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SANTA CEIA/EUCARISTIA EM TEMPOS DE COVID-19: PERSPECTIVAS CATÓLICAS E LUTERANAS – UM DIÁLOGO

Holy Communion/Eucharist in Times of COVID-19: Catholic and Lutheran Perspectives – a Dialogue

RESUMO

A proposta da presente pesquisa, bibliográfica e documental, é analisar como a pandemia da COVID-19 afeta a vida das igrejas, com foco na celebração do sacramento da Santa Ceia/Eucaristia, e como as igrejas católica e luterana têm procurado reagir à situação posta. No caso católico, missas são realizadas com a presença de reduzido número de pessoas e transmitidas online. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, por sua vez, preferiu desaconselhar a celebração da Santa Ceia por enquanto, o que resultou num tipo de “jejum eucarístico” já prolongado. Ambas as soluções têm suas vantagens e desvantagens e suas razões de ser práticas e doutrinárias. Analisando as diferentes posturas dessas duas igrejas em relação às celebrações eucarísticas durante a pandemia, o artigo pergunta sobre novas modalidades que podem ser descobertas para a celebração da Ceia/Eucaristia nesse contexto, bem como suas implicações teológicas.

PALAVRAS-CHAVE
COVID-19; Eucaristia; Santa Ceia; Diálogo católico-luterano; Ecumenismo

ABSTRACT

The goal of the present research, bibliographical and documentary, is to analyse how the COVID-19 pandemic affects the live of the churches, focussing on the celebration of the sacrament of Holy Communion/Eucharist, and how Catholic and Lutheran churches have sought to react to the given situation. In the Catholic case, masses are celebrated in the presence of a reduced number of persons and transmitted online. The Evangelical Church of the Lutheran Confession in Brazil – IECLB, for its part, has preferred to discourage the celebration of Holy Communion for the time being, which has resulted in a kind of already extended “Eucharistic fasting”. Either solution has its advantages and disadvantages and its practical and doctrinal reasons to be in place. Analysing the different attitudes of the two aforementioned churches in relation to Eucharistic celebrations during the pandemic, the article explores new modalities that could be discovered for the celebration of Holy Communion/Eucharist in this context, as well as their respective theological implications.

KEYWORDS
COVID-19; Eucharist; Holy Communion; Catholic-Lutheran Dialogue; Ecumenism

Introdução

Pelo que se divulga nas pesquisas sobre o contágio do novo coronavírus no mundo inteiro, tudo indica que precisaremos prolongar o período de distanciamento social para evitar o crescimento do número de infecções. Enquanto em muitos países acredita-se já ter superado a fase mais grave da pandemia, no caso do Brasil pesquisas mostram que ainda não atingimos o pico, e é preciso muito esforço coletivo para achatar a curva de infecções. Até que uma vacina seja encontrada, precisaremos nos acostumar a uma vida sem os costumeiros contatos físicos, com o uso constante de máscaras fora do ambiente doméstico e a frequente aplicação de álcool em gel 70%.

Isto afeta também as igrejas nas atividades que tradicionalmente reúnem significativo número de pessoas, particularmente as celebrações litúrgicas, nas quais são comuns gestos como o aperto de mão, o abraço da paz, a comunhão do pão e do vinho. A celebração da Santa Ceia/Eucaristia é a principal dessas celebrações, instituída pelo próprio Cristo como atualização da memória do que Ele fez na última ceia (Lc 22,19s.; 1Cor 11,23-26). Assim, as igrejas acreditam que, ao comungar o pão e o vinho consagrados, comungam o próprio corpo e sangue de Cristo. Embora haja diferenças quanto à compreensão desta “presença real” do Cristo na Santa Ceia/Eucaristia, há consenso de que ela se dê de uma forma ou outra. Diz Lutero em seu Catecismo Menor que se trata do “verdadeiro corpo e sangue do nosso Senhor Jesus Cristo, sob o pão e o vinho, dado a nós, cristãos, para comer e beber, instituído pelo próprio Cristo” (LC, p. 378s.). Por isso, afirma-se que a comunhão eucarística gera e sustenta a comunhão eclesial, como expressão privilegiada da comunhão em Cristo. É Ele mesmo quem “prepara a ceia e convida” (A Ceia do Senhor, n. 13) os/as fiéis à Mesa que forma a igreja, seu corpo místico. Assim, o papa Bento XVIBENTO XVI, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis. São Paulo: Paulinas, 2007. retoma o ensino conciliar de que “o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial” (SCa, n. 6), como fonte e ápice ou meta maior da vida e da missão da Igreja (SC, n. 10). Para a tradição luterana, os sacramentos “foram instituídos [...] para serem sinais e testemunhos da vontade de Deus para conosco, com o fim de que, por eles, se desperte e fortaleça a nossa fé” (Confissão de Augsburgo XIII – CIL, 2016COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICO-LUTERANA. La Cena del Signore. In: Enchiridion Oecumenicum. Bologna: EDB, 1994. p. 589-653. [citado como: A Ceia do Senhor], p. 34). O proveito está na fé que, pelos sacramentos, é alimentada, fortalecida para o louvor a Deus e à prática da caridade (SC, n. 59). “Pelo sacramento da Ceia do Senhor, [o Espírito Santo] une-nos no mistério do corpo de Cristo, fortalecendo-nos para a missão de servir a Deus e ao próximo” (Nossa Fé Nossa Vida, 2009, p. 15).

Isto envolve questões teológicas, pastorais e litúrgicas que implicam todas as igrejas. Nosso objetivo neste estudo é refletirmos sobre essas questões na relação entre a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLBIECLB. IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Nossa Fé, Nossa Vida. 8.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2009. [citado como: Nossa Fé Nossa Vida]) e a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), situando-as no atual contexto de pandemia do novo coronavírus e da COVID-19. Neste estudo, perguntamos pelo significado da celebração da Ceia nesse momento de tanta aflição e angústia vividas por toda a humanidade; questiona as possibilidades ou não de sua transmissão online; evidencia desafios teológicos e práticos para cada uma das tradições envolvidas e aponta para projetos comuns de testemunho do seu significado ao mundo, particularmente pela prática da solidariedade para com quem mais sofre com a pandemia. A perspectiva ecumênica do tema não está apenas no conteúdo aqui apresentado, mas também no método da análise e na discussão, desenvolvidos aqui por meio do diálogo e colaboração entre dois teólogos das duas tradições eclesiais contempladas no presente artigo.

É importante esclarecermos inicialmente que os termos que aqui utilizamos para referirmo-nos a esse sacramento são compreendidos como sinônimos. Ao menos biblicamente, eles pertencem a um universo semântico comum, designando: Mesa do Senhor (1Cor 10,21); Ceia do Senhor (1Cor 11,20); partir do pão (At 2,42), Santa Ceia, em distinção da ceia ordinária; Eucaristia, por causa do ato de ação de graças (eucharistéō) (Mc 14,23); Santa Comunhão por causa da comunhão com o pão e o corpo, vinho e sangue (1Cor 10,16) (WOLFF, 2018WOLFF, E. Caminhos do Ecumenismo no Brasil: História, teologia, Pastoral. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Paulus; Paulinas; São Leopoldo: EST, 2018., p. 287s.).

1 A questão: missa/ceia online

Em ambas as tradições eclesiais, neste tempo de pandemia do novo coronavírus, quem costumeiramente participa da vida eclesial sente falta de celebrar sua fé por meio de sinais palpáveis que expressem a comunhão com Deus, com as irmãs e os irmãos na fé e com toda a criação. A participação na Santa Ceia/Eucaristia é um desses sinais. Aliás, para as duas igrejas, este é o sinal mais privilegiado de comunhão. Mas em tempos de COVID-19 não é possível, nem permitida, a aglomeração de fiéis no templo. Então, as lideranças das igrejas se perguntam, em parte pela primeira vez, em parte novamente, sobre a oportunidade ou não da transmissão on line da celebração da Santa Ceia/Eucaristia. Na tradição católica, é costume transmitir a missa pela TV e/ou rádio. E em março de 2020, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (2020)CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Decreto em tempos de COVID. Roma: 2020. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/rc_con_ccdds_doc_20200325_decreto-intempodicovid_po.html>. Acesso em: 09 jul. 2020.
http://www.vatican.va/roman_curia/congre...
publicou orientações oficiais, reconhecendo o valor das missas online durante o isolamento social, com indicações e sugestões para bispos e presbíteros celebrarem a missa sem o povo ou com poucas pessoas, observando as orientações das autoridades sanitárias de cada país. Já a IECLB não tem essa prática. Embora já tenham existido transmissões de cultos por rádio, TV ou internet, algo que se intensificou muito desde o início da pandemia, são via de regra cultos sem Santa Ceia, centrados na prédica, nos hinos e nas orações. Desde que se iniciou o isolamento social até hoje, não acontecem celebrações da Santa Ceia nas comunidades luteranas. Prefere-se praticar um “jejum eucarístico”, por assim dizer, do que celebrar a Santa Ceia sem comunidade presente. Diante do prolongamento da pandemia e da impossibilidade de celebrar com comunidade presente, a discussão sobre uma Santa Ceia com transmissão online se intensifica. Inicialmente, no entanto, às vésperas da Semana da Páscoa, uma carta da Presidência, Pastoras e Pastores Sinodais da IECLB tratou da “pergunta acerca da celebração da Ceia do Senhor por meio de transmissão online”. Afirma que “entendemos a preocupação de transmitir a comunhão, o perdão dos pecados e o conforto desse sacramento”. Invoca como referências a tradição bíblica, a confessionalidade luterana e as “transformações sociais advindas com as novas tecnologias” de comunicação. Nota-se que nenhum destes aspectos é explicado, especialmente não se diz o que seria, exatamente, uma “celebração [...] online”, uma vez que poderá haver várias formas de colocá-la em prática. Conclui a presidência da IECLB que “o assunto é complexo e requer amplo estudo” e que “não há condições e elementos suficientes para aderir a esta modalidade de administração do sacramento” (IECLB, 2020aIGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Orientações sobre a Ceia do Senhor em tempos de coronavírus: IECLB nº 280273/20, de 03 de abril de 2020. Porto Alegre: 2020a.). A prática mais comum na IECLB é a celebração mensal da Santa Ceia, ou seja, já há em tempos normais uma frequência bem menor do que na ICAR. Teologicamente, outrossim, mantém-se que o elemento mais decisivo para a fé é a Palavra e não o Sacramento, portanto todo investimento foi em formas de transmitir a meditação e a pregação da Palavra – afinal, a “fé vem pelo ouvir” (ex akouēs), como afirma Paulo (Rm 10,17).

