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Os “altos círculos” no mercado de transportes em São Paulo

The “high circles” in the transportation market in São Paulo

Resumo

Em gestação há quatro anos, a cidade de São Paulo aguarda as novas licitações dos serviços de ônibus. Nesse período, movimentações têm problematizado os graus de concentração desse mercado, tanto fora quando dentro da Prefeitura. Até o momento, todavia, sabe-se muito pouco sobre a composição e as transformações do conjunto das empresas privadas de transportes. A partir de dados primários sobre a propriedade e as características das empresas, este artigo procura contribuir para essa tarefa, tratando da composição do mercado privado de transporte público no município nas últimas quatro décadas. Inicialmente, são apresentadas, a partir de contribuições recentes advindas da literatura específica, as principais características da economia política urbana dos serviços de ônibus em São Paulo. Em seguida, é feita a análise da composição do mercado a partir da distribuição das frotas e dos vínculos de propriedade nas últimas quatro décadas. Os dados exibidos sugerem um mercado mais complexo e competitivo diante da narrativa consolidada no debate público e na academia, na qual se afirmou que as mesmas poucas famílias têm governado o mercado há décadas. Isso é especialmente crítico quando a atenção é voltada para a transformação política dos atores mais novos no mercado nas décadas de 1990 e 2010.

Palavras-chave:
Empresas privadas de transportes; Políticas públicas; Redes sociais; Economia política urbana dos serviços de ônibus

Abstract

For four years, the city of São Paulo has been awaiting the new bids for the bus services. In this period, actors have questioned the levels of capital concentration of this market, both outside and inside the City Hall. So far, however, we still know little about the sets and transformations of private bus companies. Based on primary data on ownership and company features, this paper seeks to contribute to this task by addressing the sets of the public transportation private market in the municipality in the last four decades. Initially, based on recent contributions, the main features of the urban political economy of the bus services in São Paulo are presented. Next, the analysis of the composition of the market in relation to the distribution of the bus fleets and the property ties in the last four decades are shown. The data presented suggests a more complex and competitive market in the face of the consolidated narrative in public and academic debate, in which was argued that a few family of owners have been dominating the market for decades. This is especially critical when attention is focused on the political transformation of the more newest actors in the market in the 1990s and 2010s.

Keywords:
Private bus companies; Public policies; Social networks; Urban political economy of the bus services

Introdução

Desde 2013, a Prefeitura de São Paulo prepara as novas licitações dos serviços de ônibus. Para além dos dissensos nos reajustes anuais das tarifas de ônibus, razão pela qual as administrações têm sofrido fortes pressões das ruas e criticadas por fazer o jogo das empresas privadas em processos decisórios opacos, em decorrência das novas licitações foi reacendido o debate acerca da concentração desse mercado. Nesse período, foram vistas algumas movimentações para a produção de uma desconcentração de capital no mercado, o aumento da competitividade e a redução de custos. Em 5 de fevereiro de 2015, a administração Haddad (PT) publicou 12 decretos tornando as 42 garagens de ônibus do município em propriedades de utilidade pública, passíveis, então, de desapropriação. De acordo com o governo, buscava-se a incorporação de atores externos, e até mesmo internacionais, com essas medidas. Mais recentemente, em 2017, algumas entidades, como o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), e outros grupos da sociedade civil vinham pressionado a nova administração Dória (PSDB) para a incorporação de mecanismos similares nas licitações desse ano, reivindicando a abertura de uma maior quantidade de espaços institucionais para a ampliação dos debates acerca dos novos arranjos.

Todavia, diferentemente do mercado dos serviços de limpeza urbana, analisado por Ralize (2016) Ralize, S. (2016). A economia política da limpeza urbana em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, 35(2), 55-76. , até o momento se sabe muito pouco sobre as composições e as transformações do conjunto das empresas privadas de transportes na cidade. Uma das únicas afirmações presentes na literatura quanto à composição desse mercado é de Henry & Zioni (1999) Henry, E., & Zioni, S. (1999). Ônibus na metrópole, articulações entre iniciativa privada e intervenção pública em São Paulo. In A. Brasileiro, & E. Henry, (Eds.), Viação ilimitada: ônibus das cidades brasileiras (pp. 119-186). São Paulo: Cultura Editores Associados. , os quais afirmaram genericamente que este seria dominado há décadas por dois grupos, os portugueses e os mineiros. Argumentou-se, além disso, até fins da década de 1990, que as regulações produzidas pelas políticas públicas no século XX foram fatores fundamentais para a estruturação de um mercado oligopolizado por meio da progressiva redução da quantidade de empresas, da expansão das frotas e ainda da modernização das empresas ( Brasileiro, 1996 Brasileiro, A. (1996). Do artesanato à moderna gestão empresarial das empresas privadas de ônibus urbano no Brasil. In R. D. Orrico, Fo., A. Brasileiro, E. M. Santos, & J. J. G. Aragão (Eds.), Ônibus urbano: regulamentação e mercados (pp. 261-272.). Brasília: LGE. ). Um conjunto de instituições teria erigido barreiras cada vez maiores de entrada, cristalizando a participação de atores no provimento dos serviços e favorecendo a operação de certos tipos de empresa no lugar de outras.

