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O funcionamento de falas sintomáticas para além da distinção normal/patológico: contribuições Saussurianas

The operation of symptomatic speech beyond the distinction normal/pathological: Saussurian contributions

Resumo:

O presente artigo questiona o estatuto da distinção normal/patológico no âmbito dos estudos dos distúrbios de linguagem. Para tanto, realiza uma reflexão acerca da caracterização linguística de falas sintomáticas baseada em pressupostos teóricos saussurianos. De Ferdinand de Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., serão consideradas as noções de linguagem, língua e fala, bem como a teoria do valor e o circuito da fala. Foram analisados dois recortes de dados que apontam que a oposição normal/patológico não sustenta a interpretação linguística de fenômenos envolvidos nestes casos. Dessa forma, o estudo evidenciou elementos que permitem pensar a singularidade do funcionamento da linguagem, a partir das referidas noções saussurianas, sem a necessidade de estandardização na classificação dicotômica normal/patológico.

Palavras-chave:
Funcionamento da linguagem; Falas sintomáticas; Normal/patológico

Abstract:

This article questions the statute of the distinction normal/pathological in the scope of language disorders' research. Therefore, the manuscript develops a reflexion about linguistic characterization of the symptomatic speeches based on saussurian's theoretical assumptions. From Ferdinand de Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., notions of Language, Langue and Parole, the value theory and the speech circuit will be considered. Two data sets were analyzed, which showed that the opposition normal/pathological does not support the linguistic interpretation of the involved phenomena in these cases. In this way, the study showed elements that allow us to think about the singularity of the language operations, starting with the referred saussurian notions, without the necessity of standardization in the normal/pathological dichotomous classification.

Keywords:
Language operation; Symptomatic speech; Normal/pathological

Introdução

No presente artigo questionaremos o estatuto da distinção normal/patológico no âmbito dos estudos da linguagem. Para tanto, ampararemos nossa reflexão acerca da caracterização linguística de falas sintomáticas em pressupostos teóricos saussurianos. Ainda que o mestre genebrino pouco tenha dito a respeito de falas desviantes1 1 Há, no Curso de Linguística Geral (1974, p. 18), referência ao funcionamento da linguagem em quadros de afasia, com citação específica dos estudos de Broca. , há, em seu legado, princípios teóricos que possibilitam operar deslocamentos úteis a uma leitura dessas manifestações linguageiras que apresentam funcionamento singular.

Em verdade, foi buscando entender a singularidade do funcionamento de falas sintomáticas que este estudo foi ganhando forma. Partindo da perspectiva de Ferdinand de Saussure e das concepções de normal e patológico, pretendemos responder as seguintes questões:

  1. Como o princípio do valor linguístico (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 130) se imprime nas formas (disformes) utilizadas pelo indivíduo que apresenta fala sintomática, considerando que o valor de um elemento é determinado por tudo aquilo que o precede/sucede nos eixos associativo e sintagmático?

  2. Partindo das concepções polarizadas de normal e patológico no âmbito dos distúrbios de linguagem, de que forma verificamos que esses conceitos não são produtivos o suficiente para abarcar a riqueza presente na fala sintomática, bem como para atestar a singularidade dessas falas?

A fim de responder esses questionamentos, o presente texto estrutura-se da seguinte forma: primeiro realizaremos uma reflexão sobre os termos normal e patológico a partir das contribuições de Canguilhem (1990)CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Univesitária,1990., a fim de verificarmos qual a aplicabilidade e/ou limite dessas noções para uma interpretação linguística dos distúrbios de linguagem. A seguir, verificaremos na teoria de Ferdinand de Saussure elementos que permitam pensarmos a singularidade do funcionamento da linguagem, para ver como as noções que selecionamos desse linguista constituem um arcabouço teórico consistente para uma análise linguística que vislumbre a fala sintomática, sem a necessidade de estandardização na classificação dicotômica normal/patológico. Por fim, apresentaremos as considerações finais, resultantes de nossas análises e reflexões. Dessa forma, pretendemos auxiliar na busca de respostas para este tema tão instigante que é a fala sintomática.

O normal e o patológico: uma oposição que se sustenta no âmbito da linguagem?

Conforme apontado acima, em nossa reflexão, vamos tratar da fala sintomática considerando a singularidade do funcionamento da linguagem, tendo em vista a herança deixada por Ferdinand de Saussure. Porém, antes de iniciarmos a discussão linguística stricto senso, é necessário tratar de algo mais geral: o que significa normal e o que significa patológico, quando se trata de definir uma manifestação de linguagem? O que essas definições nos dizem?