Portanto, durante a pandemia da COVID-19, as comunidades luteranas estão sem acesso, real ou virtual, presencial ou online, à Santa Ceia. Já fiéis católicos e católicas “lotam” as missas online, entendendo, assim, estar em “comunhão espiritual” com quem celebra, pelo que obtém benefícios espirituais. O magistério católico de fato abona essa prática, incentivando a “cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia”, como orienta o papa João Paulo IIJOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Redemptor hominis. São Paulo: Paulinas, 1979a., citando Santa Teresa de Jesus: “Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor do nosso Senhor” (EE, n. 34).

O desafio da celebração da Santa Ceia numa forma litúrgica adequada à situação pandêmica está presente em todas as igrejas. E, assim como na IECLB, a questão é discutida também nos meios católicos e o costume de transmitir as missas não é sem tensões. A tensão não está propriamente no costume consolidado de transmitir as missas celebradas com o povo. O intrigante agora são as missas pelas lives, transmissões via Facebook e outras plataformas digitais onde o padre está celebrando a missa sozinho, muitas vezes em seu próprio quarto, onde se monta um oratório. É o que testemunha um padre no Brasil: “E da capelinha que eu montei, só tenho a agradecer a Deus [...] Sigo celebrando missas, e centenas e centenas de pessoas de vários lugares estão assistindo” (VEIGA, 2020VEIGA, E. Isolados, fiéis ‘lotam’ as missas online. Estadão, São Paulo, 11 de abr. de 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/04/11/isolados-fieis-lotam-as-missas-online.htm?cmpid=copiaecola,>. Acesso em: 09 jul. 2020.
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noti...
).

Entende-se que a missa online se situa num horizonte mais amplo da prática pastoral que se serve dos novos recursos da mídia eletrônica e digital1 1 Ver a proposta da “Pastoral da Comunicação – PASCOM”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Disponível em https://pascombrasil.org.br/comissao-episcopal/. Acesso em: 06 jun. 2020. . Se tais recursos possibilitam à igreja anunciar o Evangelho, propor orientações que sustentem espiritualmente as pessoas, por que não transmitir também a celebração eucarística uma vez que “A Eucaristia é o resumo e a súmula da nossa fé” (CIC, n. 1327CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2001.)? Constata-se que as pessoas estão alimentando seu espírito por meio de novas tecnologias hoje em dia e que estão sentindo a presença de Deus em suas vidas, ajudando-as a enfrentar a difícil situação de pandemia do novo coronavírus (MODINO, 2020MODINO, L. M. COVID 19: Início de uma igreja virtual? Revista IHU On Line, 30 de mar. de 2020. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597605-covid-19-o-inicio-de-uma-igreja-virtual>. Acesso em: 10 mai. 2020.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
). Já na IECLB pergunta-se, além da questão do sentido de comunhão debilitado pelo distanciamento físico, aspecto imprescindível da Santa Ceia, como acompanhar pastoralmente as pessoas que não tenham acesso à internet, sobretudo quem reside em áreas geográficas isoladas. Trata-se de uma questão técnica com implicações teológicas, se entendido que aí se configura uma exclusão dessas pessoas das celebrações online.

É comum em meios católicos observar que um significativo número das pessoas que seguem ou acompanham a celebração online sentem-se dela “participando”, não distinguindo claramente entre comunhão sacramental e comunhão espiritual. E muitas dessas concluem que ver a missa na TV dispensa participar da celebração que a comunidade realiza no templo. É importante analisarmos as transmissões online da Ceia, considerando alguns elementos fundamentais.

1.1 Uma base comum

Na caminhada do Jesus ressuscitado com os discípulos rumo a Emaús (Lc 24,13-35), há, em nossa interpretação, três elementos importantes que caracterizam o crescente reconhecimento de Jesus: primeiro, ele lhes explica a Escritura à luz dos acontecimentos em Jerusalém. Temos a Palavra, proclamada e explicada. Depois, vem o partir do pão, momento no qual os discípulos reconhecem o ressuscitado, mas logo Jesus desaparece. É uma experiência de partilha, uma ação ritual e concreta, mas Jesus não se entrega à posse duradoura dos discípulos e não permanece fisicamente entre eles. Os discípulos reconhecem que, na verdade, já quando Jesus falava com eles no caminho, “estava ardendo o nosso coração” (Lc 24,32). É a relação com Deus que se exprime num sentimento, não apenas uma emoção momentânea, mas numa postura e lealdade duradouras.

Paulo providencia o historicamente primeiro relato de uma “ceia do Senhor” (kyriakon deipnon, 1Cor 11,20), com as palavras da instituição que servem de base para a liturgia luterana (1Cor 11,23-26). Os evangelhos sinóticos (temos dois modelos: Mt/Mc e Lc/Paulo, com algumas diferenças) contam da última ceia de Jesus com seus discípulos como celebração da páscoa judaica. O evangelho de João, por sua vez, não relata a ceia com as palavras da instituição dos sinóticos, mas a ação do lava-pés, e para ele Jesus foi crucificado na véspera da páscoa. Portanto, se tivesse havido ceia na véspera da crucificação, ela teria sido claramente afastada da páscoa. Jesus dá graças (eucharistēsas) no início da refeição, ao partir o pão e explicar que é seu corpo entregue “por vós”, e que é para ser celebrado “em memória de mim” (tēn emēn anamnēsin, 1Cor 11,25). A memória, anamnese, não apenas recorda algo como longínquo, mas torna presente o que aconteceu à época, o que Jesus fez por nós, doando-se para nossa salvação. A cena em Corinto ressalta também o caráter de uma refeição, de uma partilha comunitária, uma vez que Paulo logo precisa criticar a comunidade: “de fato, quando vos reunis, não é para comer a ceia do Senhor, pois cada um se apressa em comer a sua própria ceia [idion deipnon] e, enquanto um passa fome, outro se embriaga” (1Cor 11,20s.).

Como ressaltou o biblista Joachim Jeremias, a ceia do Senhor instituída por Jesus “na noite em que ia ser entregue” (1Cor 11,23), insere-se na longa cadeia de refeições de Jesus com os seus, sempre inclusivas de pessoas à margem da sociedade, as quais os discípulos continuaram após a páscoa (JEREMIAS, 2004JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Paulus; Teológica, 2004., p. 413; WELKER, 2012WELKER, M. Was geht vor beim Abendmahl? Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2012., p. 67). Estudiosos nos lembram de que essas reuniões costumavam acontecer à noite e em casas particulares (BRAKEMEIER, 2008BRAKEMEIER, G. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008., p. 147; MARSILI, 2010MARSILI, S. Sinais do Mistério de Cristo. São Paulo: Paulinas, 2010., p. 292-295). Eram, portanto, cultos domésticos em moldes judeus. Ainda não existia um ministério cristão formado e ordenado, nem um rito cristão próprio já elaborado. Conforme Otfried Hofius (1994)HOFIUS, O. Herrenmahl und Herrenmahlsparadosis. Erwägungen zu 1Kor 11,23b-25. In: HOFIUS, O. Paulusstudien. Tübingen: Mohr Siebeck, 1994. p. 203-240., contrário ao senso comum inclusive dos biblistas, naquele momento a refeição saciadora (agapē) e a refeição ritual (Santa Ceia) ainda não eram separadas. A forma da celebração coincidiria com o formato de uma refeição judaica comum, com uma oração de graças no início, o partir do pão e a refeição, e a oração de graças com o “cálice da bênção” (to potērion tēs eulogias, 1Cor 10,16) no final. Se tal interpretação procede, teremos, no mais antigo testemunho do que se chegou a compreender ao decorrer dos séculos como Santa Ceia, um caráter comunitário ainda mais forte e a inserção da celebração numa refeição mais ampla, sem redução da ceia aos elementos do (pedacinho de) pão e do cálice (com vinho). O que cada um trouxe consigo (“sua própria ceia”, 1Cor 11,12) é para ser compartilhado, e o “esperai uns pelos outros” (aufeinander warten) de 1Cor 11,33 poderia, segundo Hofius (1994, p. 221)HOFIUS, O. Herrenmahl und Herrenmahlsparadosis. Erwägungen zu 1Kor 11,23b-25. In: HOFIUS, O. Paulusstudien. Tübingen: Mohr Siebeck, 1994. p. 203-240., ser compreendido como “acolher alguém”, “servir alguém” (jemandem aufwarten). O aspecto da comunhão é reforçado por Brakemeier, quando diz que “Koinonia [...] é a ‘chave hermenêutica’ da ceia” (BRAKEMEIER, 2008BRAKEMEIER, G. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008., p. 133). E acrescenta: “Cálice e pão conferem participação em sangue e corpo de Cristo, isto é, em sua morte e em sua pessoa. Paulo não fala de comer o corpo de Cristo nem de beber seu sangue.” Ao referir-se aos “pais” tendo sido batizados “assim na nuvem como no mar, com respeito a Moisés” (eis ton Moysēn, 1Cor 10,2), Paulo menciona que comeram o mesmo “alimento espiritual” (pneumatikon brōma, 1Cor 10,3) e beberam a mesma “bebida espiritual” (pneumatikon poma, 1Cor 10,4), sendo estes, conforme Brakemeier, “elementos mediadores da mesma, veículos pelos quais se comunica”. Esta comunhão com Cristo é que “estabelece a comunhão dos comungantes entre si e os transforma em comunidade, igreja” (BRAKEMEIER, 2008BRAKEMEIER, G. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008., p. 133).

