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Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. A questão da identidade nacional no cinema contemporâneo

From foundational narratives to dissolution narratives. The question of national identity in contemporary cinema

Resumo

Apesar das inúmeras problematizações dos conceitos de “nação” e “nacionalismo” no âmbito da historiografia, e das discussões sobre a atualidade e a utilidade da categoria “cinema nacional” no campo dos estudos cinematográficos (BERRY, 2006), essas noções continuam sendo usadas tanto pelos estudos cinematográficos quanto por festivais e premiações. Em contraponto às chamadas “narrativas fundacionais” (SOMMER, 2004), que entrelaçavam felicidade doméstica e ideal nacional, em alguns filmes contemporâneos as esferas “individual” e “nacional” continuam ligadas, mas em chave negativa. Isso nos leva a propor o conceito de “narrativas de dissolução”, com base na análise de filmes do realizador chinês Jia Zhang-ke, e mais especificamente As montanhas se separam (2015).

Palavras-chave
cinemas nacionais; narrativas de dissolução; cinema contemporâneo; Jia Zhangke; China

Abstract

Notwithstanding the extensive discussion questioning concepts like “nation” and “nationalism” within historiography, and the debate about the actuality and functionality of “national cinema” as a category in the film studies field (BERRY, 2006), those notions continue to be used by film scholars, festivals, competitions etc. Contrary to the so-called “foundational narratives” (SOMMER, 2004), in which domestic happiness and national ideal were interwoven, some contemporary films maintain a strong relation between “individual” and “national” spheres, but in a negative way. This leads us to propose the “dissolution narratives” concept, anchored in Jia Zhangke’s film analysis, particularly Mountains May Depart (2015).

Keywords
national cinemas; dissolution narratives; contemporary cinema; Jia Zhangke; China

Introdução

Embora já em 1882 o historiador francês Ernest Renan (1992)RENAN, E. «Qu'est-ce qu'une nation» (conferência proferida na Sorbonne em 11 de março de 1882). In: Qu'est-ce qu'une nation? et autres essais politiques. Paris: Presses-Pocket, 1992. tenha observado o princípio não naturalista da nação moderna, representado na vontade de ser uma nação, é a partir das décadas de 1970 e 1980 que a historiografia revê de fato os conceitos de “nação” e “nacionalismo”, desde então entendidos como “invenção” entabulada por necessidade dos Estados. Nem sempre compartilhando o mesmo posicionamento, autores como Hobsbawn (1990)HOBSBAWN, E. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. e Anderson (2008)______. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. esclarecem quão pouco há de “objetivo” ou “natural” no entendimento que cada nação pode fazer de si e das demais.

Ao mobilizar e fomentar imaginários nacionais, as ficções – primeiramente literárias e em seguida também cinematográficas – são fundamentais para essa construção. No campo do cinema, enquanto nos anos 1970, no seio do “Terceiro Cinema” defendido por Solanas e Getino, produções nacionais da América Latina, Ásia e África eram vistas como ferramentas anti-imperialistas – o que Hennebelle condensa na fórmula “cinemas nacionais contra Hollywood” (1978)1 1 Numerosos trabalhos apontam os limites dessa oposição entre “cinemas nacionais” e Hollywood. Alguns exemplos: SHOHAT & STAM, 2003 e 2006; BERRY, 2006; HJORT & PETRIE, 2007; ELSAESSER, 2013 etc. –, a transição para o século XXI assistiu à emergência de discursos em torno da globalização como fenômeno que diminui a força dos nacionalismos.

Dudley Andrew (2010), que considera o “nacional” uma etapa relativamente breve da história do cinema, recobrindo do advento do sonoro ao final da Segunda Guerra Mundial, quando os nacionalismos se tornam “tabu” principalmente na Europa, identifica em 19892 2 Além da queda do muro de Berlim, o massacre na Praça Tiananmen, a passagem da década de 1980 para a década de 1990 assiste à preponderância da circulação em vídeo e ao novo posicionamento dos festivais internacionais, que deixam de ser apenas difusores para tornarem-se “comissionadores” de filmes. a inauguração da etapa “global” do cinema. Há evidentemente problemas na categorização de Andrew. Além das relações entre cinema e nação antes do sonoro3 3 São interessantes os estudos sobre cinema silencioso que levam em conta a questão do “nacional”. Embora nas primeiras décadas do cinema, por não haver diálogos falados, os filmes circulassem mais facilmente entre os países, é no cinema silencioso que se situariam as bases da relação entre cinema e sentimento nacional (MORETTIN, 2011a e 2011b). , Harrow (2016)HARROW, K. W. Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial). Rebeca - Revista brasileira de estudos de cinema e audiovisual, v. 5, n. 2, 2016. critica a ausência de explicitação de seu ponto de vista geograficamente determinado: a maior parte das compilações definidoras de “world cinema” e “global cinema” são concebidas em universidades anglófonas, localizadas sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, sendo produto de uma divisão do mundo entre “nós” e “eles”.

Aqui, interessa-nos trabalhar as contradições que o cinema contemporâneo encerra. Se por um lado é inegável a importância dos critérios nacionais no que se refere à circulação e à representatividade dos filmes – festivais e premiações baseiam-se na lógica nacional, assim como os estudos cinematográficos de maneira geral –, por outro lado, produções recentes têm problematizado definições de identidade e território nacionais, levando a um questionamento do próprio conceito de cinema nacional.

