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Para que serve ser uma pessoa no Direito? Diálogos no campo crítico

For what does it serve to be a person on Law? Dialogues on the critical Field

Resumo

O artigo examina os efeitos da ideia de pessoa no direito a partir de um diálogo entre a visão crítica de Evguiéni Pachukanis, para quem o sujeito de direitos é tão somente uma forma de viabilizar a dominação do capital, e as contribuições críticas de Franz Neumann, Michel Foucault e Judith Butler. Neumann centraliza a pessoa como princípio fundamental do Estado de Direito, em razão da possibilidade de responsabilização sobre a dominação. O sujeito de direitos é compreendido então como centro de imputação de direitos e deveres e autor das normas que regulam sua vida. Foucault analisa o poder como forma dinâmica e circular nas relações sociais. Judith Butler contribui com seu conceito de resistência e analisa a prática da crítica como uma relação social do sujeito com as normas. No interior do direito, podemos compreende-la como uma reivindicação das normas com o objetivo de transforma-las, a fim de possibilitar a expressão de diferentes formas de vida. Sugerimos analisar, em suma, a possibilidade de uma gramática da regulação social e a ideia de pessoa no direito como propulsora de um processo de construção autônoma e constante de critérios normativos, com base na formulação de igualdade dos sujeitos perante o direito.

Palavras-chave:
Pessoa; Crítica do direito; Autonomia; Subjetivação

Abstract

This paper examines the effects of the idea of person on Law, based on a dialogue between the critical view of Evguiéni Pachukanis, for whom legal subject is merely a way of enabling capital domination, and the critical contributions of Franz Neumann, Michel Foucault and Judith Butler. Neumann centralizes the person as a fundamental principle of rule of law because the possibility of accountability over domination. Legal subject is then understood as the centre of imputation of rights and duties and author of norms that regulates his life. Foucault analyzes power as a dynamic and circular form in social relations. Judith Butler contributes with her concept of resistance and analyzes the practice of criticism as a social relation of the subject to the norms. Within Law, we can understand it as a claim to norms with the aim of transforming them, in order enable the expression of different life forms. We suggest to analyze, in short, the possibility of a social regulation grammar as well the idea of person as propellant of an autonomous and constant process of normative criteria construction, based on the formulation of equality of subjects before Law.

Keywords:
Person; Law critique; Autonomy; Subjectivation

Abertura

Se entendemos o sujeito de direitos como uma ficção construída pela gramática jurídica, precisamos considerar a possibilidade de sua destruição. E nesse caso é relevante questionar: para que serve ser uma pessoa no direito? A partir de um debate com a obra de Evguiéni Pachukanis, referência para os trabalhos de crítica do direito no Brasil, construiremos outra visão da ideia de pessoa no direito para demonstrar seu potencial crítico. Para realizar esta tarefa, o trabalho promoverá um diálogo entre as perspectivas críticas sobre direito, autonomia e processos de subjetivação de Franz Neumann, Michel Foucault e Judith Butler.

Os conceitos pessoa, personalidade jurídica e sujeito de direitos se confundem em diversas formulações jurídicas. Como o direito liberal moderno é construído nas bases do direito romano clássico, uma perspectiva civilista tende a compreender a ideia de pessoa como sujeito das relações jurídicas, ou seja, ente com capacidade jurídica de reivindicar direitos e ser responsabilizado por deveres. Essa concepção possibilita, por exemplo, a inclusão de entes patrimoniais como a pessoa jurídica no processo de responsabilização viabilizado pelo direito. Mas vieses constitucionalistas concebem a pessoa também como cidadã, pela sua possibilidade de participar ativamente nos processos de construção das normas e instituições do direito. Em termos de uma teoria crítica do direito, consideramos ambas as perspectivas, ou seja, a pessoa como centro de imputação de responsabilidade e de reivindicação de direitos e a pessoa como centro de produção das normas e das instituições que organizam a vida em sociedade. Em outras palavras, a pessoa é compreendida como centro do direito em razão das características da gramática jurídica ocidental.

O uso de apenas um dos termos por juristas, portanto, tende a significar tanto uma compreensão não explicitada de que se tratam de sinônimos ou mesmo pode marcar uma visão teórica, uma perspectiva sobre o papel da pessoa no direito, como apresenta o civilista Hans Hattenhauer (1987)HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil. Barcelona: Ariel Derecho, 1987.. O autor demonstra como a ausência do termo “pessoa” nas produções legislativas no regime nazista alemão marcou a convicção de que o indivíduo era apenas uma “função de condicionante social”. O Reich não desejava prescindir da força de trabalho de pessoas comunistas e judias, mas pretendia extirpar seus direitos políticos para impossibilitar suas reivindicações e sua participação na construção das normas jurídicas. Esse âmbito de “não-pessoas”, como afirma Hattenhauer, aumentou com o passar da Segunda Guerra Mundial para incluir todos a quem Hitler queria matar. Pessoas que eram consideradas pessoas no direito apenas quanto à utilização de sua força de trabalho.

Um dos objetivos deste trabalho é demonstrar como a teoria de direito desenvolvida por Evguiéni Pachukanis restringe o papel da pessoa no direito por ignorar sua participação na construção das normas jurídicas, função própria da gramática do direito. Os termos utilizados neste trabalho, portanto, poderão ser pessoa, personalidade jurídica ou sujeito de direitos, mas sempre com o objetivo de designar o ser humano, compreendido por uma teoria crítica do direito como este núcleo individual e autônomo ao qual se pode imputar responsabilidades, direitos, reivindicações e que está legitimado a tomar parte na produção de normas sociais.

O trabalho também pretende analisar como a visão do direito de Pachukanis não considerou a ambiguidade dos efeitos jurídicos resultantes dos processos de racionalização e descentralização do poder político no ocidente moderno capitalista. Esses processos tornaram nossas sociedades contemporâneas mais complexas e plurais, sociedades nas quais ser pessoa no direito adquire um potencial crítico fundamental. Em sociedades marcadas pela presença de diversas formas de vida, religiosidade, sexualidade e cultura, por exemplo, ser uma pessoa de acordo com a gramática jurídica viabiliza, como veremos, uma forma importante de lidar com as diferenças na sociedade.

As críticas realizadas neste trabalho às formulações de Pachukanis foram elaboradas a partir de um diálogo com Neumann, Foucault e Butler tendo em vista a construção de uma visão crítica do direito. Não se trata aqui de exaurir as extensas críticas já realizadas aos trabalhos do autor em diversas obras, como as de Márcio Bilharino Naves, Vitor Bartoletti Sartori, Sonja Buckel, Oskar Negt, Michael Herinrich e Ingo Elbe. A pretensão do trabalho é analisar as possibilidades construídas pela ideia de pessoa no direito a partir da identificação de uma diferença entre sua concepção pela tradição crítica aberta por Evguiéni Pachukanis e a teoria crítica do direito apresentada neste texto.

Na primeira parte deste trabalho, analisamos as ideias de Evguiéni Pachukanis sobre a vinculação da ideia de sujeito de direitos como proprietário e sua proposta de uma economia planificada e de uma esfera de poder unificada. Para o autor, as diferenças sociais estão fundamentadas na economia capitalista de trocas e na propriedade privada. As disputas entre os sujeitos de direito, portanto, estão sempre relacionadas a uma relação econômica no contexto da sociedade burguesa. A forma jurídica e sua ideia de sujeito de direitos, para Pachukanis, seriam dispensáveis em uma sociedade de economia planificada.

Já na segunda parte do artigo, partimos das contribuições da obra de Franz Neumann para apresentar brevemente o processo de racionalização social do período moderno e indicar o processo de centralização do direito como critério normativo para a organização da sociedade. Também faremos um breve esboço sobre a relação entre as demandas burguesas e a formação do Estado de Direito, a qual abriu espaço para as reivindicações de pessoas proletárias em razão da promessa de igualdade perante a lei. Seguindo por esta via, analisaremos a formação de um aspecto emancipatório do direito a partir da ideia de pessoa, cuja principal característica é a possibilidade de responsabilização pela dominação nas relações sociais. Por fim, examinamos os problemas para a autonomia das pessoas em uma gramática jurídica constituída a partir das características do institucionalismo ou do comunitarismo.

Na terceira parte, com base nas elaborações de Michel Foucault e Judith Butler, investigamos os sentidos e a importância da relação do sujeito de direitos com as normas jurídicas enquanto uma operação crítica, de resistência e de realização da autonomia em uma sociedade cujo poder circula entre as pessoas. O argumento é formulado na prática de uso da gramática jurídica com a pretensão de modifica-la. Em certo sentido, a pessoa é interpelada pelo direito a produzir-se nos termos de sua gramática. E apesar desta gramática disponibilizar os termos para os processos de subjetivação dos sujeitos, as pessoas não necessariamente constroem sua subjetividade restrita a eles, o que materializa uma prática de crítica com as normas jurídicas.

Analisamos as implicações de o sujeito reivindicar-se no Estado de Direito em seu próprio processo de subjetivação. Ao final, examinamos o processo de subjetivação como uma atitude crítica do sujeito em relação ao domínio jurídico a partir do domínio de liberdade subjetiva. Propomos então analisar o direito a partir de suas duas gramáticas, a gramática de regras e a gramática da regulação social, cuja ampla possibilidade de crítica viabiliza uma forma de reivindicação dos sujeitos em que a ideia jurídica de pessoa é fundamental para impulsionar processos de formulação autônoma e constante de critérios normativos fundamentado democraticamente na igualdade dos sujeitos.