Lidar com os termos normal e patológico é uma tarefa delicada, uma vez que não há um consenso do que seja normal, ou melhor, pensa-se que o normal é tudo aquilo que parte de uma norma, de uma espécie de acordo entre os membros de uma sociedade, e o patológico seria o desvio disso. Segundo Aresi (2009ARESI, Fábio. Por uma problematização da distinção normal/patológico na linguagem: uma abordagem enunciativa. 2009. 46 f. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., p. 13), “a diferença entre o normal e o patológico seria puramente relativa à intensidade maior ou menor de determinado fenômeno em relação a seu estado normal”. O autor parte da reflexão apresentada no campo da filosofia por Canguilhem (1990)CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Univesitária,1990., referindo que para compreendermos melhor a relação normal/patológico podemos partir da definição tipicamente médica, que indica que o normal é “aquilo que está conforme a regra” (CANGUILHEM, 1990CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Univesitária,1990., p. 95) ou da definição filosófica, que aponta que o normal é “aquilo que não se inclina nem para a direita, nem para a esquerda, portanto o que se conserva num justo meio-termo” (op. cit.).

É também nesse sentido que Surreaux (2006)SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. aponta:

Canguilhem destaca que o processo de “normalização” origina-se na representação das exigências coletivas, sendo a normalidade assim referida a uma regra (…) estabelecida por determinada sociedade. Essa leitura torna o conceito de normalidade ao mesmo tempo polêmico e dinâmico, sem rigidez ou fixidez apriorística. A categoria de “normal” seria sempre indicadora daquilo que “está na média”, considerando-se uma dada sociedade e apresentando em si mesmo um juízo de valor, ao delimitar um padrão (SURREAUX, 2006SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006., p. 89).

Ou seja, como dito acima, o conceito de normalidade está intimamente relacionado com um acordo pré-estabelecido por uma sociedade, acordo este que gerará “juízo de valor” por determinar o que é (ou não) padrão. Transpondo tal conceito para o campo da clínica dos distúrbios de linguagem, podemos dizer que o normal é tudo aquilo que a sociedade encara como “correto” e o patológico seria a forma desviante da fala. No entanto, será que tal definição comporta, de fato, toda a riqueza e heterogeneidade da linguagem? Melhor dizendo, será que basta pensarmos, em relação aos distúrbios de linguagem, que o patológico é relacionado a tudo aquilo que desvia da forma dita normal? Será que toda fala desviante é realmente patológica? Com essas interrogações, seguiremos nosso percurso nesse texto.

Mais uma vez, acompanhamos Aresi (2009ARESI, Fábio. Por uma problematização da distinção normal/patológico na linguagem: uma abordagem enunciativa. 2009. 46 f. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., p. 16) ao sublinhar que “é da natureza da língua a ocorrência de erros”, ou seja, é completamente esperada a ocorrência de enganos e que “a própria língua dispõe de mecanismos linguísticos de reformulação da fala, tais como a paráfrase, a repetição, entre outros, para dar conta de tais equívocos” (op. cit.). Sendo assim, também remetemos ao questionamento que realizamos acima, no qual perguntamos se tudo o que escapa da normalidade deve ser considerado patológico. Bem, se a própria língua dispõe de mecanismos para “dar conta desses lapsos” quer dizer que ela também comporta esses equívocos, caso contrário ficaríamos somente com o estranhamento causado pelo diferente.

Essa constatação, em nossa opinião, repercute diretamente sobre a forma como iremos analisar o funcionamento linguístico de falas sintomáticas. Surreaux (2006)SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. é clara nesse sentido:

A contribuição da obra de Canguilhem é determinante do questionamento do conceito de “patologia” no âmbito do trabalho clínico. A partir de suas reflexões, a possibilidade que se abre é a de pensar o “patológico” não mais como oposição à normalidade, estado “puro” em que se encontra o indivíduo sadio, mas como condição peculiar de um dado momento desse indivíduo (SURREAUX, 2006SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006., p. 89).

Desse modo, ao tratarmos de normal e patológico, não queremos opor os dois conceitos, apenas compreendê-los como estados distintos de um mesmo indivíduo. Vale enfatizar que não estamos negando a condição de sintoma da fala, visto que esse é um fato evidente: há sujeitos que sofrem por falar de forma que os outros não compreendem.

Assim, como já mencionado acima, para operarmos um deslocamento na abordagem polarizada dos distúrbios de linguagem, decidimos buscar na teoria de Ferdinand de Saussure, elementos teóricos que possibilitem a reflexão sobre a singularidade do funcionamento da linguagem de falas ditas sintomáticas.

Heranças saussurianas: da linguagem à língua, do valor ao circuito da fala

Para retomarmos as ideias daquele que é considerado o pai da Linguística, buscaremos no Curso de Linguística Geral2 2 Vale destacar que o Curso de Linguística Geral é uma obra póstuma, publicada em 1916 (com o título Cours de Linguistique Générale), e editada por dois colegas de Saussure (Charles Bally e Albert Sechehaye). (doravante CLG) conceitos que permitam depreender uma leitura acerca do funcionamento linguístico de falas sintomáticas.