Afinal, como, nos termos do ex-prefeito Paulo Maluf, os “tubarões dos transportes” têm se organizado para o provimento dos serviços de ônibus? Em um esforço similar ao já realizado pelo laboratório de dados e narrativas na favela da Maré (Datalab) para o município do Rio de Janeiro em 2016 ( Távora, 2017 Távora, F. (2017). Na ida e na volta para casa. Rio de Janeiro: Datalab. Recuperado em 17 de novembro de 2017, de http://datalabe.org/na-ida-e-na-volta-para-casa/
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), este artigo enfrenta essa tarefa para o caso de São Paulo nas últimas quatro décadas. Assim, de forma complementar a estudos anteriores debruçados sobre os padrões de governança urbana no setor ( Campos, 2016b Campos, M. (2016b). Ferramentas de governo: instrumentação e governança urbana nos serviços de ônibus em São Paulo (Dissertação de mestrado). Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo. , 2018 Campos, M. (2018). Public policy instruments and their impact: from analogue to electronic government in the bus services of São Paulo. Brazilian Political Science Review, 12(1). http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800010003.
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), nos quais se analisaram a construção do controle estatal sobre a produção e a circulação de viagens, a receita tarifária e de passageiros e o impacto do enquadramento de instituições e instrumentos de políticas pública sobre as disputas políticas no planejamento de linhas ( Campos, 2016a Campos, M. (2016a). O mercado de viagens e as disputas em torno das linhas de ônibus. Novos Estudos CEBRAP, 105, 35-53. ), o presente estudo se dedica a investigar os processos de constituição e transformação do mercado de empresas privadas operadoras de ônibus nas últimas quatro décadas. Particularmente, trata-se de especificar suas características a partir da análise da distribuição da frota e dos vínculos de propriedade no setor privado. O artigo é baseado em dados primários e secundários obtidos na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp), na agência estatal São Paulo Transportes (SPTrans) e na literatura específica.

O texto que se segue está organizado em duas partes, além desta introdução e uma seção de considerações finais. Na primeira, organizam-se brevemente os principais contornos da economia política urbana dos serviços de transportes e as particularidades desses capitais do urbano como retratado na literatura específica. Na segunda, apresentam-se a sistematização dos dados relativos à distribuição da frota e os vínculos de propriedades das empresas. Ao final, retomam-se os principais argumentos apresentados neste trabalho.

A economia política urbana dos serviços de transportes por ônibus

As empresas privadas operadoras de transporte estão imersas em uma economia política urbana específica, envolvendo dimensões econômicas e relações sociais e de poder no interior de formações históricas específicas. Como conceituou Marques (2016) Marques, E. (2016). De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, 105(2), 15-33. , essas empresas são capitais do urbano cuja lucratividade e acumulação estão fundamentalmente relacionadas com a produção do espaço urbano. Em seu caso específico, diferentemente da produção do lucro de incorporação imobiliária ( Hoyler, 2014 Hoyler, T. (2014). Incorporação imobiliária e intermediação de interesses em São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ), a localização não tende a ser um elemento central na lucratividade, ao passo que os serviços são operados como fluxos de passageiros, associados a feições espaciais, como a necessidade de garagens. Por outro lado, fluxos espaciais particulares, por exemplo, eixos viários dotados de grande circulação de passageiros, podem se tornar alvos relevantes de disputas políticas, dependendo das características dos instrumentos de remuneração (por passageiro transportado, custo, indicadores de desempenho etc.) empregados para a operacionalização dos serviços. Estes acomodam de diversas maneiras a espacialidade dos conflitos, sobretudo a origem da variação da lucratividade e do fundo de financiamento dos serviços públicos, com impactos significativos sobre o planejamento de linhas de ônibus ( Campos, 2016a Campos, M. (2016a). O mercado de viagens e as disputas em torno das linhas de ônibus. Novos Estudos CEBRAP, 105, 35-53. ; Mendonça, 1997 Mendonça, A. L. M. (1997). Gestão pública, regulamentação e flexibilidade de planejamento: a experiência da “municipalização” do transporte coletivo em São Paulo (1989-1992) (Dissertação de mestrado). Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. ).

Empresas privadas de transportes realizam a produção capitalista das linhas de ônibus, onde estas operaram como fonte de valorização. Por outro lado, é na relação conflituosa com o Estado que as características dessas mercadorias são circunscritas, e os fluxos urbanos, institucionalizados, com baixíssima (ou, mesmo, na completa ausência de) participação popular. No município de São Paulo, a institucionalização das linhas tem ocorrido desde os anos de 1980 em torno dos instrumentos das Ordens de Serviço de Operação (OSO), determinando quatro características das linhas: itinerário, quantidade de partidas de meia viagem, programação horária e tipo de frota ( Campos, 2016a Campos, M. (2016a). O mercado de viagens e as disputas em torno das linhas de ônibus. Novos Estudos CEBRAP, 105, 35-53. ).

O agrupamento de linhas de ônibus no período contemporâneo seria o resultado de um processo histórico de longo prazo envolvendo diferentes contextos políticos, institucionais e urbanos, um conjunto dissonante, e não propriamente uma rede de linhas de ônibus coesa, dotada de lógica única de estruturação ( Campos, 2016a Campos, M. (2016a). O mercado de viagens e as disputas em torno das linhas de ônibus. Novos Estudos CEBRAP, 105, 35-53. ). Talvez esse seja um dos principais legados espaciais e de políticas públicas enquadrando a dinâmica política e as preferências de empresas, burocracias, usuários e governos. Isso sugere, ainda que de maneira nuançada se comparada à economia política da incorporação, a existência de um caráter inercial específico ao setor, associado ao espaço entendido como fluxo ( Marques, 2017 Marques, E. C. L. (2017). Em busca de um objeto esquecido: a política e as políticas do urbano no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(95), 1-18. http://dx.doi.org/10.17666/329509/2017.
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), e um tipo de trajetória dependente espacial na construção das políticas e dos serviços de ônibus.