A análise se concentrará no filme As montanhas se separam (Shan he gu ren, 2015), do realizador chinês Jia Zhang-ke, estudado tanto do ponto de vista de sua circulação, em tensão com os critérios político-estatais de definição do que é o “cinema chinês”, quanto do ponto de vista de sua diegese e de seu registro formal. Alguns de seus elementos nos conduzirão a uma comparação com as “narrativas de fundação nacional” ou “ficções fundacionais”, gênero estudado por Doris Sommer (2004)SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2004. na literatura e aplicado também a estudos de cinema.

Num primeiro momento, apontaremos as relações de semelhança e dissemelhança entre As montanhas se separam e o gênero estudado por Sommer. Em seguida, retomaremos elementos de sua circulação, em que critérios de representatividade nacional foram trazidos à tona na pré-seleção do filme ao Oscar. Finalmente, abordaremos a questão da dissolução e da corrosão, não só do que seria a identidade nacional chinesa tal como ela é retratada no longa, mas da própria imagem cinematográfica. As considerações finais retomarão a discussão sobre o que é “cinema chinês” hoje – indicando a necessidade de utilizar o plural, “cinemas chineses”, como maneira de dar conta da diversidade geográfica, cultural, estilística e de modelos econômicos presentes nas filmografias da China contemporânea – e apontarão contradições envolvidas no uso atual da categoria “cinema nacional”.

As montanhas se separam: fundação, dissolução, representatividade

A exemplo de outros títulos de Jia e de um conjunto de produções contemporâneas de cineastas diversos4 4 Além dos filmes de Jia Zhang-ke, títulos de Lav Diaz, Marcelo Gomes & Karim Aïnouz, Miguel Gomes e Tsai Ming-Liang revelam-se interessantes com respeito à ideia de narrativas de dissolução, problematizando em múltiplos níveis a questão da nacionalidade. , As montanhas se separam entrelaça destino individual e história nacional, de maneira comparável à das “narrativas de fundação” estudadas, primeiro na literatura e em seguida no cinema, por Doris Sommer (2004)SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2004.. O filme dá ensejo, no entanto, a uma aguda problematização do que pode ser definido, hoje, como “cinema nacional”, interrogando os próprios conceitos de “nação” e “nacionalidade”.

A questão nacional é um dado fundamental da fatura fílmica, tanto do ponto de vista narrativo quanto do da sonoridade e da visualidade, mas isso não implica na reafirmação de uma identidade nacional mítica ao modo das narrativas fundacionais descritas por Sommer (2004)SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2004., ou no reforço do auto-exotismo essencialista característico de produções a que Elsaesser se refere em sua discussão sobre cinema europeu “pós-nacional” (2013, §14)5 5 As produções a que Elsaesser se refere são búlgaras, húngaras, romenas, bascas ou irlandesas. . Há, sim, tensão com relação a esse modelo, apontando para a dissolução das estruturas nacionais tradicionais (família, língua, cultura) e problematizando critérios de definição de “cinema nacional”.

De maneira comparável a filmes anteriores de Jia, como Plataforma (Zhantai, 2000) e O mundo (SHIJIE, 2004), As montanhas se separam envolve personagens em deslocamento, passagem do tempo e os efeitos das mudanças econômicas e políticas brutais da China pós-Mao sobre o modo de vida de uma família ou de um grupo social. O filme trata da vida de Tao (Zhao Tao) e de seus amigos de infância Liangzi (Liang Jing Dong) e Zhang (Zhang Yi), ambos apaixonados por ela.

A diegese se divide em três períodos: 1999, 2014 e 2025. A travessia de um espaço hostil, a disputa pelo amor de uma mulher, um casamento, um nascimento... Tais ingredientes da sinopse apontam para um parentesco com as “ficções de fundação nacional”6 6 Autora de um estudo seminal sobre a relação, na literatura, entre o romance e os novos estados, sobretudo no contexto latino-americano, Sommer (2004) analisa como a continuidade entre as esferas pública e privada se dá em um largo conjunto de livros, interessada nas conexões entre romance e república a partir do século XIX. Nesse desenvolvimento concomitante da literatura romântica e da história patriótica na América Latina, os autores estimulavam ao mesmo tempo o desejo de felicidade doméstica e os sonhos de prosperidade nacional, construindo histórias que ajudassem a estabelecer a legitimidade das nações emergentes e direcionando as histórias nacionais para um futuro idealizado. Como se sabe, as ficções literárias de fundação nacional não surgem no século XIX, dialogando sempre com modelos ligados à história do gênero épico e do melodrama. , gênero literário que floresce no século XIX, ganha força com o cinema desde o período silencioso e encontra nos westerns e melodramas estadunidenses sua mais popular encarnação – lembremos que os dois gêneros ganham força em um momento de afirmação do próprio cinema em sua vertente clássica, narrativa; de estabilização de seu dispositivo de exibição; e de crença em seus poderes de difusão ideológica.