1 Evguiéni Pachukanis e o sujeito de direitos como proprietário

A proposta jurídica de Evguiéni Pachukanis se refere a uma sociedade de economia planificada unitária, diferente da sociedade capitalista de sua época e das sociedades atuais. Nessa sociedade de economia planificada, não há espaço para o sujeito de direitos. A pessoa não exerce nenhuma função jurídica na condição de indivíduo autônomo, mas apenas como parte de uma comunidade, o proletariado. O sujeito de direitos só exerce uma função em sociedades capitalistas, como Pachukanis expõe em sua principal obra, Teoria geral do direito e marxismo. Nesse trabalho, Pachukanis constrói uma crítica ao direito liberal da sociedade burguesa a partir de sua leitura da obra de Karl Marx.

O sujeito de direito na obra de Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 60) “possui uma relação extremamente próxima com os proprietários de mercadoria”, ou seja, há uma identificação entre ser sujeito de direitos e ser proprietário de mercadorias. Ser uma pessoa de direito é ser proprietário (CASALINO, 2018CASALINO, Vinícius. A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2267-2292, 2018.). Esse mesmo “profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 80) não seria encontrado em uma sociedade de economia planificada, pois não haveria propriedade privada. Sem propriedade privada, não faria sentido qualificar as pessoas como proprietárias, e então o sentido de ser um sujeito de direito para Pachukanis se perde. Em outras palavras, não haveria a necessidade de ser sujeito de direito em uma sociedade sem propriedade privada como uma sociedade de economia planificada (PACHUKANIS, 2018PACHUKANIS, Evguiéni B. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018.). Conforme Bruno Cava (2013CAVA, Bruno. Pachukanis e Negri: do antidireito ao direito do comum. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 4, n. 6, p. 2-30, 2013., p. 37), Pachukanis entendia que era necessário substituir a forma direito por outros aspectos capazes de levar a sociedade a um patamar moral e produtivo mais elevado, como “uma sociedade baseada na distribuição racional de recursos e produtos, numa racionalidade científica e numa pedagogia humanizante”.

Essa perspectiva de sujeito de direito de Evguiéni Pachukanis está intimamente relacionada com sua visão jurídica. Para o autor, o direito existe apenas em razão da relação de troca mercantil estabelecida pela economia capitalista, e o sujeito de direitos esgota seu sentido como meio para a circulação de mercadorias. Sua expectativa é que a forma jurídica perdure apenas até a realização da “tarefa de construção de uma economia planificada unitária” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 135). Essa estreita relação entre direito e capitalismo reflete em sua concepção de ser pessoa no direito. Se o produto do trabalho humano é qualificado como mercadoria e adquire um valor, ao mesmo tempo “o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 120). Ou seja, a economia capitalista qualifica o valor da mercadoria, produto do trabalho humano, e só esse processo possibilita às pessoas demandar direitos, apenas esse processo de qualificação do valor do trabalho humano torna uma pessoa um sujeito de direitos (KASHIURA JR., 2015KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e interpelação ideológica: considerações sobre a ideologia jurídica a partir de Pachukanis e Althusser. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 6, n. 10, p. 49-70, 2015.; PACHUKANIS, 2018PACHUKANIS, Evguiéni B. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018.).

Podemos dizer então que há um vínculo fundamental entre os processos econômicos e jurídicos capitalistas em sua obra. A economia capitalista transforma o produto do trabalho em mercadoria, processo que fornece um valor à mercadoria e também proporciona um valor específico às pessoas, o valor de proprietário dessa mercadoria (CASALINO, 2018CASALINO, Vinícius. A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2267-2292, 2018.). As pessoas são então qualificadas como proprietárias na gramática jurídica, como sujeitos de direitos sempre relacionados às mercadorias. A posição de pessoa nas relações de direito é sempre relacionada com a economia capitalista. Trata-se de uma forma abstrata e impessoal de ser no domínio jurídico. Para Pachukanis, as formas de relações humanas no capitalismo são sempre mediadas por essas transações financeiras entre proprietários e valores de mercadorias, e os vínculos sociais entre as pessoas sempre se dão por intermédio da troca de mercadorias. Em suas palavras, “o vínculo social da produção apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como capacidade do homem de ser sujeito de direito” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 121).

O princípio da personalidade ou da subjetividade jurídica, compreendido até hoje como o princípio formal da igualdade e da liberdade das pessoas e também como fundamento da autonomia da personalidade, é considerado um “engodo burguês e um produto da hipocrisia burguesa” por Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 61). Em sua perspectiva, é a troca de mercadorias que fundamenta a ideia de um sujeito de direitos, um sujeito com pretensões jurídicas. Isso significa que as pretensões jurídicas das pessoas estão sempre relacionadas ao status de proprietário e às mercadorias. É somente nessas condições de modo produção de mercadorias que a forma do direito é necessária. E é a constante transferência de direitos de propriedade entre as pessoas que demanda a ideia de um sujeito portador de direitos, porque essa transferência de direitos de propriedade constrói a necessidade de qualquer pessoa poder ser proprietária, ser sujeito de direitos de propriedade (KASHIURA JR., 2015; PACHUKANIS, 2018PACHUKANIS, Evguiéni B. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018.).

A história demonstra, segundo Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 124), que é “o ato de troca que dá a ideia de sujeito como portador abstrato de todas as pretensões jurídicas possíveis”. É apenas a relação do sujeito com sua mercadoria que provoca a necessidade de uma gramática jurídica pela qual ele possa reivindicar direitos no processo de circulação das mercadorias. Somente nas situações em que há uma economia de mercado de trocas há a necessidade de uma forma jurídica abstrata, em que o sujeito de direitos possui uma capacidade geral de possuir direitos independentemente de suas pretensões jurídicas concretas. A ideia de um sujeito de direitos surge então da mudança contínua da propriedade de mercadorias. “Dessa maneira, cria-se a possibilidade de abstrair as diferenças concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los sob um único conceito genérico” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 125).

A relação jurídica é vista por Pachukanis como uma relação entre os sujeitos e as mercadorias, ou seja, a relação jurídica é uma relação de apropriação. E é somente o desenvolvimento do mercado que “cria a possibilidade e a necessidade de converter o homem, que se apropria das coisas por meio do trabalho (ou da pilhagem), em proprietário jurídico” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 130). A capacidade abstrata de ser sujeito de direitos só encontra uma razão prática na obra de Evguiéni Pachukanis com a propriedade privada. Em outros termos, a única função da igualdade das pessoas perante a lei é a possibilidade de construir relações entre os valores das mercadorias. O sujeito de direitos nasce então de uma necessidade da forma mercadoria, e ele se mantém para constituir, modificar e extinguir o valor da mercadoria no mercado: “Para que os produtos do trabalho humano possam se relacionar uns com os outros como valor, as pessoas devem se relacionar como personalidades independentes e iguais” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 153).

Para Evguiéni Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 153), é a própria obra de Karl Marx que “relaciona a ideia ética de igualdade entre as pessoas humanas com a forma da mercadoria, ou seja, ele a apresenta a partir da equiparação prática reciproca de todos os tipos de trabalho humano”. Em sua visão, a equiparação entre os sujeitos de direito é necessária para possibilitar a equiparação dos valores das mercadorias. A pessoa como sujeito moral, “como uma pessoa igual a todas as outras” não é compreendida pelo autor para além de uma “condição da troca com base na lei do valor” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 153). A igualdade das pessoas perante a lei, para Pachukanis, foi forjada pelo direito liberal burguês apenas como uma condição necessária para a realização dessas relações de valor.

A única relação concebida por Pachukanis entre sujeitos de direito é a relação de contrato, uma forma de vínculo social mediado pela relação com as mercadorias. A própria relação jurídica entre os sujeitos é, para o autor, “apenas outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadoria” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 97). A partir dessa visão, o direito só existe para regular o mercado, o que Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 110) explicita quando afirma que “o ‘fim em si’ para a ordem jurídica é apenas a circulação de mercadorias”. É nas relações de direito privado, como proprietário, que “o sujeito de direito, a ‘persona’, encontra sua encarnação mais adequada na personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário detentor dos interesses privados” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 93).

Esse vínculo tão estreito entre a circulação das mercadorias e os sujeitos de direito não deixa espaço para outras formas de relações sociais. A liberdade da pessoa está intimamente ligada à liberdade do mercado capitalista. Nessa visão do direito proposta por Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 118), “a propriedade se torna fundamental para o desenvolvimento da forma jurídica somente enquanto livre disposição no mercado, e a expressão mais geral dessa liberdade é desempenhada pela categoria de sujeito”.

Já que a liberdade do sujeito de direitos está vinculada à liberdade no contexto da circulação de mercadorias, Pachukanis entende que apenas no ato de troca de mercadorias é possível realizar materialmente a liberdade formal de autodeterminação do sujeito de direitos. Ele desenha uma oposição única e necessária entre sujeito e objeto na relação jurídica. Conforme sua obra, a relação jurídica pode ser compreendida em um esquema no qual “o objeto é a mercadoria, o sujeito, o possuidor da mercadoria, que dispõe dela nos atos de aquisição e alienação” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 124). Por isso, apenas no ato de troca de mercadorias o sujeito de direito poderia fazer valer plenamente suas determinações.