As mudanças de linhas são constantes nos serviços de ônibus. Enquanto elas operam como fonte de lucro e fluxos urbanos institucionalizados, essas mudanças envolvem inevitavelmente negociações e reacomodações, caso a caso, de configurações de interesses antagônicos, fragmentados (usuários) e organizados (operadores privados), mas fundamentalmente localizados no espaço. Por um lado, alterações nas programações podem promover o deslocamento de passageiros de uma empresa para outra e, dependendo dos instrumentos de remuneração, levar a alterações na lucratividade e nas parcelas de mercado. De outro lado, elas afetam também as características da oferta a diferentes usuários, como no caso do seccionamento de linhas, podendo, para uns, promover maior rapidez em viagens e, para outros, impor necessidade da baldeação entre linhas de ônibus. Assim, pode-se afirmar que a arena do planejamento de linhas de ônibus pode ser caracterizada como redistributiva ( Lowi, 1964 Lowi, T. J. (1964). American business, public policy, case-studies, and political theory. World Politics, 16(4), 677-715. http://dx.doi.org/10.2307/2009452.
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).

Na economia política dos serviços de transporte urbano, a lucratividade é produzida de forma dispersa no tempo e no espaço, o que reposiciona analiticamente o cotidiano da governança urbana como uma esfera estruturante das disputas nas políticas públicas de transporte. A regulação e o controle da oferta de linhas de ônibus, os custos operacionais, a provisão no nível da rua, a lucratividade empresarial e o valor das tarifas de ônibus têm sido governados pelas agências estatais e empresas privadas a partir da construção cotidiana do conhecimento do desempenho da provisão, organizado com base em categorias esquemáticas e em seus referenciais materiais, e da produção e circulação de objetos burocráticos responsáveis pela representação de receita tarifária, passageiros e viagens de ônibus. As carreiras políticas desses objetos organizam tarefas a serem cumpridas e por quais indivíduos e coletividades práticas devem ser realizadas, demandando um grupo de instrumentos para a produção da provisão das linhas de ônibus ( Campos, 2018 Campos, M. (2018). Public policy instruments and their impact: from analogue to electronic government in the bus services of São Paulo. Brazilian Political Science Review, 12(1). http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800010003.
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).

Baseadas em diferentes tipos de contratação pública, determinando percentagens de lucro, as variações nos patamares da lucratividade (legal e ilegal) são enquadradas, de forma central, pelas características das práticas burocráticas cotidianas e pela mediação da materialidade e dos efeitos em autonomia relativa de instrumentos de políticas públicas, distribuindo desigualmente recursos de poder, favorecendo certas estratégias para a realização de interesses políticos e econômicos e, sobretudo, estruturando diferentes assimetrias de informação entre Estado, empresas privadas de ônibus e burocracias do nível de rua. Essas peculiaridades da produção do lucro nessa economia política redireciona o estudo da política no setor em direção ao que Lascoumes & Le Galès (2007) Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: understanding public policy through its instruments: from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institutions, 20(1), 1-21. http://dx.doi.org/10.1111/j.1468-0491.2007.00342.x.
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definiram como a instrumentação das políticas públicas, um meio de orientar, por meio de artefatos técnicos e sociais, as relações entre Estado e aqueles com os quais ele se relaciona, formando passagens obrigatórias para as políticas e, além disso, para a investigação da governança urbana como uma prática material, como sugere Hull (2012) Hull, M. S. (2012). Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. California: University of California Press. http://dx.doi.org/10.1525/california/9780520272149.001.0001.
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, na qual aparece como central as articulações práticas e os nexos entre abstrações estatais e objetos burocráticos.

Nas últimas décadas, observa-se no município de São Paulo a transição entre padrões de governança urbana (analógico e eletrônico), um resultado histórico acumulado de uma série de políticas públicas levadas a cabo por diferentes administrações municipais. Suas transformações foram operacionalizadas por meio de uma vasta gama de instrumentos e tecnologias (validadores eletrônicos, GPS, indicadores de qualidade, softwares de monitoramento e cartões inteligentes sem contato), enquadrando as práticas cotidianas e a distribuição de responsabilidade entre atores estatais e privados na governança. Esse fato permitiu ao Estado não apenas maior capacidade potencial de regulação dos serviços pela redução de assimetrias de informação, mas também que este voltasse a atuar diretamente na provisão ( Campos, 2018 Campos, M. (2018). Public policy instruments and their impact: from analogue to electronic government in the bus services of São Paulo. Brazilian Political Science Review, 12(1). http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800010003.
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).

Por fim, o mercado de transportes é um oligopsônio 1 1 Uma forma de mercado com poucos compradores e inúmeros vendedores. Trata-se de um tipo de competição inversa ao caso do oligopólio, no qual existem apenas alguns vendedores e vários compradores. , na qual os Estados são os únicos compradores dos serviços ( Marques, 2016 Marques, E. (2016). De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, 105(2), 15-33. ). Estes são realizadas por meio de contratações de diferentes naturezas (permissões, contratos de prestação de serviço e concessões públicas) no tempo e no espaço, definindo as taxas de lucro, os padrões de oferta dos serviços e suas formas de mensuração e controle operacional.

