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Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: Experiências Latino-Americanas

TORELLY, Marcelo. . Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: Experiências Latino-AmericanasRio de Janeiro: Lumen Juris, 2016328p.

A resenha ora apresentada trata de um livro imprescindível ao campo dos debates teóricos sobre a questão dos direitos humanos e fundamentais no contexto dos desafios postos por um modelo emergente de governança transversal e também a todos aqueles, leigos ou juristas, que militam na seara dos direitos humanos, sobretudo, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

O livro do jovem autor é produto de seus estudos doutorais, realizados na Universidade de Brasília, cuja tese final foi defendida em março de 2016 e, agora, é publicada pela editora Lumen Juris. Muito bem escrito e estruturado, o livro revela sua capacidade de organização e sistematização das ideias de modo a tornar simples um tema extremamente complexo, facilitando não só a sua compreensão, mas, sobretudo, possibilitando a todos os leitores uma percepção clara sobre inquietações e desafios acerca do tema, assim como apontando os possíveis caminhos de superação ainda a serem trilhados.

Partindo das teorias que identificam formas de constitucionalização para além do Estado Nacional, especialmente o transconstitucionalismo, de seu orientador, prof. Dr. Marcelo Neves, o problema central do livro explora a potencialidade da interação entre as ordens constitucionais estatais ou domésticas e os chamados regimes autocontinentes, compreendidos pelo autor como regimes jurídicos independentes ou parcialmente independentes que resultam de um processo de fragmentação do direito internacional e que atuam a partir de dinâmicas próprias, de modo a “[...] valorizar o papel das cortes e tribunais na gestão de conflitos e divergências, produzindo uma judicialização internacional” (pág. 13)1 1 Na página 25, o autor define a ideia de regimes autocontinentes, com inspiração na obra de Stephen Krasne “Structural causes and regime consequences”, como “um conjunto de normas (regras e princípios), conhecimentos, práticas e processos de tomada de decisão que organizam um determinado campo de atuação, orientando as expectativas dos atores relevantes envolvidos em dado processo de governança”. . Essa interação fomentaria a emergência de novos espaços de governança transversal favoráveis às soluções de implementação da agenda de direitos humanos e fundamentais tanto no âmbito nacional como internacional. Em sua limitação espacial, a América Latina, o autor identifica que o principal óbice para a interação entre ordens constitucionais nacionais e o regime (autocontinente) regional de proteção aos direitos humanos, ou seja, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é a persistência de práticas hierarquizadas bloqueadoras de perspectivas transversais de diálogo e construção de soluções para problemas comuns de violações em toda a região. Para tanto, a pesquisa pautou-se pela análise de 54 casos: 05 relatórios da Comissão Interamericana, 21 sentenças da Corte Interamericana e 28 decisões domésticas.

O desafio enfrentado e superado pelo autor é a comprovação de sua hipótese sobre as potencialidades dessa interação em uma região cujo modus operandi das cortes nacionais em relação ao Sistema Interamericano é diversificado e com níveis muito distintos de incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Dos casos analisados, destacam-se quatro – Argentina, Chile, Brasil e Uruguai – que o permitiu explorar as potencialidades de combinações estratégicas no campo jurídico-político interno dos Estados na aplicação da norma global de responsabilidade individual, assim como indicando os limites atualmente existentes não só em termos de bloqueios institucionais nos âmbitos nacionais, mas também em relação à atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no que tange à execução do instrumento do controle de convencionalidade.

Antes, contudo, de chegar a esse ponto da análise casuística latino-americana, o autor constrói, na primeira parte do trabalho, um interessante e necessário panorama teórico sobre as transformações da governança global ao longo do século XX. No primeiro capítulo, “Da estatalidade à transversalidade: emergência e estruturação das normas globais”, o autor parte do esgotamento do modelo de assembleísmo com a Liga das Nações para percorrer as três fases de transição ao atual modelo de governança.

A primeira, em que o caráter deliberativo de produção legislativa da Liga das Nações começa a dar espaço a um perfil mais executivo das organizações de governo atuantes no âmbito internacional até que o modelo deliberativo seja completamente substituído pelos processos setorizados de deliberação por atores especializados e legitimados por sua expertise, alterando por completo a lógica de funcionamento das relações no âmbito internacional. São citados o Conselho de Segurança da ONU e o direito de veto das potências internacionais de forma a exemplificar que “o foco se desloca do direito para a solução de problemas” (p. 23). O direcionamento do processo de tomada de decisão por atores especializados facilita a composição de uma nova ordem global em que a constante expansão do número de Estados com o fim dos sistemas coloniais não significa uma distribuição equitativa de poder entre eles. Ao contrário, a atuação especializada dos órgãos disfarçará, sob o argumento tecnocrático, a manutenção do poder nas mãos de alguns poucos Estados.