Muito embora ainda se escute que Saussure excluiu de sua proposta a noção de sujeito (falante) sabe-se, por meio da análise de seus textos manuscritos e do conjunto do CLG, que tal afirmação não se confirma. Tanto o é que já em um dos primeiros capítulos (mais precisamente no capítulo III da Introdução do CLG), o mestre genebrino trata da cisão da linguagem em língua e fala, propondo que a língua represente o lado social da linguagem e a fala, por sua vez, o lado individual. Ora, se a fala representa o lado individual, e se um lado não pode ser considerado senão em função do outro, então estamos tratando do sujeito falante.

A tríade linguagem – língua – fala permeia o CLG. Para Saussure, a linguagem representa um todo heterogêneo que comporta as noções de língua e fala. Língua vem a ser a parte social, aquela que é compartilhada por todos os membros de uma dada sociedade, já a fala representa o lado individual, o “instrumento criado e fornecido pela coletividade” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 18) para exercer a faculdade de articular palavras. Dessa forma, Saussure responde a questão sobre qual é o objeto da Linguística, indicando que a língua é a “parte” dessa tríade mais indicada para tal função, uma vez que ela comporta um elemento bem determinado no sistema e nada suscetível de mudança por um só indivíduo de uma comunidade, pois ela depende do conjunto, depende da massa.

Segundo o autor, a linguagem é multiforme e heteróclita, composta por “um lado individual e um lado social” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 17), sendo a fala o lado individual e a língua o lado social. Para compreender o lugar da língua, Saussure nos apresenta o circuito da fala3 3 O circuito da fala é apresentado no capítulo III – Objeto da Linguística – da Introdução do CLG (SAUSSURE, 1974, p. 19). e nos mostra como se dá a comunicação entre, pelo menos, dois indivíduos (A e B). Começando pelo cérebro do falante até chegar ao ouvido do interlocutor, esse circuito é mais uma prova da importância do falante para Saussure, uma vez que possamos compreender, de fato, o lado individual da linguagem através do esquema proposto por ele.

O circuito tem início no cérebro do indivíduo A, no qual estão os fatos de consciência, compostos pelos conceitos e por suas respectivas representações dos signos linguísticos – ou imagens acústicas. Temos, então, o momento em que uma imagem acústica é suscitada por um conceito (representação do fenômeno psíquico). Stawinsky (2016)STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., sobre a associação entre conceito e imagem acústica no cérebro do indivíduo A, diz que:

A ideia de que a associação entre conceito e imagem acústica feita por A é um fenômeno psíquico particular faz-nos pensar na noção, discutida por Saussure, de “tesouro” da língua. Este conceito mostra que a língua não está completa no indivíduo, e que cada falante tem seu tesouro particular, ou seja, singular em toda a massa de falantes. Disso, podemos concluir que, quando o locutor produz uma associação entre significante e significado, esta associação é singular; ao chegar no interlocutor, este fará uma nova associação da forma escutada, e esta associação não é idêntica à que foi estabelecida pelo locutor (STAWINSKY, 2016STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 46, grifos da autora).

Após esse momento, o cérebro envia ao aparelho de fonação um impulso relacionado à imagem acústica (fenômeno fisiológico) e, através da boca, ocorre a propagação das ondas sonoras até o ouvido do outro indivíduo (fenômeno físico). No ouvinte, indivíduo B, a transmissão da imagem acústica até o cérebro representa o fenômeno fisiológico, e a associação dessa imagem ao seu respectivo conceito, o fenômeno psíquico. Se o ouvinte passar a falante, o circuito recomeça.

O circuito da fala permite que compreendamos o lado individual da linguagem, no entanto “impõe-se sair do ato individual, que não é senão o embrião da linguagem, e abordar o fato social” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 21). Esse fato social é que faz com que os indivíduos de uma dada sociedade sejam capazes de associar, mais ou menos, os mesmos significantes aos mesmos conceitos (fato que Saussure chama de cristalização social). Explicamos o uso do “mais ou menos” pelas palavras de Stawinsky (2016)STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.:

O tesouro da língua, portanto, é singular em cada falante, e a soma de todos os tesouros corresponde ao fato social da língua. A partir dessa reflexão em associação com o esquema do circuito da fala, pode-se chegar à conclusão que a associação significante significado em A não é exatamente a mesma feita por B, apesar de falante e ouvinte serem indivíduos pertencentes à mesma massa social. Isso porque, além de o tesouro ser individual, nada garante que o efeito pretendido por A seja o efeito percebido por B (STAWINSKI, 2016STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 47, grifos da autora).

Vemos por Stawinski (2016)STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. que Saussure tem muito mais a acrescentar na discussão sobre a fala sintomática do que pensamos, ou do que consta “aparentemente” em sua obra. Pensando na questão da singularidade do tesouro em cada falante, percebemos que a possível diferença nas associações entre significantes e significados já é o início de uma discussão sobre a fala que diverge daquilo que é tido como “normal” na linguagem. Além disso, a própria questão do efeito pretendido e efeito alcançado já mostra que tal ocorrência é mais comum do que imaginamos (o que contribui, de forma significativa, com nossa intenção de abalar a questão conceitual entre normal e patológico).