A partir desse quadro, é razoável argumentar que, para as empresas privadas, as características das políticas públicas de transportes importam no detalhe. E, portanto, sua importância potencial na dinâmica política não derivaria de elementos sistêmicos, como sugeriu Marques (2016) Marques, E. (2016). De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, 105(2), 15-33. , mas do uso de recursos de poder e de estratégias políticas concretas em conexão com outros atores e em contextos institucionais e relacionais específicos.

A trajetória do mercado privado dos serviços de ônibus em São Paulo pode ser organizada em quatro fases: (1) gênese e expansão; (2) consolidação e modernização; (3) crise do mercado; (4) intensificação da concentração de capital ( Campos, 2016a Campos, M. (2016a). O mercado de viagens e as disputas em torno das linhas de ônibus. Novos Estudos CEBRAP, 105, 35-53. ) 2 2 Para saber mais sobre a trajetória do arcabouço institucional das políticas públicas de transporte no município de São Paulo, ver Campos (2016b ). . Entre as décadas de 1920 e 1960, o mercado era caracterizado pela baixa institucionalização e alta heterogeneidade de capital entre as empresas (com intensa flutuação na quantidade de atores), alta concorrência, baixa disponibilidade de tecnologias e alta heterogeneidade de máquinas disponíveis para o setor de transportes. Já no segundo período, entre as décadas de 1970 e 1990, ocorreu um processo crescente de institucionalização de procedimentos, maior homogeneidade, estabilidade no número de empresas e redução da concorrência privada. Além disso, esse foi o momento em que se deu a incorporação definitiva dos atores privados nas instituições formais regulando os serviços de ônibus, representando a passagem da busca pelo monopólio estatal exclusivo para o objetivo de racionalização dos serviços de ônibus com operação majoritariamente privada, com o edital de concorrência de 1977 na administração de Olavo Setúbal. A década de 1990 foi um período de crise do mercado consolidado, no qual, ao mesmo tempo que ocorreu a completa privatização dos serviços e a expansão na quantidade e na heterogeneidade das empresas de transportes, fatias cada vez maiores da riqueza produzida pelas empresas tradicionais do setor foram sendo produzidas e incorporadas pela crescente operação clandestina dos serviços. Talvez esse tenha sido o período mais conflitivo e violento do mercado, no qual a coleta formal de passageiros caiu quase 50%. Por fim, no período contemporâneo, a partir da década de 2000, ocorreu a maior intensificação de capital na história do mercado, com a formalização do transporte clandestino e a intensificação da incorporação de tecnologias eletrônicas no governo dos serviços de transportes.

O mercado privado de transportes em São Paulo (1980-2010)

A distribuição da frota privada

A composição do mercado variou consideravelmente em relação ao arcabouço institucional no setor. A seguir, são delineadas as características desse conjunto a partir da quantidade de veículos em operação por empresa.

A frota privada passou por uma tendência de crescimento ao longo das últimas quatro décadas. Em 1983, ela totalizava 6.457 veículos distribuídos entre 38 empresas. Já em 1992, esse conjunto passou para 8.147 entre 32 organizações. Em 1997, ocorreu a terceira expansão da frota privada, chegando a 10.784 veículos operados por 55 empresas. Por fim, em 2015, a frota total de veículos atingiu o número de 14.777 entre 27 empresas. Entretanto, isso passou a ser organizado em torno das 15 empresas concessionárias, com frota de 8.780, e as 12 antigas cooperativas, transformadas em empresas no início da década de 2010, com participação total de 5.997 veículos.

A frota média para o conjunto das empresas variou de 170 veículos em 1983 para 254,5 em 1992, 196 em 1997 e, por fim, 547 em 2015. O Gráfico 1 fornece uma melhor visualização da composição e transformação da distribuição das frotas em cada uma das décadas observadas. As linhas dividindo os caixotes representam a mediana em cada distribuição, separando o segundo e o terceiro quartil em cada ano. Todas as distribuições são assimétricas, com uma maior dispersão na cauda superior, com exceção de 2015. Observa-se que houve um crescimento contínuo ao longo dos anos nas frotas, acompanhada de sua maior dispersão para cima. Uma forte variação no tamanho da maior frota na cidade também é visualizada. De 463 veículos com a Empresa Auto-Ônibus Penha – São Miguel, passou-se para 1.733 veículos com a VIP Transportes Urbanos, as duas como valores atípicos nas distribuições. Já no caso da menor frota, essa variação foi bem menor. A Viação Urbana Transleste operava com apenas 73 veículos em 1983, ao passo que a Etu Expandir, com 103 ônibus. Por fim, é importante apontar o aumento significativo das medianas. De 210 em 1983, passou para 505 veículos em 2015.

Gráfico 1
- Distribuição da frota privada em São Paulo. Fonte: Elaboração própria do autor a partir dos dados da CMTC e SPTrans 3 3 Dados obtidos via lei de acesso à informação (LAI) na SPTrans e em sistematizações presentes em Itacarambi (1985 ) e Henry e Zioni (1999). . Fonte: São Paulo (2017b) São Paulo. Portal da Transparência. (2017b). Recuperado em 17 de novembro de 2017, de http://esic.prefeitura.sp.gov.br
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.

