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Cartas do Cárcere: horizontes de resistência política

Prison Letters: horizons of political resistance

Resumo

O presente artigo apresenta os achados do projeto “Cartas do Cárcere”, fruto do acordo firmado entre o PNUD e a PUC-Rio, que analisou 8.818 cartas endereçadas às instituições públicas no ano de 2016, considerando as narrativas das pessoas privadas de liberdade como a principal chave de análise do sistema de justiça criminal brasileiro e da crítica às matrizes violentas do Estado.

Palavras-chave:
Performances de Liberdade; Sistema Prisional; cartas

Abstract

This article presents the findings of the “Prison Letters” project, as a result of the agreement signed between UNDP and PUC-Rio, which analyzed 8,818 letters addressed to public institutions in 2016, considering the narratives of persons deprived of their liberty as the main key of analysis of the Brazilian criminal justice system and of the criticism of the violent state foundations.

Keywords:
Performances of freedom; prison system; Letters

O cárcere é um repositório de dores sufocadas, de gritos abafados, de lágrimas perdidas. Além do sequestro dos corpos, há ainda o emudecimento das denúncias e das perspectivas confiscadas no mesmo pacote da liberdade. Mas essa violência brutal, que quer se fazer absoluta, tem a marca da humanidade como contraponto de sua intervenção. Historicamente, as mordaças das algemas geraram testemunhos poderosos, reflexões profundas, rebeldias poéticas numa linhagem de palavras que consubstanciam o que se chama “escritos do cárcere”. De Miguel de Cervantes a Antônio Gramsci, passando por Angela Davis, Graciliano Ramos e Mumia Abu- Jamal, a reclusão resultou em afirmação de ideias e horizontes revolucionários (CERVANTES, 2002CERVANTES Saavedra, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2002.; GRAMISCI, 2004GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Brasileira, edição e tradução Carlos Nelson Coutinho; Henriques e Marco Aurélio Nogueira, VOL.I, 2004.; DAVIS, 1989DAVIS, Angela. An Autobiography. New York City: International Publishers, 1989.; RAMOS, 1969RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo, Martins, 1969.; ABU-JAMAL,1996ABU-JAMAL, Mumia. Live from Death Row. New York: Harper Perennial, 1996). A resistência através do verbo é, portanto, uma marca fundamental da experiência do encarceramento.

No oceano de palavras que cruzam as grades vigiadas dos estabelecimentos prisionais, estão as cartas analisadas no âmbito do projeto “Cartas do Cárcere”, fruto do acordo firmado entre o Programa das Nações Unidas (PNUD) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em atendimento ao edital da Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais (ONSP) do Departamento Penitenciário Nacional (Projeto BRA/14/001).

Diante da provocação do dossiê “Repensar a legislação e as políticas públicas desde o antirracismo em contextos europeus e latino-americanos” temos agora a oportunidade de apresentar alguns dados levantados no curso do projeto, ecoando vozes historicamente silenciadas na experiência do encarceramento. O corpus da pesquisa foi composto por correspondências endereçadas às instituições públicas no ano de 2016. Foram analisadas 8.818 cartas, que, em última instância, podem ser retratadas como sobreviventes de um longo itinerário institucional que quer inviabilizá-las.

Enfrentando as várias dimensões de uma burocracia que extrapola os limites do cárcere, as cartas têm de passar por diversos obstáculos para que, saindo do pavilhão em que são escritas, possam chegar ao seu destino final. Barreiras que obstaculizam a mais republicana das garantias fundamentais – o direito de petição – e que impedem o exercício de um direito fundamental à consolidação da democracia – o direito à comunicação.

Além dos entraves procedimentais do sistema, é importante sinalizar que as correspondências das(os) encarceradas(os) têm de confrontar os ditames da censura. Nesse tocante, de um modo instrutivo, as cartas nos revelam os limites impostos àquilo que pode ser dito, denunciado, cobrado. Apesar da tentativa de silenciamento, algumas conseguem atravessar os muros com relatos contundentes, no lastro de uma resistência feita de ousadias.

Para compor o trajeto guiado pelas referidas vozes, na primeira parte do artigo faremos uma descrição dos perfis das/os remetentes das cartas, os modos de comunicação mobilizados, bem como a indicação das/os principais destinatárias/os das correspondências. Em seguida, passamos a apresentar as demandas e denúncias que movem as narrativas, de forma a que possamos nos aproximar do universo de reivindicações apresentadas, em primeira pessoa, por aquelas/es que sofrem desproporcionalmente os efeitos do encarceramento em massa. Por fim, passamos a explorar as tênues linhas que separam a realidade dentro e fora das grades para os grupos racialmente hierarquizados na sociedade brasileira, apontando as cumplicidades dos poderes constituídos com a (re)produção do racismo, em suas mais variadas formas de expressão.

Esse trabalho repousa sobre o precioso substrato que sinaliza as brechas pelas quais palavras duras, denúncias e pedidos escapam da omissão, da debilidade e da vigilância institucionais, apontando para a realidade de um sistema que não cessa de atestar suas conexões estruturais com o racismo e com a reprodução da violência. É a partir desses relatos que se pretende pensar os mecanismos institucionais que mantém o cárcere como realidade possível, o que dizem sobre o Estado de Direito e sobre os limites dos pactos políticos que somos capazes de produzir. Com esse esforço, esperamos contribuir para uma melhor compreensão dos desafios aos atendimentos das necessidades das/os encarceradas/os, bem como situar esses sujeitos como portadores de perspectivas centrais para o desmantelamento das estruturas perversas que assolam o sistema de justiça criminal no país.

