Acessibilidade / Reportar erro

Fracasso como potência: uma contribuição queer às perspectivas contra-hegemônicas

Failure as potency: a queer contribution to counter-hegemonic perspectives

HALBERSTAM, J.. A arte queer do fracasso. Libanio, Bhuvi. Recife: Cepe, 2020. 258 p.

Resumo

Diante da hegemonia do discurso do sucesso, usar o fracasso como chave central é uma possibilidade para acionar outras perspectivas teóricas. Partindo das contribuições queer a esse modo outro de pensamento, Jack Halberstam constrói uma coletânea de manifestações artísticas e cinematográficas, bem como de teorizações marginais e histórias ocultas, com a proposta de ativar outros caminhos cognitivos, acionar outros afetos e, dessa forma, desestabilizar discursos dominantes.

Palavras-chave
fracasso; estética; estudos de gênero; teoria queer

Abstract

In the face of hegemony of the discourse of success, using failure as a central key is a possility to trigger other theoretical perspectives. Jack Halberstam starts from queer contributions to this other way of thinking and builds a collection of artistic and cinematographic manifestations, as well as marginal theorizations and hidden stories, with the proposal to activate other cognitives paths, trigger new affects and, thus, destabilize dominant discourses.

Keywords
failure; aesthetics; gender studies; queer theory

Em um contexto de hegemonia do discurso neoliberal da positividade, do autoaprimoramento e do sucesso, A arte queer do fracasso surge para instigar outras formas de pensamento. Traduzido para o português com quase 10 anos de atraso com relação ao lançamento do original, em 2011, a obra é tão necessária quanto intrigante. Como provoca o prefácio de Denilson Lopes, pesquisador da UFRJ: “a que pode nos interessar um livro sobre fracasso quando o desencanto e a desesperança parecem atingir muitos de nós?” (LOPES in HALBERSTAM, 2020, p. 13). Partindo da ideia de Walter Benjamin (1969) de que a empatia com o vencedor acaba sempre beneficiando o dominador, Jack Halberstam busca uma perspectiva alternativa que não se restrinja nem a uma “resignação cínica”, nem a um “otimismo ingênuo”, mas que ative outros caminhos cognitivos e desperte outros afetos. Nesse panorama, a ideia de “fracasso” relaciona-se mais a um potencial de indeterminação e a um modo de estar no mundo na contramão das normatividades vigentes do que a um endosso à logica binária sucesso-fracasso. O risco de reforçar a centralidade do sucesso é assumido pela opção da tradução em usar “fracasso” em referência a “failure”, termo usado no original que inclui significados como insuficiência, incapacidade, esquecimento, distração e falha – possivelmente um termo menos ambíguo para a teorização proposta. Enxergar, no entanto, a apropriação do termo “fracasso” em uma perspectiva não dualista, bem como sua ressignificação em termos de potência, pode nos ajudar a seguir melhor o pensamento do autor.

Tendo desenvolvido suas pesquisas no campo dos estudos de gênero e suas conexões com a estética, Halberstam elabora sua proposta a partir do termo “queer”, entendido como tudo aquilo que é desviante, excêntrico e não normativo. Considerando que a lógica do sucesso, enquanto hegemônica, é regida por princípios racistas, machistas e cisheteronormativos, a associação entre fracasso e ser queer é quase inevitável. Como nos lembra o autor, “fracassar é algo que pessoas queer fazem e sempre fizeram excepcionalmente bem” (HALBERSTAM, 2020, p. 21). Mas, se vencer nos leva aos caminhos óbvios do status quo conhecido, talvez falhar nesse projeto possibilite rotas alternativas cujas coordenadas estão dadas pelas manifestações queer.

Apesar de partir da experiência dos sujeitos desviantes, o autor busca diferentes expressões queer que possam servir de referência a esse projeto alternativo, transitando do que chama de “baixa teoria”, termo emprestado de Stuart Hall (1990), até estudos e manifestações artísticas complexas que pensam feminismo, homossexualidade e masculinidade a partir de perspectivas pouco convencionais. A ideia é acionar “modos de ser e saber posicionados fora das compreensões convencionais do que é sucesso” (HALBERSTAM, 2020, p. 20), um “saber subjugado”, em termos foucaulitanos, que passa pela valorização da estupidez e do esquecimento, ainda que para isso seja preciso aprender com os superfreaks de Pequena Miss Sunshine (2006) a abrir mão do “lema darwinista dos vencedores” de que o melhor ganhará em nome de um novo tipo de otimismo, um que

não depende de pensamento positivo como mecanismo explicativo da ordem social, nem um que insiste no lado bom a todo custo; em vez disso, esse é um raio de sol singelo que produz sombra e luz em iguais medidas e sabe que o significado de um depende do significado do outro

(HALBERSTAM, 2020, p. 25).