Após o período de homogeneização promovido pelas regulações dos anos de 1970, em conclusão, é possível afirmar que a transformação do mercado privado se deu no sentido da sua heterogeneização e da concentração desigual de capital na cidade.

Os “altos círculos” no mercado privado

Com base em um banco de dados inédito, que inclui dados de vínculos de propriedade e da frota das empresas responsáveis pela operação dos serviços de ônibus no município de São Paulo, esta seção analisa duas dimensões do mercado privado: (i) os vínculos de propriedade entre pessoas físicas e jurídicas nos mercados como um todo; e (ii) os graus de concentração de capital para os anos de 1983, 1992, 1997 e 2015.

Em primeiro lugar, foram construídos sociogramas que representam graficamente os vínculos de propriedade entre as empresas operadoras dos serviços, a partir de um software de análise de redes sociais (Pajek) 4 4 Pajek é um software livre que facilita análises quantitativas e qualitativas de redes sociais por meio da descrição das características das redes de acordo com a representação visual ou numérica. Para mais informações, ver: Mrvar (2017 ). . As pessoas físicas e jurídicas são representadas nesses sociogramas por vértices, respectivamente, brancos e pretos. Os vínculos de propriedade são representados por linhas, conformando diferentes componentes de vértices e linhas (agrupamentos) nas redes. Não se tratou aqui da análise das características de vínculos específicos internamente a diferentes agrupamentos com base nos sociogramas, mas da representação da composição do mercado como um todo. Por tal motivo, optou-se pela manutenção da totalidade dos agrupamentos em todas as figuras, de modo a demonstrar empiricamente a variação na quantidade de agrupamentos e proprietários ao longo do período analisado.

Em segundo lugar, após a identificação dos respectivos vínculos (e diferentes agrupamentos), a estratégia analítica realizada foi a da associação dos dados de frota por empresa, tidas como proxy do tamanho de capital de cada agrupamento no mercado, aos agrupamentos identificados na etapa anterior, de modo a identificar os graus de concentração do mercado. Em todos os sociogramas, com algarismos greco-romanos, foram identificados os agrupamentos com as maiores frotas.

Para o período analisado, os vínculos de propriedade de quatro empresas não foram encontrados. Isso significa que, nos três primeiros anos, as propriedades de 4,38, 15,66 e 8,69% da frota não foram identificadas. As afirmações apresentadas a seguir devem ser apreendidas tendo em vista essa limitação.

Em todos os anos, observa-se a existência de conjuntos de agrupamentos ou componentes de vértices e linhas, o que indica que, ao mesmo tempo que houve fragmentação quando se considera a rede em geral, existiu concentração entre agrupamentos que se relacionam entre si, mas não com outros. Diferentemente da estrutura dos vínculos no mercado de limpeza urbana ( Ralize, 2016 Ralize, S. (2016). A economia política da limpeza urbana em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, 35(2), 55-76. ), a composição das sociedades aqui analisadas tem sido caracterizada majoritariamente por pessoas físicas e, como os sobrenomes sugerem, de caráter familiar, algo que já havia sido apontado por Henry & Zioni (1999) Henry, E., & Zioni, S. (1999). Ônibus na metrópole, articulações entre iniciativa privada e intervenção pública em São Paulo. In A. Brasileiro, & E. Henry, (Eds.), Viação ilimitada: ônibus das cidades brasileiras (pp. 119-186). São Paulo: Cultura Editores Associados. . Quando houve a presença de pessoas jurídicas, os proprietários delas foram incorporados ao banco, configurando vínculos secundários, no entanto sem diferenciação. Além disso, a comparação com a década de 1980 só foi possível devido à sistematização de acionistas realizada por Itacarambi (1985) Itacarambi, P. A. O. (1985). A administração da operação dos transportes coletivos por ônibus em São Paulo: pública ou privada? (Dissertação de mestrado), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. . Não obstante, de modo a privilegiar o período mais recente, somente as redes de 1983 não serão apresentadas graficamente no artigo.

Em 1983, entre as 38 empresas privadas em regimes de permissão, observam-se apenas 18 agrupamentos, entre os quais havia 6 que eram proprietários de mais de uma sociedade. O agrupamento (I) 5 5 O agrupamento I, da família Ruas, é o principal e maior grupo em todos os anos analisados. Ele foi nomeado como agrupamento I em todas as representações gráficas, inclusive na Tabela 1 como “grupo 1”. , o maior de todos, controlava ao todo 9 empresas e, no quesito frota, 29,77% do mercado. O segundo maior, o agrupamento (II), controlava 4 empresas e 8,38% da frota do mercado.

Tabela 1
- Parcelas de mercado dos seis grupos de proprietários mais antigos (1983-2015)

A Figura 1 apresenta o sociograma dos vínculos de propriedade para o ano de 1992. No contexto distinto da municipalização dos transportes, entre as 32 empresas contratadas por serviço prestado, observa-se uma redução de 18 para apenas 12 agrupamentos de proprietários, dos quais apenas 3 (indicados na figura por I, II e III) concentravam mais de uma empresa, totalizando, respectivamente, 39,7, 22,5 e 5,3% da frota total e, ao todo, 67,5% do mercado. O agrupamento (I) controlava 10 das 32 empresas, o (II), 8 empresas, e o (III), apenas 2. A média de proprietários por sociedade no período foi de 8,17, totalizando 139 acionistas no período. O maior desses agrupamentos era composto por 36 pessoas físicas; já o segundo maior, por 45 vértices (39 pessoas físicas e 6 jurídicas).