1. Quem escreve, como escreve e para quem escreve

A aproximação com o perfil das/os remetentes das cartas e das formas pelas quais optaram por apresentar suas demandas e denúncias a distintas instituições públicas foi a fase mais crucial da pesquisa1 1 Nessa fase da pesquisa, foram imprescindíveis a coordenação da equipe de pesquisa e sistematização do Projeto Cartas do Cárcere realizada por Felipe Freitas, bem como a dedicação da equipe de pesquisadoras e pesquisadores envolvidos: Aline Cristina Campos de Souza, Arthur Menezes de Almeida, Artur Prado do Egito, Doane da Fonseca Pinto, João Pedro Sales Fernandes, Julia Heliodoro Souza Gitirana, Lana Cristina Fernandes, Natalia Caruso Theodoro Ribeiro, Rafael Moreira da Silva de Oliveira e Tayanne Patrícia Alves Galeno. .

Em primeiro lugar, porque nosso compromisso era o de que as cartas definissem a agenda de pesquisa, bem como determinassem os contornos epistêmico-políticos de nossa abordagem. Em segundo lugar, porque ao tomá-las como documentos políticos de nosso tempo histórico e repositório de sofisticada análise conjuntural sobre o que somos enquanto sociedade, não há lugar para mediação e preconcepções sobre o conteúdo refletido em cada linha. E, por fim, assumindo uma postura antirracista, as hierarquizações de humanidade que propiciam apropriações rápidas e simplificadoras da complexidade das experiências dos que habitam a zona do não ser2 2 Os conceitos de zona do ser e zona do não ser estão sendo desenvolvidos nesse trabalho a partir da influência do pensamento de Frantz Fanon (2008). Trata-se de uma categoria que pretende explicitar o modo através do qual o projeto moderno colonial europeu, de base escravista, organizou as relações intersubjetivas e institucionais que marcam a colonialidade do poder vigente. Nesse contexto, a categoria raça instituiu uma linha que divide e separa de forma incomensurável duas zonas: a do humano (zona do ser) e a do não humano (zona do não ser). O padrão de humanidade que compõe as dinâmicas de poder na zona do ser gera processos de violência e percepção da violência que não só são incapazes de explicar outras formas de violência (as que se manifestam na zona do não ser, principalmente), como fazem da afirmação do não-ser a condição de possibilidade de afirmação de suas humanidades. Tomando como padrão de humanidade o sujeito soberano (homem, branco, cis/hetero, cristão, proprietário, sem deficiência) como o representativo do pleno, autônomo e centrado. Na base da colonialidade do poder a divisão binária e hierárquica entre natureza e cultura informa a linha de humanidade desenhada em termos racializados. Na zona do ser se encontra o padrão do ser Homem/Mulher, enquanto na zona do não ser os padrões animalizados de macho/fêmea caracterizam sujeitos historicamente colonizados, escravizados e até hoje marcados pela servidão e não reconhecidos como seres humanos plenos (LUGONES, 2014). Na zona do não ser, opressões de gênero, sexualidade, classe, deficiência, entre tantas categorias imbricadas de poder, operam de maneira distinta sobre sujeitos que vivem em contextos nos quais a violência é a norma e não se têm acesso a mitigação de conflitos e disputas pautadas na legalidade (GROSFOGUEL, 2016). Estar situado na zona do não ser é ter a humanidade negada e, consequentemente, as condições necessárias para disputar os termos em que as proteções e liberdades públicas são enunciadas. precisam ser confrontadas com narrativas encarnadas, escrevivências3 3 O conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo, articula a experiência de vida de autoras negras como forma de desmobilizar as fronteiras entre o real e a ficção e, principalmente, apontar para a coletividade como marco da produção literária. Trata-se de uma perspectiva teórico-metodológica ancorada nas bases da pesquisa ativista, que serve como forma de resistência às opressões do racismo e suas correlatas dimensões de gênero e sexualidade. Como sinaliza a autora: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2007, p. 21). Nesse horizonte, aparece como uma ferramenta poderosa para iluminar a forma como os escritos do cárcere analisados no projeto falam de depoimentos que, ao tempo em que dizem das opressões sofridas de forma individual, são um testemunho das violências sistemáticas impostas às pessoas privadas de liberdade no Brasil. (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Alexandre, Marcos A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teori- as, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21, 2007.), de sujeitos políticos reconhecidos em sua plena humanidade. E tudo isso só era possível a partir da aproximação do perfil de quem escreve, das formas que elegem para escrever e do conteúdo ali refletido.

Conforme assinalado anteriormente, trabalhamos com o universo de 8.818 cartas recebidas pela ONSP no ano de 2016. Nesse contexto, 94% das cartas foram escritas pela própria pessoa e encaminhadas aos respectivos destinatários pela unidade prisional, por familiares ou por organizações de direitos humanos; 3% das cartas são escritas por outras pessoas presas, 2% são escritas por familiares ou amigos e 1% são cartas escritas coletivamente. Do total de cartas, 204 foram escritas por pessoas que não estavam privadas de liberdade em nome de pessoas que estavam presas e, destas, 72% escritas por mulheres (35% por mães e 37% por esposas).

A definição do perfil das cartas analisadas por gênero levou em conta o nome apresentado e a maneira pela qual a pessoa se referia a si mesma no processo de escrita. Nesse sentido, mais de 80% das correspondências foram identificadas como do sexo masculino. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), publicado em 2017, a população prisional masculina corresponde a aproximadamente 90% das pessoas privadas de liberdade no Brasil, sendo necessário levar em conta o impacto das subnotificações quando se toma os dados apresentados no referido documento.

Orientação sexual ou identidade de gênero foram explicitadas em 132 cartas, menos de 1% do universo analisado, e contou com as seguintes identificações: travestis; homossexuais, lésbicas e heterossexuais. Não há dados nos Levantamentos Nacionais de Informação Penitenciária sobre o total de pessoas privadas de liberdade por orientação sexual ou identidade de gênero.