O espelhamento entre história nacional e destino privado foi forjado, na chave positiva, por escritores e realizadores, sobretudo oriundos de “jovens nações”, que, na afirmação de sua identidade nacional, engajaram-se na afirmação de um projeto nacional idealizado. O uso de destinos individuais como estratégia de afirmação de mitos nacionais fica evidente, por exemplo, em Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, filme admirado por Eisenstein e amplamente discutido pela revista Cahiers du Cinéma. Em um artigo a seu respeito, Morettin (2011a)MORETTIN, E. O cinema e o mito da democracia americana: Abraham Lincoln e John Ford. Fameco. n. 18, 2011. p. 11-22. repertoria o uso da figura de Lincoln em produções cinematográficas e teatrais norte-americanas para analisar a utilização de sua figura para afirmar a relação entre a identidade dos Estados Unidos e a democracia.

(...) a tarefa a que se propõe Young Mr. Lincoln não é propriamente a de desmistificar o personagem principal. Pelo contrário, todo o esforço é no sentido de transformá-lo em monumento. (...) Alegoricamente, o filme de John Ford reforça a ideia de democracia a partir da figura de um líder que atua como mediador entre as diferentes forças sociais

(MORETTIN, 2011MORETTIN, E. O cinema e o mito da democracia americana: Abraham Lincoln e John Ford. Fameco. n. 18, 2011. p. 11-22., p. 20-21).

No cinema das Américas e de países de passado colonial, as narrativas fundacionais estão presentes em um vasto conjunto de filmes7 7 É impossível limitar as narrativas cinematográficas fundacionais a um período histórico determinado. Enquanto em países da América Latina elas aparecem desde a primeira metade do século XX, em países africanos cujas independências se deram tardiamente, há um boom a partir dos anos 1970. em que, de modo geral, mesclam-se a história de um herói que tenta encontrar sua heroína, tendo que vencer uma série de contratempos, e a travessia de parte do território nacional, reedição inesgotável da trajetória de Ulisses.

Nos westerns, a travessia em geral masculina e solitária de territórios “virgens” – entre aspas, pois não se trata de desertos populacionais de fato, mas de territórios não povoados por brancos – é fundadora do ideário dos Estados Unidos enquanto “terra de oportunidades” e, ao mesmo tempo, perfaz o caminho de peripécias enfrentado pelo herói antes de encontrar a felicidade, o amor e uma terra propícia para fundar sua família, germe da nação em construção. Nas “narrativas de dissolução” contemporâneas, elementos característicos da literatura fundacional fazem-se presentes de maneira distorcida. Reedita-se o entrelaçamento entre destino individual e destino coletivo, mas na chave da desesperança e da dissolução. Intensifica-se, assim, uma estrutura já presente no cinema moderno8 8 O cinema neorrealista, cujo papel de inaugurador de um certo modernismo cinematográfico foi amplamente discutido, marcadamente a partir de Deleuze (1983, 1985), é fundamental ao enlaçar os destinos dos personagens aos da nação na chave da crise, o que evidentemente se relaciona ao peso da Segunda Guerra Mundial no contexto europeu. Xavier (2012) já havia notado, no Cinema Novo, a retomada de motivos caros às narrativas fundacionais associada à ideia de desesperança e subdesenvolvimento, e também como sintoma do desencanto pós-fracasso de projetos coletivos utópicos. Há algo de semelhante na descrença no futuro posta em cena pela produção fílmica mais recente, sem que, no entanto, exista um objetivo alegórico de chamar atenção para uma condição subdesenvolvida. , mas a questão agora é apontar para os limites do nacional e do cinema enquanto entidades monolíticas, propositivas e de especial poder federador.

Em meados de 2015, admiradores do cinema de Jia Zhang-ke foram convidados, por e-mails e postagens em redes sociais, a entrarem no site do IMDB e darem nota máxima na avaliação de seu último longa-metragem, As montanhas se separam. Não era um apelo comum, não se tratava apenas de defender o filme do realizador chinês, nem de buscar o reconhecimento internacional. Havia uma estratégia, antes de mais nada política, de furar o bloqueio que as obras do cineasta vinham enfrentando havia quase vinte anos em seu país de maneira explícita ou tácita, ora como resultado da censura oficial, ora em função do controle estatal do mercado exibidor. Mountains May Depart conseguira um feito raro: permanecer uma semana em cartaz em cinemas da China, em setembro. Isso permitia que o filme competisse na cerimônia do Oscar, na categoria de “Melhor Filme Estrangeiro” (LEE, 2015).

Dez anos antes, com Still Life – Em busca da vida (Sanxia haoren, 2006), o cineasta conquistara o Leão de Ouro do Festival de Veneza; em 2013, no Festival de Cannes, Um toque de pecado (Tian zhu ding, 2013) havia levado o prêmio de melhor roteiro. Mountains May Depart fora premiado com o Cavalo de Ouro do Festival de Taipei. O filme tinha também disputado a Palma de Ouro em Cannes em 2015 – e perdido para Dheepan, de Jacques Audiard. Parte de um lobby organizado pela produção do filme e que contava com o engajamento espontâneo dos admiradores do realizador, em incontáveis postagens no Facebook, Twitter e Weirbo, além da participação do próprio Jia, a campanha em favor da indicação de Mountains May Depart ao Oscar não buscava apenas o reconhecimento internacional, que de certo modo o cineasta já tinha, mas visava o mercado chinês (BRZESKI, 2015BRZESKI, P. Controversy brewing around China's Oscar submission. The Hollywood Reporter. 18 set. 2015. Disponível em: http://www.hollywoodreporter.com/news/controversy-brewing-around-chinas-oscar-824499. Acesso em: 20 fev. 2016.
http://www.hollywoodreporter.com/news/co...
).