A partir da “ruptura” entre o lado social e o individual da linguagem, temos que “com o separar a língua da fala, separa-se, ao mesmo tempo, […] o que é social do que é individual […], o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 22). A classificação da língua como objeto da Linguística se deve por suas características, que são: 1. ser um “objeto bem definido no sistema heteróclito dos fatos da linguagem […] exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (op. cit.); 2. ser um “objeto que se pode estudar separadamente” (op. cit.); 3. ser homogênea e 4. ser concreta, uma vez que “os signos linguísticos, embora sendo essencialmente psíquicos, não são abstrações; as associações, ratificadas pelo consentimento coletivo e cujo conjunto constitui a língua, são realidades que têm sua sede no cérebro” (op. cit., p. 23).

Ao retratar o circuito da fala, Saussure nos mostra que as unidades que compõem o signo linguístico são psíquicas e estão unidas “em nosso cérebro, por um vínculo de associação” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 80). Neste momento, temos a primeira definição de signo linguístico, sendo uma entidade que “une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (op. cit.), sendo que a imagem acústica não deve ser confundida com o som, pois ela é a impressão psíquica dele. Esse caráter psíquico pode ser observado quando não movemos lábios ou língua e, ainda assim, conseguimos recitar mentalmente um poema ou falarmos mentalmente conosco.

O “signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 80) e Saussure propõe que troquemos a nomenclatura “conceito” e “imagem acústica” por “significado” e “significante”, a fim de desfazer qualquer mal entendido que possa ser relacionado a esses nomes, uma vez que o signo pode ser encarado como a imagem acústica apenas, esquecendo-se que “se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a ideia da parte sensorial implica a do total” (op. cit., p. 81, grifos do autor). Essa substituição de conceito por significado e imagem acústica por significante, conservando apenas signo como o representante do total, assinala “a oposição, que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte” (op. cit.).

Segundo Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., a língua é um “sistema de valores puros” (op. cit., p. 130), considerando que estamos tratando, quando falamos em língua, do plano das ideias e do plano dos sons. Estudiosos concordam ao afirmar que “nosso pensamento não passa de uma massa amorfa e indistinta” (op. cit.) e que sem os signos não conseguiríamos distinguir duas ideias. O pensamento é, então, comparado a uma nebulosa, na qual “nada está necessariamente delimitado. Não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua.” (op. cit.) Tanto ideias quanto sons representam uma “matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer os significantes dos quais o pensamento tem necessidade” (op. cit.), ou seja, podemos representar a língua como “uma série de subdivisões contíguas marcadas simultaneamente sobre o plano indefinido das ideias confusas (…) e sobre o plano não menos indeterminado dos sons (…)” (op. cit.). Sendo assim, podemos definir a língua como portadora da função de mediadora entre o pensamento e o som.

A partir dessa discussão, o linguista questiona a ideia que se tem do valor linguístico, ou melhor, a ideia que se tem de considerar que um termo é a simples união de um som com um conceito, uma vez que essa definição implica no seu isolamento do sistema e faz crer que se pode iniciar uma análise pelos termos até se chegar à construção do sistema, pela simples soma deles. Todavia, sabe-se que não se parte dos termos para chegar ao sistema, mas sim “cumpre partir da totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que encerra” (op. cit., p. 132). Também vale ressaltar que “a coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja” (op. cit.), quer dizer, os valores só se constituem como valores, de fato, pela coletividade, uma vez que o signo funciona como uma espécie de acordo em uma dada sociedade; para que algo tenha valor é preciso que esteja dentro dos parâmetros desse acordo social.

Para melhor compreender a noção de valor, o autor parte para a análise das unidades. Segundo ele, a língua é um “sistema em que todos os termos são solidários” (op. cit., p. 133), logo, para determinar o valor de um termo, se faz necessária a presença de outros termos. Em uma rede de relações, com elementos que precedem e sucedem o elemento que desejamos determinar o valor, verifica-se que, por exemplo, um significante só é o que é, pois ele difere daquilo que o sucede, daquilo que o precede e daquilo que ele poderia ser, mas não é. Se quisermos determinar o valor de um elemento no eixo sintagmático ele será determinado por tudo que vem antes dele e por tudo que vem depois, além, é claro, de também ser determinado por tudo o que está no eixo associativo e com ele se relaciona. Atestamos que a presença de outros termos do sistema é realmente necessária, uma vez que ter valor significa “ser o que os outros não são” (op. cit., p. 136).

Em síntese, em um dado sistema o que realmente interessa são as diferenças conceituais e fônicas existentes. Tais diferenças são estabelecidas por aquilo que existe em volta dos signos. No entanto, para verificar essas diferenças se faz necessário compreender como funcionam as relações dentro do sistema linguístico.

A necessidade das relações entre os termos para a determinação do valor não vale somente para termos, palavras, ou melhor, para o significado (conceito). Tais relações também são de suma importância na verificação do valor do aspecto material da língua, ou seja, do significante (imagem acústica). O autor aponta que, bem como os termos do sistema, os fonemas também tem seu valor determinado de maneira semelhante, ou seja, eles não se confundem entre si uma vez que o valor de cada um deles é determinado pela capacidade de ser o que os demais não são.