A pertença racial, por sua vez, marca o sistema prisional no Brasil. Segundo o INFOPEN 2017, 64% da população prisional brasileira é negra, percentual que desagregado por Estados pode chegar a 95% no Acre, 72% no Rio de Janeiro, 89% na Bahia, 79% em Goiás e 91% no Amapá. O perfil racial foi muito pouco enunciado nas cartas lidas no âmbito do projeto Cartas do Cárcere e, quando presente utilizava-se do repertório de identificação fomentado pelos mitos da mestiçagem e da democracia racial brasileira, mobilizando expressões como: “de cor”, “mais claro”, “moreno”, “moreno claro”, “escuro”.

Nesse aspecto, é preciso rememorar que tais correspondências foram encaminhadas com demandas e denúncias sobre o descumprimento de regras destinadas ao funcionamento das unidades prisionais no Brasil. Nesse contexto, e diante do racismo institucional que marca o funcionamento dos órgãos do sistema de justiça, o silenciamento da identificação racial por parte dos/as remetentes denota não apenas os efeitos do racismo sobre o processo de enunciação de pertencimento racial como também a consciência do significado que pode ter essa afirmação no momento da análise, por instituições públicas, das demandas e denúncias apresentadas.

No que se refere ao perfil etário dos/as remetentes, das 4.117 cartas que contém a data de nascimento expressa, tem-se que a maioria foi escrita por pessoas entre 30 e 59 anos, idade média superior à da massa carcerária que é composta por 30% de pessoas entre 18 e 24 anos; 25% com idade entre 25 e 29 anos; 19% de pessoas com idade entre 30 a 34 anos e 19% entre 35 e 45 anos (INFOPEN, 2017INFOPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Atualização – junho de 2016./Organização Thandara Santos; Colaboração Marlene Inês da Rosa [et al.]. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017.).

Quanto à nacionalidade, é pequeno o número de estrangeiros/as que recorreram às cartas como forma de comunicação com instituições públicas brasileiras. Das 8.777 que possuíam declaração de nacionalidade, 8.720, ou seja, 99% foram escritas por brasileiras e brasileiros. Das 57 cartas escritas por estrangeiros, nem todas explicitam as respectivas nacionalidades, 32 delas possuem apenas a designação genérica “sou estrangeiro/a”. Entre as nacionalidades indicadas expressamente estão: colombiana, boliviana, angolana, congolesa, egípcia, espanhola, libanesa, nigeriana, paraguaia, peruana, portuguesa, sul-africana e uruguaia.

Quanto à escolaridade dos/as remetentes, apenas 581 cartas trazem informações a esse respeito. Nelas, 4% declaram-se analfabetos, 36% afirmam ter ensino fundamental (completo ou incompleto), 47% ensino médio (completo ou incompleto), 12% ensino superior (completo ou incompleto) e 1% pós-graduação. Nas cartas analisadas no âmbito do projeto, percebe-se a diferença na associação entre raça e escolaridade4 4 Lembrando que para esse filtro foram utilizadas apenas as cartas em que havia a declaração racial feita expressamente pelo/a próprio/a remetente. : 60% das pessoas privadas de liberdade que se autodeclararam negras possuíam até o ensino fundamental, enquanto que o percentual entre as autodeclaradas brancas foi de 43%. Distância maior existe quando atentamos especificamente para as cartas de mulheres sobre o mesmo aspecto: 60% das mulheres negras possuem até o ensino fundamental e no grupo de mulheres brancas apenas 33%. No perfil geral do sistema prisional, o INFOPEN (2017)INFOPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Atualização – junho de 2016./Organização Thandara Santos; Colaboração Marlene Inês da Rosa [et al.]. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. descreve a população prisional como sendo composta em 4% por pessoas analfabetas, 65% com ensino fundamental (completo ou incompleto) e 24% com ensino médio (completo ou incompleto).

Em 8% das cartas há referência à ocorrência de enfermidades, algumas das quais desenvolvidas no período de privação de liberdade. É nesse contexto que tivemos acesso a uma das poucas cartas em que o/a remetente afirma ter deficiência física, causada por tortura dentro do sistema prisional (carta oriunda do Estado de Minas Gerais). Das 681 citações de doenças destacam-se HIV, depressão, problemas odontológicos, hepatite C, diabetes, câncer, hipertensão e tuberculose.

Das 1.460 unidades prisionais existentes no Brasil (INFOPEN 2017INFOPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Atualização – junho de 2016./Organização Thandara Santos; Colaboração Marlene Inês da Rosa [et al.]. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017.), apenas 610 tiveram cartas arquivadas pela ONSP em 2016. Além disso, muitas apresentavam carimbos de inspeção da administração penitenciária local no corpo do texto, para além do envelope, bem como trechos que indicam violação expressa ao direito de petição e comunicação das pessoas privadas de liberdade. Trecho de uma carta oriunda do Estado de Minas Gerais diz: “a petição foi escrita em papel higiênico, pois houve a proibição da entrada de canetas e cadernos no intuito de dificultar socorro”. Outra correspondência, remetida do Estado do Paraná, grita: “perdão por escrever aos doutores com caneta vermelha (falta de educação) porém estou no castigo e foi o material que consegui arrumar desfazendo-me de uma semana de café da manhã”.

Tais indicativos demonstram que as narrativas passam por avaliação antes de saírem do sistema prisional, de serem postadas nos correios e posteriormente entregues a instituições públicas brasileiras. A própria ONSP é a principal destinatária das cartas analisadas. Das mais de 8 mil correspondências investigadas, 48% foram destinadas à própria ONSP, seguida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com 28%, e pela Presidência da República em 11% dos casos.

Mais do que interceptadas sem autorização constitucional, há cartas que sugerem que outras tantas correspondências foram impedidas de sair da unidade. Destacaram-se neste sentido cartas oriundas de unidades prisionais das regiões Sul e Sudeste, que traziam no corpo do texto carimbos de “CENSURADO”, “INSPECIONADO”, “LIBERADO PELA CENSURA”.