Enquanto, para o autor, o servo da época feudal está em uma posição de completa subordinação ao senhor, pois sua relação de exploração não provoca formulação jurídica específica, “o trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do contrato” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 118). É como se toda gramática jurídica fosse subsumida pela forma do contrato entre proprietários, cuja única função é mediar a relação entre sujeito e mercadoria.

O autor parece entender que a categoria jurídica do sujeito de direitos é tão somente uma oposição à categoria “coisa” ou mercadoria. Ele não concebe outra forma de relação senão a patrimonial, uma forma de relação sempre imbricada no processo de dominação que envolve a circulação das mercadorias. Na perspectiva de Pachukanis, é inviável que a gramática jurídica possa lidar com a variedade de particularidades concretas e existenciais da pessoa humana. O sujeito de direitos é apenas uma diluição abstrata e genérica da pessoa.

Pachukanis (2018)PACHUKANIS, Evguiéni B. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018. parte de uma concepção bastante homogênea de sociedade em razão da construção ideal de uma economia planificada. Para sustentar esse entendimento da necessidade de um sujeito de direitos apenas na relação de dominação capitalista, o autor precisa considerar que as únicas demandas individuais possíveis das pessoas são relacionadas ao modo de produção econômico da sociedade. A possibilidade de um conflito de interesses entre as pessoas só é concebida na obra de Pachukanis em termos de uma oposição de direitos de propriedade privada (DEMIROVIĆ, 2014DEMIROVIĆ, Alex. Para que fim e de que forma criticar o Estado. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 342-365, 2014.). E só nesse caso “o direito, assim como a troca, é um meio de ligação entre elementos dissociados” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 139).

Em toda a obra de Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 94), “uma das premissas fundamentais da regulação jurídica é [...] o antagonismo dos interesses privados”. Em sua análise do direito está explícito o papel da regulamentação jurídica para lidar com diferenças e oposições de interesses. Mas o autor sempre apresenta as divergências entre os sujeitos de direito a partir da circulação de mercadorias. A disputa entre as pessoas é sempre patrimonial, sempre referente a uma relação econômica impulsionada pela sociedade burguesa. É essa relação a “fonte natural da relação jurídica, que surge pela primeira vez no momento do litígio. É justamente o litígio, o conflito de interesses, que traz à vida a forma do direito e a superestrutura jurídica” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 104). O conflito social é necessariamente um conflito econômico relacionado à propriedade privada. Esse é o motivo pelo qual o autor entende que a realização de uma sociedade de economia planificada dispensaria a forma jurídica. Se a disputa pela propriedade privada delineia a única relação de dominação possível entre sujeitos, a imposição de uma economia não-capitalista daria conta por si só dos conflitos sociais, sem a necessidade de uma gramática de direitos.

Por outro lado, Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 105) já aponta para um papel do direito não relacionado com as relações econômicas quando afirma que o desenvolvimento da gramática jurídica “foi engendrado não por exigência das relações de dominação, mas pela necessidade da troca comercial naquelas tribos que não estavam submetidas a uma esfera de poder unificada”. Ao falar da ausência de uma esfera de poder unificada como o verdadeiro propulsor da utilidade da forma jurídica, o autor fornece elementos para a consideração de outras formas de dominação social fora das relações econômicas (DEMIROVIĆ, 2014DEMIROVIĆ, Alex. Para que fim e de que forma criticar o Estado. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 342-365, 2014.).

Em outra passagem, Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 125) compara o sujeito de direitos com o indivíduo armado, a pessoa “capaz de defender por meio do conflito, do confronto, tudo aquilo que representa as condições de sua existência”. Esse trecho demonstra que o autor percebe na figura do sujeito de direito uma oportunidade de poder e de dominação, ainda que durante sua obra ele relacione essa possibilidade apenas ao papel de proprietário. A proposta deste trabalho é justamente demonstrar que a pluralidade e a circulação das formas poder e dominação das sociedades contemporâneas não está restrita tão somente às relações econômicas, assim como a diversidade atual dos processos sociais de subjetivação e de formas de vida tornam o sujeito de direito uma forma central de resistência, disputa, reivindicação e construção de autonomia.

2 Franz Neumann e a possibilidade de responsabilização e reivindicação

Evguiéni Pachukanis chega a identificar um poder na posição do sujeito de direito. E, inclusive, relaciona esse poder à violência e à possibilidade de coerção para defender a própria propriedade privada por meio do direito. Mas sua análise jurídica não considera as diversas formas de atuação do poder na vida em sociedade. Todas as construções jurídicas além da propriedade privada são entendidas por Pachukanis como máscaras formais do direito com o objetivo de esconder a violência de sua coerção (Cf. KASHIURA JR., 2015). Essa compreensão na forma jurídica não está completamente equivocada, afinal, o direito realmente dispõe de dispositivos de violência e coerção para a efetivação de suas normas. Porém, o autor ignora um papel importante da gramática dos direitos. Pachukanis não identifica uma dimensão de liberdade no direito, pela qual seria possível a reivindicação de universos normativos múltiplos e conflitantes entre si.

Para considerar esse aspecto da forma do direito, seria necessário que o autor compreendesse o poder de ser pessoa no direito de outra maneira. Ou seja, o poder do sujeito de direito não é apenas o poder do proprietário de impor violência para a proteção de sua propriedade privada. O poder do sujeito de direito é de defender, reivindicar e construir sua forma de vida e de defendê-la tanto do próprio direito quanto dos demais sujeitos de direito.

Essa perspectiva toca em diversos aspectos das formulações teóricas de Pachukanis. Não há, por exemplo, somente uma relação jurídica entre sujeito e objeto de direito, proprietário e propriedade privada, mediada pela figura do contrato. Esse entendimento das possibilidades de ser pessoa no direito considera relações entre sujeitos de direito não pautadas pela troca de mercadorias, mas por aspectos existenciais dos processos de subjetivação. Também considera os vários conflitos possíveis entre o sujeito de direito e os próprios termos da gramática jurídica. Ainda que esse poder do sujeito de direito possa ser entendido como limitado, ele não pode ser ignorado. É com base nas possibilidades que esse poder constrói que as pessoas reivindicam direitos, constroem, mantêm e modificam seus variados processos de subjetivação nos múltiplos ângulos de sua vida. Nos termos de Sonja Buckel (2014BUCKEL, Sonja. “A forma na qual as contradições podem se mover”: para a reconstrução de uma teoria materialista do Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 366-385, 2014., p. 382), “projetos contra-hegemônicos de formas alternativas de vida, de relações e de subjetivação podem inscrever‐se no direito, ainda que assimetricamente, justamente devido a essa estrutura fundamental contraditória da forma jurídica”.

A perspectiva comunitarista de Pachukanis só admite a possibilidade de divergência de interesses entre pessoas nas relações econômicas. Ou melhor, parece que Pachukanis só admite a possibilidade de desacordo no capitalismo. No seu plano de uma sociedade de economia planificada, o autor cita a formação de uma esfera de poder unificada, cujo principal efeito social seria impedir os conflitos relacionados à propriedade privada, já que ela deixaria de existir (DEMIROVIĆ, 2014DEMIROVIĆ, Alex. Para que fim e de que forma criticar o Estado. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 342-365, 2014.). Mas em sua proposta, o autor parece ignorar os fenômenos sociais analisados por Max Weber que o levaram a formular sua visão do processo de racionalização e desencantamento do mundo. Suas análises relacionam a diversidade da sociedade ao capitalismo, mas não se atêm às relações econômicas. Em sociedades capitalistas é possível observar divergências não somente patrimoniais, mas conflitos existenciais sobre a construção individual ou de grupos sociais de formas de vida diferentes entre si. A concepção de poder de Pachukanis também não parece dar conta das sociedades atuais. Sua ideia de uma esfera de poder unificada tornou-se improvável senão pela imposição violenta de formas autoritárias de poder. A partir das formulações mais recentes de Michel Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., podemos analisar o poder de forma circular, dinâmica e transitória, e não localizado apenas em alguns indivíduos, como os proprietários.

Para Evguiéni Pachukanis, a igualdade das pessoas perante a lei foi forjada pelo direito liberal burguês apenas como uma condição necessária para a realização das relações de valor. Independentemente de a burguesia ter construído o direito liberal dessa maneira, será que a gramática jurídica e seu conceito de pessoa no direito não abrem espaço para possibilidades para além de si mesmos, ou seja, para além de sua formulação original?

Para desenvolver um diagnóstico do nosso momento histórico em relação ao direito, as pesquisas de Max Weber sobre o capitalismo são importantes. Suas análises sobre o processo de racionalização e de desencantamento do mundo relacionam diversidade e pluralidade social ao capitalismo, mas não apenas em termos de uma desigualdade econômica. Weber (1999)WEBER, Max. Economia e Sociedade 2: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999. indicou que, em nossas sociedades capitalistas, é possível observar divergências existenciais, ou seja, conflitos sobre a construção de formas de vida diferentes entre si.

Antes da modernidade ocidental, talvez fosse possível identificar uma perspectiva mais coletivista na organização das sociedades. No direito, era a ideia de natureza ou ordem divina que organizava hierarquicamente as pessoas e determinava as relações sociais. A crítica era então elaborada a partir do critério de obediência às leis naturais ou divinas. Max Weber demonstrou que, a partir do século XV, ou seja, com a entrada na modernidade, as sociedades passam por um processo de racionalização em que o sentido da organização social, antes unívoco e naturalizado, é fragmentado em diversas esferas de valor. Diversas definições sobre a forma de viver, de valores, religiosidades, sexualidades e etnias, por exemplo, passam a conviver em uma mesma sociedade, além de também disputar, pela formulação do direito liberal moderno, a realização de diferentes interesses.