Ao entender luz e sombra, mais do que como uma oposição binária, como uma composição inextricável que é parte da vida em seu caráter processual e não ascendente ou progressivo, Halberstam admite que o fracasso nos trará inevitavelmente emoções negativas, mas, junto delas, também a possibilidade de criar fissuras na positividade tóxica contemporânea, com direito a preservar um pouco da anarquia e da indisciplinaridade infantil. O potencial queer da infância é tema do primeiro capítulo de A arte queer do fracasso. Entendendo que a criança experiencia altas doses de estranheza e limitação, as narrativas infantis tornam-se um terreno fértil para abordagens revolucionárias – ainda que nem todas aproveitem esse potencial. Entre os que aderem a essa proposta, Halberstam inclui animações famosas como os longas A fuga das galinhas (2000), Procurando Nemo (2003) e Monstros S.A. (2001). Ao optarem por histórias que não são centradas na família nuclear, no drama edipiano, na superação individual ou no amor romântico heterossexual, os filmes compartilham não só da errância e da presença de personagens outsiders, mas também do protagonismo de ações coletivas acima de trajetórias heroicas – muitas delas voltadas contra sistema capitalistas opressores, como a revolução das galinhas contra fazendeiros exploradores ou a revolta dos peixes contra humanos que querem fazer da vida oceânica um enfeite de aquário.

O autor discorda da ideia de que, ao serem produzidos por uma grande indústria cinematográfica, os filmes perdem sua potência subversiva, e demonstra seu argumento apresentando a história do gênero animação até chegar à tecnologia CGI (Computer-generated Imagery), ou seja, gerada por computador, estabelecendo cruzamentos entre tecnologia e narrativa. Um exemplo é o fato de que, antes da CGI, desenhos bidimensionais costumavam lidar com formas individuais em sequências lineares – trata-se de uma limitação decorrente da própria criação gráfica. Com o surgimento de uma tecnologia de informática capaz de criar multidões, e criar com um nível de detalhamento verossímil por não ser homogêneo, narrativas sobre coletivos passaram a tematizar os longas – como no caso de Vida de inseto (1998). Junta-se a esse argumento, o potencial de “construir novos mundos acessando novas formas de sociabilidade através de animais” (HALBERSTAM, 2020, p. 59), que o autor apoia nas noções de transbiologia desenvolvidas por Sarah Franklin (2006) e Donna Haraway (1990). Nos cruzamentos entre tecnologia, biologia e estudos de gênero, Halberstam constrói as primeiras pistas do seu pensamento queer.

No capítulo 2, as conexões entre estupidez e esquecimento propõem repensar alguns consensos como a primazia do saber e a importância da memória. Usando como exemplo a peixe queer Dory, que sofre de perda de memória recente e, graças a isso, estabelece diferentes formas de relacionamento e de ação, o autor sugere pensar esquecimento como alternativa a representações heroicas, bem como “ruptura com o presente eternamente autogeracional, uma ruptura com o passado autolegitimado e uma oportunidade de futuro não hetero-reprodutivo” (HALBERSTAM, 2020, p. 108)”. Assim, o esquecimento desestabiliza noções do que é considerado “normal”, em oposição à arbitrariedade da memória, e interrompe a continuidade irrestrita de imaginários opressores. Já a estupidez, abordada a partir do clássico de “homens brancos tolos”, Cara, cadê meu carro? (2000), funciona como categoria produtiva que inverte a superioridade colonial dada ao saber do homem branco, possibilitando uma abertura a outros conhecimentos possíveis. Apesar do entusiasmo com relação ao esquecimento, o pesquisador admite que seu caráter produtivo depende de um direcionamento à narrativa do dominador e não ao saber subalterno, sob o risco de reproduzir táticas coloniais do passado que reiteram até hoje a ficção de um presente justo e tolerante.