Figura 1
- Sociograma das empresas de transportes de São Paulo em 1992. Fonte: Elaboração própria do autor a partir dos dados obtidos na Jucesp 6 6 Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017). . Agrupamento I; Agrupamento II; Agrupamento III. Fonte: São Paulo (2017a) São Paulo. Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP. (2017a). Recuperado em 17 de novembro de 2017, de https://www.jucesponline.sp.gov.br
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.

É possível concluir, portanto, que a passagem da municipalização na administração Erundina resultou em uma maior concentração de capital no setor. Não obstante, organizadas de forma fragmentada do ponto de vista dos vínculos de propriedade, em 1992, estas empresas se tornaram fortemente concentradas em alguns poucos agrupamentos. Algumas delas se encontravam em redes mais complexas (em geral, os agrupamentos com maior participação), com maiores números de sócios e diretores, ou mais cruzamentos de nomes comuns entre seus quadros.

Em 1997, após a privatização da Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC) na administração Pitta, o número de empresas chegou a 55. Todavia, como demonstra a Figura 2 , observa-se a existência de apenas 21 agrupamentos. Pouco menos da metade deles (9) concentrava mais de uma empresa. Os quatro maiores grupos de proprietários controlavam, respectivamente, 10, 8, 5 e 4 sociedades. Em percentagens de frota, eles concentravam 60,2% do mercado, sendo que o maior e mais complexo, o agrupamento (I), perdeu parcelas relativas de mercado se comparado com os anos anteriores, passando de 39,7% para 30,7%. Contudo, do ponto de vista absoluto, sua frota teve um ligeiro aumento de 3.239 para 3.535. O segundo maior agrupamento (II) concentrava 11,8% da frota, o terceiro (III), 12,3%, e, por fim, o quarto (IV), apenas 5,5%. A média de proprietários no período foi de 6,64, de um total de 188 proprietários.

Figura 2
- Sociogramas das empresas de transportes de São Paulo em 1997. Fonte: Elaboração própria do autor a partir dos dados obtidos na Jucesp 7 7 Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017). . Agrupamento I; Agrupamento II; Agrupamento III; Agrupamento IV. Fonte: São Paulo (2017a) São Paulo. Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP. (2017a). Recuperado em 17 de novembro de 2017, de https://www.jucesponline.sp.gov.br
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.

As fichas cadastrais coletadas apresentam evidências que contrariam a sugestão de Henry & Zioni (1999) Henry, E., & Zioni, S. (1999). Ônibus na metrópole, articulações entre iniciativa privada e intervenção pública em São Paulo. In A. Brasileiro, & E. Henry, (Eds.), Viação ilimitada: ônibus das cidades brasileiras (pp. 119-186). São Paulo: Cultura Editores Associados. de que os mesmos atores teriam vencido as licitações da privatização da CMTC. Antigos agrupamentos, presentes já nos anos de 1980 e no início dos anos de 1990, participaram das licitações e tiveram uma alteração substancial de participação no mercado paulistano. Isso ocorreu por decorrência da vitória nas concorrências públicas com a criação de novas pequenas e médias viações, mas também pela incorporação de viações vencedoras. Logo, pode-se concluir que a expansão do mercado foi apropriada tanto por antigos agrupamentos quanto por novos atores, promovendo uma ligeira redução da concentração de capital.

Para o sociograma de 2015, apresentado na Figura 3 , é preciso fazer algumas considerações. Com a licitação de 2003 do Sistema Interligado, novos grupos foram incorporados ao mercado por meio da formalização dos clandestinos que, nas licitações, não disputaram com os antigos empresários parcelas de mercado, mas sim entre si. Entretanto, a partir de 2014, em um movimento associado às novas licitações, consubstanciando juridicamente um processo já em andamento, as cooperativas se tornaram sociedades limitadas (8) e sociedades por ações (4). Logo, as parcelas dos cooperados no mercado, criadas em 2004, representadas por 5.997 veículos e 12 empresas, passaram a ser controladas, em 2015, por apenas 57 pessoas físicas e 1 pessoa jurídica. Entre as 12 empresas, não havia qualquer tipo de sobreposição de propriedade, tratando-se de 12 agrupamentos. Os dois maiores (III e IV) entre eles possuíam, respectivamente, 17,4 e 20,1% da frota entre as permissionárias e 7,2 e 8,2% para o sistema inteiro.

Figura 3
- Sociograma das empresas de transportes de São Paulo em 2015. Fonte: Elaboração própria do autor a partir dos dados obtidos na Jucesp 8 8 Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017). . Agrupamento I; Agrupamento II; Agrupamento III; Agrupamento IV. Fonte: São Paulo (2017a) São Paulo. Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP. (2017a). Recuperado em 17 de novembro de 2017, de https://www.jucesponline.sp.gov.br
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Para o caso das concessionárias, entre as 15 empresas existentes em 2015, havia ao todo 11 agrupamentos, a menor quantidade em todo o período analisado. Apenas o agrupamento (I) concentrava mais de uma empresa, controlando 5 sociedades e atingindo sua maior parcela do mercado das empresas de ônibus “tradicionais”, com 42,1%, e 25% do sistema total. Ao mesmo tempo, observa-se que esse agrupamento reduziu consideravelmente de tamanho, passando a ser controlado por apenas 23 pessoas físicas. O segundo maior (II) era controlado por 3 pessoas jurídicas, que, por sua vez, estavam sob o controle de 4 pessoas físicas, com a participação de 14,4% entre as concessionárias e 8,5% no total. Ao todo, havia 132 proprietários no mercado (57 nas permissionárias e 75 nas concessionárias).