Temos, portanto, os aspectos da presença do Cristo — “real” — da comunhão com Ele, da comunidade cristã constituída a partir da Ceia, da fé experimentada, da gratidão em relação a Deus, da memória anamnética do Cristo e da interpretação da Ceia como autodoação do Cristo e da nova aliança selada em seu sangue, por meio de sua morte, em perspectiva escatológica — “até que ele venha” (1Cor 11,26). Com base nesses elementos comuns, as igrejas dialogam sobre outros aspectos da doutrina eucarística nos quais divergem. Não é escopo deste artigo tratar essas questões aqui. Mas cremos oportuno apresentá-los, remetendo os/as leitores/as a estudos já realizados a respeito (WOLFF, 2005WOLFF, E. Eucaristia e unidade dos cristãos. Encontros Teológicos, Florianópolis, n. 41, p. 111-134, 2005.; FRANCISCO, 2006FRANCISCO, M. J. Eucaristia e unidade da Igreja: percepção de um católico. Encontros Teológicos, Florianópolis, n. 44, p. 137-152, 2006.; A COMUNHÃO EUCARÍSTIA É POSSÍVEL, 2006A COMUNHÃO EUCARÍSTICA É POSSÍVEL: teses sobre a hospitalidade eucarística. Texto elaborado pelo Centro de Estudos Ecumênicos (Estrasburgo); o Instituto de Pesquisa Ecumênica (Tübingen) e o Instituto de Estudo das Confissões (Bensheim). Trad. Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2006.; SINNER, 2011SINNER, R. von. Eclesiologia ecumênica: possibilidades e limites. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 41, n. 1, 55-68, 2011.).

1.2 A sacramentalidade

Tanto para a doutrina católica romana quanto para a luterana, o que caracteriza a Santa Ceia/Eucaristia como um sacramento é o fato de nela Jesus dar-se a si mesmo no pão e no vinho/suco consagrados (Lc 22,14-20; 1Cor 11,23-26). Ela é ação do próprio Deus amor (1Jo 4,7-8) que em Cristo atua na história da salvação (Ef 1,9-10; 3,8-11). O centro dessa história é a paixão, morte e ressurreição de Cristo, na qual Ele se faz o novo Cordeiro imolado para tirar o pecado do mundo (Jo 1,9), a “vítima sem mancha” (Hb 9,14) para uma nova aliança da humanidade com Deus. A comunidade celebra a Ceia repetindo o gesto de Jesus e obedecendo o seu mandato que a institui como sacramento: “Fazei isso em memória de mim” (Lc 22,19; 1Cor 11,25). A Ceia é, assim, anamnesis que pela ação do Espírito atualiza os efeitos da Páscoa de Cristo, como a comunhão com Deus, na igreja e com a humanidade inteira, uma memória profética de libertação no presente e no futuro de tudo o que contradiz o Evangelho do Reino.

Essa sacramentalidade da Ceia é afirmada por católicos e luteranos, tanto em suas doutrinas confessionais quanto nos vários documentos de diálogo bilateral e multilateral em que as duas igrejas afirmam juntas: “O banquete eucarístico é o sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, o sacramento da sua presença real [...] A Igreja confessa a presença real, viva e ativa do Cristo na Eucaristia” (CONIC, 1985CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS. Documento de Curitiba. In: Notícias do CONIC. Brasília: CONIC, 1985. Encarte., letra “B”; FÉ E CONSTITUIÇÃO, 1983FÉ E CONSTITUIÇÃO. Batismo, Eucaristia, Ministério. Porto Alegre: CONIC, 1983., n. 13). A discussão sobre a forma de entender a presença real, transubstatio ou consubstatio, apresenta mais questões de linguagem do que de conteúdo sobre a presença real. Para católicos e luteranos, “há consenso quanto à presença real de Jesus Cristo e que Ele é hospedeiro, hóspede e alimento”, com diferenças no compreender e explicitar o modo dessa presença2 2 CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS Hospitalidade Eucarística. Disponível em: <https://www.conic.org.br/portal/files/ Hospitalidade.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2020. . Desse modo,

As duas posições não precisam ser consideradas como contraposições excludentes. A tradição luterana consente com a tradição católica na afirmação de que os elementos consagrados não continuam sendo simples pão e vinho, mas em virtude da palavra criativa são distribuídos como corpo e sangue. Nesse sentido, também ela pode falar oportunamente em conjunto com a tradição grega, de uma mudança (Apologia Confessionis X, 2). A terminologia da “transubstanciação” quer, por sua vez, confessar e preservar o caráter misterioso da presença eucarística, ela não quer explicar o como se realiza esta transformação

(DH, n. 1643). (A Ceia do Senhor, n. 51)

Há consenso também quanto aos benefícios da Ceia, como o fortalecimento da fé, a restauração da paz da consciência, a intensificação do afervoramento do amor a Deus, o aumento do amor fraterno, o conforto na tribulação, a santificação, o fortalecimento da esperança na vida eterna, como escreve Lutero em Um sermão sobre o venerabilíssimo sacramento do santo e verdadeiro corpo de Cristo e sobre as irmandades: “Tudo isso nos cansa e desanima, caso não buscarmos e encontrarmos força nessa comunhão” (OSel 1, p. 431).

Dessa forma, a comunhão no sacramento eucarístico é uma expressão privilegiada da comunhão eclesial. Participando do mesmo corpo e sangue de Cristo, formamos um só corpo, como diz Paulo: “há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão” (1Cor 10,16-17). Conforme formulado em meio ao sínodo confessional vétero-prussiano de Halle (1937), que procurou possibilitar uma Santa Ceia comum entre luteranos e reformados (calvinistas) em plena ditadura nazista, entende-se que nas palavras de Paulo fica claro que Jesus Cristo é tanto o doador quando a dádiva na Ceia, e que esta constitui a igreja (LESSING, 1993LESSING, E. Abendmahl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1993., p. 24). Na Ceia, Ele reúne a comunidade que celebra no seu corpo místico, a igreja, de modo que há “uma ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia, e a Igreja” (SCa, n. 14). De fato, a Eucaristia edifica a igreja e a igreja “faz” a Eucaristia (RH, 20) – o que só é possível porque primeiro Cristo se doou à igreja e a capacita para isso: “Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). Por essa razão, há uma relação intrínseca e indissolúvel entre Eucaristia e igreja, pelo que a Eucaristia se torna o elemento central e nuclear, fonte e ápice do ser e agir da igreja (SC, n. 10).

1.3 Comunhão real e comunhão espiritual

As duas igrejas fazem, explícita ou implicitamente, uma distinção entre comunhão real do pão e do vinho consagrados e consumidos na celebração e comunhão espiritual por quem segue a celebração pela mídia eletrônica ou digital, sem ter as espécies consagradas para consumir. A comunhão real da Ceia não se dá apenas pela sintonia num canal de TV e o acompanhamento visual. Ouvir a missa pelo rádio, assistir na TV ou seguir pela internet não equivale à sua vivência sacramental, nas missas transmitidas pelos meios de comunicação “a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a reproduz em si mesma” (SCa, n. 57). Se assim fosse, a tela substituiria o altar, as imagens feitas pelos pixels substituiriam as pessoas, os bits que possibilitam a conexão substituiriam o Espírito. E os efeitos da celebração na qual se “comunga realmente” o pão e o vinho consagrados em nada seriam diferentes para quem “comunga virtualmente”. Ora, de fato, não é “a mesma” celebração: uma é a natureza cultual vivida pela comunidade ao redor do altar, que mesmo pequena, com auxiliares do presidente, é a igreja celebrando; outra é a realidade espiritual sintonizada pela tela do computador, da TV ou do smartphone. A “essência da Eucaristia é a reunião da assembleia a quem Cristo se oferece” (LUCIANI, 2020LUCIANI, R. Es la hora de ayunar del Pan y aprender a comulgar con la Palabra. In: ÁLVAREZ, Marcelo Alarcón. COVID 19. Santiago: MA-Editores, 2020. v. II. p. 21-29., v. II, p. 21), atualizando aquela reunião de Cristo com os discípulos na última ceia. Então, “A liturgia não tem espectadores, não pode ter” (SADAT), de modo que a consciência do mistério celebrado não permite “assistir” à liturgia eucarística “como estranhos ou espectadores mudos” (SC, n. 48). Afinal, “não é de modo estático que recebemos o Logos encarnado” (SCa, n. 11), pelo que os/as fiéis não podem “dispensar-se de ir à igreja tomar parte na celebração eucarística na assembleia da Igreja viva [...] a participação na Santa Missa pelos meios de comunicação [...] em condições normais, não cumpre o preceito dominical” (SCa, n. 57, grifos nossos). Claro que o acesso virtual possibilita um fortalecimento espiritual, revigoramento da fé e do testemunho cristãos, mas não é comunhão sacramental. Se tal fosse, poder-se-ia fazer o mesmo com a celebração dos demais sacramentos3 3 O Pastor Pedro Correia, da comunidade batista do Rio de Janeiro, teve sérios conflitos em sua comunidade por ter realizado batizados online durante a pandemia; ver “Pastor faz batismos online durante pandemia”. CPAD NEWS, 02 jun. 2020. Disponível em: <http://www.cpadnews.com.br/universo-cristao/50017/pastor-faz-batismos-online-durante-pandemia.html>. Acesso em: 09 jul. 2020. .