A segunda fase é a da emergência dos regimes autocontinentes, consolidando um estado de fragmentação do direito internacional que “implica em novas preocupações para o direito, doméstico e internacional, como a estruturação de mecanismos de interação” (p. 23), que serão dissecados na segunda parte do livro. A terceira e última fase é aquela em que se consolidam “múltiplos atores, públicos e privados, em distintos regimes [que] interagem por meio de processos jurídicos transnacionais” (p. 24)2 2 Essas três fases estão sistematizadas no quadro 1: Características estruturais do direito internacional no século XX, na página 64. .

O que chama a atenção nesse capítulo é a convergência que ocorre tanto no plano interno como no internacional entre a ascensão das cortes como loci de resolução dos conflitos sociais e a decadência dos espaços políticos tanto no plano institucional como no plano das lutas sociais. Esses dois processos são impulsionados e determinados pelo contexto explanado pelo autor e retroalimentam novas formas de conceber os processos de interação social, representadas muito bem pela constatação da tecnocratização do espaço da política. Ao passo em que a política é associada cada vez mais a fatores negativos e de menosprezo, a técnica é elevada à consideração de ultima ratio como possibilidade de superação dos problemas sociais e mundiais exatamente porque representa um conhecimento supostamente distante de influências ideológicas. No campo do direito, a consequência desse processo é a sobreposição do direito à política como se aquele não fosse produto desse, ou ainda, “a ideia de que a política já aconteceu em outro lugar e que o direito é uma tecnologia capaz de oferecer soluções neutras para conflitos sociais [...]” (p. 24).

Essa convergência importa na medida em que é o pano de fundo das três fases pelas quais o atual modelo de governança global se forma e sua compreensão é essencial para a percepção de que os novos regimes autocontinentes são forjados a partir de uma lógica distante das características clássicas de formação dos Estados nacionais, não respondendo, portanto, ao código anterior da hierarquia e centralização como modelo de tomada de decisão. A transversalidade heterárquica, portanto, emerge como uma realidade impositiva de novos modos de interação entre as ordens constitucionais e os novos regimes legais.

Por isso, o segundo capítulo, “Direitos Fundamentais: do Direito Estatal às Normas Globais Transversais”, é dedicado ao estudo mais sistemático da teoria do transconstitucionalismo que propõe uma metodologia de interação entre ordens e regimes de modo a “oferecer uma alternativa aos antigos modelos hierárquicos de solução de conflitos, reposicionando o problema dos direitos fundamentais sem recorrer a precedência exclusiva do direito constitucional estatal, mas também afastando o argumento da precedência absoluta do direito internacional dos direitos humanos” (p. 15).

Com originalidade, o autor diferencia dois tipos de transconstitucionalismo: o normativo e o reflexivo. O primeiro vinculado a uma internalização formal do Direito Internacional dos Direitos Humanos no plano nacional e, o segundo, ao processo interpretativo, indicando a abertura dos agentes envolvidos na tomada de decisão no direito interno em relação ao contexto externo.

Desenvolvendo, a partir da obra de Vicki Jackson, as três formas de interação entre plano interno e externo – resistência, convergência e articulação – o autor encaminha sua análise ao contexto latino-americano, delimitando sua reflexão temporalmente entre as décadas de 1940 e 1990 quando a emergência e cascata da norma global de responsabilidade individual por graves violações contra os direitos humanos o faz identificar de que modo a “[...] combinação entre mobilização local e transnacional permitiu que a interpretação de variadas e abstratas disposições legais preexistentes persuadisse um conjunto de órgãos julgadores da existência de novas e específicas obrigações legais substantivas (a enumeração de novos direito e deveres)” (p. 71).