Em 2015, a soma do capital total declarado pelas empresas do sistema de ônibus era de R$ 781.762.573,00. Entre as concessionárias, esse valor chegava a R$ 366.098.503,00. Entre as permissionárias, curiosamente, o valor era maior, chegando a R$ 415.664.070,00. A média total foi de R$ 28.954.169,37.

Subjacente à concentração de capital observada, ocorreu também uma grande troca de grupos, recuos e avanços nas fatias de mercado de cada agrupamento. A maior variação na distribuição das parcelas ocorreu entre os grupos de propriedade com as menores participações no mercado em geral, tanto pela via da expansão dos mercados quanto pelos custos de outros agrupamentos. Pela natureza das informações sistematizadas, não foi possível mensurar com exatidão a quantidade de agrupamentos que já operaram na cidade desde os anos de 1980. Não obstante, esse número chegou a algo em torno de 50 (incluindo aqui os novos agrupamentos da década de 2010). Entre as “tradicionais”, apenas 6 grupos de proprietários sobreviveram a todo o período. Hoje, os mais longevos (e, talvez, ainda mais longevos do que foi possível captar com os dados sistematizados) são representados pelas seguintes empresas: (1) VIP, Via Sul, Viação Campo Belo, Expandir, Viação Cidade Dutra; (2) Sambaíba; (3) Viação Santa Brígida; (4) Viação Gato Preto; (5) Viação Gatusa; (6) Tupi. A flutuação da participação deles no mercado foi heterogênea, como demonstra a Tabela 1 . Enquanto alguns tiveram uma participação relativamente estável, outros seguiram claras estratégias de expansão de fronteiras e conquista de maiores parcelas. Em 1983, operavam 52,19% do mercado; hoje, sua fatia corresponde a 77,2% das concessionárias e 45,87% do total.

O que se observa, em conclusão, é que a concentração de capital no período contemporâneo se deu de tal modo a, praticamente, equalizar a quantidade de agrupamentos de propriedade com a quantidade de empresas. Se, no passado, havia grupos com 5, 6, 7 empresas, em 2015 havia apenas um grupo controlando mais de uma unidade de produção. Ao mesmo tempo que o número de empresas foi reduzido consideravelmente, reduziu-se o número de indivíduos e pessoas jurídicas proprietárias, mas cresceu consideravelmente o tamanho das frotas de algumas empresas.

Considerações finais

No caso brasileiro, como afirmou Marques (2016) Marques, E. (2016). De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, 105(2), 15-33. , a formação do Estado, da economia e das cidades atribuiu grande centralidade potencial aos capitais do urbano na economia e na política. Isso teria ocorrido sempre de forma imbricada com as organizações estatais, pois o setor privado foi criado e moldado por elas, “[...] não apenas por meio das regulações estatais, mas também pela contratação continuada e seletiva de seus serviços” ( Marques, 2016 Marques, E. (2016). De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, 105(2), 15-33. , p. 32).

É possível organizar a trajetória das empresas privadas de ônibus em grandes fases do mercado de transporte por ônibus, fortemente associada aos ciclos de regulação e contratação pública. A primeira ocorreu entre as décadas de 1920 e 1970, caracterizada aqui como o período de gênese e expansão do conjunto das empresas. Um período em que as regulações estatais ainda se encontravam incipientes, e as empresas, altamente heterogêneas e em forte competição. Nessa fase, a quantidade de empresas sofreu fortes flutuações 11 11 Eram 53 empresas em 1934, 34 em 1947, 96 em 1961 e 66 em 1976. , ao mesmo tempo que se encontrava em ampla expansão no quesito frota. O setor privado foi capaz de galgar progressivamente um maior espaço diante da decadência do sistema de bondes elétricos, da operação pública dos serviços de ônibus, passando a controlar a maior parte do transporte urbano no município.

Entre 1977 e 1992, marcada pela renovação da concessão à CMTC, a segunda fase de consolidação foi marcada pela expansão do arcabouço institucional de regulação e pela incorporação definitiva das empresas privadas no setor, expressa no deslocamento da busca pelo monopólio estatal, presente no Decreto nº 2.215 de 1953, para o objetivo da racionalização dos serviços com operação majoritariamente privada na Lei nº 8.579 de 1977. Como resultado desta última e de esforços de construção de capacidades estatais, observou-se um processo crescente de institucionalização de procedimentos dentro das empresas, maior homogeneidade quanto à frota de veículos e redução da concorrência predatória entre elas pela criação das primeiras (23) áreas exclusivas de operação. Além disso, como visto, a passagem para a municipalização dos transportes em 1992 promoveu uma concentração de capital, com apenas 12 agrupamentos de proprietários, associada a uma importante expansão na frota privada.