Weber (1999)WEBER, Max. Economia e Sociedade 2: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999. explicita em seus trabalhos que essa racionalização social está imbricada historicamente com a formação do capitalismo e da sociedade burguesa, ou seja, com a transformação do processo de produção e reprodução da sociedade em relações de trabalho. Na modernidade, as sociedades também experimentam uma descentralização do poder político, antes concentrado pela monarquia, um acirramento dos conflitos sociais, a pluralização de reivindicações e a ascensão de novas classes sociais, como a burguesia e o proletariado. E o direito também é transformado nesse contexto. Mas, segundo Weber, essa conjuntura leva a gramática jurídica a passar por processos de materialização e indeterminação, os quais ele diagnostica como destruição do direito.

Para Weber (1999)WEBER, Max. Economia e Sociedade 2: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999., o processo de materialização destrói a racionalidade do direito em razão da incorporação de conteúdos morais às normas jurídicas, o que abriria espaço para emissão de juízos de valor arbitrários nas decisões. Isso tornaria as normas mais indeterminadas e a sua aplicação uma ação irracional, além de arruinar o caráter formal do direito, ou seja, sua capacidade de utilizar critérios jurídicos autônomos. Esse diagnóstico leva o autor à afirmação de uma perda de sentido do direito liberal na modernidade.

Porém, é no contexto das análises de Max Weber sobre a perda de sentido do direito liberal que Franz Neumann (2013b)NEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b., jurista do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, elabora sua tese de que há um potencial emancipatório na forma jurídica. A forma direito, na leitura de Neumann realizada por José Rodrigo Rodriguez (2009RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009., p. 72), designa uma estrutura essencial do Estado de Direito, é “uma estrutura institucional que constrange o poder soberano a agir conforme a vontade da sociedade por meio de normas gerais e as instituições ligadas a elas”, cujo objetivo é instituir e garantir a separação entre soberania e liberdade, entre sociedade e Estado. Para que haja forma direito, portanto, é imprescindível haver institucionalização, direito positivo.

A tese de Neumann sobre existência de um potencial emancipatório na forma jurídica parte tanto de sua crítica ao diagnóstico de Max Weber, quanto de sua própria análise sobre a entrada da classe operária no parlamento alemão. Neumann demonstra que Weber naturalizou o código do direito e, com isso, não foi capaz de explicar suas mudanças institucionais no século XX. Em sua obra O Império do Direito (2013b), Neumann demonstra que os desenhos das instituições podem ser disputados nos conflitos sociais e então modificar a gramática jurídica.

A fragmentação e a pluralidade de sentidos da modernidade tornam a organização da sociedade uma disputa de diversos grupos sociais. E é o direito liberal da classe burguesa, com sua promessa de igualdade perante a lei, que centraliza essa possibilidade de reivindicação como processo de expressão das demandas sociais. Franz Neumann (2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b.; 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014.) aponta que a burguesia, quando constrói a forma direito para reivindicar suas demandas econômicas, abre espaço para a inclusão de outras variadas demandas da sociedade, inclusive as reivindicações da classe de pessoas trabalhadoras. Nas palavras de Sonja Buckel (2014BUCKEL, Sonja. “A forma na qual as contradições podem se mover”: para a reconstrução de uma teoria materialista do Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 366-385, 2014., p. 373), “a igualdade produzida socialmente por meio da abstração é a forma central pela qual o incomensurável torna‐se comensurável”.

A gramática jurídica torna-se então a forma central para pleitear uma imagem substantiva de sociedade em vez de impô-la de forma autoritária. E, diante da impossibilidade de uma solução definitiva para os conflitos sociais perenes, o direito passa a assumir o papel de um mediador democrático em reconstrução constante, respondendo as contínuas lutas sociais para além das diversas visões substanciais de mundo. Em uma sociedade plural, em que as vontades humanas são múltiplas, divergentes e contingentes, em processo constante de reformulação, Franz Neumann (2013b)NEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b. identifica que qualquer naturalização da gramática jurídica serviria apenas à manutenção do poder e de um determinado projeto de sociedade, além de impedir a incorporação de novas demandas sociais. Em outras palavras, uma coincidência completa entre sociedade e direito, nessa conjuntura social tão diversa, significaria muito mais a determinação de um modelo autoritário de dominação e de regulação da vida social do que a expressão da vontade autônoma das pessoas.

José Rodrigo Rodriguez (2009RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.; 2016RODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016.) explicita essa visão de Neumann ao indicar que o direito se torna disputa de poder, cuja forma estrutura uma tensão entre sociedade e Estado e é capaz de garantir às pessoas autonomia para construir e gerir suas vidas em sociedade. Em outras palavras, a forma direito “autoriza ao indivíduo, enquanto sujeito de direito, reger seu próprio estilo de vida de acordo com uma determinada forma de vida” (BUCKEL, 2014BUCKEL, Sonja. “A forma na qual as contradições podem se mover”: para a reconstrução de uma teoria materialista do Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 366-385, 2014., p. 381). Essa forma jurídica viabiliza o dissenso e a disputa pela organização social. Sem a forma direito, ou seja, com a identificação entre sociedade e Estado, seria possível um grupo social com concentração de poder impor de maneira autoritária um modelo de sociedade e um modo de vida, na tentativa de determinar a uniformização das vontades sociais.

Uma das principais consequências dessa análise de Neumann a partir do diagnóstico de Max Weber é, nos termos de José Rodrigo Rodriguez (2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desintegração do status quo: direito e lutas sociais. Novos estudos, São Paulo, n. 96, p. 48-66, jul./dez. 2013., p. 58), o “potencial democrático da indeterminação do direito”. A forma direito, materializada na sua promessa de igualdade perante a lei para uma sociedade desigual em diversos aspectos, compromete-se com a produção de normas em função das demandas sociais. Ou seja, a forma do direito liberal, a partir de sua promessa de igualdade, possibilita aos sujeitos expressarem-se pela gramática jurídica como injustiçados e então formularem suas insatisfações na forma de reivindicação por direitos.

Há uma ambiguidade da forma direito perceptível no próprio diagnóstico de Weber, segundo o qual essa promessa de igualdade jamais poderá ser plenamente cumprida. A diversidade, a contingência e a constante reformulação das demandas sociais tornam impossível a satisfação de todas as carências e vontades humanas, ainda que a forma direito viabilize à sociedade desenvolver constantemente suas reivindicações.

A contribuição de Franz Neumann para a reflexão a respeito da ambiguidade da forma jurídica para uma teoria crítica do direito evidencia a racionalidade procedimental da gramática jurídica. Isso significa que, respeitada a forma direito, de igualdade perante a lei, é possível a construção de variadas formas de juridificação. Por outro lado, essa ambuiguidade também torna impossível considerar direito uma estrutura jurídica cujos institutos impeçam a apropriação social dos significados jurídicos, como Neumann (2009)NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of national socialism (1933-1944). Chicago: Ivan R. Dee, 2009. demonstrou em seu diagnóstico sobre o regime nazista alemão. Neumann considerou esse período político da Alemanha como um não-Estado de um não-direito justamente por entender que haviam sido destruídas as estruturas de separação entre Estado e sociedade. A falsa generalidade das normas gerais do regime nazista abriu espaço para as ordens arbitrárias do Führer, sem qualquer possibilidade de disputa social pelos significados jurídicos. Contemporaneamente, José Rodrigo Rodriguez (2016)RODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016. desenvolverá sua ideia de perversão do direito em sentido semelhante com relação a diagnósticos de casos do direito brasileiro.

A visão crítica do direito desenvolvida neste artigo se baseia no diagnóstico de Franz Neumann sobre a ambiguidade da forma direito e do potencial emancipatório de sua indeterminação. É a forma direito que possibilita um espaço mínimo de autonomia para os sujeitos na gestão de suas vidas em sociedade. Essa autonomia das pessoas viabiliza a discordância e a contestação das normas, pois a forma direito possibilita uma narrativa de privação de direitos. Pela forma direito as pessoas se identificam como sujeitos de direito e reivindicam, a partir desta posição, seus diferentes desejos e interesses. Ou seja, a forma jurídica é essa promessa de igualdade perante a lei, impossível de ser totalmente cumprida, mas que vai além de si mesma e permite disputas por inclusão em sua gramática, em especial, reivindicações por diferentes formas de subjetivação.

O potencial crítico da indeterminação das normas jurídicas, portanto, significa explorar a possibilidade de revisão constante dos significados jurídicos. Essa perspectiva formula a democracia menos como uma situação a ser consolidada e mais como uma construção contínua pela gramática jurídica. Trata-se da possibilidade de disputar o direito no interior de sua linguagem, ou seja, expressar as demandas sociais por igualdade (NEUMANN, 2013aNEUMANN, Franz. O conceito de liberdade política. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 22, p. 107-154, 2013a.; 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014.). Em outros termos, a forma direito permite uma maneira de subjetivação do mundo, a possibilidade de o sujeito das reivindicações identificar-se como sujeito de direitos. Ao propor uma igualdade impossível, e, portanto, uma universalidade, o direito liberal abre um espaço para além de si mesmo e permite a disputa por inclusão em sua gramática. O sujeito de direitos nasce dessa proposição universal de igualdade, e é a própria possibilidade de reivindicação de si nessa proposição que viabiliza a subjetivação do sujeito na gramática jurídica. O direito exerce assim um papel central na sociedade ocidental pluralista, em razão da sua capacidade de promover a criação de padrões universais para organizá-la (RODRIGUEZ, 2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desintegração do status quo: direito e lutas sociais. Novos estudos, São Paulo, n. 96, p. 48-66, jul./dez. 2013.).