Verificamos, de forma breve, que para se determinar o valor de um dado elemento linguístico é necessário observar as relações que esse elemento estabelece com os demais, dentro do sistema. Considerando que tudo na língua se baseia, então, por essas relações, devemos entender como elas funcionam, quais parâmetros elas seguem.

Além de Saussure ser um linguista ao qual todos os outros “devem” algo, ele também é de suma importância quando se deseja pensar no sujeito e na fala sintomática. O desenvolvimento de conceitos como linguagem, língua e fala, bem como o circuito da fala e as noções fundantes de signo, sistema e valor são relevantes quando se quer pensar no sujeito falante e no lugar dele na língua. Se, como disse Stawinski (2016)STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., “nada garante que o efeito pretendido por A seja o efeito percebido por B” (op. cit., p. 47), então vemos na teoria saussuriana uma brecha para se pensar sobre os efeitos dos distúrbios relacionados à linguagem, uma vez que tal colocação explique desde dificuldades de compreensão até mesmo dificuldades de produção dos sujeitos que representem um caso clínico de fala sintomática.

Vê-se, portanto, que o falante não foi excluído por Saussure de sua obra. O linguista, a todo instante, faz menção à relevância do sujeito, seja na conceituação da linguagem (língua + fala), seja no processo comunicativo e em todos os seus aspectos (como o circuito da fala). Sendo assim, podemos dizer que Saussure, além de todas as contribuições que trouxe para a Linguística, de forma geral, também é extremamente importante nos estudos que visem a análise da fala sintomática, considerando a singularidade de cada sujeito.

Um ensaio de análise

A seguir, buscaremos empreender um ensaio de análise da fala sintomática, levando em consideração o funcionamento da linguagem de uma criança. Apresentaremos dois recortes extraídos de dados já publicados em Surreaux (2006)SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.. De acordo com a autora, tratam-se de cenas de um menino de três anos e cinco meses encaminhado para tratamento fonoaudiológico pela escola, em função de algumas trocas de fonemas na fala e de ecolalia4 4 Consideramos a ecolalia como a “fala que 'faz eco', isto é, que repete a fala do outro, tal qual uma 'fala de papagaio'.” (ARESI, 2009, p. 37). . De acordo com os dados presentes em Surreaux (op. cit.), o menino não utilizava a forma “eu” para se referir a si próprio. Sempre que ele queria fazer isso, utilizava a forma “tu” ou até mesmo o próprio nome.

Para fins específicos desse estudo, os dados de fala sintomática analisados serão analisados a partir da teoria de Saussure e da reflexão que inicialmente realizamos acerca da distinção entre normal e patológico. Do ponto de vista linguístico, serão consideradas prioritariamente as noções de valor linguístico (e as respectivas noções de signo e sistema) e as noções de eixo associativo e de eixo sintagmático. Dessa forma, pretendemos analisar de que forma a linguística pode ajudar a perceber os elementos que tornam a fala, nesse caso sintomática, singular. A partir dessa análise, pretendemos relativizar a padronização normal-patológico, tendo em vista o olhar do campo da linguística.

A fim de auxiliar nossas análises, elaboramos questões norteadoras para esse processo:

  1. Como o valor linguístico se imprime nas formas utilizadas pelo indivíduo que apresenta fala sintomática, considerando que o valor de um elemento é determinado por tudo aquilo que o precede/sucede nos eixos associativo e sintagmático?

  2. Partindo das concepções de normal e patológico, de que forma verificamos que esses conceitos não são suficientes para abarcar a riqueza presente na fala sintomática, bem como para atestar a singularidade dessa fala?

Buscaremos respostas para os questionamentos propostos acima a partir das análises5 5 Convenções utilizadas em nossa transcrição: (.) um ponto entre parênteses indica que há uma pausa curta intra ou interturnos; (…) três pontos entre parênteses indicam que há uma pausa longa intra ou interturnos; ( ) parênteses vazios indicam que o transcritor foi incapaz de transcrever o que foi dito – segmento incompreensível; (( )) parênteses duplos indicam comentários do transcritor. presentes a seguir.

Dado 1

Participantes: Criança (P.U) e Terapeuta (fonoaudióloga) Idade: 3 anos e 5 meses

Criança:
(1) U avião, u avião.
Terapeuta:
(2) O avião que a gente tinha pego outro dia, né?
Criança:
(3) Oto dia ( )
Terapeuta:
(4) É parecido com o avião que o pai vai para São Paulo trabalhar e volta.
Criança:
(5) I volta. I u papai viaza i volta lá em casa
Terapeuta:
(6) Isso: ele vai trabalhar e volta lá em casa, na tua casa.
Criança:
(7) Segô o papai com o P.
Terapeuta:
(8) Chegou o papai com o P? O que que eles vão fazer agora?
Criança:
(9) ( )
Terapeuta:
(10) Vão descendo?
Criança:
(11) O P vai descê.
Terapeuta:
(12) Vai descer do avião?