Acreditava-se que se o filme estivesse no topo, o governo chinês se veria no dever de indicá-lo como representante do país na premiação, apesar das difíceis relações do realizador com as autoridades chinesas para o cinema. Os capítulos seguintes não são segredo: o indicado foi Espírito de Lobo (2015), filme rodado no Canadá, realizado pelo francês Jean-Jacques Annaud com base no livro do chinês Lu Jiamin, e na sequência desclassificado por contar com poucos chineses na equipe criativa (AMY, 2015AMY, Q. Academy rejects China's Oscar submission for foreign language film. The New York Times, 12 out. 2015. Disponível em: http://mobile.nytimes.com/blogs/artsbeat/2015/10/12/academy-rejects-chinas-oscar-submission-for-foreign-language-film/?referer=http%3A%2F%2Ffeedly.com%2Findex. html&_r=1 Acesso em: 20 fev. 2016.
http://mobile.nytimes.com/blogs/artsbeat...
).

Até 1º de outubro, quando seriam anunciados oficialmente os representantes de cada país indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, um caloroso debate nas redes sociais, em jornais e em revistas de cinema opunha Jia a Annaud. O cerne da querela dizia respeito a questões de nacionalismo e nacionalidade. Qual dos dois filmes era o mais “chinês”? Ainda que se reconhecessem as qualidades estéticas de ambos, contra Jia pesava o fato de que, embora nascido no país, seus filmes são difíceis e desconhecidos do grande público. Annaud era criticado por ser francês e por sua visão idílica da Revolução Cultural, considerada distante da realidade.

Este artigo não pretende tomar partido do debate e menos ainda aferir quão “chineses” ou “representativos” do cinema chinês seriam Mountains May Depart e Espírito de Lobo. Se reconstituo a anedota aqui, é porque ela ilustra de maneira exemplar alguns aspectos do peso determinante que critérios de nacionalidade – identidade, representatividade, legitimidade – exercem na trajetória dos filmes ainda hoje, quando os conceitos de nação e nacionalismo não cessam de serem postos em xeque. Além disso, o caso é particularmente interessante pelo fato de As montanhas se separam trazer, em sua fatura, uma aguda discussão sobre identidade nacional, propondo uma visão de uma identidade chinesa em dissolução – tal é nossa hipótese.

Nos filmes de Jia Zhang-ke, o destino individual de um personagem vincula-se à história nacional, com foco não na fundação, mas na dissolução geográfica, geológica, cultural, social – e mesmo da imagem fílmica. Assim, em Still Life, duas histórias de amor, migração e separação ambientam-se na cidade de Fengjie, que prepara seu próprio desaparecimento em decorrência da inundação provocada pela construção da Barragem das Três Gargantas. Jia revisita a paisagem do Sichuan sete anos mais tarde em Um toque de pecado: Han Sanming, ator que em Still Life tinha papel protagônico, como um trabalhador das minas do Shanxi que chega a Fengjie em busca da filha e da ex-mulher, desembarca no mesmo porto; a diferença, agora, é o horizonte pontuado por arranha-céus ultramodernos, e a absoluta ausência das construções tradicionais cujos derradeiros momentos havíamos testemunhado no filme de 2006. Em As montanhas se separam, Sanming é visto de relance, ainda trabalhando em uma mina de carvão. Junto com Zhao Tao, Sanming é presença constante na produção de Jia, desenhando um percurso histórico e geográfico que transborda as fronteiras entre os filmes, construindo uma enorme e interminável narrativa.

Em As montanhas se separam, do ponto de vista narrativo, temos dois homens que disputam o amor de uma mulher; ela se casa com um deles e tem um filho. No campo da visualidade, veem-se paisagens chinesas emblemáticas, como o Rio Amarelo e as muralhas de Fenyang; veem-se, ainda, festejos tradicionais de Ano Novo, celebrações de casamento. Tais elementos são frequentes nas ficções de fundação. Com o passar do tempo, a história se revela o avesso disso tudo. Sobrevêm separações, morte, imigração, incomunicabilidade. Se na narrativa fundacional a travessia territorial aponta para o futuro de oportunidades que os terrenos despovoados do oeste norte-americano representam, a China de As montanhas se separam não oferece futuro para os protagonistas – e parte deles emigra.

O termo “narrativas de dissolução” vale-se da polissemia do segundo termo – em seu sentido físico-químico, diluição de um soluto em um solvente. Pesquisas anteriores haviam observado, em Still Life, a dissolução da arquitetura de Fengjie e do relevo das Três Gargantas em decorrência da construção da barragem, processo que também envolve o apagamento de todo um modo de vida, de uma memória coletiva (lembremos do sítio arqueológico da cidade, que abrigava um cemitério milenar) e da própria imagem cinematográfica. Depois de algumas experiências em 35mm e em VHS, a adoção da filmagem digital por Jia Zhang-ke, associada a um registro realista baseado em planos sequência, e pontuada por efeitos especiais, apontaria para uma dissolução que envolveria o próprio cinema em sua ontologia de matriz baziniana. De fato, a produção de Jia reflete uma transformação do cinema enquanto arte e instituição, num momento de transição do cinema em película para o digital. Seus filmes chegam ao público por circuitos alternativos – mercado pirata, internet e festivais –, sendo raramente exibidos em salas comerciais no país.

