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Barbosa, Tereza Virgínia R.; Palma, Anna e Chiarini, Ana Maria. (Org.). Teatro e tradução de teatro: Estudos. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, 304 p.

Barbosa, Tereza Virgínia R.; Palma, Anna; Chiarini, Ana Maria. Teatro e tradução de teatro. Estudos. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. 304

O primeiro volume de Teatro e tradução de teatro, organizado por Tereza Virgínia Barbosa, professora titular da UFMG na área de língua e literaturas gregas, Anna Palma e Ana Maria Chiarini, ambas professoras da UFMG em língua e literatura italiana, resulta das discussões realizadas no I Colóquio de Teatro & Tradução de Teatro de 30 de maio a 1º de junho de 2016 na UFMG.1 1 Para maiores informações, consulte: <https://coloquiogtt.wordpress.com/ogtt/>. Acesso em 15 de fev. de 2018. O colóquio, por sua vez, é decorrente dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Tradução de Teatro (GTT), fundado em 2014 e vinculado à linha de pesquisa “Poéticas da Tradução” do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG. No prefácio do livro, as organizadoras sinalizam que o objetivo principal do GTT é “pensar e realizar a tradução de teatro em processo e execução textual e cênica simultaneamente, ou seja, desde o enfrentamento do texto literário até a sua oralização por atores em sucessivos testes de realização.” (p. 7) A proposta do grupo, portanto, se alinha a práticas de pesquisa internacionais e nacionais recentes em tradução teatral, como se pode observar em Staging and Performing Translation: Text and Theatre Practice (2010), editado por Roger BainesBaines, R.; Marinetti, C.; Perteghella, M. (eds). Staging and Performing Translation: Text and Theatre Practice. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2010., Cristina Marinetti e Manuela PerteghellaMarinetti, C. (ed). Target: Translation in the Theatre 25.3. John Benjamins Publishing, 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1075/target.25.3>.
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, na edição temática do renomado periódico Target de 2013, “Translation in the Theatre”, nas discussões e publicação do grupo de trabalho “Translation, Adaptation, Dramaturgy” de um dos maiores congressos internacionais de teatro do mundo, organizado pela International Federation for Theatre Research, e nas mais recentes pesquisas em andamento no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da UFSC.2 2 Para informações acerca de pesquisas de mestrado e doutorado em andamento em tradução teatral da PGET, vide a programação do último Seminário de Pesquisas em Andamento (SPA), que em 2018 contou com três mesas de tradução teatral, diferentemente de 2016 e 2017, anos que contaram com apenas uma mesa. Disponível em: <http://ppget.posgrad.ufsc.br/seminario-de-pesquisas-em-andamento-spa/>. Acesso em: 6 nov. 2018.

Teatro e tradução de teatro é uma publicação multifacetada que reflete as preocupações do GTT. Assim como o grupo advoga por suas abordagens multidisciplinares, que envolve pesquisadores de Letras, História, Artes e profissionais das artes, Teatro e tradução de teatro oferece ao/à leitor(a) múltiplas abordagens de pesquisa em teatro e tradução teatral. No prefácio do livro, as organizadoras apresentam um histórico do grupo, que elenca suas produções teatrais, publicações, que vão desde reflexões teóricas e metodológicas, que priorizam o trabalho colaborativo, a traduções de peças teatrais, assim como sua ideologia como grupo. A prática tradutória é vista aqui como um “exercício crítico: crítico de si mesmo e crítico do outro” e, portanto, é um “ato poético e político” (8). O livro resulta numa projeção internacional do grupo e traz capítulos escritos por pesquisadores de diversas partes do país e alguns pesquisadores internacionais. Com dezessete artigos, o livro reúne perspectivas diversas sobre tradução teatrais, desde reflexões aplicadas a estudos de caso específicos a abordagens metafóricas que não tratam do teatro em si, mas de aspectos da dramaticidade presentes em outros gêneros textuais.