1.4 Os efeitos

Falamos acima que o fato de acompanhar à distância as missas pelos recursos disponíveis fortalece espiritualmente quem crê no sacramento eucarístico. O conjunto da liturgia que está sendo acompanhada possui elementos que motivam fiéis à meditação da Palavra, ao exame de consciência e ao reconhecimento dos próprios erros e pecados; à súplica de perdão e de louvor a Deus; à prática da caridade e do testemunho do Evangelho no mundo. A carta da IECLB, acima referida, afirma: “entendemos a preocupação de transmitir a comunhão, o perdão dos pecados e o conforto desse sacramento” (IECLB, 2020aIGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Orientações sobre a Ceia do Senhor em tempos de coronavírus: IECLB nº 280273/20, de 03 de abril de 2020. Porto Alegre: 2020a.). E é preciso concluir que em muito as missas on line possibilitam isso, no consolo espiritual, sustento da fé e da esperança das pessoas, ajudando-as nas situações de aflição e de angústia causadas pela pandemia do novo coronavírus.

Como tal é o efeito para quem participa da comunhão real do corpo e sangue de Cristo no pão e no vinho consagrados, pode-se dizer que as missas ou cultos online configuram um horizonte sacramental num sentido amplo. Mesmo sem a comunhão sacramental propriamente dita, algo do efeito sacramental é produzido na pessoa fiel conectada online. Ela é inserida de algum modo no mistério celebrado — paixão, morte e ressurreição de Cristo -, sente-se pertencente ao seu corpo eclesial e fortalecida no testemunho do Evangelho no mundo. Poderíamos compreender isso como efeito sacramental lato sensu da Santa Ceia/Eucaristia online.

1.5 Celebrar sem o povo?

O fato mais intrigante são as missas on line celebradas sem o povo nos meios católicos. Muitas vezes, o padre está sozinho, em sua casa ou no templo, diante de uma câmera do celular ou do computador, tendo na tela a imagem de pessoas que “assistem” à “sua” celebração. É o que testemunha outro padre no Brasil:

Nestes dias ... estou celebrando missa em minha casa, como tantos outros padres em todo o mundo. Objetivamente, faço isso sozinho, mas, na realidade, faço-o com um grupo de pessoas que participam comigo neste momento, a quem me sinto profundamente unido, cujos rostos, sem vê-los, passam pela minha mente quando oro junto com eles.

(MODINO, 2020MODINO, L. M. COVID 19: Início de uma igreja virtual? Revista IHU On Line, 30 de mar. de 2020. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597605-covid-19-o-inicio-de-uma-igreja-virtual>. Acesso em: 10 mai. 2020.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
)

Essa prática é orientada pelos documentos da igreja, permitindo aos padres uma “inteira liberdade de cada um celebrar individualmente” (CDC, Can. 902).

Os sacerdotes, tendo sempre presente que no mistério do Sacrifício eucarístico se realiza continuamente a obra da redenção, celebrem com frequência; mais, recomenda-se-lhes instantemente a celebração quotidiana, a qual, ainda quando não possa haver a presença de fiéis, é um ato de Cristo e da Igreja, em que os sacerdotes desempenham o seu múnus principal.

(CDC, Can. 904)

Temos aqui uma prática tradicional no catolicismo: o povo não tem missa sem o padre, mas o padre pode rezar a missa sem o povo. Afinal, ele é quem possui a potestas de consagrar o pão e o vinho, o que constitui a essência da liturgia eucarística. Isto expressa que a igreja não deixa de celebrar, sendo a Eucaristia “um ato de Cristo e da Igreja”. Mas que igreja? Ela se reduz aqui no ministro ordenado? É estranho não precisar de povo para que a celebração eucarística seja válida. Sim, no contexto pandêmico, tal é visto como uma circunstância excepcional/emergencial. Mas bem foi observado que “em situações de emergência, revelamos aquilo que realmente somos” (RUTA, 2020RUTA, S. S.. Sem presbítero não, sem povo sim? Revista IHU, 22 mar. 2020. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597318-sem-presbitero-nao-mas-sem-povo-sim-artigo-de-simona-segoloni-ruta>. Acesso em: 30 mai. 2020.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
). Ora, se é a igreja quem celebra, nesse momento o padre, sozinho, é efetivamente a igreja. Esse fato, no entanto, questiona a essência da celebração eucarística, que é um ato do povo reunido em assembleia, da qual o ministro ordenado é presidente como representante de Cristo, que comunga do pão e do vinho e forma o corpo de Cristo. Ensina também a Igreja que “Na Assembleia eucarística, o povo de Deus é convocado e reunido” (CDC, Can. 899, n. 2). Quando isso não ocorre, afirma-se a perspectiva litúrgica e eclesiológica pré-Vaticano II, na qual a eucaristia é apenas ato do padre, que oferece o sacrifício pelo povo. Como outrora o “padre rezava a missa” — em latim, enquanto o povo podia fazer outras orações, como a reza do terço — agora o povo continua “seguidor” do que “o padre faz” pelo Facebook da paróquia, acompanha o que o presidente da celebração faz, mas efetivamente não celebra.

O problema é o modelo de igreja que aqui se afirma, da societas inequalis, quem “pode” e quem “não pode” celebrar. E esse poder é intrínseco ao sacramento que os padres católicos recebem, com uma distinção notória entre a Ordem e o Batismo. O exercício desse poder sustenta a missa do padre não apenas agora, por causa do isolamento imposto pela pandemia, mas porque assim é a doutrina católica. Efetivamente, o povo é dispensável para a legitimidade e a validade da celebração eucarística. Fica claro que a teologia da missa privada está longe da atualização litúrgica do Vaticano II, ou força uma interpretação estreita desse concílio, como também fragiliza a “múltipla cooperação” (PO, n. 8) entre o ministério ordenado e o sacerdócio comum dos fiéis. Não se afirmam a igreja povo de Deus, o exercício da comunhão e participação, o sacerdócio batismal, a sinodalidade. O fato de o povo não ser protagonista da celebração eucarística pode indicar que não o é porque também não é protagonista da igreja. Se o padre age in persona Christi capitis, é sempre oportuno lembrar que, como dizia Agostinho, “não se pode crer que Cristo esteja na cabeça sem estar também no corpo” (In Iohannis Evangelium Tractatus, 21,8: PL n. 35, 1568; SCa, n. 36).

Isso tem um grande alcance ecumênico. Nos documentos resultantes do diálogo, “católicos e luteranos estão de acordo na convicção que a eucaristia é essencialmente banquete comunitário” (A Ceia do Senhor, n. 63). Isto vale principalmente para a tradição evangélica, para quem “a comunhão da comunidade é parte irrenunciável da celebração eucarística segundo a instituição do Senhor” (A Ceia do Senhor, n. 63). Para a comunidade luterana, a consequência é que, na ausência da comunidade reunida, prefere-se, ao menos por ora, renunciar à celebração da Santa Ceia. Isto significa, no entanto, privar os fiéis de um elemento central da vida da igreja e da comunhão com Deus. A IECLB é chamada a pensar em alternativas – algumas serão discutidas abaixo. Entre outras, há ideias circulando de celebrar por drive-in, estando as pessoas presentes na celebração do culto com Santa Ceia, porém não sentadas nos bancos do templo, mas dentro do seu próprio carro. Tal alternativa contaria com a presença da comunidade na celebração, distanciados os membros para evitar qualquer contágio. Os elementos da Santa Ceia seriam servidos, com todos os cuidados de higiene, dentro do carro.

Algumas comunidades católicas têm experimentado, especialmente na páscoa, uma modalidade drive-thru, em que as pessoas passam em fila dirigindo seus carros, recebendo a hóstia num ponto de distribuição. Essa forma é permitida pelo CDC, Cân. 918, que reza: “Muito se recomenda aos fiéis que recebam a sagrada comunhão na própria celebração eucarística; no entanto, seja-lhes administrada fora da Missa, quando a pedirem por justa causa, observados os ritos litúrgicos”. Diferente do drive-in, no drive-thru não há permanência numa missa e, portanto, não configura celebração em comunidade, estando o recebimento da comunhão fora da missa.