2. Demandas e denúncias permanentes por respeito

As narrativas sobreviventes aos processos internos de interdição e silenciamento, à limitação de papel e caneta, bem como à censura explícita por parte de agentes do Estado, enunciam as condições de possibilidade, tanto materiais quanto simbólicas, que sustentam uma sociedade hierarquizada e brutalmente desigual. Se o sistema de justiça criminal e a mídia punitivista tentam forjar uma imagem do criminoso como não humano, as cartas respondem com um rol gigantesco de violações de direitos, agressões, censuras e torturas por parte daqueles e daquelas que, em nome do Estado agem contrariamente a tudo o ele deveria representar.

São demandas e denúncias que mobilizam a gramática do Estado Democrático de Direito para expor suas limitações, vícios e cumplicidades com os mais perversos processos de morte em vida, para além de toda sorte de injustiças produzidas. Tratam dos mais elementares bens jurídicos tutelados pelo Estado, e em linguagem respeitosa, não pedem mais do que o cumprimento das normas jurídicas vigentes.

Para os efeitos da pesquisa, consideramos denúncia as correspondências que relatam violação de direitos e requerem uma responsabilização para os agentes que perpetraram a violação. Como demanda ou solicitação consideramos as cartas que apresentavam um pleito com base em critérios legais (ex: indulto, comutação, progressão de regime) ou de caráter circunstancial (ex: pedido de transferência, audiência com direção da unidade). Diante dessa classificação, tem-se 5.646 cartas representando solicitações, 295 apresentando denúncias e 2.742 apresentando simultaneamente denúncias e solicitações.

Cabe chamar especial atenção ao fato de que, não raro, as violações de direitos são apresentadas ao longo das narrativas como um pano de fundo para “legitimar” o pleito. Por exemplo, há relatos de superlotação, condições insalubres, falta de atendimento médico e outras correlatas que se apresentam como “justificativa” para um pedido de indulto, de transferência e não como uma demanda ou denúncia em si.

Mais do que uma suposta naturalização por parte das pessoas privadas de liberdade em relação a celas superlotadas, abusos de policiais e de agentes penitenciários, violências sexuais, falta de comida e de medicamentos básicos, as cartas reverberam estratégias distintas e complexas de exposição do extermínio promovido pelo Estado, bem como de luta por condições de cumprimento de pena em conformidade com a legislação penal, processual e constitucional vigente.

As múltiplas violências descritas e nos termos em que são relatadas desafiam os consensos existentes sobre a realidade prisional tanto no âmbito acadêmico como no âmbito dos órgãos institucionais diretamente responsáveis com sua gestão, monitoramento e fiscalização. Trata-se de um convite para que sejam percebidas, escutadas e tratadas a partir da perspectiva das pessoas que são mais direta e desproporcionalmente afetadas por tais violências.

As denúncias mais recorrentes referem-se a questões relacionadas ao não cumprimento da Lei de Execuções Penais, o que compreende um campo bastante vasto de violações tanto de natureza processual quanto relativas a atentados à dignidade da pessoa humana, condições degradantes no cárcere e ao descumprimento de garantias fundamentais. Para além das 921 denúncias de descumprimento à Lei de Execuções Penais (LEP) encontradas, tem-se ainda 875 denúncias relacionadas à falta de assistência jurídica; 631 envolvendo falta de acesso à saúde, educação e assistência social; 548 sobre descumprimento do Código de Processo Penal e 330 relativas às inadequadas condições do cárcere, com destaque para a questão da superlotação.

Denúncias de abuso de autoridade e violência policial estão listadas em 369 cartas, 191 outras cartas relatam violência física e 164 violência psicológica. Em outras 140 cartas há referência expressa a risco de vida, tortura, flagrante forjado, racismo e risco de rebelião. Conforme destacado anteriormente, ainda que esses números apareçam em menor quantidade, ao mesmo tempo em que retratam um quadro de extrema gravidade, tais circunstâncias aparecem em muitas outras cartas, relatadas como “pano de fundo” para contextualizar demandas/denúncias.

Quando se faz a leitura das denúncias a partir do gênero, percebe-se que o aspecto que mais destoa ocorre em relação ao expressivo número de demandas relacionadas ao não cumprimento da LEP por parte das mulheres (26,9%), em relação ao número apresentado nos relatos masculinos (18,5%).

Anteriormente, destacamos que a identificação racial é pouco mobilizada nas cartas. Para mapear como essa realidade atravessa as denúncias, buscamos entre as cartas que enunciaram expressamente a pertença racial branca ou negra. Nesse aspecto, salta aos olhos o fato de negros denunciarem mais do que os brancos a falta de acesso à assistência jurídica, trabalho, educação, saúde, etc., sendo a violação desses direitos fundamentais denunciada em 27,3% das cartas racialmente referidas como negras.

Neste sentido, é importante pensar que qualquer política pública que tenha em conta as afirmações contidas nas cartas deverá interpretá-las não só pelo que é dito, mas também pelos silenciamentos produzidos pelo cárcere. A não explicitação de uma denúncia de tortura pode não significar a ausência desta prática, mas, ao contrário, pode representar que a violência é tão profunda que sequer seja possível formular a denúncia. No horizonte de censuras impostas, o fato de se ter cartas que conseguem atravessar os muros das prisões apontando para esse tipo de violência chama atenção para a magnitude do padrão de violações impostas às pessoas encarceradas.

Assim como as denúncias, as solicitações apresentadas nas cartas também estão relacionadas à concessão da liberdade. Pedidos de indulto, graça, perdão, comutação de pena, livramento condicional e progressão de regime são os direitos mais requeridos. Em volume, seguem os pedidos relativos a transferência, acesso à saúde, alimentação, condições de higiene, e, por fim, pedidos de apoio para cuidado com as famílias.