O primeiro capítulo é de Tereza Virginia Barbosa, uma das fundadoras do GTT. Seu capítulo, intitulado “Tradução e (des)colonização: O caso de Medeia, Electra e Orestes” (15-31), traz como reflexões centrais a tradução das tragédias de Eurípides sob um olhar descolonizador e resiliente, junto à Trupersa – Trupe de Tradução de Teatro Antigo e sob a direção artística de Andreia Garavello. Ao apropriar-se do conceito da “resiliência”, proveniente da física, a autora define sua proposta de tradução como aquilo “que é forte suficientemente para saber negociar e dialogar” (16). Na física, o termo “resiliência”, definido no capítulo, aplica-se à propriedade de alguns corpos de voltarem ao seu estado original após sofrerem uma deformação elástica. A apropriação do termo pondera tanto sobre os elementos do texto a ser traduzido quanto sobre a postura do tradutor que lida com esse material. O que motiva o projeto de Barbosa é a constatação da obsolescência e do engessamento das traduções de textos clássicos para o português, que não contemplam questões contemporâneas nem tampouco aspectos de encenação e, como consequência, não levam em conta a recepção do texto em seu novo contexto de recepção. Aliado a isso está o aspecto (des)colonizador da proposta é “fazer o texto trágico a ser encenado soar ‘estranhamente brasileiro’: era como se, filho de pais gregos, ele tivesse sido ‘feito no Brasil’.” (20) Ao demonstrar algumas das escolhas tradutórias feitas em conjunto com os atores que encenaram as três peças, Barbosa conclui relatando ter optado por “um lugar de fronteira” entre os estudiosos da tradução teatral, qual seja, um lugar entre o da filologia, dos profissionais da literatura e da linguística, e os profissionais do teatro, buscando assim, em conjunto, traduzir para o português “as palavras de Eurípides em potência teatral elevada” (28).

“O teatro na poesia: a forma dramática em Augusto dos Anjos” (33-46), de Alex Alves Fogal, não tem como foco a encenação ou a tradução que busca a encenação em si. Sua proposta é “demonstrar a importância do elemento dramático para a estratégia de produção de produção do artista”, aqui especificamente Augusto dos Anjos (33-34). O argumento central do ensaio é que a poesia de Augusto dos Anjos tem estilo “altamente dramático”, sendo o foco principal de análise os poemas “Monólogo de uma Sombra” e “O Mar, a escada e o homem”, ambos do livro EU. Isso ocorre na poesia do escritor paraibano por conta da capacidade de “outrar-se” – em “Monólogo”, a Sombra assume a posição central do poema e passa, em seguida, a palavra ao eu-poético. A Sombra, por sua vez, apresenta-se como uma monera. Por meio dessa análise, Fogal demonstra as múltiplas perspectivas adotadas pelo poeta que culminam na dramaticidade do poema. Já em “O Mar”, a forma dramática se dá por meio de um diálogo que coloca o homem entre o mar e a escada, que funcionam como uma espécie de encenação de conceitos filosóficos que exploram a razão e o intelecto frente à natureza. O capítulo, portanto, apesar de não lidar com o teatro em seu stricto sensu, investiga os modos como a poesia de Augusto dos Anjos encena, por meio de múltiplas vozes, e personifica ideias.

Anna Lazou e Irini Kosma, em “The ancient Greek drama in the light of Orchesis” (47-61), buscam esclarecer o termo orchesis, demonstrar a sua centralidade para o estudo da literatura grega antiga e relatar práticas de leitura, dança e música vivenciadas pelo grupo Orchesis por meio de métodos desenvolvidos pela professora Anna Lazou. As autoras, portanto, iniciam o artigo esclarecendo que o termo orchesis (), do grego antigo, vai além do seu significado dicionarizado em inglês como “to dance” (dançar). Orchesis, além de envolver os movimentos dos pés, mãos, da cabeça e inclusive dos olhos, está sempre atrelado à música e declamações, seja por meio de ações individuais ou em grupo. As pesquisas do grupo envolvem a filologia, o estudo da métrica, música, arqueologia, em referência a esculturas e outros objetos desenvolvidos em referência a orchesis e antropologia. As autoras defendem que, por meio de uma abordagem interativa de ensino de certos movimentos físicos, pode-se ensinar e encenar de modo a despertar uma conscientização filosófica e social de práticas antigas.