Assim, a comunidade católica é chamada a rever a prática da missa sem o povo. O padre atua como líder/cabeça da comunidade, mas é também membro do corpo, o povo de Deus. E nesse sentido orienta também o ensino católico que “a não ser por causa justa e razoável, o sacerdote não celebre o Sacrifício eucarístico sem a participação ao menos de algum fiel” (CDC, Can. 906). É importante verificar a “causa justa e razoável” que de fato levam os padres a rezar missa sozinhos, mesmo em tempos de pandemia. Mas é preciso ir além disso: urge verificar o status do padre enquanto povo. Para isso muito contribui o papa Francisco ao alertar o presbítero para, como evangelizador, viver “o prazer espiritual de ser povo” (EG, n. 268-274). O presbítero segue a Cristo, quem “nos introduz no coração do povo” (EG, n. 269), permite-nos uma “intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo” (EG, n. 270), uma pertença que “nos enche de alegria e nos dá uma identidade (EG, n. 269). Assim, inserido no contexto sociocultural dos fiéis, partilhando as vicissitudes que aí se manifestam, o padre vive “a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel de Deus” (EG, n. 272).

Então, espera-se que ao passar a pandemia a Igreja Católica recupere a teologia conciliar da liturgia eucarística no horizonte da eclesiologia povo de Deus. De qualquer forma, é intrigante o fato de poucos padres fazerem uma autocrítica da missa privada que celebram. Se podem fazer em “situações emergenciais”, não podem interpretar a doutrina e a disciplina litúrgica como se o possibilitasse fazer sempre. Isto daria uma sensação de conformismo que distancia ainda mais o padre e a comunidade, o sacramento da Ordem e o Batismo comum, o que questiona na raiz a igreja povo de Deus e a corresponsabilidade entre carismas e ministérios no processo de evangelização.

2 Alternativas para a celebração da Santa Ceia/Eucaristia durante o isolamento social

Como indicamos no início, o isolamento social imposto pela pandemia pode prolongar-se por muitos meses ainda, desde um completo lockdown até uma abertura dos templos com restrições de ocupação e proibição da entrada de grupos de risco. As duas igrejas já emitiram orientações para a gradativa abertura dos templos. A CNBB orienta sobre a celebração litúrgica presencial, com a observação estrita das orientações das autoridades sanitárias – como não permitir a presença dos grupos de risco (acima de 60 anos, mesmo sendo ministros) -, o distanciamento físico de 2 metros, o uso de máscaras, “momentaneamente retiradas para a comunhão” e álcool em gel 70% (CNBB, 2020REGIONAL SUL IV DA CNBB. Deus nunca nos abandona — Nota oficial da Presidência. Santa Catarina: 22 de abr. de 2020. Disponível em: <https://diocesetb.org.br/noticia/bispos-de-santa-catarina-lancam-nota-sobre-a-porta>. Acesso em: 05 mai. 2020.
https://diocesetb.org.br/noticia/bispos-...
). A IECLB desaconselha, “num primeiro período”, a celebração da Santa Ceia, e decide-se por manter a orientação de suspensão de cultos e reuniões presenciais (IECLB, 2020cIGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Orientações para a retomada gradual de cultos e encontros presenciais que envolvam grupos. IECLB nº 280932/20, de 25 de maio de 2020. Porto Alegre: 2020c.).

Entendemos estar entre as alternativas viáveis, embora nem sempre para ambas as igrejas, as quatro que seguem.

2.1 Abstinência completa da Santa Ceia/Eucaristia

Na linha do que a IECLB já está praticando, existe a possibilidade da contínua abstinência total da celebração da Santa Ceia. Evitaria, assim, a impressão de um “privilégio” concedido apenas a alguns – às pessoas que podem participar num templo com lotação reduzida e não estão no grupo de risco. Se for, como discutiremos abaixo, para celebrar de forma remota, excluiria pessoas que não têm acesso à internet. Para a tradição luterana, uma celebração da Santa Ceia sem comunidade é impensável, por isso é melhor “jejuar” do pão e ficar com a Palavra, uma vez que esta pode existir sem os elementos, mas não vice-versa. Também uma celebração apenas do ministro ou da ministra4 4 Embora a maioria dos ministros ordenados e das ministras ordenadas na IECLB sejam pastores(as), a IECLB conhece o ministério compartilhado, com suas variantes pastoral, diaconal, catequético e missionário, sendo que todos esses ministérios contam com formação teológica, prática e ordenação e estão autorizados para celebrar os sacramentos. Por isso, e neste sentido, preferimos aqui o termo “ministro(a)” ao de “pastor(a)”. com sua família seria estranha, pois, ainda que se configurasse como comunidade, seria altamente exclusiva. O central é que a comunidade celebre e se reúna (ainda que de forma remota ou distanciada, como veremos) diante de Deus. Somente assim se dará a presença real do Cristo “em, sob e com” o pão. Lembremos também da forte crítica de Lutero às Winkelmessen, as missas privadas, sem comunidade, em privado do sacerdote ou de um grupo privilegiado.

Deixar de celebrar a missa por completo é uma possibilidade não prevista na tradição católica que orienta seus fiéis, e em especial seus presbíteros, à participação frequente do sacramento eucarístico, mesmo em situações difíceis como a pandemia, pois nele “se exerce continuamente a obra da redenção” (CDC, Can. 904):

Os fiéis tenham na máxima honra a santíssima Eucaristia, participando ativamente na celebração do augustíssimo Sacrifício, recebendo devotíssima e frequentemente esse sacramento e prestando-lhe culto com suprema adoração; os pastores de almas, explicando a doutrina sobre esse sacramento, instruam diligentemente os fiéis sobre esta obrigação

(CDC, Can. 898).

E aos ministros presbíteros e bispos “recomenda-se com insistência a celebração cotidiana” (Can. 904).

Temos aqui uma real divergência entre as duas tradições. De um lado, isto é expressão de diferença sobre o lugar do sacramento na vida e missão da igreja. Na tradição católica, há uma considerável sacramentalização da vida e da missão eclesial: parte-se do sacramento, estrutura-se em torno do sacramento e se direciona ao sacramento. Não há igreja sem sacramento. Na tradição luterana, é a Palavra que ocupa o principal lugar, embora o sacramento faça parte do ser (esse), da essência, e não apenas de uma prática possível para o bem-estar da igreja (bene esse). Assim, define o artigo VII da CA: “Ensina-se também que sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã que é a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho.” Essa frase diz que 1) a tradição luterana se entende em continuidade com e como parte da igreja desde seu início; 2) a igreja é definida, em primeiro lugar, como congregação de “todos os crentes”, não existindo acima ou à parte desta – tanto que Lutero preferia falar de Gemeinde (congregação, comunidade) do que de Kirche (igreja); 3) a igreja está onde se prega o Evangelho e celebra os sacramentos que nela são explicitamente instituídos, portanto Batismo e Santa Ceia; 4) tal pregação e administração implica um ministério que delas esteja incumbido. A Palavra de Deus, afinal o próprio Cristo testemunhado nas palavras da Sagrada Escritura, tem prevalência, pois sem ela não pode haver sacramento – mas pode haver Palavra sem sacramento. A IECLB incentiva a frequente celebração e participação na Santa Ceia: “Participamos da ceia frequentemente, pois a comunhão com Cristo, os irmãos e as irmãs precisa ser alimentada sempre” (Nossa Fé, Nossa Vida, p. 26). No entanto, a realidade é outra. Como efeito embasado muito mais cultural do que teologicamente, há um excessivo e, a nosso ver, problemático receio diante da comunhão na Santa Ceia, temendo incorrer no juízo do qual fala Paulo (1Cor 11,27), resultando, em alguns casos, numa única comunhão por ano – a qual, ainda, pode dar-se justamente na Sexta-Feira Santa, dia no qual, pela tradição, nem deveria haver nenhuma celebração da Santa Ceia.

É útil recordar aqui a orientação do diálogo católico-luterano para, da parte católica, “evitar a celebração da missa sem participação do povo”; e, da parte luterana, tender a “uma mais frequente celebração da ceia eucarística ...(parece normal que deva ser celebrada não menos de cada domingo e uma vez por semana)” (A Ceia do Senhor, n. 76). Contudo, mesmo se há sinais de importante “retomada” dos sacramentos na tradição luterana no Brasil, mantém-se ainda considerável distância do valor que a tradição católica lhe atribui na vida cristã e eclesial. E quanto ao assunto em pauta, enquanto o contínuo “jejum eucarístico” é uma opção real na tradição luterana, embora problemática, é uma impossibilidade para a tradição católica.

2.2 Celebração com poucas pessoas

Em tese, nada impede que as celebrações da Santa Ceia/Eucaristia continuem acontecendo nas igrejas católica e luterana (como também nas demais que a realizam no ordinário da vida eclesial), ainda que aconteça com um pequeno número de participantes. Pode-se argumentar que vale mais celebrar com poucas pessoas do que não ter celebração alguma. As palavras de Jesus, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18,20), mostram que não é o número de fiéis que qualifica a celebração sacramental, mas a presença e ação de Cristo. É ele quem está presente, doa-se e atua pela ação da comunidade reunida em sua memória: “A celebração eucarística é a ação do próprio Cristo e da Igreja, na qual, pelo ministério do sacerdote, o Cristo Senhor, substancialmente presente sob as espécies de pão e vinho, se oferece a Deus Pai e se dá como alimento espiritual aos fiéis unidos à sua oblação” (CDC, Can. 899 — § 1).

A presença e a ação de Cristo e do seu Espírito são o que configura e sustenta a comunhão na ceia: “O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho [...] reúne os fiéis ‘num só corpo’, tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai” (SCa, n. 13).