Iniciando nossa análise destacando a questão do valor linguístico, de Saussure, observamos que a criança, principalmente nos turnos que caracterizam a ecolalia [(3) e (5)], não escolhe qualquer trecho para repetir. Vemos que, por mais que essa disfunção esteja presente na fala dela, ao selecionar os trechos que vai repetir (principalmente o enunciado “e volta”), ela não elege qualquer trecho, mas sim aquele que permite que ela desenvolva uma sintagmatização. Isso caracteriza a noção de valor linguístico que estamos utilizando, uma vez que ter valor significa ser aquilo que os outros não são e também está na relação de dependência que o elemento estabelece com os demais ao seu redor. Neste caso, estamos considerando que o valor deste trecho está relacionado, principalmente, à possibilidade que ele abre para que a criança demonstre autoria daquilo que diz, partindo do trecho do enunciado de outro (interlocutor, ou o indivíduo B do circuito da fala) para formar seu próprio enunciado. O que queremos dizer é que a escolha do trecho para a repetição não é algo ligado ao simples “acaso”, mas sim ligado a uma ideia de continuidade.

Com relação ao circuito da fala, verificamos que o esquema comunicativo proposto por Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974. é estabelecido neste diálogo. Criança e terapeuta alternam os papéis de falante e ouvinte, fazendo com que o circuito aconteça, ora no sentido A>B (do falante A para o ouvinte B), ora no sentido A<B (do falante B para o ouvinte A), sendo A e B, respectivamente, criança e terapeuta.

A seguir, passaremos à análise do segundo recorte a fim de buscar os elementos selecionados da teoria saussuriana que poderão auxiliar a verificação da singularidade do funcionamento da linguagem dessas falas ditas sintomáticas.

Dado 2

Terapeuta:
(1) E aqui, o que é nesse prato?
Criança:
(2) Comida de batata.
Terapeuta:
(3) Ah que coisa boa! Uma comida com batata!
Criança:
(4) Bolu, bolu de socolati.
Terapeuta:
(5) Ah, outra coisa maravilhosa, bolo de chocolate! Eu estou sentindo o cheirinho! Uhm!
Criança:
(6) Uhm! Eu tô com muita fome.
Terapeuta:
(7) Eu também.
Criança:
(8) O P tem, tá com a fome.
Terapeuta:
(9) Tu está com a tua e eu estou com a minha fome, né?
Criança:
(10) O P vai botá bigadelo.
Terapeuta:
(11) Vai ter brigadeiro nesse bolo? Como tu és um bom cozinheiro, P!
Criança:
(12) ( ) u gafiu.
Terapeuta:
(13) Tem garfo de três cores: rosa, cinza e transparente.

Observa-se algo bastante interessante neste recorte: em (10), a criança fala “O P vai botá bigadelo”. No primeiro momento não prestamos atenção nessa questão, mas se atentarmos para o assunto da conversa (falando sobre o bolo de chocolate), perceberemos que a criança não seleciona qualquer termo para evocar, ela trata do brigadeiro, que pode ser relacionado ao chocolate. Neste ponto observamos que a criança opera uma seleção dentro do eixo associativo (chocolate/brigadeiro), o que mostra que ela não escolheu qualquer termo para inserir na sua sintagmatização, ela optou por aquele que, de uma forma ou de outra, se relaciona com o elemento anteriormente evocado. Esse movimento realizado por P chama a atenção, dentro da análise linguística, pois mostra esse deslocamento operado pelo falante, ao eleger um termo em detrimento de tantos outros possíveis.

Em se tratando do circuito da fala, bem como no primeiro recorte, neste também verificamos que o esquema proposto por Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974. é realizado, ou seja, criança e terapeuta (indivíduos A e B) alternam seus papéis: ora um é falante, ora o outro assume a posição de falante, invertendo assim o sentido do circuito e fazendo com que ele recomece nessa ordem inversa. Retomando Stawinski (2016)STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., “nada garante que o efeito pretendido por A seja o efeito percebido por B” (op. cit., p. 47, grifos da autora), ou seja, nada garante que aquilo que A esteja falando seja exatamente o que B esteja compreendendo. No trecho destacado, percebemos isso de forma mais evidente no momento em que a terapeuta [em (5) e em (11)] retoma a fala da criança, novamente, com o aparente intuito de mostrar a forma correta de pronúncia (“chocolate” ao invés de “socolati” e “brigadeiro” ao invés de “bigadelo”) e ela (a criança), aparentemente ignora o feito da terapeuta e segue sua fala, não estabelecendo a ligação da dita “forma correta” de pronúncia com sua própria maneira de falar. Vemos então a noção do tesouro da língua, tesouro este “depositado pela prática da fala por todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe (…) nos cérebros dum conjunto de indivíduos” (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 21) e que representa, assim, algo que só atinge a completude na massa, na sociedade, no grupo de falantes que compartilham o mesmo código linguístico. Logo, este tesouro é distinto para cada um dos falantes de uma dada sociedade, e tais heterogeneidades, quando consideradas em conjunto, formam o todo que representa a língua enfim “completa”.