“As traduções brasileiras de A Mandrágora de Maquiavel” (63-80), de Anna Palma e Vinicius Garzon Tonet, objetiva, de modo muito claro, examinar as traduções para o português brasileiro da peça teatral A Mandrágora, escrita por Maquiavel em 1518, em produção posterior às suas renomadas obras de filosofia política, O Príncipe e Discursos, que lhe renderam a reputação “daquele que pretende agradar os poderosos e justificar as mentiras e as ações políticas criminosas” (64). Os autores demonstram, diferentemente, o quanto a comédia de Maquiavel foi aclamada por Vincenzo De Amicis, crítico teatral italiano do século XIX, “como uma das poucas comédias italianas originais” por ser “um espelho fiel dos costumes corruptos e imorais da Itália” (65). Pensando-se na reputação de Maquiavel no Brasil em contraposição aos comentários de De Amicis, os autores fazem uma análise dos paratextos de seis edições distintas, que vão de 1959 a 2007, e de algumas escolhas tradutórias de três traduções da peça em edições brasileiras: a primeira tradução é de Mário da Silva, publicada em 1959 pela Civilização Brasileira; a segunda é de Pedro Garcez Ghirardi, publicada em 1987 pela Editora Brasiliense; e a terceira é de Ciro Mioranza, publicada em 2007 pela Editora Escala. No artigo, os autores ponderam sobre o propósito de cada tradução, levando em conta se foram escritas já com alguma produção em vista, por exemplo, e os diferentes públicos leitores de cada época em face das principais questões políticas brasileiras, desde a instauração da ditadura no Brasil à renovação política dos anos ٨٠.

Em “Considerações sobre instalação multimídia baseada no Tereu de Sófocles: Tradução intersemiótica e memória cultural” (81-93), Celina Lage trata da experiência da montagem de uma instalação multimídia feita a partir dos fragmentos da tragédia sofocliana Tereu, que sobrevive somente em fragmentos. Refletindo sobre a sobrevivência fragmentária da peça, que trata sobre violência contra a mulher e contra crianças, a instalação de Lage procurou dar vida ao texto grego a partir da “criação de sons descontínuos, abafados e imagens fragmentadas” (88). Por meio da instalação multimídia, que associa imagens a sons, Lage cria uma narrativa contada por meio de imagens, vasos gregos antigos, trechos de filmes do século XX e sons. Essa mescla de elementos, para Lage, atualiza a tragédia de Sófocles “segundo uma leitura pessoal que resgata referências próprias da civilização da Grécia antiga, bem como referências contemporâneas” (91). O olhar contemporâneo, portanto, resgata essa história quase que apagada por meio da “apropriação de uma reminiscência”, conceito que Lage toma emprestado de Walter Benjamin. Aqui, portanto, trata-se de uma tradução intersemiótica da peça feita a partir de uma leitura que mescla o olhar contemporâneo ao olhar inquisitivo direcionado ao passado.

Em “Filólogos devenidos traductores” (95-123), Claudia Fernández discute a tradução do humor ao refletir sobre algumas peculiaridades da linguagem de Aristófanes e o fato de que o distanciamento temporal, histórico e cultural do dramaturgo deve ser observado ao se traduzir a peça para montagem levando-se em conta questões atuais. Dentre essas peculiaridades estão os jogos de palavras; a relação estreita entre a vida ateniense em sua época e os grandes debates que os ocupavam, conhecimentos que faziam parte “del universo del espectador medio ateniense”, cujas referências necessitam ser atualizadas ou “repostas” ao novo leitor e/ou espectador (109), como a menção a figuras políticas da época. Fernández ressalta também ser fundamental observar que os nomes dos personagens, por serem aptrônimos, são imbuídos de significados e carregam em si um elemento de surpresa decorrente de alguma revelação ao longo da peça. Além disso, Fernández fala da tradução de obscenidades tão comuns em comédias gregas, tanto em seu caráter sexual quanto escatológico, e também do efeito rítmico da oralidade impresso pela métrica iâmbica no texto grego e a possibilidade desse ritmo estar relacionado a passos de dança na Grécia Antiga (115-116). Ao concluir, Fernández pondera que a tradução demanda do tradutor “cierto gesto de generosidad”, ou seja, tornar o passado acessível por meio de uma ética de tradução que se preocupa com os sentidos empregados na língua em seu contexto de partida.