Essa análise prepara o leitor para a segunda parte do trabalho em que o autor adentra na concretude dos casos escolhidos no capítulo 3, intitulado: “Transconstitucionalização Doméstica dos Direitos Fundamentais no Sistema Interamericano de Direitos Humanos”. Primeiro, aborda duas situações envolvendo a atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: o caso argentino sobre a análise compulsória de DNA em processos criminais e o caso brasileiro sobre violência doméstica contra a mulher. Depois, a análise foca-se em quatro casos específicos da América do Sul: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. O que esses Estados têm em comum é o fato de terem vivido ditaduras militarizadas e, em seus processos de transição política, terem enfrentado de algum modo a questão da norma global de responsabilidade individual. Naturalmente, a escolha de cada Estado sobre as possibilidades de internalização do Direito Internacional dos Direitos Humanos importa na análise da questão.

A partir dos casos abordados, é possível perceber que quanto maior a gama de instrumentos formais de adoção das normativas internacionais, maior a interação desde uma perspectiva do transconstitucionalismo normativo. Contudo, outras estratégias que envolvem atores internos também se mostram decisivas para uma interação transconstitucional reflexiva.

De todos os países estudados, a Argentina é o caso em que mais houve avanços contra a impunidade em relação aos crimes contra a humanidade ocorridos durante o regime ditatorial e o seu processo demonstra que os atores responsáveis pela mobilização interna conseguiram um tensionamento que gerou, primeiro, uma interação constitucional reflexiva que se encaminhou para a adoção formal de mecanismos de recepção do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O que chama a atenção nesse caso especificamente é que, em tempos de uma governança global mais pautada pela tecnocracia, o espaço da política funcionou como uma estratégia de avanço no processo de interação entre ordem nacional e internacional de modo a abrir caminho e legitimar os avanços formais desse processo.

Por fim, no último capítulo, “Controle de Convencionalidade: perspectivas para além da solução hierárquica”, o autor estabelece uma apurada crítica em relação à atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no controle de convencionalidade. Depois de demonstrado ao longo de todo o trabalho os benefícios das interações transconstitucionais, esse último capítulo é dedicado à demonstração dos perigos decorrentes de uma expansão do papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos que vem acompanhada do anacronismo de práticas hierarquizantes e, por isso, o alerta do autor de que a Corte “[...] corre o risco de reforçar as bases para uma das mais recorrentes críticas a seu funcionamento, qual seja, a de que se arvora como instância revisora internacional dos tribunais locais. Mais ainda, a postura acaba replicando aquilo que a própria Corte critica na atuação dos tribunais domésticos: ignorar a existência de uma outra ordem ou regime jurídico válido e legítimo” (p. 287).

Essa postura hierarquizante se reflete nas várias decisões da Corte trabalhadas por Torelly, em que a mais emblemática é, sem sombra de dúvidas, o caso Gelman, contra o Uruguai, quando a Corte não só decide pela necessidade de revisão de uma lei uruguaia, mas vai muito além determinando – a partir das normas e obrigações internacionais de proteção aos direitos humanos constantes na Convenção Americana – limites ao próprio exercício da democracia direta. Se, como visto no caso Argentino, a retomada de estratégias políticas como forma de interação trasnconstitucional entre diversas ordens pode ampliar os modos de proteção dos direitos humanos, retomando processos de legitimação via exercício da cidadania esquecidos no auge da onda tecnocrática, no caso Gelman, a Corte vai exatamente à contramão desse viés, tentando impôr-se sobre uma decisão decorrente de uma consulta popular, ensejando uma postura de resistência por parte da Corte uruguaia. Um dos apontamentos finais do autor passa pela percepção de que as situações de resistência ao processo de interação são justamente aquelas em que algum dos níveis mantém uma postura hierarquizante.

As conclusões a que chega contribuem enormemente para uma reflexão inovadora sobre como podemos e devemos renovar nossas abordagens teórica e, praticamente, no avanço dos métodos e estratégias de proteção dos direitos humanos. Mas não é só isso, abre uma gama enorme de possibilidades e reflexões que, em tempos de crise, tornam indispensável a leitura da obra!

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    Na página 25, o autor define a ideia de regimes autocontinentes, com inspiração na obra de Stephen Krasne “Structural causes and regime consequences”, como “um conjunto de normas (regras e princípios), conhecimentos, práticas e processos de tomada de decisão que organizam um determinado campo de atuação, orientando as expectativas dos atores relevantes envolvidos em dado processo de governança”.
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    Essas três fases estão sistematizadas no quadro 1: Características estruturais do direito internacional no século XX, na página 64.
  • TORELLY, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: Experiências Latino-Americanas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. (p. 328)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017
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