As cartas não são usadas para temas que possam ser socialmente entendidos como “regalias, benefícios ou confortos” dentro da privação de liberdade. Requerem o atendimento a questões elementares da legislação penal por meio das suas petições à ONSP e aos demais órgãos públicos. Pedidos como de auxílio reclusão ou absolvição são tão minoritários no universo da pesquisa que não alcançaram sequer relevância estatística.

Em 8.7015 5 O número de referência a determinado pedido pode ultrapassar o total de cartas analisadas, pois, muitas vezes a mesma carta possui diferentes solicitações. cartas encontramos referências a questões jurídicas relativas à execução penal – indulto, graça, comutação de penas, progressão de regime, unificação de penas, livramento condicional e saída temporária. Dentro deste universo, indulto e graça são as questões mais recorrentes, tendo sido citadas em 45% das cartas do ano de 2016, seguida de pedido de comutação (requerido em 17% das cartas), assistência jurídica (15%), transferência para outra unidade (14%) e progressão de regime (13%)6 6 Pelo mesmo motivo da nota anterior a soma dos percentuais ultrapassa 100%. .

Pedidos de informações sobre processo ou requerimentos atinentes a cartas anteriores enviadas aos órgãos públicos representam 12% das solicitações apuradas na pesquisa, evidenciando a complexidade do problema do acesso à informação no âmbito do sistema prisional.

Mais diretamente relacionado às condições de cumprimento da pena, há um número significativo de pedidos de transferência de unidade. Das 1.195 demandas nesse sentido, algumas justificavam o pedido para garantir o cumprimento da medida em estabelecimento mais próximo à família, outras baseavam a alegação no fato de estarem sendo vítima de ameaça, na busca por melhores condições de atendimento médico, na tentativa de obter melhor alimentação, melhores condições físicas de água, esgoto e saneamento. Em 729 cartas há pedido de assistência médica e acesso a medicamentos, acesso ao trabalho, pedido de visita, de produtos de higiene pessoal e assistência religiosa.

Se olharmos para as solicitações pelo viés de cor/raça, pelo mesmo exercício que fizemos com as denúncias, percebemos nesse aspecto uma diferença gritante entre a distribuição das solicitações. Os pleitos relacionados às condições de cumprimento da pena que estão presentes em 20% das cartas enviadas por pessoas autodeclaradas negras, fica em 4% nas cartas de pessoas que se enunciaram brancas.

Quando distribuímos as solicitações entre homens e mulheres, os percentuais são muito parecidos, destoando um pouco o aspecto referente à busca por acesso ao sistema judiciário, que é referida em 27,6% das cartas por homens e em 29% das cartas de mulheres. Um traço relevante nas cartas escritas por mulheres relaciona-se à forte preocupação com outros membros do grupo familiar. Enquanto nas cartas escritas por homens apenas 5% refere-se a demandas relacionadas ao cuidado de terceiros (enfermos, filhos e idosos), entre as cartas escritas por mulheres 24% apresentam solicitações relativas a filhos, enfermos, idosos em relação aos quais elas declaram ter algum tipo de vínculo ou responsabilidade.

3. Recalcando a gente não resolve o problema

Lélia Gonzalez (1988)GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun., p. 69-82, 1988. descreve as dinâmicas do racismo no Brasil como racismo por denegação. Para explicá-lo, resgata a categoria freudiana de denegação para configurar o processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um de seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele, negando que lhe pertença. Nesse sentido, o racismo “à brasileira” se volta justamente contra aqueles e aquelas que são o testemunho vivo de nossa ladinoamefricanidade7 7 No texto A categoria político-cultural de amefricanidade, Lélia Gonzalez (1988) propõe uma maneira alternativa de compreender o processo histórico de formação do Brasil e da América. Ao eleger a noção de Améfrica Ladina como representativa das experiências que aqui se conformaram, Gonzalez redimensiona a importância da influência da cultura ameríndia e africana para produção e compreensão da realidade. Além da afirmação dessas pertenças, o termo ladino desessencializa essas matrizes culturais, ao pressupor um processo de aculturação e os desafios do “não lugar” que se apresentam na dificuldade de integração dessas heranças e sujeitos à sociedade colonial. (os negros), ao mesmo tempo em que diz não o fazer (mito da democracia racial).

A correspondência indissociável entre racismo e encarceramento no Brasil faz com que a sociedade brasileira fomente o mesmo tipo de relação com sujeitos aprisionados – uma relação de distanciamento, de deslocamento em relação à realidade carcerária. Lélia Gonzalez classifica o racismo como a “neurose cultural da sociedade brasileira” (GONZALEZ, 1984________. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, v. 2, n. 1, p. 223-244, 1984.), que enquanto dinâmica de denegação explicita processos de desumanização que convivem com institutos de igualdade jurídico-formal positivada e práticas institucionais e intersubjetivas de violência como norma para corpos não brancos.

As hierarquias de humanidade que endossam essa relação de distanciamento (entre brancos e não brancos; privados de liberdade e “livres”) não eximem a zona do não ser de sofrer a violência de Estado, estando dentro ou fora das grades. A violência sobre a zona do não ser como norma se produz em relação ao exercício da liberdade e da legalidade pela zona do ser, como atributo exclusivo. A ilusão da separação, o movimento de apartar sujeitos que estão posicionados de forma relacional (estando as possibilidades da zona do ser ancoradas nas impossibilidades da zona do não ser) não é capaz de se sustentar, ainda que com efeitos muito distintos sobre cada contexto. A capacidade de construir uma autoimagem que aparta pessoas para se proteger, ainda que ficcional, só pode fazer sentido para quem se beneficia e se privilegia com esse processo: a zona do ser.

As cartas nos permitem entender, em primeira pessoa, a realidade carcerária e igualmente as dinâmicas de poder que são mobilizadas para desumanizar os mesmos grupos fora das grades, ainda que a partir de outras tecnologias de poder. O fato da realidade prisional apresentar de forma extremada/concentrada as violências de Estado, e a partir de variáveis epistêmico-metodológicas controladas a atuação institucional sobre grupos subalternizados, nos oferece uma espécie de microscópio de toda sociedade brasileira.