“A comédia grega e o conceito de ironia romântica de Friedrich Schlegel” (125-138), por Constantino de Medeiros, discute “a dedução realizada por Friedrich Schlegel do movimento da parábase na antiga comédia grega e sua inserção no conceito de ironia romântica” (127). Medeiros argumenta que assim como na parábase grega, quando o coro comunica-se diretamente com os espectadores, a ironia romântica, como recurso literário, funciona também como uma aproximação entre o autor e seus leitores. A ironia, portanto, seria uma espécie de “metacrítica”, algo emerge inesperadamente enquanto se lê o texto, assim como o surgimento do coro na comédia grega. Medeiros compara ainda a figura do bufão no teatro, “que remete ao papel do dramaturgo, indicando eventuais enganos ou excrescências na encenação” (134), ao narrador do romantismo, que se intromete na narrativa em forma de comentários que interrompem a narração da história propriamente dita. Ao concluir sua análise comparativa pelas deduções de Schlegel, Medeiros reflete que o filósofo, como o comediante, “ri da condição humana” ao expor os dogmas (136).

Elina Cancela, em “Traducción, tragedia y teatro cubano: historia de una casi carencia” (139-155), apresenta um panorama histórico da cena teatral cubana no século XIX e XX e de alguns tradutores, dramaturgos e críticos envolvidos no desenvolvimento de um teatro nacional em Cuba do século XIX até os movimentos pró-independência do século XX. Cancela inicia seu panorama pelo escritor e independentista José María Heredia (1803-1839), que, para preencher o vazio de produções nacionais, buscou inspiração em modelos teatrais neoclássicos do século XVIII e romanos. Ao exilar-se no México, devido aos seus ideais políticos nacionalistas, passou a escrever peças teatrais americanistas. Após a morte de Heredia, José Martí, crítico teatral, ao debruçar-se sobre o legado deixado por Heredia, passa a ver a tradução como uma forma de “transpensar”, em que traduzir seria pensar em sua própria língua o que os outros teriam pensado em seu idioma (145). O artigo estende-se à produção teatral em Cuba até o século XX, assunto que não abordo aqui por limitações de espaço. Cancela pondera que a tradução teatral pede por uma “apropriação” que produza no espectador contemporâneo um efeito semelhante ao que os espectadores experimentaram quando a peça foi produzida em sua época. Ao concluir, resgata as reflexões de Martí sobre ver a tradução teatral como uma forma de “transpensar” e deixar de lado “el lenguaje de lastre inútil” (154).

Em “Interpretações convergentes em traduções divergentes: traduções brasileiras de Antígona e a leitura jurídica da peça” (153-173), Flávia Resende e Ana Araújo analisam quatro diferentes traduções de Antígona de Sófocles quanto ao uso do vocabulário jurídico na peça. Além da análise de cerca de 85 versos, as autoras também apresentam a cuidadosa análise de paratextos das traduções, sejam eles de autoria dos tradutores ou de críticos da tradução. As autoras discutem as preocupações das traduções de quatro tradutores. A primeira é a de Guilherme de Almeida (1952), que demonstra uma preocupação com o ritmo e a sonoridade do texto; em seguida, as autoras analisam a tradução de Mário da Gama Kury (1969), que tem “a intenção de adaptar o texto plenamente à língua de destino e sua tradição literária” (161); depois tratam da tradução de Donaldo Schüler (1999), que tampouco objetivava uma produção teatral, mas que, diferentemente de Almeida e Kury, vê as “infrações” cometidas na tradução, especialmente as intencionais, como atos tão importantes quanto comentários sobre o texto. A quarta análise é relativa à tradução de Lawrence Flores Pereira (2006), a única que se preocupa com questões de produção teatral e que foi feita colaborativamente com Kathrin Rosenfield, que se ocupou da dramaturgia da peça. Segundo Resende e Araújo, a tradução de Pereira e Rosenfield se percebe como “projeto teatral” devido à preocupação com uma metrificação funcional em português e, por isso, a escolha da tradução em dodecassílabo.