Os sujeitos sociais das reivindicações são os protagonistas da forma direito. Historicamente, esse processo iniciou com a formulação das demandas burguesas na estrutura do Estado de Direito. Já no século XIX, são as reivindicações proletárias que ingressam na estrutura estatal pela promessa de igualdade. Para Franz Neumann (2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b.; 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014.), esse processo revela que o direito liberal formulado pela burguesia perfaz uma estrutura com capacidade de inclusão para além dessa classe social. Se, por um lado, “a burguesia precisa da soberania para aniquilar forças locais e particulares”, e assim garantir a autonomia do direito, ela também “precisa da liberdade política para assegurar sua liberdade econômica” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 16). Por isso, ambos os elementos, soberania e liberdade, constituem a forma direito e caracterizam-na por aspectos emancipatórios e regressivos.

Essa ambiguidade na forma jurídica está expressa no duplo sentido do termo “direito”, o qual pode ser compreendido como direito objetivo (Recht), relacionado a um poder soberano, e como direito subjetivo ou pretensão do sujeito de direitos (Anspruch). Para Neumann (2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 16), “temos a negação da autonomia do indivíduo e ao mesmo tempo sua afirmação”. Ele afirma ainda que diversas teorias do direito pretenderam solucionar essa contradição. Em algumas delas, o direito subjetivo é considerado apenas um reflexo do direito objetivo, ou seja, a autonomia individual é negada. Em outras, direito objetivo e direito subjetivo não são diferenciados. Mas, para o autor, “todas essas soluções são aparentes porque desprezam o fato de que ambos os elementos – norma e relação jurídica, direito objetivo e subjetivo – são dados originais do sistema jurídico burguês” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 17).

Para Franz Neumann, portanto, o princípio fundamental do Estado de Direito é a igualdade das pessoas perante a lei, ou seja, o reconhecimento do sujeito de direitos. O potencial de autonomia inscrito na gramática jurídica está relacionado à generalidade das formulações normativas do direito. Ao partir do fundamento de igualdade entre as pessoas, a linguagem dos direitos está estruturada em normas gerais, o que possibilita a inclusão contínua de novas demandas. A forma direito constrói então um processo incessante de desintegração do estado das coisas que garante a liberdade em uma sociedade baseada na desigualdade (RODRIGUEZ, 2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desintegração do status quo: direito e lutas sociais. Novos estudos, São Paulo, n. 96, p. 48-66, jul./dez. 2013.). Para Neumann (2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b., p. 40), toda norma geral que limita a atividade do poder soberano “contribui necessariamente para a desintegração do status quo. Qualquer norma desse tipo é uma faca de dois gumes”.

Mesmo as instituições jurídicas são formuladas a partir das vontades dos sujeitos de direito na forma de reivindicações pela gramática jurídica. Elas possibilitam a regulação dos processos sociais e “pode[m] consistir simplesmente em possibilitar a junção entre homens” (NEUMANN, 2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b., p. 89). Porém, as instituições jurídicas por si só não garantem necessariamente a autonomia das pessoas. É necessário a existência de uma sociedade ativa, da qual emergem diversificadas reivindicações. Ao possibilitar a construção dos sujeitos por eles mesmos, o direito “faz parte da definição dos termos em que a sociedade funciona” (RODRIGUEZ, 2009RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009., p. 84).

Por isso, o potencial emancipatório do direito depende também da sociedade. Depende de uma esfera pública ativa, da existência de reinvindicações e de demandas sociais. Há a necessidade de uma efervescência da sociedade civil que depende de um elemento de vontade. A falta de participação pública gera um engessamento das instituições e impede que elas produzam efeitos emancipatórios (NEUMANN, 2013aNEUMANN, Franz. O conceito de liberdade política. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 22, p. 107-154, 2013a.). Em outros termos, para além do seu aspecto de dominação, o direito é produto de forças sociais, “é produto da atividade humana” (NEUMANN, 2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b., p. 72). Essa é a razão pela qual “uma fundamentação racional dos poderes coercitivos do Estado e do direito é uma justificação baseada na carência e vontade dos homens” (NEUMANN, 2013bNEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013b., p. 72).

A legitimidade do direito está amparada na possibilidade de acolher as demandas da sociedade sem destruir sua forma de imputação jurídica. Está no cerne da racionalidade do direito, portanto, a pessoa como centro de imputação pela dominação e de possibilidade de participação democrática nas normas que regem sua vida. Essa categoria marca um lugar do sujeito no direito e na sociedade em que ele possa ser responsável pela própria existência e pelo próprio processo de desenvolvimento. Mas a personalidade jurídica também permite a responsabilização dos sujeitos em relação à sociedade, ou seja, a imputação de responsabilidade pela exploração. Em nível mais abstrato, ser pessoa no direito garante uma liberdade em relação ao Estado para que os sujeitos possam se formar como sujeitos políticos, pois a necessidade de democracia, essa separação entre sociedade e Estado, também é uma necessidade de separação entre o indivíduo e o Estado.

Essa possibilidade de responsabilização pela dominação é materializada na gramática jurídica pela ideia de contrato, cujos significados e justificações racionais são derivados das vontades dos sujeitos. Em uma sociedade em disputa, “o contrato, a forma jurídica em que a pessoa põe sua liberdade em marcha, é um elemento constitutivo da sociedade burguesa no período da livre concorrência” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 30). Para Neumann (2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 30), o contrato “suprime o isolamento dos proprietários, ele serve de mediador entre eles e, assim, torna-se tão importante quanto a própria propriedade”. Quais seriam então as consequências de dispensar a ideia de sujeito de direitos e abandonar a ideia de pessoa de direito? Considerá-la apenas como um conceito liberal individualista não poderia contribuir para uma perspectiva autoritária de direito?

Em uma visão institucionalista ou comunitária do direito, que prescinda da ideia de pessoa sob a alegação de ela ser individualista e liberal, há a diluição do indivíduo e a impossibilidade de demarcar o lugar da dominação. Nesse contexto, a dominação é atribuída a uma força orgânica não identificável. Não há sujeitos responsáveis por ela. Essa visão retira a possibilidade de uma relação crítica com as normas. A personalidade jurídica viabiliza tanto apontar as pessoas dominantes quanto as pessoas dominadas em determinadas relações jurídicas (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014.).

Em uma versão contemporânea de um comunitarismo, não seria possível prescindir da construção de um critério normativo, ou seja, da liberdade do sujeito de direitos. Na teoria juspositivista clássica, o estado também era compreendido como um sujeito de direito. A soberania não era relacionada aos grupos sociais, “mas a própria pessoa do Estado (Staatsperson) que atuava por meio de órgãos. O indivíduo tinha direitos subjetivos públicos perante o Estado” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 77). A separação entre sociedade e Estado é ofuscada e a possibilidade de reivindicação de injustiças é obstruída. Neumann (2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 78) analisa que no contexto de apagamento do sujeito de direitos, “a pessoa do Estado deve ser a única portadora da soberania e é por isso que a teoria positivista do Estado se recusa a falar da soberania de um órgão. Ela esconde que grupos sociais e pessoas dominam outras pessoas”.

Perspectivas institucionalistas do direito atacam a personalidade jurídica e a substituem pelo conceito de instituição com a justificativa de não encobrir, como o conceito liberal de sujeito de direito, as diferenciações entre as pessoas. O conceito de soberania também perde sentido: “O Estado passa a ser uma instituição em que um paralelograma de forças tem eficácia, ele passa a ser uma comunidade que se forma organicamente a partir de comunidades inferiores” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 78). O problema se inscreve na interiorização da força do estado nas relações jurídicas. “Além disso, essa força deve estar submetida ao direito natural perpétuo ou à ‘perpétua lei da vida da nação’” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 78). Sem a personalidade jurídica como centro de imputação pela dominação, os direitos e deveres “não são mais vinculados às vontades dos sujeitos de direito juridicamente iguais, mas a fatos objetivos” (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 81).

Em perspectivas como as baseadas em Evguiéni Pachukanis, o potencial crítico do sujeito de direitos é descartado, pois o autor considera essa forma apenas como um conceito liberal individualista, ou seja, apenas como forma de viabilizar a dominação do capital. Esta formulação não permite que se perceba a modalidade autoritária da supressão da personalidade jurídica praticada pelo regime nazista. Nele, os sujeitos sociais foram diluídos, o que impossibilitou a demarcação do lugar da dominação. Sem a personalidade jurídica, a dominação passa a ser atribuída a uma força orgânica não identificável, à “vontade do povo”. Não há mais sujeitos que possam ser considerados responsáveis por ela, a separação entre sociedade e Estado é suprimida e a reivindicação de direitos obstruída.

Mas se Franz Neumann (2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-83, jul./dez. 2014., p. 82) critica o núcleo da teoria institucionalista ser a eliminação do sujeito de direito, não o faz sem perceber os problemas da personalidade jurídica e sem deixar escapar sua importância: “O conceito de sujeito de direito é, sem dúvida, uma máscara social. Mas essa máscara apenas encobre – ela não deixa seu portador desaparecer, ainda é possível percebê-lo”. Em outras palavras, ser pessoa no direito ainda viabiliza a reivindicação pela gramática jurídica que o conceito de instituição apaga por completo.