Haveria uma correspondência entre a inversão operada por essas “narrativas de dissolução” em relação às narrativas fundacionais do cinema clássico, e o momento de crise vivido pelo próprio cinema, que se vê desprovido de componentes que até pouco tempo serviam para defini-lo? Se o cinema clássico encontrou na película de 35mm e na projeção em sala escura os pilares de sua definição e, nas ficções fundacionais, uma forma de consagração; o cinema contemporâneo estaria enfrentando seu próprio esfacelamento na oscilação entre a textura da película e a do vídeo, e em narrativas que afirmam o desmonte de uma ideia de nação tal como era conhecida.

Em As montanhas se separam, desenha-se um percurso temporal, geográfico e cinematográfico preciso. Como já foi dito, o filme compreende três tempos: 1999, 2014, 2025. Na narrativa, Tao e Jinsheng (Yi Zhang) casam-se em Fenyang na primeira parte do filme e, em 2014, encontram-se separados, ela permanecendo em sua cidade, ele vivendo com o filho e uma nova mulher em Shanghai. Em 2025, o filho do casal mora com o pai na Austrália.

O filme começa e termina ao som de Go West, hit da disco music criado pelo Village People nos anos 1970. Na sequência inicial, o trio de protagonistas (Tao, Jisheng e Langzi) dança a versão do grupo britânico Pet Shop Boys de 1993. A música pop pontua a filmografia de Jia Zhang-ke (MELLO, 2015MELLO, C. De dia Deng Xiaoping, de noite Deng Lijun: música e memória em Plataforma. Significação - Revista de cultura audiovisual, v. 42, n. 43, 2015. p. 146-161.), de modo geral transmitindo um individualismo reprimido durante o período em que os valores coletivos predominavam, e que encontram vias de expressão, entre outras coisas, nos ritmos importados chegados ao país em meio à abertura política iniciada nos anos 1970. Aqui, destaca-se a letra da canção em inglês, numa apologia do deslocamento em direção ao Ocidente. Na sequência final, já em 2025, veremos Tao dançar sozinha a mesma melodia, mas desprovida de letra, sob uma neve criada artificialmente em pós-produção.

De uma ponta a outra, envelhecem a personagem, o cinema, a China. Na primeira parte, a imagem, em formato 4:3, tem textura característica do vídeo daquele momento – Jia valeu-se, na montagem, de materiais gravados por ele na década de 1990, rodando cenas novas de maneira a encadeá-las na narrativa. Na segunda, já em 16:9, temos a textura digital contemporânea, com menos “sujeira”. Finalmente, as imagens de 2025 alongam-se horizontalmente e são ainda mais lisas e artificiais, numa caracterização do futuro cinematográfico quase caricatural. A essa dissolução da imagem realista em uma nitidez exacerbada e finalmente falsa, somam-se dissoluções de outras ordens.

A escolha musical para a abertura do filme indicaria um movimento de ocidentalização também caricatural. Jia costuma combinar em seus filmes referências às artes tradicionais chinesas, à cultura pop local e a elementos oriundos de um repertório – sobretudo cinéfilo – internacional. A escolha do hit dos Pet Shop Boys poderia, nesse contexto, ser entendida como intensificação desse processo. Mas não se trata apenas disso: a música que embala o início e a conclusão do filme é um indicativo, bastante literal, da tensão linguística desenvolvida ao longo do filme.

Ainda na primeira parte, Tao, Jinsheng e Langzi estão na loja de eletrodomésticos do pai dela e um casal chega para comprar um aparelho de som. Eles colocam um CD e a melodia romântica de Sally Yeh9 9 Nascida em Taipei (Taiwan) em 1961, Sally Yeh tem nacionalidade canadense – ela emigrou com a família para o Canadá aos 4 anos. A cantora e atriz se expressa em cantonês, mandarim e inglês. invade o espaço. “Que bonito”, diz Tao. “Mas não entendo cantonês”. Essa incompreensão inicial se intensifica gradativamente. Em 2014, seu filho chega a Fenyang para o funeral do avô e chama a mãe de “Mummy” – em Shanghai, ele é educado em uma escola britânica. Em 2025, já vivendo na Austrália, ele só fala inglês, e sequer consegue comunicar-se com o pai.

