio de toda a sociedade brasileira.” (BRASIL, 1995BRASIL. Mensagem de veto n. 1.005, de 27 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9099-26-setembro-1995-348608-veto-21859-pl.html. Acesso em: 4 mai. 2014.
    http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2014
  • Aceito
    23 Mar 2016
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