A personalidade jurídica também é importante por materializar a promessa de igualdade perante a lei do Estado de Direito. Essa promessa, traduzida em normas universais, só pode ser reivindicada com individualização das demandas por direitos. A universalidade das leis também marca a diferenciação da gramática jurídica da ordem política de um poder soberano, pois ela garante um mínimo de liberdade para realizar uma narrativa de injustiça dentro da gramática do direito. Sem essa universalidade, marcada pela possibilidade de sua reivindicação pelos agentes sociais, a gramática do direito se tornaria tão somente a vontade do poder.

Ser pessoa no direito, portanto, pode ser entendido como constituir um centro de responsabilidade, uma possibilidade de imputação de direitos e deveres, mas também de participação ativa no processo de configuração das instituições do direito. Falar em pessoa no direito é, portanto, sempre falar em relações jurídicas, sempre elaborar um processo relacional, não apenas com a sociedade, mas também com as próprias normas do direito, em uma espécie de relação crítica com as normas jurídicas. Por isso, para além das análises de Franz Neumann, parece importante investigar para que serve ser pessoa no direito a partir das contribuições de Michel Foucault e Judith Butler, nas quais essa relação crítica é chamada de atitude crítica ou ressignificação.

3 Michel Foucault e Judith Butler sobre a construção da autonomia

Se o diagnóstico de Franz Neumann sobre a mudança de função do direito em uma sociedade de economia capitalista é central para a análise da possibilidade de responsabilização jurídica pela dominação, são os trabalhos de Michel Foucault e Judith Butler que formulam uma crítica ao papel do direito para a própria construção da pessoa. A possibilidade de fazer uma reivindicação no interior da gramática jurídica pressupõe necessariamente uma pessoa configurada como sujeito de direitos. Mas para que serve ser uma pessoa no direito em relação ao processo de subjetivação da pessoa? Para Michel Foucault e Judith Butler, realizar uma demanda no interior de um espaço normativo a partir dos fundamentos desse mesmo espaço pode ser compreendido como uma atitude crítica ou a prática de uma ressignificação. O sujeito faz uso das gramáticas de poder com a pretensão de modificá-las. Sugerimos que na gramática jurídica abandonar a ideia de pessoa significaria renunciar à possibilidade de transformação do direito, ou seja, desprezar a possibilidade de modificar as normas e de reclama-las injustas. Em outros termos, seria uma maneira de impossibilitar o exercício da liberdade perante o direito.

A ideia de pessoa como centro de imputação de interesses, direitos e deveres possibilita aos sujeitos formular e identificar responsáveis por atos de dominação a partir da esfera pública e democrática da forma direito. Mas para ser centro de responsabilização, a pessoa também precisa necessariamente ter garantida uma liberdade em relação ao Estado de Direito. Ao sujeito de direitos, por definição, deve ser viável a prática de uma crítica à gramática em que opera. A possibilidade de resistir e questionar as normas assegura sua própria sobrevivência nessa gramática e, ao mesmo tempo, reconfigura o quadro de reconhecimento que ela dispõe aos sujeitos. O risco de não ser reconhecido pela gramática mobilizada é o risco de não ser reconhecido como sujeito, “ou pelo menos suscitar as perguntas sobre quem sou (ou posso ser) ou se sou ou não reconhecível” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 36).

Essa imbricação da crítica com os processos de subjetivação realizada por Michel Foucault e seguida por Judith Butler formula questões não tradicionalmente consideradas pelos trabalhos mais notáveis de uma teoria crítica do direito e da sociedade. Os debates sobre Foucault e a teoria crítica podem ser compreendidos em dois momentos diferentes. O primeiro no contexto da publicação do livro Critique and Power: Recasting the Foucault/Habermas Debate em 1994KELLY, Michael (Ed.). Critique and power: recasting the Foucault/Habermas debate. Cambridge: MIT Press, 1994., em que se desenvolveram questões em função do livro de 1985, Discurso Filosófico da Modernidade, de Jürgen HabermasHABERMAS, Jürgen. Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Cf. TERRA, 1997TERRA, Ricardo. Foucault leitor de Kant: da antropologia à crítica do presente. Analytica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 73-87, 1997.; ASHENDEN; OWEN, 1999ASHENDEN, Samantha; OWEN, David. Foucault Contra Habermas. London: Sage, 1999.; CUSSET, Yves; HABER, 2006CUSSET, Yves; HABER, Stéphane. Habermas et Foucault: Parcours Croisés, Confrontations Critiques. Paris: CNRS, 2006.).

Após a publicação dos seminários de Michel Foucault, desenvolve-se um novo debate: toda a bibliografia sobre o autor é modificada, bem como sua visão sobre o direito. Abre-se então uma nova discussão sobre Foucault e a teoria crítica que ainda está em curso, como é possível constatar nos trabalhos de Amy Allen (2008ALLEN, Amy. The Politics of Our Selves: Power, Autonomy, and Gender in Contemporary Critical Theory. New York: Columbia University Press, 2008.; 2015ALLEN, Amy. Emancipação sem utopia: sujeição, modernidade e as exigências normativas da teoria crítica feminista. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 103, p. 115-132, nov. 2015.; 2016ALLEN, Amy. The End of Progress: decolonizing the normative foundations of critical theory. New York: Columbia University Press, 2016.), por exemplo, e nos termos da pretensão deste artigo. Marcos Nobre (2018)NOBRE, Marcos. Como nasce o novo. São Paulo: Todavia, 2018. identifica nas produções mais recentes em teoria crítica, como nos trabalhos de Jürgen Habermas e Axel Honneth, uma negligência com a investigação dos processos de subjetivação. Mas também percebe no campo a realização de pesquisas recentes cujo foco é a análise dos processos de subjetivação da dominação. Em suas palavras, esses trabalhos que privilegiam “a investigação de práticas sociais de construção de normas e de justificações segundo a perspectiva própria dos agentes” (NOBRE, 2018NOBRE, Marcos. Como nasce o novo. São Paulo: Todavia, 2018., p. 81) e as alianças teóricas com críticas como as de Michel Foucault ampliam a teoria crítica na construção de uma crítica social.

Na investigação sobre a função da ideia de pessoa no direito, é importante desenvolver esse debate mais recente entre uma teoria crítica do direito e Michel Foucault a fim de compreender o exercício da liberdade no interior da gramática jurídica como uma operação crítica da pessoa com as normas. Aos trabalhos de Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., 2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015.) sobre a prática crítica, será preciso somar as contribuições de Judith Butler (2013)BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013. para realizar este diálogo. Se Foucault compreende a crítica como existente apenas em relação a algo que não ela mesma, Butler imbricará essa operação com o próprio processo de subjetivação. Quando o sujeito reivindica uma gramática normativa para expressar uma injustiça, ou seja, demanda um modo de existência que não é corroborado pelas normas, os processos de “criação do eu” e de desassujeitamento ocorrem concomitantemente. Ele produz sua existência dentro da norma para poder reivindica-la e em seguida a nega, negando sua própria existência.

Em outras palavras, se Franz Neumann constrói uma perspectiva crítica do direito, Michel Foucault e Judith Butler formulam uma crítica dos processos de subjetivação. Em comum, seus trabalhos partem de uma compreensão de crítica explicitada por Immanuel Kant em seu texto “Was ist Aufklärung?”, que pode ser traduzido por “O que é o Iluminismo?” ou “O que é o Esclarecimento?”. Neste texto simples, publicado originalmente em 1784 na revista alemã Berlinische Monatsschrift, Kant pretende analisar o processo pelo qual sua própria sociedade estava passando em termos de reflexão. O iluminismo, entendeu Kant (2008KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?” (1784). In: KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 11-19., p. 11), é “a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado”, e essa menoridade se refere à “incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”.

Kant aponta a possibilidade humana de fazer uso da razão e de construir um entendimento próprio. Ele opõe o uso razão a formas autoritárias de poder quando defende a conquista da liberdade das pessoas nesse processo. Em sua distinção entre o uso privado e o uso público da razão, Kant compreende que o uso público constrói uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão, de falar em nome próprio. Para saber o que se pode decretar como lei sobre um povo, afirma Kant, deve-se passar pelo critério do uso público da razão, ou seja, do questionamento se poderia um povo impor a si próprio essa lei. Deve ser possível, poderíamos dizer, a formulação de uma crítica imanente.

O longo e complexo caminho trilhado pela teoria crítica, desde sua matriz, a análise do capitalismo nas obras de Karl Marx, passando pela Escola de Frankfurt – denominação para as produções do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, na Alemanha das décadas de 1950 e 1960, a partir do texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica de Max Horkheimer –, até as pesquisas mais contemporâneas, se relaciona de alguma forma a esse entendimento kantiano sobre o sentido de crítica. Se podemos falar hoje em princípios fundamentais delineados pelo campo da teoria crítica, podemos dizer que a proposta de Kant em “Was ist Aufklärung?” se relaciona com a necessidade de um comportamento crítico.