Entre os relatos colhidos, uma carta de Minas Gerais denuncia:

A falta de respeito com a nossa família, á negrigencia medica, a omissão de socorro á onde vinhemos á ter 5 mortes na unidade, por omissão de socorro só no ano de 2015, não temos dentistas na unidade e nem medicamentos. [...] não temos psicologo nem psiquiatra a unidade, á onde quando um reeducando chega á demonstrar algum problema psicologico devido as opressões da unidade e por falta desses profissionais, acaba cometendo suicídio, fora as agressoes físicas e verbais, á alimentação é precária, á onde já veio e vem acontecendo de estarmos achando pedras e pedaços de ferro na comida, e quando vamos reclamar o que escutamos é o seguinte, si quiser é essa que tem, vivemos em celas inadequadas, pois não temos ventanas na cela. [...] o calor é sobre natural. Não temos agua potavel, pois á agua que é fornecida para nois é puro calcário, e isso vem calsando vários problemas renais e estomacais. [...] temos vários reeducandos no direito de seme aberto, mais continua no fechado. Outro problema é o RDD [Regime Disciplinar Diferenciado] que é para os reeducando que estan cumprindo medida de segurança, mais que tem vários que chega de transferencia, e em vez de ficar 15 dias de observação estan ficando 30-60-90 e até 120 dias, sem estar cumprindo medida de segurança. Outro problema, os abusos referente as faltas graves pois são aplicadas na gente, e não ficamos sabendo, pois aqui não deixa a gente participar do conselho disciplinar para a gente tentar se explicar, pois quando vamos saber só chega o castigo e á falta. Como pode semos condenados sem si quer participar do julgamento, Outro problema, temos um medico ná unidade que vem ná parte da manha e atende 5 presos e vai embora [...] mais o atendimento que ele nos oferece é da seguinte forma, se á gente chega lá com problema no coração, na cabeça, no peito, ou em qualquer parte do corpo, o único diagnostico que ele passa é problema de ansiedade e receita clonazepam, ou seja, remedio para dormi e vai embora. [...] para não nos deparar bebendo á própria urina e comendo as próprias fezes e vim a tirar á própria vida é que acontece varias rebeliões com resultados trágicos, mais isso não é porque samos monstros não, isso acontece por dezispero e descaso para com os reeducando. [...] Já comunicamos á Execução, Ministério Público, Corregedoria, Secretaria, Ouvidoria, mais não tivemos nenhuma atenção. Sem mais no momento, muito obrigado8 8 A íntegra dessa carta pode ser lida no livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política (2018), nas páginas 38 a 47. .

As violências acima listadas não ocorrem exclusivamente no ambiente carcerário. Os grupos sociais que compõem a massa carcerária (homens e mulheres não brancos, de baixa escolaridade, não proprietários, etc.) e que são o retrato mais explícito dos processos de desumanização que endossamos, são os mesmos que fora do cárcere estão submetidos desproporcionalmente aos efeitos das violências de Estado e das hierarquias desumanizantes que nos constituem enquanto sociedade.

Mais do que um universo de vozes que exotizam os pactos políticos, o que reverbera nas cartas são as normalizações que sustentam instituições e relações, dentro e fora do cárcere. O que mais salta aos olhos é o grau em que se naturaliza normalizações, a despeito do que a realidade oferece em contraste. São demandas e denúncias estruturadas na mais completa aplicação da gramática do Estado Democrático de Direito.

O reconhecimento do sistema carcerário brasileiro como hipótese do estado de coisas inconstitucional foi formalizado pelo Supremo Tribunal FederalSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347 MC-DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgada em 09/09/2015. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>, acesso em 15 de janeiro de 2019.
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pag...
em 2015. Nesses termos, estaria o STF autorizado a provocar a formulação de novas políticas públicas, aumentar a deliberação política e social sobre o sistema prisional e monitorar o sucesso da implementação das providências escolhidas (STF, ADPF 347 MC-DF, p.32).

Mais do que o retrato da inefetividade das normas protetivas em relação ao contexto prisional, estamos diante de uma realidade que institucionaliza o não acesso aos mecanismos formais de aplicação normativa para um contingente expressivo da população brasileira e que não se restringe ao ambiente prisional, mas que tem no cárcere a experiência exacerbada de seus efeitos. Esse não acesso e o não reconhecimento como sujeito político, plenamente humano, expressam um processo de subalternização que não começa nem termina dentro das grades. Nesse sentido, os limites internos aos modelos jurídico-normativos que as cartas expõem, de fato, dizem respeito às condições estruturais/estruturantes que sustentam o frágil pacto democrático que produzimos. Algo que não pode ser comparado ou reduzido a expressão de um regime de exceção e excepcionalidade, a uma questão de inefetividade, seletividade ou hipocrisia moral.

O que se vê é a demarcação das fronteiras entre a zona do ser e a zona do não ser que posicionam seus sujeitos em relações distintas às estruturas de poder/autoridade que operam tanto dentro quanto além das grades, com efeitos desproporcionais e extremos quando o Estado se coloca como único responsável pela reprodução das condições de vida. Ou seja, é a explicitação de como o racismo institucional, o sexismo, o classismo e a cis/heteronormatividade efetivamente impactam na determinação desse (não) acesso e (não) reconhecimento.

No seu voto, o Ministro relator do STF afirmou: “A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa falha estrutural a gerar tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e o agravamento da situação” (STF, ADPF 347 MC-DF, p. 22). Essa leitura simplificada coloca o foco da atuação dos poderes constituídos nas consequências representadas pelo estado de coisas inconstitucionais, sem que se dê a necessária atenção às causas que (re)produzem esse tipo de atuação.