Germana de Sousa, em “Entre prosa poética e drama: o teatro da linguagem em Nathalie Sarraute” (175-191), discorre sobre a dramaturgia de Nathalie Sarraute, escritora nascida na Rússia em 1900 e que faleceu na França em 1999, tendo escrito suas obras em francês. Nesse breve histórico das peças e produções teatrais de Sarraute, de Sousa demonstra o intimismo presente nas obras da autora que, talvez por ter começado a escrever teatro radiofônico, dispensa a obrigatoriedade do ator em cena, descoporificando seus personagens e assim transformando-os em vozes. A tradução aqui é analisada pelo modo como os personagens saem do silêncio e abrem-se para o diálogo, num movimento de tradução interna ou de “tropismos”, a conscientização e, portanto, a verbalização de dramas interiores.

Em “Quanto se ganha com saber inglês? Apontamentos sobre transposição cultural na tradução de Troilus and Cressida” (193-204), José Roberto O’Shea debruça-se sobre alguns exemplos de sua tradução anotada de Troilus and Cressida, uma tragédia de Shakespeare do começo do século XVII. O projeto tradutório de O’Shea, amparado por noções de tradução como “transposição cultural”, tem como seu primeiro objetivo criar uma linguagem poética em verso metrificado, com suas devidas alternâncias entre verso e prosa e entre diferentes registros linguísticos, de acordo com personagens nobres e cultos, ao lidar com temas trágicos e, portanto, grandiosos, e personagens “rústicos”, ao lidar com temas cômicos, são traduzidos em prosa. Além disso, o projeto busca produzir uma tradução a ser encenada, sem ser “facilitada” ou “simplificada” para os atores. O terceiro objetivo do projeto é produzir material de anotação, que poderíamos chamar de estudo dramatúrgico, por incorporar elementos como discussões sobre interpretações textuais da peça, seu contexto histórico-cultural, um breve histórico de montagens e comentários sobre a tradução em si.

Laureny da Silva, em “Antígona furiosa: A paródia latino-americana” (205-220), trata da reescrita revisionista de Antígona pela escritora argentina Griselda Gambaro. O artigo de da Silva, apesar de não tratar especificamente de questões relativas à tradução interlingual propriamente dita, discute as intertextualidades do texto de Gambaro, desde a mescla da Antígona sofocliana com a Ofélia shakespeariana às referências aos desaparecidos na ditadura militar argentina. Nesse sentido, da Silva argumenta que Gambaro parodia a peça de Sófocles, não no sentido do deboche, mas no sentido empregado por Linda Hutcheon, em que a paródia “é uma atualização do parodiado” e que ela “se articula como forma de crítica” (206), nas palavras de Da Silva.

“Torneios de Babel” (221-236), de Rafael Guimarães T. da Silva, não trata da tradução teatral propriamente dita, mas destrincha os questionamentos de Jacques Derrida acerca da tradução num sentido amplo, ou seja, como “atividade de leitura, interpretação e escrita de textos” (221). Da Silva parte então para a elucidação de cinco teses defendidas por Derrida em seu ensaio “Des tour de Babel” de 1985, quais sejam: “a tradução deve atentar à intraduzibilidaxe do nome próprio” (223-226); “a tradução não deve ser entendida como transporte, passagem” (26-228); “a tradução não é secundária com relação ao texto que ela traduz” (228-229); “a tradução é uma produção assinada por seu autor, ou seja, pelo tradutor” (229-230); e “uma tradução pode ser retraduzida” (230-234). Para cada uma das teses, Da Silva discute exemplos de traduções de textos bíblicos, de Píndaro, Sofócles, Holderlin, Derrida e Haroldo de Campos e dele mesmo.

Rosa Currás, em Los parámetros contextuales en la traducción teatral: El caso de A Man for All Seasons (237-253), trata a tradução teatral como algo à parte dentro dos estudos da tradução. Currás resgata autoras como Ortrun Zuber-Skerritt, que teorizou sobre o assunto nos anos 1980, a clássica discussão de Patrice Pavis (1992), Eva Espasa (2001) e outros. Seu enfoque está no fato de que cada tradução feita para o teatro está inserida num contexto específico. Por esse viés, portanto, para se fazer uma análise de um texto teatral traduzido, é imprescindível levar em conta o contexto em que a tradução foi feita, o seu público e quais as suas limitações e possibilidades dentro desse contexto. Esse estudo deve envolver também uma investigação do contexto de produção do texto originário da tradução. Como estudo de caso, Currás utiliza-se da peça A Man for All Seasons, de Robert Bolt (1954), que trata da vida de Thomas More, um chanceler e escritor inglês que viveu entre o final do século XV e começo do século XVI. A tradução analisada é de 1967 e realizada por Luis Escobar, um jornalista, dramaturgo e diretor teatral espanhol.