A segunda questão norteadora de nossas análises é relacionada com a noção de normal e patológico. Considerando que a fala dita normal é toda aquela que segue uma norma, uma espécie de acordo entre os indivíduos de uma sociedade, qualquer uma que saia desse padrão já é considerada patológica. No entanto, percebemos que as diferenças estão presentes em todas as falas, logo a noção de patológico como aquilo que desvia do padrão não é o suficiente, pois poderíamos dizer que nenhuma fala representa a normalidade, integralmente.

Isso nos leva a pensar que, tendo em vista que a concepção de normalidade está relacionada a algo pré-estabelecido socialmente, fica a questão: quem determinou o que é o normal? Quem criou essa concepção? Aparentemente os conceitos de normal e patológico não respondem esses questionamentos, logo a tentativa de estabelecer o que é um ou o que é o outro é fortemente abalada, pois não há parâmetros rígidos para balizar imprevistos corriqueiros/cotidianos de uma fala.

Percebemos, na análise dos dados apresentados, a riqueza e a heterogeneidade presente na fala da criança, fala essa diagnosticada como sintomática. Entretanto, o conceito de patológico não representa essa riqueza, não representa a totalidade da fala desse indivíduo, logo essa concepção não se aplica especificamente para nossa análise, visto que não é produtiva par uma análise linguística que buscar interpretar valores que emanam do sistema.

De acordo com motivos apresentados, pode-se dizer que a diferenciação entre normal e patológico não sustenta sua relevância para análises linguísticas de falas desviantes, tendo em vista que ela não diz respeito à singularidade da fala dita sintomática, sobre essa maneira particular de se expressar. Sendo assim, acreditamos que uma análise linguística de falas ditas sintomáticas, que busque compreender a riqueza e a singularidade delas, não deve se deixar deter pela estandardização nessa classificação polarizada/dicotômica do par normal/patológico, uma vez que ela pouco acrescenta, em termos de alicerce para uma análise linguística.

Conclusão

Este estudo buscou compreender a singularidade do funcionamento da linguagem de falas ditas sintomáticas. Tendo em vista esse objetivo, buscamos na teoria de Ferdinand de Saussure elementos que possibilitassem a análise de falas sem a estandardização como normal ou patológica, considerando que uma de nossas observações é de que esses termos não contribuem para uma análise linguística que busque a compreensão da lógica do funcionamento dessas falas.

De Saussure, as noções de linguagem, língua e fala foram fundamentais para dar início à nossa reflexão, considerando que o mestre genebrino é o “pai da Linguística” e, segundo Benveniste, “não há um só linguista hoje que não lhe deva algo” (BENVENISTE, 1991BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Campinas: Pontes, 1991., p. 34), essas noções abrem os caminhos para nossas reflexões. A linguagem, conjunto heteróclito e multiforme, é composta pela língua e pela fala, sendo que a língua representa o lado social e é essencial, ao passo que a fala representa o lado individual e é acessória ou mais ou menos acidental. Dessas noções partimos para a noção de signo linguístico que, segundo o autor, é uma entidade psíquica composta por duas faces: de um lado, o significado (conceito) e do outro, o significante (imagem acústica). Esse passo foi fundamental para sublinharmos a importância do valor linguístico, noção essa tão importante em nossas análises, tendo em vista que verificamos de que maneira o valor se imprime nas formas utilizadas pelo falante, tendo em vista que ele é determinado por tudo aquilo que o sucede/precede nos eixos associativo e sintagmático. Obviamente, o valor linguístico se estabelece no momento em que, no circuito da fala, dois sujeitos falantes de uma mesma comunidade linguística realizam trocas verbais. Do circuito da fala depreendemos a questão do tesouro da língua, aquilo que está depositado no cérebro de cada falante de uma dada língua e que, em conjunto (reunindo todos os tesouros dos falantes daquela comunidade linguística) dará a ela a ideia de “completude”, uma vez que isso só ocorre na massa (não é possível ocorrer isoladamente, ou seja, considerando apenas um indivíduo, um falante específico de tal comunidade). Com isso queremos destacar que as falas desviantes compõem o tesouro da língua tanto quanto as demais formas subversivas que cotidianamente são produzidas por todo e qualquer falante de determinada comunidade linguística.