A gramática do Estado Democrático de Direito que é mobilizada para, de um lado, justificar a privação de liberdade como expressão do uso legítimo da força, de outro, serve para negar a fruição dos demais direitos devidos àqueles e àquelas que, por decisão do Estado, ficam sob sua custódia. O que parece uma contradição em termos, ancora-se na visão estruturalmente hierarquizada do sujeito de direito (branco, masculino, cis/hetero, proprietário, cristão e sem deficiência), que não responde à realidade dos corpos e experiências consideradas descartáveis.

No trecho de carta enviada por uma mulher privada de liberdade à Ministra do STF Carmen Lúcia, ficam evidenciadas as imbricações que condicionam a experiência da violação de direitos dentro e fora do cárcere por mulheres atravessadas por categorias de opressão distintas. Para além dos reflexos que a classe projeta sobre as condições que determinam os efeitos e a gravidade atribuída ao lícito/ilícito, são explicitadas outras dimensões que irão impactar decisivamente na forma através da qual essa mulher vivencia as violências de Estado. A normalização não nomeada da masculinidade como padrão que informa o contexto prisional (dentro das unidades e no tratamento pelo sistema de justiça dos procedimentos de execução da pena) se destaca entre os aspectos revelados nessa carta do Estado de São Paulo:

Peço que intercedam por mim, pois me tornei deficiente física dentro do sistema carcerário, perdendo o movimento parcial da mão esquerda, trabalhando dentro do presídio para remir minha pena. Onde sofri este acidente em uma máquina masculina e de corte, que para manuziá-la seria necessário um curso técnico o qual eu não obtive. Estava grávida de 5 meses de gestação quando fiz uma micro-amputação e uma micro-restauração no dedo polegar e indicador da mão esquerda. Devido essa máquina da firma que trabalhava ter engolido minha mão. Não fui indenizada. E a firma ainda foi embora da unidade e a [XXXX] que é responsável pelo contrato com esta firma alega que a seguradora onde a firma pagava para se responsabilizar pelo seguro-acidente entrou em falência. O que também só prejudicou porque eu não recebi nada. Tive meu filho doa [XXXX] fiquei com ele em período de amamentação, durante 8 meses da vida dele, ele estava preso junto comigo entreguei ele no dia [XXXX] pois não tinha mais como segura-lo perto de mim. Tive muitas dificuldades para cuidar dele devido meu acidente e hoje tenho muita dificuldade para trabalhar, mas mesmo assim trabalho. Tenho 4 filhos todos menores de 10 anos e o mais novo que nasceu dentro do sistema carcerário fará 2 anos agora em [XXXX]. Já foi pedido prisão domiciliar para mim mas infelizmente foi indeferido (negado). [...] Desculpe os erros e a folha, não tinha outra.

O descarte das/os que não se integram no perfil de proteção pública do sujeito de direito se institucionaliza, sem que esse fato seja capaz de gerar uma reação socialmente proporcional ao que representa essa violência de Estado escancarada. Ao contrário, para garantia de seus privilégios ou como grito desesperado pela afirmação de uma humanidade negada, percebe-se a cumplicidade com as violências que, por ação ou omissão, o Estado desencadeia. É a expressão da “ilusória proteção” de que nos fala uma carta do Estado de São Paulo que diz: “A prisão constitui realidade violenta, expressão de um sistema de justiça desigual e opressivo, que funciona como retroalimentador; serve apenas para reforçar valores negativos, proporcionando proteção ilusória”.

A atuação institucionalmente organizada que conforma o estado de coisas inconstitucional só é possível porque compatível com outras dimensões que estruturam e são estruturadas pelas mesmas hierarquias acima destacadas. A configuração dos poderes constituídos entre nós, ainda nas experiências que se enunciam democráticas, revelam muito mais as permanências do projeto moderno/colonial-europeu (entendidos tanto nas tradições de governo quanto na organização econômica) do que a possibilidade de ruptura político-institucional concreta com o modelo de moer gente não branca que forjou o Estado brasileiro. Uma Democracia construída para organizar a relação entre humanos, mantendo na zona do não ser boa parte de sua população com a promessa ilusória de que integram o pacto político que não os reconhece nos seus próprios termos.

4. Considerações finais

Ter acesso às cartas encaminhadas pelas pessoas privadas de liberdade às instituições públicas no ano de 2016 foi, antes de tudo, uma experiência de revalidação de nossos compromissos éticos. Mais do que a apresentação de um diagnóstico do perfil dos/as encarcerados/as, das denúncias e demandas apresentadas e do grau de censura que circunda o direito à comunicação desse segmento, fomos apresentadas a uma perspectiva política registrada em cada linha mal-acabada das correspondências que manuseamos.

É sempre importante lembrar que, numa pesquisa desse porte, o convite à desumanização dos sujeitos está sempre servido à mesa com as práticas de um academicismo hermético, comprometido com a confirmação de hipóteses pomposas. Nesse tipo de fazer intelectual utilitarista, as vozes das pessoas privadas de liberdade servem somente como ilustrações para a construção de narrativas gráficas da violência. Para nós, o farol de condução do projeto foi balizado pelo esforço de se vencer esse tipo de postura, cientes do fato de que as vozes das pessoas encarceradas devem ser, em si, o aporte de condução das análises. Com isso, afirmamos que os problemas do cárcere e do perverso pacto social brasileiro repousam, em grande medida, no silenciamento imposto a esses sujeitos. Diante desse horizonte, fica claro que os dilemas da segurança pública não têm qualquer possibilidade de serem vencidos sem que contemos com a perspectiva das pessoas privadas de liberdade atuando de forma protagonista nesse processo.

Essas pessoas, cabe sublinhar, são um testemunho não só das condições degradantes do encarceramento, da brutalização dos corpos e da estrutural omissão dos diversos atores institucionais envolvidos (Judiciário, Ministério Público, Defensoria, dentre outros). Elas são atores e atrizes sociais que têm uma contribuição crítica a dar ao que se entende por Estado Democrático de Direito num país que tem o racismo como um alicerce estrutural de seu funcionamento.