Sara Rojo, em seu artigo “Aspectos estéticos e políticos na tradução teatral latino-americana” (255-265), aborda relações interculturais em seu estudo de caso que envolve a montagem pelo Grupo Galpão da peça Till, realizada em castelhano no Festival Santiago a Mil, no Chile, em 2011. O artigo reflete as vivências e experiências de Rojo, que nasceu no Chile, vive no Brasil, traduz e dirige há mais de vinte anos. Destaca-se a reflexão de Rojo, há muito debatida nas teorias da tradução teatral, acerca da possibilidade ou impossibilidade da tradução teatral. De modo claro e preciso, Rojo argumenta que a tradução teatral precisa “possuir a fugacidade de um texto espetacular” com “as condições necessárias para se refazer, repensar de acordo as energias e as forças dos tempos em que a obra for apresentada” (257). A reflexão de Rojo é fundamental para se pensar de forma produtiva questões tão amplamente debatidas (e nunca resolvidas) no fim dos anos 1980, como no artigo de Susan Bassnett de 1991Bassnett(-Macguire), S. (b) “Translation and Dramaturgy.” Invisible Presences: Translation, Dramaturgy and Performance. Sessão de plenária não-publicada. Congresso internacional realizado em Queen’s University Belfast, Belfast, Reino Unido, em 19 abr. 2011. em que a autora discute a noção de performability e que, anos mais tarde, abandona a discussão por vê-la como improdutiva (Bassnett bBassnett(-Macguire), S. (a) “Translating for the Theatre: The Case Against Performability.” Traduction, Terminologie, Rédaction 4.1 (1991): 99-111.). Rojo reflete sobre os processos envolvidos na montagem no Chile, desde seus aspectos dramatúrgicos, como a constatação de referências incompreensíveis para o público chileno, quanto a identificação de referenciais comuns entre os dois países, o ritmo cênico, questões de adaptação relativas às condições locais de iluminação e uso do palco. Com isso, Rojo conclui que a tradução com vistas ao palco dispensa discussões acerca da “traição” e da “manipulação”, termos tão em voga nos Estudos da Tradução. Mais importante é “criar as condições para que o convívio aconteça” (265) e, neste caso, o “convívio” certamente diz respeito às acomodações sempre necessárias à realização de uma peça num palco estrangeiro.

Em “Dom Miguel, rei de Portugal, de Roberto Athayde: a tradução labiríntica de um texto híbrido” (267-280), Silvia La Regina discorre sobre o processo dos trabalhos de tradução e encenação da peça do dramaturgo carioca, Roberto Athayde (1997), para o italiano. A peça, em tradução por La Regina e Giuliana Antenucci e direção de Antenucci, estreou em Chieti, Itália, em 2008. A peça histórica, que trata da estada de Dom Miguel na corte do Rio nos anos de 1808 a 1821, é baseada em relatos do secretário José Presas, datados de 1829. O processo tradutório explorou as potências do texto num processo que teve três etapas: a tradução individual e interlinguística do português para o italiano de La Regina, seguida da tradução colaborativa com Antenucci com vistas a “um texto representável” e, por fim, a tradução intersemiótica para o palco (277). Embora a autora não explicite o que se entende por “representável”, La Regina fala brevemente da importância do trabalho de contextualização da obra com os atores, trabalho esse fundamental para que compreendessem o momento histórico abordado. Levando-se em conta o texto teatral em si, pode-se pensar que a tradução tem, portanto, dois textos principais: o primeiro se trata de uma tradução “filológica” com participação de Athayde (278) e um segundo com cortes pensando-se em reduzir o número de horas de encenação de cinco para um mais adequado. O dialeto adotado no texto em italiano foi o de Roma, especialmente marcado nas falas de Dom Miguel, por ser “facilmente recheado com palavrões” e “compreensível na Itália inteira” (ibidem). Apesar de não tratar de questões de recepção, La Regina conclui que, ao fim, tem-se duas traduções - uma filológica e outra editada pensando-se especificamente na produção teatral e no trabalho dramatúrgico desempenhado por ela juntamente com o grupo teatral.