A celebração é também “ato da igreja”, de modo que o pequeno grupo que celebra não está isolado da igreja como um todo. Teologicamente, cada celebração eucarística é celebração da igreja toda, mesmo que não tenha toda a igreja presente. Como o presbítero “faz as vezes de Cristo”, é seu “representante” (CDC, Can. 899, § 2.), “preside na pessoa de Cristo” (SCa, n. 23), assim se poderia dizer que a pequena comunidade representa a igreja toda. Pois “a forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária” (SCa, n. 76). Diz o diálogo católico-luterano: “A participação no mesmo pão e no mesmo cálice num determinado lugar indica que os participantes são uma só coisa com todo o Cristo e com os participantes de todos os tempos e de todos os lugares. Partindo o pão comum, testemunham a sua unidade com a igreja universal” (A Ceia do Senhor, n. 27). Desse modo, a única Santa Ceia/Eucaristia é celebrada como constitutiva do ser da igreja, ela mostra a unidade do corpo místico de Cristo, a igreja una e indivisível. Assim, “a única Eucaristia [...] nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia” (SCa, n. 15).

Há quem argumente que celebrar com poucas pessoas poderia ser expressão de privilégio, concedido em geral para os mais próximos do padre ou do(a) pastor(a), que às vezes tendem a se considerar também “mais dignos...”, como se a Eucaristia fosse “um prêmio para os perfeitos” (EG, 47). Mas pode também argumentar-se que a) não se trata de uma celebração à parte: “os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade” (SCa, n. 63); b) mais que privilégio, a participação desse pequeno grupo na Eucaristia é um dever e uma missão: “não podemos reservar para nós o amor que celebramos nesse sacramento” (SCa, n. 84). Quem celebra o faz na fé de toda a igreja e exerce uma função de intercessor – ora por – de quem tem a mesma fé, mas nesse tempo de pandemia não lhe é possível participar. Embora a IECLB não afirme esse aspecto explicitamente, sua eclesiologia conforme CA VII, acima citada, a insere na igreja universal – portanto “católica”, no sentido não confessional da palavra –, além de ela afirmar, ao mesmo tempo que se define como confessionalmente evangélica e luterana, que

nossa tradição confessional não nos isola de outros cristãos. Com ela participamos da ecumene. Vinculados em fé e ação com todas as igrejas no mundo que confessam Jesus Cristo como Senhor e Salvador, procuramos viver a unidade da Igreja de Jesus Cristo: universal, una, santa e apostólica. (Nossa Fé, Nossa Vida, p. 6)

Em tempos de COVID-19, descartando a situação de uma Santa Ceia “como era antes”, por um lado, e a renúncia total à Santa Ceia, por outro, nada impede que um pequeno grupo continue celebrando. É o que acontece na Igreja Católica Romana. Teologicamente, nada impede que tal aconteça também na IECLB. Pastoralmente, pesa a questão da inclusividade da Santa Ceia e a potencial exclusividade ao ser celebrada em grupos pequenos, quase que vicariamente. No entanto, seria uma possibilidade a ser explorada, eventualmente transmitida por meio eletrônico, como veremos a seguir. O(a) ministro(a) poderia celebrar com sua família, a pequena comunidade eclesial doméstica, e/ou com membros do presbitério, cientes de que na Santa Ceia se faz presente a Igreja toda embora não reúna toda a igreja. Se consideramos os benefícios espirituais da Santa Ceia, seria uma decisão oportuna, e até necessária, proporcioná-los também a fiéis luteranos(as) durante essa pandemia. Já para ministros(as) da IECLB não convém celebrar sozinho, como acontece com padres e bispos católicos – questão já discutida acima.

2.3 Celebrações online acompanhadas nas casas

Se houver celebração presencial da Santa Ceia/Eucaristia, ainda que com poucas pessoas, observando todas as precauções recomendadas pelas autoridades sanitárias, nada impede que seja transmitida pela TV ou pela internet. Essa prática católica poderia ser incentivada também em meios luteranos. Justifica isso o amplo sentido sacramental, acima mostrado, que se expressa no acompanhamento da Santa Ceia/Eucaristia transmitida online.

Queremos agora ir um pouco além, buscando responder à pergunta: o que poderia ser feito para que as pessoas que seguem a Santa Ceia/Eucaristia online celebrem realmente e não fiquem numa mera observação passiva? O que precisa ser expresso é a realidade da comunhão que a Santa Ceia/Eucaristia propicia, com Deus, com a comunidade e com toda criação. Como as pessoas estão impossibilitadas de comungarem do pão e do vinho ou suco de uva5 5 A IECLB costuma oferecer, além do vinho, suco de uva, também “fruto da videira” (Lc 21,18), neste caso não fermentado, “por amor e solidariedade com crianças e pessoas que se abstêm de bebida com teor alcoólico” (Nossa Fé, Nossa Vida, p. 26), e considerando que a comunhão na IECLB é sempre sub utraque specie, ou seja, oferecendo pão e vinho/suco a todas as pessoas comungantes. utilizado na celebração presencial, poder-se-ia encorajá-las a consumirem pão e vinho ou suco em casa, acompanhando a celebração transmitida pela TV ou internet. Ao partilhar pão e vinho/suco também nas casas, a comunhão se tornaria mais palpável. Assim, as pessoas se sentiriam mais ativas, participantes e inseridas na comunidade mais ampla da igreja, ainda que distantes fisicamente, e mais comprometidas na missão. Essa modalidade seria uma possibilidade para ambas as igrejas, desde que não configure celebrações paralelas e autônomas.

2.4 Celebração da Santa Ceia por leigos(as)

Uma quarta via a ser analisada é a possibilidade de celebrar a Santa Ceia nas famílias que não têm acesso à internet e nem podem contar com a presença de um(a) ministro(a) ordenado(a). As nossas igrejas poderiam propor isso de forma emergencial, com instruções específicas? Tanto a IECLB quanto a Igreja Católica Romana afirmam que a presidência da Celebração da Santa Ceia é de competência do ministério ordenado. Mas perguntamos: seria impossível instituir um ministério específico para presidir uma celebração familiar da Ceia? Essa presidência poderia ser possibilitada, por exemplo, para pais e mães de família?

Nossas igrejas têm respostas diferentes, e contrárias, a essas indagações. Na tradição luterana, em tese, seria possível favorecer tal prática. Mesmo que essa não seja a normativa ordinária a respeito da celebração do sacramento eucarístico, entende-se que a pandemia nos coloca numa situação especial que impele a buscar novas formas de celebração. A base para isso é a compreensão na IECLB que o ministério ordenado, ainda que imprescindível, é uma função do sacerdócio geral dos crentes e não um sacramento que confere um caráter indelével, como entende a tradição católica (DREHER, 2011DREHER, Martin N. Igreja, Ministério, Chamado e Ordenação: Estudos a partir de Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2011.). Para a igreja luterana, o único caráter indelével é do batismo, este, por sua vez, também destacado nos documentos no II Concílio Vaticano (CIC, par. 689).

Uma celebração doméstica da Santa Ceia valorizaria o sacerdócio de todos os crentes, em sintonia com o ensino de Lutero, em seu escrito À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão: “todos os cristãos são verdadeiramente de estamento espiritual, e não há qualquer diferença entre eles a não ser exclusivamente por força do ofício [...] todos nós somos ordenados sacerdotes através do Batismo” (OSel 2, p. 282). No prefácio a Missa Alemã e Ordem do Culto (1526), Lutero menciona três tipos de culto: a tradicional missa em latim, com algumas modificações conforme a nova compreensão, para incentivar o uso e aperfeiçoamento do latim – a missa da elite, por assim dizer. Depois, a missa em alemão que ele providenciou, objeto do tratado em pauta, para um povo mais popular. A terceira forma é até considerada a ideal, a “autêntica ordem evangélica”, que

não deveria ocorrer em praça pública no meio de toda sorte de pessoas; mas aqueles que querem ser cristãos sinceramente e confessam o Evangelho em palavra e ações, deveriam inscrever-se nominalmente e reunir-se em separado numa casa qualquer para orar, ler, batizar, receber o Sacramento e praticar outras obras cristãs. [...] Além disso, também se poderia celebrar o Batismo e o Sacramento de forma breve e bonita, concentrando tudo na Palavra, na oração e no amor. [...] Em síntese, se houvesse as pessoas que sinceramente desejassem ser cristãs, a ordem e as formas estariam estabelecidas rapidamente.

(OSel7, p. 179s.)

É claro – e historicamente aconteceu no pietismo e, mais recentemente, em alguns círculos na IECLB – que, em tempos normais, isto também poderia resultar num tipo de elitismo, criando-se clubes e celebrando-se cultos dos “mais próximos a Deus”. Portanto, mesmo sendo um tipo ideal de igreja, temos que considerar tal situação apenas emergencial – como foi o momento da Reforma. Por isso, Lutero prevê que em tempos excepcionais,

se um punhado de piedosos cristãos leigos fossem presos e confinados num deserto, não tivessem entre eles um sacerdote ordenado por bispo, chegassem a um acordo, escolhessem um dentre eles, fosse casado ou não, e lhe confiassem o ofício de batizar, celebrar missa, absolver e pregar, ele verdadeiramente seria um sacerdote, como se todos os bispos e papas o tivessem ordenado. É por isto que, em caso de necessidade, cada um pode batizar e absolver, o que não seria possível se não fôssemos todos sacerdotes.