Em conjunto com as análises do capitalismo realizadas na obra de Karl Marx, o comportamento crítico como fundamento de uma teoria crítica é compreendido em relação ao “conhecimento produzido sob condições sociais capitalistas e à própria realidade social que esse conhecimento pretende apreender” (NOBRE, 2004NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004., p. 26). E é imbricada nessa análise do capitalismo e de seus limites que a teoria crítica se fundamenta também na busca pela superação da dominação capitalista, ou seja, em uma orientação para a emancipação. A busca da teoria crítica pela realização da liberdade e da igualdade, contudo, não configura a construção prática de uma sociedade ideal imaginada por perspectivas teóricas, mas, ao contrário, identifica na própria realidade social as possibilidades de sua concretização.

Para o campo da teoria crítica, tanto os potenciais de emancipação quanto os obstáculos à sua efetivação estão inscritos nas estruturas da sociedade em seu arranjo histórico concreto, o que demanda o desenvolvimento de um diagnóstico do tempo presente e a derivação de seus prognósticos. À teoria crítica, portanto, não cabe apenas “dizer como as coisas funcionam, mas sim analisar o funcionamento concreto delas à luz de uma emancipação ao mesmo tempo concretamente possível e bloqueada pelas relações sociais vigentes” (NOBRE, 2004NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004., p. 26).

A perspectiva da atitude crítica de Michel Foucault é fundamental na análise sobre a função da ideia de pessoa no direito. Foucault elabora duas análises do texto de Kant, a primeira em uma conferência em 1978 e a segunda em um texto publicado em 1984, exatamente duzentos anos após a publicação de Kant. Em ambas, Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., 2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015.) procura responder às questões do filósofo a partir da ideia de que crítica é a arte de não ser governado. Ele identifica no ocidente moderno o surgimento de uma atitude crítica, a qual entendeu de maneira bastante abstrata como uma virtude em geral, “uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 31). Ao longo da conferência, Foucault (2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 32) explica que a crítica sempre existe em relação a alguma outra coisa, ou seja, ela é um instrumento, “um meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e que ela não será” e que pretende exercer controle em um domínio sobre o qual não é capaz de construir uma normatividade.

Apesar de apontar a possibilidade de construir a história dessa atitude crítica de diversas formas, o autor escolhe desenvolvê-la a partir do papel da pastoral cristã no ocidente moderno. Para Michel Foucault, a igreja constrói uma ideia inexistente na cultura antiga, ou seja, a concepção de que cada pessoa deve ser governada e se deixar governar por alguém que a conecte a uma relação universal de obediência. Nas suas palavras, uma “operação de direção para a salvação numa relação de obediência” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 33). Essa operação teria então instituído uma tripla relação com a ideia de verdade, a partir do dogma, de um conhecimento particular e individualizante e de técnicas reflexivas, como a referência a regras gerais, conhecimentos particulares, preceitos e confissões. Foucault compreende essa operação como uma direção de consciência, uma arte de governar, cuja irrupção se dá no ocidente europeu entre os séculos XV e XVI.

A partir desse período, o autor observa uma laicização da arte de governar, sua expansão na sociedade civil e em domínios variados. A questão central passa a ser como governar, o que Foucault denomina como governamentalização. Foucault sugere então que esse movimento provoca a questão de como não ser governado ou de que forma não ser governado, o que seria a própria atitude crítica. Para ele, a atitude crítica tanto contribui quanto se contrapõe às artes de governar, pois se torna uma maneira de construir sua suspeita, recusa, limite e transformação. A atitude crítica é uma forma de encontrar uma justa medida à arte de governar, de tentar escapar dela, de desloca-la, mas também de desenvolvê-la. A atitude crítica é a arte de não ser governado assim, a esse preço.

Michel Foucault (2015)FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015. identifica três pontos históricos do desenvolvimento de uma atitude crítica. O primeiro está relacionado à época em que governar era compreendido como uma arte espiritual, uma prática religiosa ligada à autoridade da igreja. Não querer ser governado daquela forma era buscar limitar o magistério eclesiástico com base na própria escritura. A atitude crítica era questionar-se como acessar a verdade da escritura e ainda sobre a verdade estar ou não na escritura, uma espécie de crítica bíblica. O segundo ponto remete ao período do século XVI, em que a atitude crítica era uma referência à injustiça, ao direito natural. Ou seja, era a prática de opor direitos universais e imprescritíveis a todo governo, o que Foucault denominou de crítica jurídica. Já o terceiro ponto é a prática de não aceitar como verdadeiro algo afirmado por uma autoridade sem a exigência de razões e justificativas, prática que ele identifica como a construção do problema da certeza em face da autoridade.

A partir dessas três situações, o autor relaciona a governamentalização com a prática da crítica, cujas relações amarram o poder, o sujeito e a verdade. Michel Foucault (2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 35) define então governamentalização como uma prática social de “sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade”, enquanto a crítica é o “movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade”. É o que ele chama arte da inservidão voluntária, uma prática de indocilidade refletida.

A função da crítica seria exatamente o desassujeitamento do sujeito na política da verdade, o que ele relaciona com a definição de Esclarecimento oferecida por Kant. Em suas palavras, “aquilo que Kant descrevia como Aufklärung é o mesmo que eu tento agora descrever como a crítica”, cuja origem no ocidente se dá a partir “daquilo que foi historicamente o grande processo de governamentalização da sociedade” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p.37). Para Foucault, a crítica de Kant é uma crítica aos limites do saber. É a ideia que nós fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites. Reconhecer os limites do conhecimento constituiria, portanto, uma relação de liberdade e autonomia. A crítica é a prática de desassujeitamento em relação ao poder e a verdade e sua tarefa é conhecer o conhecimento.

Os séculos XIX e XX intensificam essa atitude crítica a partir da ciência positivista, do desenvolvimento do Estado, ou seja, de um sistema estático, e da própria ciência do Estado, o estatismo, em uma relação entre ciência, poder e técnica. Nas reflexões alemãs desse período, surge uma desconfiança sobre a possibilidade de ser a própria razão a responsável pela governamentalização. Foucault menciona aqui os trabalhos da esquerda hegeliana da Escola de Frankfurt, em uma provável referência a Theodor Adorno, e a formação recente do estado alemão. Ele identifica nesses estudos a possibilidade de haver no processo de racionalização e na própria razão uma responsabilidade pelo excesso de poder. Na França, ao contrário, Michel Foucault identifica um pensamento de direita que não colocou em questão a relação entre racionalização e poder, especialmente em por causa da influência da Revolução.

Na época da conferência, contudo, Foucault entendeu haver uma mudança da situação francesa, o que possibilitava uma aproximação do problema entre ratio e poder e mesmo dos trabalhos da Escola de Frankfurt. Para o autor, tornar a Aufklärung a questão central da crítica significa engajar-se em uma prática histórico-filosófica. E Foucault (2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 42-43) é explícito em afirmar sua afinidade com a teoria crítica quando refere que o “domínio da experiência ao qual se refere esse trabalho filosófico não exclui absolutamente nenhum outro”, já que ele relaciona essa prática histórico-filosófica de fazer a própria história, “de fabricar como que por ficção a história que seria atravessada pela questão das relações entre as estruturas de racionalidade” às articulações dos mecanismos de assujeitamento. Em outros momentos, Foucault (1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.; 2005aFOUCAULT, Michel. Estruturalismo e pós-estruturalismo. In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. p. 307-334.) torna a apontar a aproximação dos seus trabalhos com a teoria crítica.

O autor formula as principais características dessa prática histórico-filosófica, e é interessante notar como elas se assemelham à própria compreensão da teoria crítica. Foucault (2015FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Texto & Grafia, 2015., p. 43) entende como característica da crítica “libertar os conteúdos históricos pela interrogação sobre os efeitos de poder, de que essa verdade supostamente depende, que os afeta”. Ele também identifica essa prática a uma época empiricamente determinável, ou seja, a modernidade, e a relaciona à formação do capitalismo, à constituição do mundo burguês, à localização dos sistemas estatais e à fundação da ciência moderna. Esse contexto histórico é indicado pelo autor como um período de organização da arte de ser governado e também da arte de não ser governado de determinada forma. Para Foucault, tornam-se explícitas as relações entre poder, verdade e sujeito nas transformações sociais.

Já em seu texto publicado em 1984, Michel Foucault ressalta outro aspecto importante da publicação de Immanuel Kant, ou seja, sua tentativa de compreender seu contexto histórico não em razão de uma totalidade ou a partir de uma realização futura, mas a partir de uma diferença na história. Para Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 337), “a Aufklärung é definida pela modificação da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da razão”. Seu destaque é a afirmação de Kant desde o início de seu texto sobre o Esclarecimento ser um processo prestes a acontecer, mas que também é uma tarefa pela qual o sujeito é responsável. Na leitura de Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 338), é necessário conceber que o sujeito não sairá do seu estado de menoridade “a não ser por uma mudança que ele próprio operará em si mesmo”.

O autor relaciona então os termos atitude crítica e atitude da modernidade, já que percebe uma relação de conflito entre a formação da modernidade e atitudes de “contramodernidade”. Michel Foucault também traz ao seu texto as contribuições de Charles Baudelaire para afirmar que a modernidade poderia ser caracterizada como a consciência de uma ruptura com a tradição e a assunção de uma determinada atitude com esse movimento de descontinuidade do tempo. Em suas palavras, “essa atitude voluntária, difícil, consiste em recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 342). Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 343) também se refere a essa atitude moderna como uma “transfiguração que não é anulação do real, mas o difícil jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade”. A atitude de modernidade está na imanência de imaginar o presente “de modo diferente do que ele não é, e transformá-lo não o destruindo, mas captando-o no que ele é” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 344). É a prática de uma liberdade que ao mesmo tempo respeita e infringe o real.