É a partir dessa perspectiva que apresentamos os dados das iniquidades coletadas, valendo-nos do rol analítico que nos compete. Nesse percurso, procuramos somar com posturas que envolvem as pessoas privadas de liberdade como sujeitos de suas próprias narrativas. Num país que chegou à terceira maior população prisional do mundo em 2017, acreditamos ser urgente enfrentar esse debate de peito aberto.

Esperamos, assim, que esse esforço de visibilização dos relatos inscritos nas “Cartas do Cárcere” sejam um apelo à dignidade; um chamado à suspensão das degradações impostas e, acima de tudo, um convite à escuta dos/as que ousam resistir às investidas do terror de Estado que têm redundado em calvário, em abandono, em luto, em dor.

  • 1
    Nessa fase da pesquisa, foram imprescindíveis a coordenação da equipe de pesquisa e sistematização do Projeto Cartas do Cárcere realizada por Felipe Freitas, bem como a dedicação da equipe de pesquisadoras e pesquisadores envolvidos: Aline Cristina Campos de Souza, Arthur Menezes de Almeida, Artur Prado do Egito, Doane da Fonseca Pinto, João Pedro Sales Fernandes, Julia Heliodoro Souza Gitirana, Lana Cristina Fernandes, Natalia Caruso Theodoro Ribeiro, Rafael Moreira da Silva de Oliveira e Tayanne Patrícia Alves Galeno.
  • 2
    Os conceitos de zona do ser e zona do não ser estão sendo desenvolvidos nesse trabalho a partir da influência do pensamento de Frantz Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele Negra, Máscara Branca. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.. Trata-se de uma categoria que pretende explicitar o modo através do qual o projeto moderno colonial europeu, de base escravista, organizou as relações intersubjetivas e institucionais que marcam a colonialidade do poder vigente. Nesse contexto, a categoria raça instituiu uma linha que divide e separa de forma incomensurável duas zonas: a do humano (zona do ser) e a do não humano (zona do não ser). O padrão de humanidade que compõe as dinâmicas de poder na zona do ser gera processos de violência e percepção da violência que não só são incapazes de explicar outras formas de violência (as que se manifestam na zona do não ser, principalmente), como fazem da afirmação do não-ser a condição de possibilidade de afirmação de suas humanidades. Tomando como padrão de humanidade o sujeito soberano (homem, branco, cis/hetero, cristão, proprietário, sem deficiência) como o representativo do pleno, autônomo e centrado. Na base da colonialidade do poder a divisão binária e hierárquica entre natureza e cultura informa a linha de humanidade desenhada em termos racializados. Na zona do ser se encontra o padrão do ser Homem/Mulher, enquanto na zona do não ser os padrões animalizados de macho/fêmea caracterizam sujeitos historicamente colonizados, escravizados e até hoje marcados pela servidão e não reconhecidos como seres humanos plenos (LUGONES, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.). Na zona do não ser, opressões de gênero, sexualidade, classe, deficiência, entre tantas categorias imbricadas de poder, operam de maneira distinta sobre sujeitos que vivem em contextos nos quais a violência é a norma e não se têm acesso a mitigação de conflitos e disputas pautadas na legalidade (GROSFOGUEL, 2016GROSFOGUEL, Ramón. What is racism? Journal of World-Systems Research, v. 22. n. 1, p. 9-15, 2016.). Estar situado na zona do não ser é ter a humanidade negada e, consequentemente, as condições necessárias para disputar os termos em que as proteções e liberdades públicas são enunciadas.
  • 3
    O conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo, articula a experiência de vida de autoras negras como forma de desmobilizar as fronteiras entre o real e a ficção e, principalmente, apontar para a coletividade como marco da produção literária. Trata-se de uma perspectiva teórico-metodológica ancorada nas bases da pesquisa ativista, que serve como forma de resistência às opressões do racismo e suas correlatas dimensões de gênero e sexualidade. Como sinaliza a autora: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Alexandre, Marcos A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teori- as, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21, 2007., p. 21). Nesse horizonte, aparece como uma ferramenta poderosa para iluminar a forma como os escritos do cárcere analisados no projeto falam de depoimentos que, ao tempo em que dizem das opressões sofridas de forma individual, são um testemunho das violências sistemáticas impostas às pessoas privadas de liberdade no Brasil.
  • 4
    Lembrando que para esse filtro foram utilizadas apenas as cartas em que havia a declaração racial feita expressamente pelo/a próprio/a remetente.
  • 5
    O número de referência a determinado pedido pode ultrapassar o total de cartas analisadas, pois, muitas vezes a mesma carta possui diferentes solicitações.
  • 6
    Pelo mesmo motivo da nota anterior a soma dos percentuais ultrapassa 100%.
  • 7
    No texto A categoria político-cultural de amefricanidade, Lélia Gonzalez (1988)GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun., p. 69-82, 1988. propõe uma maneira alternativa de compreender o processo histórico de formação do Brasil e da América. Ao eleger a noção de Améfrica Ladina como representativa das experiências que aqui se conformaram, Gonzalez redimensiona a importância da influência da cultura ameríndia e africana para produção e compreensão da realidade. Além da afirmação dessas pertenças, o termo ladino desessencializa essas matrizes culturais, ao pressupor um processo de aculturação e os desafios do “não lugar” que se apresentam na dificuldade de integração dessas heranças e sujeitos à sociedade colonial.
  • 8
    A íntegra dessa carta pode ser lida no livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política (2018PIRES, Thula et al. Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Thula Pires, Felipe Freitas (orgs.). Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.), nas páginas 38 a 47.

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  • SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347 MC-DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgada em 09/09/2015. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>, acesso em 15 de janeiro de 2019.
    » http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2019
  • Aceito
    10 Jul 2019
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