Aumentando as referências do que seria a arte queer do fracasso, o terceiro capítulo, cujo título é homônimo ao livro, tem início com referência ao historiador Scott Sandage (2005)SANDAGE, S. Born losers: a history of failure in America. Cambridge: Harvard University Press, 2005., que enxerga o registro do fracasso como uma história oculta dentro da cultura estadunidense do otimismo. Enquanto Sandage investiga essa história às margens do sistema capitalista, Halberstam a vê como uma luta queer anticapitalista que “aciona o impossível, o inverossímil, o improvável e o comum. Ela silenciosamente perde, e ao perder-se imagina outros objetivos para a vida” (HALBERSTAM, 2020, p. 132). Com isso, estudos queer surgem como ferramenta para encontrar alternativas contra-hegemônicas partindo de estilos de vida não reprodutivos e da negatividade. Como manifestação dessa negatividade insubordinada, a obra remete aos fracassos do punk, como o romance de Irvine Welch, Trainspotting (1996), que, apesar de heteromasculinista, explicita a lógica de um sistema que prescreve um modo específico de vida como desejável, em oposição a outros tantos possíveis, porque admitir uma vida de falhas seria admitir o fracasso do próprio sistema Além de modo de vida, argumenta o autor, esse ethos de resignação ao fracasso, falta de progresso, escuridão e negatividade, compõe uma estética queer, expressa por artistas como o fotógrafo Brassaï e a arquivista Diane Arbus.

Explorando outras perspectivas teóricas marginais, o quarto capítulo apresenta pesquisadoras como Saidiya Hartman (2008), Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. e Saba Mahmood (2005)MAHMOOD, S. The politics of piety:. the islamic revival and the feminist subject. Princeton: Princeton University Press, 2005., que propõem pensar o feminismo fora da noção de mulheridade ocidental e liberal, que constantemente cria um “outro” vitimizado para se apresentar heroicamente como sua salvação. Argumentando junto às autoras, Halberstam nos convoca a explorar uma “política feminista que parte não do fazer, mas do desfazer, não do ser ou tornar-se mulher, mas de uma recusa de ser ou tornar-se mulher, como ela foi definida e imaginada dentro da filosofia ocidental” (HALBERSTAM, 2020, p. 172). A ideia de masoquismo, que o autor recupera em diferentes proposições artísticas, de colagens à performance Cut Piece (1964) de Yoko Ono, vem complementar esse pensamento de uma “feminilidade que se autodestrói e, ao fazer isso, demole o edifício da regra colonial, um tijolo por vez” (idem, p. 184). Outro olhar para as histórias marginais é apresentado no capítulo seguinte, no qual o autor entra no terreno complexo das relações entre masculinismo homossexual e fascismo/nazismo. O pesquisador admite que, ao buscar reconhecimento tardio aos sujeitos desviantes, as teorias queer acabaram por ocultar partes obscuras da história, especialmente aquelas que associam esses sujeitos a projetos políticos controversos. Esse recorte, adverte, não só simplifica e homogeneiza a história da homossexualidade, mas também abre brechas para respostas reacionárias. Para Halberstam, captar a complexidade das relações mutáveis entre política, eroticidade e poder implica em renunciar às conexões lineares entre desejos radicais e políticas radicais.

A própria escrita do autor foge da linearidade, provocando no leitor o perder-se pelo qual advoga e levantando inúmeras perguntas sem necessariamente respondê-las. Por isso, o capítulo que fecha o livro não oferece uma conclusão definitiva, mas uma provocação última, que retoma o potencial do cinema para além de alegorias simples e rasas – inserindo aqui uma crítica contundente ao posicionamento de Slavoj Zizek (2009)ZIZEK, S. Berlusconi in Tehran. In: London review of books, 23 julho, 2009, p. 3-7. com relação a filmes como Kung Fu Panda, por exemplo. Assim, quem traz o desfecho é o Sr. Raposo, protagonista de O fantástico senhor raposo (2009), em seu discurso ao clã sobre “acreditar em rabos destacáveis, maçãs falsas, refeição em conjunto, adaptar-se à luz, arriscar, filhos efeminados e a importância de simplesmente sobreviver para todas as almas selvagens que os fazendeiros, os professores, os pregadores e os políticos gostariam de enterrar vivas” (HALBERSTAM, 2020, p. 244), discurso que nos lembra que a resistência passa pela falha e que, no percurso da vida, coisas ruins acontecem e isso faz parte de um mundo regido por ganância e violência. Se viver é fracassar, no lugar de evitar isso a partir de narrativas alienantes, a arte queer propõe abraçar o fracasso em toda sua imperfeição e fazer dele uma potência contra-hegemônica.

Referências

  • MAHMOOD, S. The politics of piety:. the islamic revival and the feminist subject. Princeton: Princeton University Press, 2005.
  • SANDAGE, S. Born losers: a history of failure in America. Cambridge: Harvard University Press, 2005.
  • SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • ZIZEK, S. Berlusconi in Tehran. In: London review of books, 23 julho, 2009, p. 3-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2020
  • Aceito
    21 Ago 2020
Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica - PUC-SP Rua Ministro Godoi, 969, 4º andar, sala 4A8, 05015-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3670 8146 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: aidarprado@gmail.com