Mortes, enterros, separações e a ruptura na transmissão da herança cultural familiar são motivos frequentes na obra de Jia, encontrados por exemplo em The World e Still Life. Num contraponto aos casamentos e nascimentos frequentes nas ficções fundacionais, esses motivos perfariam um vocabulário próprio das narrativas de dissolução. Em As montanhas se separam, a tensão entre essas categorias se faz visível em diversos momentos. Um exemplo: estamos já em 2025, na Austrália, onde Jinsheng vive com o filho, Dollar – o nome, evidentemente, não é fortuito. Ele é um jovem na casa dos 20 anos e trabalha em um restaurante chinês típico, de decoração pouco autêntica. Logo entra sua professora de chinês, acompanhada de seu ex-marido canadense. Eles estão ali para acertar detalhes do divórcio. Mais tarde, a professora se tornará intérprete nas tentativas de conversa entre filho e pai. Depois, será sua namorada. Num passeio romântico de helicóptero, Dollar e a professora sobrevoam falésias emblemáticas da costa australiana, conhecidas como “Doze Apóstolos” – que na parte anterior, em 2014, o pequeno Dollar havia mostrado imagens daquele relevo a sua mãe. Ela comenta: “quando cheguei aqui, eram oito. Agora só restam três”. Referência a um processo erosivo efetivamente enfrentado pelas falésias australianas, o diálogo ecoa o desaparecimento do relevo das Três Gargantas e, num nível metafórico, a diluição da cultura, dos costumes e das artes tradicionais num ambiente pós-moderno de neutralidade, evolução acompanhada pela própria polidez da imagem digital.

Considerações finais

É difícil falar em “cinema chinês” sem problematizar a questão do “cinema nacional” ou, mais precisamente, da “cinematografia nacional”10 10 Ainda que por vezes apareçam como sinônimos, os termos “cinema nacional” e “cinematografia nacional” têm uso diferenciado. O último aparece sobretudo no contexto francófono (cf. por exemplo DUMONT e TORTAJADA, 2007), onde sua distinção reflete aquela entre história e historiografia: “cinema nacional” dá ênfase à produção fílmica de um determinado país, enquanto “cinematografia nacional” se liga sobretudo às maneiras de organizar, narrar essa produção. . Berry e Pang (2008)BERRY, C. e PANG, L. Introduction, or, What's in an 's'? Journal of Chinese Cinemas. v. 2, n. 1, 2008. p. 3-8. discutem o problema propondo o uso do “s” na expressão “cinemas chineses” (“Chinese cinemas”) e evidenciando sua qualidade eminentemente transnacional. Para além das distintas geografias recobertas pelos cinemas chineses (alguns autores preferem “cinemas em chinês”, embora tampouco haja homogeneidade linguística), ressaltam-se as diferenças entre o cinema que se faz na China continental, em Taiwan, Hong Kong e na diáspora. Mais importante: entendem que não há ideia comum de cinema e nação nem mesmo no interior dos territórios.

Um caminho é estudar os cinemas chineses dentro de uma perspectiva transnacional – o transnacional seria uma característica do cinema produzido na China contemporânea, conforme propõe Sheldon Hsiao-Peng Lu já em 1997LU, S. (Org.), Transnational chinese cinemas: identity, nationhood, gender. Honolulu: University of Hawaii Press, 1997., discussão prolongada por Berry e Pang (2008)BERRY, C. e PANG, L. Introduction, or, What's in an 's'? Journal of Chinese Cinemas. v. 2, n. 1, 2008. p. 3-8., Higbee e Lim (2010)HIGBEE, W. e LIM, S. H. Concepts of transnational cinema: towards a critical transnationalism in film studies. Transnational cinemas. v. 1, n. 1, 2010. p. 7-21., entre outros. Monvoisin (2013)MONVOISIN, F. Cinemas d'Asie - Hongkong, Corée du Sud, Japon, Taiwan: analyse géopolitique. Rennes: PUR, 2013., que discute o uso do “s” em seu trabalho sobre os cinemas asiáticos, mantém o nacional como categoria nos estudos que propõe do cinema japonês, chinês e taiwanês (no singular), curiosamente excluindo do que considera “cinema chinês” a filmografia de Jia Zhang-ke, por não ser “representativo” o suficiente. Ainda no que se refere a Zhang-ke, Mello (2013____. Espaço e Intermidialidade em Still Life de Jia Zhang-ke. Aniki - Revista portuguesa da imagem em movimento, v. 1, n. 2, 2014., 2014)_____. Jia Zhangke's Cinema and Chinese Garden Architecture. In: NAGIB, L.; JERSLEV, A. (Ed.). Impure cinema: intermedial and intercultural approaches to film. London/New York: I. B. Tauris, 2014., sem negar sua dimensão transnacional, identifica elementos da cultura e das artes tradicionais chinesas na filmografia do autor.

Como se sabe, o “nacional” é uma categoria da historiografia clássica, seja por fornecer uma estrutura para as histórias gerais, seja para descrever cinematografias específicas (TORTAJADA, 2008TORTAJADA, M. Du "national" appliqué au cinema. 1895 - Revue de l'association française de recherche sur l'histoire du cinéma, n. 54, 2008., p. 9). Se o conceito de “cinema nacional” vem sendo questionado, nomeadamente pela “nova história”, que traz reflexões metodológicas sobre as histórias nacionais do cinema11 11 A literatura a esse respeito é abundante, sobretudo no mundo anglófono (cf. ROSEN, 2006 [1984]; HJORT & MACKENZIE, 2000; VITALI & WILLEMEN, 2006), mas também presente no universo francófono (FRODON, 1998; SORLIN, 1996a). O tema é central nos estudos do cinema asiático, sobretudo na China. , influenciadas por trabalhos sobre o conceito de “nacionalidade”, “nacionalismo” e “nação”12 12 A esse respeito, nos referimos aos trabalhos de Anderson (2005; 2008), Gellner (1993) e Hobsbawn (1990). , o “nacional” enquanto categoria cinematográfica está longe de tornar-se obsoleto. Sua importância é atestada em festivais de cinema internacionais, em que os filmes representam seus países, assim como em retrospectivas e premiações, como foi visto acima, no caso de As montanhas se separam. O critério nacional continua sendo usado pela historiografia e mais amplamente pelos estudos de cinema13 13 HAYWARD, 1993; SORLIN, 1996b; GITTINGS, 2002; TRIANA-TORIBIO, 2003. .