Após apresentarmos nosso aporte teórico, realizamos as análises de dois recortes de fala, extraídos de Surreaux (2006)SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006., de uma criança (P.U), com três anos e cinco meses de idade. Nossas análises apontaram que, considerando os aspectos saussurianos, P.U não seleciona qualquer trecho do enunciado da terapeuta para repetir, ele elege o trecho que permite o desenvolvimento da sua singular sintagmatização (mesmo que seja partindo de um enunciado anterior, de seu interlocutor). Desse modo, vemos a noção de valor linguístico presente nessas análises, uma vez que ter valor significa ser aquilo que os outros não são e, nesse caso, ter valor significa gerar possibilidades de interpretação a partir das relações que cada elemento estabelece com os demais, via interpretação daquele que está na posição de ouvinte, no circuito da fala. No segundo recorte, a criança seleciona, no eixo associativo, o “brigadeiro” pela associação que fez com o “chocolate”, do “bolo de chocolate”. P.U poderia ter escolhido qualquer outra signo linguístico, mas realizou um movimento interessante ao eleger esse (fruto de relação associativa), em meio a tantas outras possibilidades. Outra questão interessante observada nos dados analisados é a materialização do esquema comunicativo proposto por Saussure (1974)SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974. através do circuito da fala. Criança e terapeuta alternam seus papéis constantemente: ora a criança assume o papel de falante, ora a terapeuta assume este papel. Tal fato evidencia e comprova a proposta de Saussure de que “o circuito se prolonga (…) numa ordem inversa” (op. cit., p. 19) sucessivamente, quantas vezes falante e ouvinte julgarem necessárias. O circuito da fala, ato que “supõe pelo menos dois indivíduos” (op. cit.), promove a materialização daquilo que Saussure chama de tesouro da língua, ou seja, das pequenas porções dessa língua presentes em cada um dos indivíduos que a compartilham e que, juntas, permitem que se vislumbre a totalidade (ou quase totalidade) da língua, uma vez que ela não exista de forma completa individualmente, apenas na massa, na sociedade, já que é que ela adquire sua completude.

Recapitulando as reflexões acerca das noções de normal e patológico, foi possível constatar que, a partir da ideia que se tem de normal (norma; algo padronizado que é determinado por um grupo de pessoas de uma dada sociedade) e de patológico (tudo aquilo que desvia do padrão), percebemos que tais noções não são suficientes para compreender a riqueza e a heterogeneidade dessas falas ditas sintomáticas, uma vez que se toda a fala que desvia do padrão é considerada patológica, então não existe uma “fala normal” de maneira integral. Logo, essas concepções são vagas demais e não representam algo relevante para uma análise linguística que busque compreender a singularidade dessas falas, do funcionamento da linguagem dessas falas. Nesse sentido, acreditamos que a relação normal/patológico não deve representar a análise linguística como um todo, ela pode servir como meio de reflexão (assim como serviu para a construção de nossa hipótese inicial), para pensarmos em como essa dicotomia talvez esteja atrelada muito mais à uma concepção de “avaliação” e “tratamento” clínico do que à uma concepção propriamente linguística dos fatos.

Acreditamos que a relevância de nosso estudo está vinculada à ideia de buscar um aporte teórico linguístico para realizar a análise de falas sintomáticas, uma vez que essas, muitas vezes, são objeto de estudo de diferentes áreas, como a Fonoaudiologia, a Psicolinguística e a Neurolinguística, e acabam, muitas vezes, escapando do campo de visão dos linguistas. Esperamos, assim, suscitar novas ideias, inspirações e questionamentos relacionados ao funcionamento da linguagem dessas falas sempre tão singulares e tão ricas em aspectos de análise, sempre considerando que cada sujeito, portador de fala sintomática, é único e merece uma análise linguística específica de sua fala.

  • 1
    Há, no Curso de Linguística Geral (1974, p. 18), referência ao funcionamento da linguagem em quadros de afasia, com citação específica dos estudos de Broca.
  • 2
    Vale destacar que o Curso de Linguística Geral é uma obra póstuma, publicada em 1916 (com o título Cours de Linguistique Générale), e editada por dois colegas de Saussure (Charles Bally e Albert Sechehaye).
  • 3
    O circuito da fala é apresentado no capítulo III – Objeto da Linguística – da Introdução do CLG (SAUSSURE, 1974SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 19).
  • 4
    Consideramos a ecolalia como a “fala que 'faz eco', isto é, que repete a fala do outro, tal qual uma 'fala de papagaio'.” (ARESI, 2009ARESI, Fábio. Por uma problematização da distinção normal/patológico na linguagem: uma abordagem enunciativa. 2009. 46 f. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., p. 37).
  • 5
    Convenções utilizadas em nossa transcrição: (.) um ponto entre parênteses indica que há uma pausa curta intra ou interturnos; (…) três pontos entre parênteses indicam que há uma pausa longa intra ou interturnos; ( ) parênteses vazios indicam que o transcritor foi incapaz de transcrever o que foi dito – segmento incompreensível; (( )) parênteses duplos indicam comentários do transcritor.

Referências

  • ARESI, Fábio. Por uma problematização da distinção normal/patológico na linguagem: uma abordagem enunciativa. 2009. 46 f. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
  • BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I Campinas: Pontes, 1991.
  • CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Univesitária,1990.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral São Paulo: Cultrix, 1974.
  • STAWINSKI, Aline Vargas. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. 108 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
  • SURREAUX, Luiza Milano. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem 2006. 202 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2017
  • Aceito
    15 Mar 2018
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