O artigo que encerra a coletânea é “Um espaço-tempo transcultural: a criação de um ‘terceiro-espaço’ na poética do espetáculo ‘DÔ’, do Bando de Teatro Olodum com Tadashi Endo” (281-294), de Vinícius da Silva Lírio. O artigo não trata de um estudo de caso específico, mas de reflexões teóricas acerca das práticas teatrais do diretor japonês e mestre de butô Tadashi Enzo com o Bando de Teatro Olodum a partir de entrevista realizada com Enzo em abril de 2013. Lírio utiliza-se da metáfora do “encontro das águas” dos rios Negro e Solimões para pensar a fusão e os “saberes intercambiados” entre as culturas afro-brasileira e japonesa. Ressalta-se aqui a visão da especificidade de cada local onde se faz teatro - a visão de Tadashi Enzo é de que cada local, com suas práticas culturais específicas, requer “criações poéticas” específicas e que a fusão do Butô busca “trazer para a criação os modos de viver, das culturas, dos sujeitos, a fim de construir o Butô daquele lugar, com aqueles indivíduos” (283). Lírio, em seguida, expande essa ideia ao dizer que o Butô parte do princípio de “poéticas transculturais” e “teatralidades híbridas”, em constante atualização (286).

A coletânea Teatro e tradução de teatro traz reflexões e abordagens há muito que necessárias para o avanço da tradução teatral como área de pesquisa tanto nas artes cênicas quanto nos Estudos da Tradução. Há muito que as discussões sobre tradução teatral no Brasil, especialmente no âmbito dos Estudos da Tradução, se vê ora equiparada à tradução literária, ora engessada por abordagens descritivistas que não levam em consideração aspectos fundamentais da tradução cênica, como questões relativas à recepção, o trabalho com a equipe de produção, que envolve atores, diretor(a), tradutor(a), produtor(a), técnicos de som e luz, e cenógrafo(a). Ao meu ver, importa que um olhar holístico sobre a tradução teatral, seja de análise de uma produção ou tradução específica, seja de caráter prático, leve em conta os elementos de produção teatral, caso contrário, restringe-se a pesquisa no texto, equiparando o texto teatral, feito para ser encenado, ao texto literário, muitas vezes escrito para ser lido no silêncio do privado. Como observado, a coletânea traz artigos para além da tradução teatral em si e explora questões de dramaticidade em outros tipos, mas certamente contribui para um olhar mais holístico acerca da tradução teatral.

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    Para maiores informações, consulte: <https://coloquiogtt.wordpress.com/ogtt/>. Acesso em 15 de fev. de 2018.
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    Para informações acerca de pesquisas de mestrado e doutorado em andamento em tradução teatral da PGET, vide a programação do último Seminário de Pesquisas em Andamento (SPA), que em 2018 contou com três mesas de tradução teatral, diferentemente de 2016 e 2017, anos que contaram com apenas uma mesa. Disponível em: <http://ppget.posgrad.ufsc.br/seminario-de-pesquisas-em-andamento-spa/>. Acesso em: 6 nov. 2018.

Referências

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  • Bassnett(-Macguire), S. (a) “Translating for the Theatre: The Case Against Performability.” Traduction, Terminologie, Rédaction 4.1 (1991): 99-111.
  • Bassnett(-Macguire), S. (b) “Translation and Dramaturgy.” Invisible Presences: Translation, Dramaturgy and Performance Sessão de plenária não-publicada. Congresso internacional realizado em Queen’s University Belfast, Belfast, Reino Unido, em 19 abr. 2011.
  • Krebjs, K. “Translation, Adaptation, Dramaturgy Working Group.” International Federation for Theatre Research Disponível em: <https://www.iftr.org/working-groups/translation-adaptation-and-dramaturgy/iftr-2018-translation-adaptation-dramaturgy-working-group-cfp>.
    » https://www.iftr.org/working-groups/translation-adaptation-and-dramaturgy/iftr-2018-translation-adaptation-dramaturgy-working-group-cfp
  • Marinetti, C. (ed). Target: Translation in the Theatre 25.3. John Benjamins Publishing, 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1075/target.25.3>.
    » https://doi.org/10.1075/target.25.3

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2019
  • Aceito
    02 Jun 2019
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