Na tentativa de definir “cinemas nacionais”, Rosen (2006)ROSEN, P. History, textuality, nation. In: VITALI, V.; WILLEMEN, P. Theorising national cinema. Londres: BFI Publishing, 2006, p. 17-28. Publicado anteriormente em Iris. n. 2, v. 2, 1984. p. 60-83. toma como parâmetro aqueles estabelecidos na primeira metade do século XX, assim como a literatura sobre eles, que ajudou a conformá-los, na segunda metade do século. É o caso do cinema alemão realizado no período entre as duas Guerras Mundiais, analisado por Kracauer (1988)KRACAUER, S. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988 (1947)., e do cinema japonês, estudado por Burch (1979)BURCH N. To the distant observer: form and meaning in the Japanese cinema. Londres: Scholar Press, 1979.. Kracauer e Burch trabalham a partir da identificação de características comuns a um conjunto de filmes, e da relação entre essas características e questões como identidade nacional, situação histórica, tradição cultural etc. Rosen afirmava, em um texto originalmente publicado na década de 1980:

Discutir um cinema nacional pressupõe não somente que exista um princípio ou princípios de coerência entre um grande número de filmes, mas também implica o pressuposto de que esses princípios têm algo a ver com a produção e/ou a recepção desses filmes dentro das fronteiras legais de um dado estado-nação (ou que eles se beneficiem de capital controlado dentro dele). Ou seja, a coerência intertextual está conectada a uma coerência sócio-política e/ou sociocultural, implicitamente ou explicitamente assignada à nação.

(ROSEN, 2006ROSEN, P. History, textuality, nation. In: VITALI, V.; WILLEMEN, P. Theorising national cinema. Londres: BFI Publishing, 2006, p. 17-28. Publicado anteriormente em Iris. n. 2, v. 2, 1984. p. 60-83., p. 18 – nossa tradução).

O estudo da filmografia de Jia Zhang-ke e da produção chinesa contemporânea indica que encontrar essa coerência no seio do que seria o “cinema nacional chinês” beira o impossível. A análise de As montanhas se separam, por sua vez, aponta para uma problematização, em sua fatura, de pilares da definição de “cinema nacional”, como identidade linguística, cultural e territorial. O filme caracteriza-se, assim, como “narrativa de dissolução”, não apenas através do que seria uma representação fílmica do esfacelamento das estruturas nacionais chinesas e da possibilidade de um cinema nacional chinês homogêneo e coerente, mas sobretudo encarnando a corrosão do próprio cinema que se firmou, no século XX, como difusor de ficções fundacionais. Numa contemporaneidade marcada por trânsitos internacionais e por mudanças institucionais no cinema, a aliança entre “cinema” e “nação”, fortalecida ao longo do século XX (FRODON, 1998FRODON, J. La projection nationale: cinéma et nation. Paris: Odile Jacob, 1998.), vê-se enfraquecida, ainda que dispositivos institucionais – festivais, premiações, modelos de circulação e os próprios estudos cinematográficos – permaneçam atrelados a critérios nacionais.