(OSel 2, p. 282)

Isto está implícito também no que diz o guia comunitário Nossa Fé, Nossa Vida, ao afirmar que a Santa Ceia pode ser celebrada no lar e que “a administração do sacramento da Ceia cabe ao pastor, à pastora ou a outra pessoa obreira ou colaboradora, incumbida desta tarefa” (p. 26, grifo nosso). O teólogo e historiador luterano Martin Dreher entende a formulação de Lutero “em caso de necessidade” significar justamente o momento “quando a igreja passa por dificuldades [...] quando o trâmite normal não mais é possível e torna-se necessária a excepcionalidade” (DREHER, 2011DREHER, Martin N. Igreja, Ministério, Chamado e Ordenação: Estudos a partir de Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2011., p. 60). E insiste que precisará dar alguma incumbência, seja pela comunidade ou por um bispo. Cita Lutero, do seu escrito Do Cativeiro Babilônico da Igreja. Um Prelúdio de Martinho Lutero: “temos o mesmo poder na Palavra e em qualquer sacramento. Entretanto, não é lícito que qualquer um faça uso desse poder, a não ser com o consentimento da comunidade ou por chamado de um superior” (OSel 2, p. 417). Essa incumbência pode ser dada, como diz Lutero e reforça Dreher (2011, p. 65)DREHER, Martin N. Igreja, Ministério, Chamado e Ordenação: Estudos a partir de Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2011., pela comunidade em caso de necessidade, mesmo sem confirmação externa e que a pessoa seja ordenada conforme as normas previstas. Por isso, difere do ministério ordenado, pelo fato de exercer essa função por incumbência especial numa situação de emergência e no âmbito privado, não público, e enquanto durar a incumbência e a situação de necessidade.

Na doutrina católica não há nenhum espaço para tal possibilidade, com justificativa teológica, pastoral ou simplesmente disciplinar. A ordenação sacerdotal é indispensável para a validade da celebração eucarística (LG, 19; SCa, n. 23). Reza o Can. 900, n. l, do Código de Direito Canônico: “Somente o sacerdote validamente ordenado é o ministro que, fazendo as vezes de Cristo, é capaz de realizar o sacramento da Eucaristia”. E o Can. 910, n. l: “Ministro ordinário da sagrada comunhão é o Bispo, o presbítero e o diácono”, embora o diácono não consagre. Outras pessoas podem ser instituídas para um ministério “extraordinário da sagrada comunhão” (Can. 900, n. 2; Can. 230, n. 3), mas isso não lhes equipara com a potestas sacramental, de modo que nenhum(a) fiel católico(a) pode realizar alguma função na igreja que seja de competência exclusiva do ministro legitimamente e validamente ordenado, isto é, segundo a doutrina e a ordenação jurídica da igreja. Há interditos e penas a respeito: “Incorre em interdito latae sententiae [...] 1.° aquele que, não promovido à ordem sacerdotal, tenta celebrar a ação litúrgica do Sacrifício eucarístico” (Can. 1378, n. 2); há punição com “justa pena” para quem “simula a administração de um sacramento” (Can. 1379) sem ser instituído para isso; ou quem “exerce ilegitimamente uma função sacerdotal ou outro ministério sagrado” (Can. 1384).

Portanto, para a doutrina católica Jesus instituiu, simultaneamente, a Eucaristia e o ministério que a preside, de modo que há um “vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem” (SCa, n. 23), não se pode alterar um sem alterar também o outro. E ninguém pode dar a entender ser ministro ordenado sem de fato o ser – no que se verifica convergência com a citação de Lutero: “não é lícito que qualquer um faça uso desse poder” (OSel 2, p. 417). A diferença não está na existência ou na necessidade de um ministério ordenado, o qual também para LuteroLUTERO, M. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1987-2017. 13 v. é de ordem divina e não um simples e eventualmente dispensável costume humano. A diferença, provavelmente a mais profunda e persistente entre as tradições católica e luterana, está na compreensão desse ministério: sacramental e ontológica, na compreensão católica; não sacramental e funcional, na compreensão luterana. Na tradição católica, pela compreensão ontológica da ordenação, não há uma instituição apenas temporária desse ministério. Se alguém tem a potestas de consagrar o pão e o vinho, pela doutrina do character indelebilis (CIC, n. 688; n. 1563), essa lhe é permanente – embora em casos particulares alguém possa ser destituído do uso do poder das ordens sacras por diversas razões (cf. CDC, n. 1708-1712). Embora haja uma compreensão muito diferente, na prática, isto não difere da tradição luterana, pois conforme o Estatuto do Ministério com Ordenação (EMO, IECLB 2015, art. 3º a 10º) há apenas uma ordenação, mas pode ser suspenso ou revogado o Certificado de Habilitação, o qual autoriza o exercício efetivo do ministério. Portanto, a ordenação é permanente e insere, conforme o EMO, “a ministra ou o ministro no ministério da Igreja de Jesus Cristo, em todo o mundo”, ao mesmo tempo que “estabelece um vínculo confessional e ministerial com a IECLB e sua missão” (IECLB, 2015IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Estatuto do Ministério com Ordenação. 2015. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/estatuto-do-ministerio-com-ordenacao-da-ieclb>. Acesso em: 10 jul. 2020.
https://www.luteranos.com.br/conteudo/es...
, art. 3º, caput).

O que se conclui é que, enquanto no caso luterano seria, em princípio, possível uma celebração doméstica da Santa Ceia, seguindo instruções da igreja e com pessoas (eventualmente o pai ou a mãe na família) incumbidas da tarefa para tal fim e de forma temporária, no caso católico, constata-se que, pelo menos até o momento a situação pandêmica não é o suficiente para levá-la a repensar elementos da doutrina sobre a Eucaristia e o seu ministro. Diferente do que previu Lutero, João Paulo IIJOÃO PAULO II, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles laici. Roma: 1988. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_ 30121988_ christifideles-laici.html>. Acesso em: 11 jul. 2020.
http://www.vatican.va/content/john-paul-...
citou na Carta aos Sacerdotes (1979bJOÃO PAULO II, Papa. Carta aos Sacerdotes. In: Acta Apostolica Sedis. Roma: 1979b. v. 71. p. 414-415.), um grupo de fiéis católicos/as vivendo em regime ditatorial que proibia a presença de padres. Essas pessoas se reuniam em algum templo e colocavam pão, vinho e a estola sobre o altar, e recitavam as orações da liturgia eucarística. Contudo, não pronunciavam as palavras da consagração, momento em que se detinham em silêncio, por entenderem que apenas o padre pode pronunciá-las na celebração. Desse modo, é importante ter claro funções específicas segundo as condições de cada membro da comunidade. Afinal, “a participação ativa na mesma (celebração) não coincide, de per si, com o desempenho de um ministério particular” (SCa, n. 53). Enquanto o ministro ordenado atua in persona Christi capitis, o sacerdócio comum dos fiéis expressa os membros do corpo de Cristo. Não se trata de afirmar uma hierarquia que divide, mas que distingue na comunhão. O papa FranciscoFRANCISCO, Papa. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013. deixa claro que “mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada ‘hierárquica’, há que ter bem presente que ‘se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo’” (EG, n. 104). A potestas sacramental não deve ser demasiadamente identificada com o poder. Francisco reafirma o ensino de João Paulo IIJOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia [...] sobre a Eucaristia na sua relação com a Igreja. Roma: 2003. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/special_features/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_20030417_ecclesia_eucharistia_po.html>. Acesso em: 04 jun. 2020.
http://www.vatican.va/holy_father/specia...
, no número 51 da Christifideles laici, que “quando falamos da potestade sacerdotal ‘estamos na esfera da função, e não da dignidade e da santidade’” (EG, n. 104).

Isso precisa ser compreendido a partir do lugar e da função de cada membro da celebração como fazendo parte da “beleza e harmonia da ação litúrgica” (SCa, n. 53). Assim, as adaptações litúrgicas durante a pandemia da COVID 19, ou em qualquer outro momento, não podem ofuscar o fato de tratar-se da mesma Eucaristia, cujas formas litúrgicas podem ter uma variedade legítima nos diferentes contextos socioculturais e nas diferentes situações. Fundamental para católicos e luteranos é sustentarem o consenso já afirmado de que “a verdade sobre a eucaristia afirmada na fé deve determinar o conteúdo e a forma da ação litúrgica” (A Ceia do Senhor, n. 74). Deve haver preocupação em evitar “modas passageiras”, garantindo uma unidade das celebrações em cada grupo que celebra, o que se expressa também por ritos, textos, gestos, linguagem e estrutura litúrgica comuns. A comunhão na fé eucarística expressa a comunhão eclesial, o que se concretiza numa determinada doutrina eucarística e disciplina litúrgica – de modo que não se pode celebrar de qualquer forma, independente da tradição eclesial mais ampla à qual a comunidade celebrante pertence. Afinal, para o magistério católico, “esse grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço” (SCa, n. 12).

3 Considerações finais

A IECLB e a CNBB no Brasil têm um positivo histórico de relações ecumênicas e de posicionamentos comuns frente às questões sociais, como se observa, por exemplo, tanto pelo diálogo bilateral entre essas duas igrejas quanto pelo diálogo multilateral, que acontece principalmente pela atuação delas no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONICCONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS Hospitalidade Eucarística. Disponível em: <https://www.conic.org.br/portal/files/Hospitalidade.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2020.
https://www.conic.org.br/portal/files/Ho...
) e na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE). Por esses diálogos, as comunidades católicas e as da IECLB têm se aproximado em questões doutrinais e na ação social.