Na terceira fase, entre 1993 e 2003, a crise no mercado, deflagrada pela privatização da CMTC em 1995 e associada ao crescimento do transporte clandestino nas margens da cidade, promoveu, simultaneamente, forte expansão na quantidade de empresas privadas, crescimento nos agrupamentos de proprietários de empresas (e, ligeiramente, uma desconcentração de capital), ampliação de operadores individuais e cooperativas de vans e peruas e, ainda, a heterogeneização das frotas no mercado. Com ampla aceitação pelos usuários e em plena expansão de oferta, o mercado informal deslocou uma imensa parte da demanda do sistema de ônibus formal para seus serviços, conforme demonstrado pela forte queda nos dados de passageiros coletados no sistema formal por toda a década de 1990 12 12 De acordo com os dados da SPTrans, obtidos via lei de acesso à informação, foram coletados no sistema formal 1.965.752.421 passageiros em 1995 e apenas 1.056.998.899 em 2002. . Talvez esse tenha sido o período mais conflituoso da trajetória desse mercado na cidade.

No período mais recente, foram observadas a retomada e a intensificação da concentração de capital no setor, com o surgimento das maiores empresas e frotas na trajetória do mercado, entre os novos e os velhos agrupamentos de proprietários. A maior concentração ocorreu entre os antigos cooperados, cujas 11 empresas criadas (ex-cooperativas) passaram a ser comandadas por 57 pessoas. Entre as décadas de 2000 e 2010, a quantidade de agrupamentos de proprietários (23) e empresas (27) praticamente se igualaram, algo inédito no setor.

Grande parcela do mercado tem sido controlada por seis grupos de proprietários (e famílias), com participação altamente heterogênea, pelo menos desde a década de 1980. Apesar da incorporação de novos atores na década de 2000, de maneira alguma isso significou uma perda de espaço para os grupos mais antigos. Pelo contrário, todos expandiram, ainda que de forma heterogênea, suas frotas. A despeito disso, houve considerável variação de pequenos agrupamentos atuantes no mercado.

Logo, conjuntamente à construção bem-sucedida de capacidades estatais de regulação sobre a prestação dos serviços de ônibus ( Campos, 2016b Campos, M. (2016b). Ferramentas de governo: instrumentação e governança urbana nos serviços de ônibus em São Paulo (Dissertação de mestrado). Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo. , 2018 Campos, M. (2018). Public policy instruments and their impact: from analogue to electronic government in the bus services of São Paulo. Brazilian Political Science Review, 12(1). http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800010003.
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), vê-se também o fortalecimento do antigo oligopólio das concessionários e ainda o surgimento de um novo entre as permissionárias.

Em pleno debate sobre o futuro das novas concessões dos serviços e da cidade, São Paulo tem em mãos a oportunidade de refletir criticamente sobre as implicações políticas e sociais de tamanha concentração de capital no setor. Este artigo procurou contribuir com dados sobre a composição do mercado para esse debate.

  • 1
    Uma forma de mercado com poucos compradores e inúmeros vendedores. Trata-se de um tipo de competição inversa ao caso do oligopólio, no qual existem apenas alguns vendedores e vários compradores.
  • 2
    Para saber mais sobre a trajetória do arcabouço institucional das políticas públicas de transporte no município de São Paulo, ver Campos (2016b Campos, M. (2016b). Ferramentas de governo: instrumentação e governança urbana nos serviços de ônibus em São Paulo (Dissertação de mestrado). Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo. ).
  • 3
    Dados obtidos via lei de acesso à informação (LAI) na SPTrans e em sistematizações presentes em Itacarambi (1985 Itacarambi, P. A. O. (1985). A administração da operação dos transportes coletivos por ônibus em São Paulo: pública ou privada? (Dissertação de mestrado), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. ) e Henry e Zioni (1999).
  • 4
    Pajek é um software livre que facilita análises quantitativas e qualitativas de redes sociais por meio da descrição das características das redes de acordo com a representação visual ou numérica. Para mais informações, ver: Mrvar (2017 Mrvar, A. (2017). Pajek. Slovenia. Recuperado em 17 de novembro de 2017, de http://mrvar.fdv.uni-lj.si/pajek
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    ).
  • 5
    O agrupamento I, da família Ruas, é o principal e maior grupo em todos os anos analisados. Ele foi nomeado como agrupamento I em todas as representações gráficas, inclusive na Tabela 1 como “grupo 1”.
  • 6
    Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017).
  • 7
    Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017).
  • 8
    Dados obtidos no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) (São Paulo, 2017).
  • 9
    Esta coluna refere-se à porcentagem apenas entre as concessionárias.
  • 10
    Dados obtidos via lei de acesso à informação (LAI) na SPTrans e em sistematizações presentes em Itacarambi (1985 Itacarambi, P. A. O. (1985). A administração da operação dos transportes coletivos por ônibus em São Paulo: pública ou privada? (Dissertação de mestrado), Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. ) e Henry & Zioni (1999 Henry, E., & Zioni, S. (1999). Ônibus na metrópole, articulações entre iniciativa privada e intervenção pública em São Paulo. In A. Brasileiro, & E. Henry, (Eds.), Viação ilimitada: ônibus das cidades brasileiras (pp. 119-186). São Paulo: Cultura Editores Associados. ).
  • 11
    Eram 53 empresas em 1934, 34 em 1947, 96 em 1961 e 66 em 1976.
  • 12
    De acordo com os dados da SPTrans, obtidos via lei de acesso à informação, foram coletados no sistema formal 1.965.752.421 passageiros em 1995 e apenas 1.056.998.899 em 2002.
  • Como citar: Campos, M. V. L. (2019). Os “altos círculos” no mercado de transportes em São Paulo. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, e20170213. https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20170213

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2017
  • Aceito
    17 Set 2018
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