  • 1
    Numerosos trabalhos apontam os limites dessa oposição entre “cinemas nacionais” e Hollywood. Alguns exemplos: SHOHAT & STAM, 2003SHOHAT, E; STAM, R. Multiculturalism, postcoloniality, and transnational media. New Brunswick/New Jersey: Rutgers University Press, 2003. e 2006_____. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São Paulo, Cosac Naify, 2006.; BERRY, 2006BERRY, C. From national cinema to cinema and the national: chinese-language cinema and Hou Hsiao-hsien's Taiwan trilogy. In: VITALI, V.; WILLEMAN, P. (Ed.), Theorising national cinema. Londres: British Film Institute, 2006. p. 148-157.; HJORT & PETRIE, 2007; ELSAESSER, 2013_____. ImpersoNations: national cinema, historical imaginaries and new cinema Europe. Mise au point, v. 5, 2013. Disponível em: http://joumals.openedition.org/map/1480. Acesso em: 20 mar 2018.
    http://joumals.openedition.org/map/1480...
    etc.
  • 2
    Além da queda do muro de Berlim, o massacre na Praça Tiananmen, a passagem da década de 1980 para a década de 1990 assiste à preponderância da circulação em vídeo e ao novo posicionamento dos festivais internacionais, que deixam de ser apenas difusores para tornarem-se “comissionadores” de filmes.
  • 3
    São interessantes os estudos sobre cinema silencioso que levam em conta a questão do “nacional”. Embora nas primeiras décadas do cinema, por não haver diálogos falados, os filmes circulassem mais facilmente entre os países, é no cinema silencioso que se situariam as bases da relação entre cinema e sentimento nacional (MORETTIN, 2011_____. Cinema e estado no Brasil: a exposição internacional do centenário da independência em 1922 e 1923. Novos Estudos Cebrap, n. 89, mar. 2011.a e 2011b).
  • 4
    Além dos filmes de Jia Zhang-ke, títulos de Lav Diaz, Marcelo Gomes & Karim Aïnouz, Miguel Gomes e Tsai Ming-Liang revelam-se interessantes com respeito à ideia de narrativas de dissolução, problematizando em múltiplos níveis a questão da nacionalidade.
  • 5
    As produções a que Elsaesser se refere são búlgaras, húngaras, romenas, bascas ou irlandesas.
  • 6
    Autora de um estudo seminal sobre a relação, na literatura, entre o romance e os novos estados, sobretudo no contexto latino-americano, Sommer (2004)SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2004. analisa como a continuidade entre as esferas pública e privada se dá em um largo conjunto de livros, interessada nas conexões entre romance e república a partir do século XIX. Nesse desenvolvimento concomitante da literatura romântica e da história patriótica na América Latina, os autores estimulavam ao mesmo tempo o desejo de felicidade doméstica e os sonhos de prosperidade nacional, construindo histórias que ajudassem a estabelecer a legitimidade das nações emergentes e direcionando as histórias nacionais para um futuro idealizado. Como se sabe, as ficções literárias de fundação nacional não surgem no século XIX, dialogando sempre com modelos ligados à história do gênero épico e do melodrama.
  • 7
    É impossível limitar as narrativas cinematográficas fundacionais a um período histórico determinado. Enquanto em países da América Latina elas aparecem desde a primeira metade do século XX, em países africanos cujas independências se deram tardiamente, há um boom a partir dos anos 1970.
  • 8
    O cinema neorrealista, cujo papel de inaugurador de um certo modernismo cinematográfico foi amplamente discutido, marcadamente a partir de Deleuze (1983DELEUZE, G. Cinéma 1: L'image-mouvement. Paris: Minuit, 1983., 1985)_____. Cinéma 2: L'image-temps. Paris: Minuit, 1985., é fundamental ao enlaçar os destinos dos personagens aos da nação na chave da crise, o que evidentemente se relaciona ao peso da Segunda Guerra Mundial no contexto europeu. Xavier (2012)XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012. já havia notado, no Cinema Novo, a retomada de motivos caros às narrativas fundacionais associada à ideia de desesperança e subdesenvolvimento, e também como sintoma do desencanto pós-fracasso de projetos coletivos utópicos. Há algo de semelhante na descrença no futuro posta em cena pela produção fílmica mais recente, sem que, no entanto, exista um objetivo alegórico de chamar atenção para uma condição subdesenvolvida.
  • 9
    Nascida em Taipei (Taiwan) em 1961, Sally Yeh tem nacionalidade canadense – ela emigrou com a família para o Canadá aos 4 anos. A cantora e atriz se expressa em cantonês, mandarim e inglês.
  • 10
    Ainda que por vezes apareçam como sinônimos, os termos “cinema nacional” e “cinematografia nacional” têm uso diferenciado. O último aparece sobretudo no contexto francófono (cf. por exemplo DUMONT e TORTAJADA, 2007DUMONT, H e TORTAJADA, M. (Orgs.). L'histoire du cinéma suisse. Lausanne: Hauterive, Cinémathèque Suisse, Gilles Attinger, 2007.), onde sua distinção reflete aquela entre história e historiografia: “cinema nacional” dá ênfase à produção fílmica de um determinado país, enquanto “cinematografia nacional” se liga sobretudo às maneiras de organizar, narrar essa produção.
  • 11
    A literatura a esse respeito é abundante, sobretudo no mundo anglófono (cf. ROSEN, 2006ROSEN, P. History, textuality, nation. In: VITALI, V.; WILLEMEN, P. Theorising national cinema. Londres: BFI Publishing, 2006, p. 17-28. Publicado anteriormente em Iris. n. 2, v. 2, 1984. p. 60-83. [1984]; HJORT & MACKENZIE, 2000; VITALI & WILLEMEN, 2006), mas também presente no universo francófono (FRODON, 1998FRODON, J. La projection nationale: cinéma et nation. Paris: Odile Jacob, 1998.; SORLIN, 1996SORLIN, P. Y a-t-il des cinémas nationaux? Sociétés & Représentations, n. 3, nov. 1996. p. 409-419.a). O tema é central nos estudos do cinema asiático, sobretudo na China.
  • 12
    A esse respeito, nos referimos aos trabalhos de Anderson (2005ANDERSON, B. Under three flags: anarchism and the anti-colonial imagination. London: Verso, 2005.; 2008)______. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., Gellner (1993)GELLNER, E. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993. e Hobsbawn (1990)HOBSBAWN, E. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990..
  • 13
    HAYWARD, 1993HAYWARD, S. French national cinema. Londres/New York: Routledge, 1993.; SORLIN, 1996_____. Italian national cinema, 1896-1996. Londres/New York: Routledge, 1996.b; GITTINGS, 2002GITTINGS, C. Canadian national cinema. Londres/New York: Routledge, 2002.; TRIANA-TORIBIO, 2003TRIANA-TORIBIO, N. Spanish national cinema. Londres/New York: Routledge 2003..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2017
  • Aceito
    17 Jan 2018
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