Neste tempo de pandemia não é diferente. Basta uma rápida observação dos sites dessas duas igrejas para perceber como elas se aproximam na orientação espiritual das comunidades, no incentivo à prática da solidariedade e à observação das orientações das autoridades sanitárias.

Tratamos aqui da Santa Ceia/Eucaristia, apresentando convergências e divergências, tanto doutrinais quanto pastorais. É oportuno concluirmos o nosso estudo ressaltando o valor das convergências nesses dois campos, base para a superação das divergências que persistem. Destacamos:

1) A centralidade da Ceia/Eucaristia na vida cristã e eclesial, cujo fundamento é a instituição de Cristo como seu corpo e sangue dado como comida e bebida para a nossa salvação. Diz o artigo X da CA: “Da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos” (CIL, 2016COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA. Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 7.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Concórdia; Canoas: ULBRA; São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 36). Sendo a Ceia/Eucaristia ação de Deus em Cristo pelo seu Espírito, que nos forma como um único corpo, sua igreja, “do evento da comunhão sacramental em Cristo nasce a forma permanente de vida da comunhão eclesial em Cristo” (A Ceia do Senhor, n. 25).

Em razão disso, as igrejas não devem propor mudanças que alterem esse fundamento comum. E bem conclui o diálogo católico-luterano de que uma possível renovação na celebração litúrgica “deve tender sempre a duas realidades: em primeiro lugar ao Senhor, à sua palavra e à sua vontade; depois, aos contemporâneos com as suas dificuldades e possibilidades”, ao “pequeno rebanho” dos fiéis, como também ao “grande rebanho” da humanidade “para quem a salvação eucarística é destinada” (A Ceia do Senhor, n. 75). Conclui-se que a “a celebração da Eucaristia implica a Tradição viva”, evitando “modas passageiras” (SCa, n. 37) que podem incorrer em alguma fragilização ou mesmo mudança do único fundamento, o que “não está à mercê do nosso arbítrio” (SCa, n. 37).

2) A despeito do dissenso teológico na concepção do ministério ordenado, o que é tema de importantes estudos entre católicos e luteranos, a IECLB e a CNBB entendem que esse sacramento é administrado por quem possui as ordens eclesiásticas. Vimos acima a doutrina católica sobre isso. E da parte luterana tal é o que se verifica, por exemplo, na CA, art. XIV: “sem chamado regular, ninguém deve publicamente ensinar ou pregar ou administrar os sacramentos na igreja” (CIL, 2016COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA. Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 7.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Concórdia; Canoas: ULBRA; São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 25). A Igreja Evangélica da Alemanha afirma que “portanto, outras pessoas não deveriam, sem mais nada, instituir a Santa Ceia” (EKD, 3.8.EVANGELISCHE KIRCHE IN DEUTSCHLAND. Das Abendmahl. [s./d.]. Disponível em: <https://www.ekd.de/23198.htm>. Acesso em: 06 jun. 2020.
https://www.ekd.de/23198.htm...
). Em algumas igrejas luteranas, os sacramentos são administrados, além de ministros(as) ordenados(as), publicamente e regularmente também por “pregadores(as)” (Prädikant(inn)en) para isso formados(as) e autorizados(as). Situam-se aqui nos meios católicos a instituição de ministro(a) extraordinário(a) da comunhão, do Batismo e do Matrimônio. Mas, diferente dos primeiros, os últimos não presidem a celebração eucarística.

Há, na tradição luterana, espaço para exceções, especialmente para o âmbito que não seja público, em caso de “necessidade”. Isto se constituiu numa divergência com a doutrina católica em dois pontos: 1) ao possibilitar a alteração da ordem em caso de “necessidade”; 2) ao prever uma instituição eclesiástica em caráter circunstancial e temporária. Isto é possível porque já ordinariamente a compreensão do ministério na tradição luterana é em seu formato funcional e não sacramental, podendo a comunidade reunida incumbir, quando necessário e imprescindível, pessoas para o exercício do ministério, o que não encontra consenso com a doutrina católica. Esta ensina que leigos(as), conhecidos(as) pela comunidade pelo testemunho de vida eclesial e cidadã, podem ser preparados(as) para diferentes serviços litúrgicos (AA, n. 24), não sacramentais, com um mandato específico e temporário, conforme as necessidades da comunidade. A atuação pastoral, espiritual e, inclusive, cerimonial dessas pessoas leigas não precisa ter natureza sacramental.

É consenso que neste tempo de pandemia católicos e luteranos precisam descobrir um novo jeito de evangelizar, afirmando o valor da convivência familiar e comunitária, da solidariedade, da promoção da paz e da justiça na sociedade. Ao suspender as atividades presenciais das comunidades, a IECLB (2020b)IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. IECLB Nº 280034/20, de 17 de março de 2020. Porto Alegre: 2020b. previu “reuniões em família e cultos domésticos” onde se pode realizar a leitura bíblica e orações nas casas. Isto se aproxima com o que nos meios católicos é orientado para o ministério de leigos(as). Essa convergência pastoral fortalece caminhos para consensos eclesiológicos sobre a igreja entendida como comunidade de ministérios com base ao sacerdócio comum dos fiéis.

3) O desafio comum para a IECLB e a Igreja Católica, nas novas formas de evangelizar nesses tempos de pandemia da COVID 19, é a transmissão de mensagens e atos com natureza de aconselhamento espiritual e, inclusive, litúrgicas. A pergunta a que buscamos aqui responder é como, para fazer frente à crise provocada pelo vazio dos templos, católicos e luteranos, entre outras igrejas, poderiam povoar o cyberespaço, lançando mão dos recursos digitais para garantir o sustento espiritual aos fiéis, mantendo importante presença em suas vidas, comunicando-se, interagindo com eles e acompanhando-os em suas vicissitudes. Não sem sofrimento, reconhece-se que:

Estamos todos com saudades uns dos outros, desejosos de nos reencontrar: sentimos falta das Celebrações Eucarísticas, dos Sacramentos e do envolvimento direto nas Pastorais, Associações, Organismos e Movimentos. Porém, a consciência da gravidade da situação pela qual passamos, que destrói nossas economias e, sobretudo, ameaça seriamente nossa vida, o tesouro imenso que nos foi dado pelo Criador e do qual devemos cuidar, obriga-nos a dar atenção e a considerar, de forma restrita, as orientações dos especialistas de saúde e autoridades competentes.

(REGIONAL SUL IV DA CNBB, 2020REGIONAL SUL IV DA CNBB. Deus nunca nos abandona — Nota oficial da Presidência. Santa Catarina: 22 de abr. de 2020. Disponível em: <https://diocesetb.org.br/noticia/bispos-de-santa-catarina-lancam-nota-sobre-a-porta>. Acesso em: 05 mai. 2020.
https://diocesetb.org.br/noticia/bispos-...
)

Por outro lado, nem tudo é teológica e pastoralmente recomendável. A análise de algumas celebrações transmitidas nesses meios exige refletir sobre elementos que questionam a sua eficiência pastoral. O que está em questão é se garantem a finalidade que a celebração possui: gerar comunhão concreta na fé e ações efetivas de testemunho da fé no Evangelho celebrado.

  • 1
    Ver a proposta da “Pastoral da Comunicação – PASCOM”, da Conferência Nacional dos Bispos do BrasilCONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Orientações da CNBB para as Celebrações Comunitárias no contexto da pandemia da COVID-19. Brasília: 21 de mai. de 2020. Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/cnbb-envia-aos-bispos-do-brasil-orientacoes-liturgico-pastorais-para-retorno-as-atividades/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
    https://www.cnbb.org.br/cnbb-envia-aos-b...
    . Disponível em https://pascombrasil.org.br/comissao-episcopal/. Acesso em: 06 jun. 2020.
  • 2
    CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS Hospitalidade Eucarística. Disponível em: <https://www.conic.org.br/portal/files/ Hospitalidade.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2020.
  • 3
    O Pastor Pedro Correia, da comunidade batista do Rio de Janeiro, teve sérios conflitos em sua comunidade por ter realizado batizados online durante a pandemia; ver “Pastor faz batismos online durante pandemia”. CPAD NEWS, 02 jun. 2020. Disponível em: <http://www.cpadnews.com.br/universo-cristao/50017/pastor-faz-batismos-online-durante-pandemia.html>. Acesso em: 09 jul. 2020.
  • 4
    Embora a maioria dos ministros ordenados e das ministras ordenadas na IECLB sejam pastores(as), a IECLB conhece o ministério compartilhado, com suas variantes pastoral, diaconal, catequético e missionário, sendo que todos esses ministérios contam com formação teológica, prática e ordenação e estão autorizados para celebrar os sacramentos. Por isso, e neste sentido, preferimos aqui o termo “ministro(a)” ao de “pastor(a)”.
  • 5
    A IECLB costuma oferecer, além do vinho, suco de uva, também “fruto da videira” (Lc 21,18), neste caso não fermentado, “por amor e solidariedade com crianças e pessoas que se abstêm de bebida com teor alcoólico” (Nossa Fé, Nossa Vida, p. 26), e considerando que a comunhão na IECLB é sempre sub utraque specie, ou seja, oferecendo pão e vinho/suco a todas as pessoas comungantes.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2020
  • Aceito
    16 Nov 2020
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