A principal contribuição de Michel Foucault, entretanto, é relacionar essa atitude crítica ou atitude de modernidade não só à transformação do presente, mas também a compreender como forma de relação consigo mesmo (ARAÚJO, 2018ARAÚJO, Dhyego Câmara de. Atitude crítica e o sujeito de direitos das políticas (não)identitárias. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 1-27, 2018.). Em suas palavras, “ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam: é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 344). Ser uma pessoa na modernidade é enfrentar a tarefa de inventar a si mesma.

Para Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 345), a ligação com os compromissos da Aufklärung está em uma reativação contínua de uma atitude crítica, um ethos filosófico que ele caracteriza como “crítica permanente de nosso ser histórico”. E ainda opõe essa atitude crítica a qualquer entendimento de humanismo, em razão de um “princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 346). Para Michel Foucault (2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351., p. 348), a tarefa principal da atitude crítica é avançar “tão amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade”.

Em seus últimos trabalhos, Michel Foucault afirma que o objetivo de toda sua obra “foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 231). Ele parece esboçar o que chamou de uma nova economia das relações de poder, ou seja, uma maneira de “usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 234). Ele afirma que lutas antiautoritárias têm como objetivo controlar os efeitos do poder e que, na atualidade, elas são lutas que questionam o estatuto do indivíduo, “afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 234). Em outras palavras, são lutas contra as formas de subjetivação e submissão, um tipo de luta social contra a submissão da subjetividade. A forma de resistência seria então a participação direta no processo de subjetivação. Para Michel Foucault (1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. (Org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., p. 239), “talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser”.

Nestes trabalhos, Foucault indica que a teoria do direito, desde a Idade Média, tem buscado fixar legitimidade ao poder, o que ele entende como o problema da soberania. A função da técnica e do discurso jurídicos, segundo ele, tem sido dissolver a dominação no interior do poder para fazer aparecer direitos legítimos de soberania e a obrigação legal de obediência. Foucault (1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 34) diagnostica o direito como um instrumento de dominação, com técnicas e práticas de sujeição, porque entende que o propósito de juristas é investigar como, “a partir da multiplicidade dos indivíduos e das vontades, pode se formar uma vontade ou ainda um corpo único, mas animados por uma alma que seria a soberania”.

Sua noção de poder, contudo, é ambígua e bastante contraditória com essa perspectiva. Para Foucault, o poder não pode ser entendido como algo que algumas pessoas têm e outras não, de modo que alguns indivíduos são submetidos a outros. O poder, em suas palavras, “deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 35). O poder é exercido em rede e todas as pessoas estão sempre em posição de exercê-lo e de serem a ele submetidas. Ou seja, “o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 35).

O sujeito, portanto, sofre os efeitos do poder e é a partir desses efeitos que ele pode ser identificado e constituído como indivíduo. Para Foucault (1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 35), o sujeito “é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”. Como o direito seria então uma forma de dominação completa dos sujeitos? Não há uma possibilidade de resistência ao poder na própria formação dos indivíduos? Foucault percebe que a teoria da soberania foi um instrumento crítico dos séculos XVIII e XIX contra a monarquia, mas também indica que ela possibilitou o desenvolvimento de uma sociedade disciplinar ao mascarar seus procedimentos e técnicas de dominação.

Márcio Alves da Fonseca (2012)FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012. identifica três diferentes imagens de direito nas obras de Michel Foucault. A primeira, de um direito como legalidade, é uma oposição entre normalização e direito. A partir da noção de ilegalismos, Foucault compreende o direito como um jogo contínuo entre ilegalidades estabelecidas formalmente e ilegalidades toleradas informalmente. A segunda imagem, de um direito normalizado-normalizador, é uma implicação entre normalização e direito (Cf. MALCHER, 2018MALCHER, Farah de Sousa. A Normalização do Sujeito de Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2100-2116, 2018.). Foucault analisa aqui o princípio jurídico da soberania e sua relação com a dominação e com técnicas de sujeição. Nos últimos trabalhos de Michel Foucault, Fonseca reconhece uma terceira imagem, a de um direito novo, uma nova oposição entre normalização e direito, pela qual é possível identificar práticas do direito que se oponham à normalização. A partir de um afastamento desse princípio da soberania, Foucault busca, segundo o autor, práticas de afirmação da autonomia e da liberdade das pessoas no direito.

Nessa imagem de um direito novo, Fonseca (2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 244) analisa um aspecto negativo de desconfiança da forma direito na obra foucaultiana, que se refere a “desconfiar de um domínio de saberes e práticas em que os mecanismos da normalização e a estrutura formal decorrente de um princípio da soberania formam uma unidade”. Ou seja, a desconfiança de Foucault parece se referir a pretensões de totalização da forma direito, a práticas de formação de um todo uno e coeso. A implicação da forma direito com o princípio da soberania, para Foucault, envolve o direito no problema da legitimidade do poder e da obrigação legal da obediência. A desconfiança do autor estaria justamente na forma direito cujo desenho seja uma mecânica da ordem. Em outras palavras, o incômodo de Foucault com a gramática jurídica parece se referir muito mais às situações em que não há primazia da lei, mas de uma imposição de ordem social que tenderia a penalizar comportamentos em vez de punir infrações.

Mas Fonseca também identifica no direito novo de Foucault um aspecto positivo, ou seja, uma possibilidade de práticas jurídicas capazes de oposição à normalização. Esse aspecto está diretamente ligado à prática da atitude crítica em contraposição às artes de governar, “uma maneira de se desconfiar delas, de recusá-las, limitá-las, transformá-las, uma maneira de procurar delas escapar” (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 259). Enquanto a arte de governar encerra uma obrigação de obediência, a atitude crítica coloca em oposição a universalidade das normas do direito ao próprio governo, submetendo-o.

Fonseca expõe na obra de Michel Foucault uma tensão própria das artes de governar. Se governamentalização é “o movimento pelo qual se trata de assujeitar os indivíduos por meio de mecanismos de poder que reclamam para si uma verdade no interior da realidade de uma prática social” (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 260), a crítica é o processo pelo qual o sujeito interroga a verdade sobre seus efeitos de poder, assim como interroga o poder sobre seus discursos de verdade. A resistência aos mecanismos de normalização do direito, portanto, deve ser procurada em práticas jurídicas que expressem uma atitude crítica.

Em seus últimos trabalhos, Foucault refere como seu objeto de pesquisa a autoconstituição dos sujeitos a partir de práticas de si em relação com o saber e o poder. Fonseca demonstra como é possível falar, nesse período, sobre subjetivação e não em assujeitamento nos trabalhos foucaultianos. O sujeito, para Foucault, seria “resultado de um processo de subjetivação que estaria apoiado em um conjunto de práticas de si’” (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 266). Nesse processo de subjetivação, destaca Fonseca, está imbricada a questão de “como governar a si mesmo” a partir de práticas refletidas da liberdade.

O direito novo de Foucault seria então a expressão de práticas de direito, ou seja, práticas de resistência às variadas formas de governamentalidade operadas pelos mecanismos de normalização. Márcio Alves da Fonseca demonstra que o próprio autor identificou a impossibilidade de se pensar em apenas uma única forma do direito, no sentido de uma uniformidade ser incapaz de responder às demandas infinitas das pessoas. Foucault deseja evitar que a norma jurídica se torne uma forma de reduzir a pluralidade social, por isso entende que o direito deve atentar para uma regulação social dinâmica e transformável, que jamais será definitiva. Nas palavras de Fonseca (2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 279), “o direito só pode exercer seu papel no jogo da regulamentação social se for objeto de uma inquietação permanente”.

A legitimidade do direito em Foucault, observa Fonseca, está nas práticas de reivindicação das pessoas de suas pretensões de direitos. A imagem foucaultiana de um direito novo remete à possibilidade de manifestação das pessoas no interior dos mecanismos de poder e de saber que as sujeitam, remete à possibilidade de uma atitude crítica, de “exercitar de modo refletido sua liberdade” (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 313).

Assim como Michel Foucault, Judith Butler também se aproxima da teoria crítica em muitos trabalhos. Em Relatar a si mesmo (2017b), a autora explicita que não está totalmente fora do que chama de “círculo do esclarecimento”, em referência às proposições que iniciaram com a obra de Immanuel Kant. Seu posicionamento se refere tanto à sua compreensão do sentido de crítica, quanto do limite da razão ser o signo de nossa humanidade. Para esta análise da função da ideia de pessoa na forma jurídica, um dos fundamentos teóricos é a formulação de Butler sobre a relação crítica do sujeito com a norma. Essa concepção resulta de sua leitura de Kant e Foucault sobre a prática da crítica, encontrada especialmente no artigo O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault (2013).

A partir da noção de crítica de Foucault, segundo a qual ela é sempre feita em relação a algo que não ela mesma, Judith Butler imbrica a crítica com o próprio processo de subjetivação. Para Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 167), “adotar uma postura crítica diante de uma autoridade que se pretende absoluta exige uma prática crítica que tem por base a transformação do eu”. Para construir essa compreensão do processo de subjetivação, Judith Butler (2013)BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013. primeiro diferencia o juízo da prática da crítica. Assim como Foucault, ela entende a crítica como a suspensão do juízo, pois é essa suspensão que torna possível o oferecimento de uma nova prática de valor. Elaborar um juízo é “subsumir um particular a uma categoria já constituída” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 160), e a prática da crítica é uma operação diretamente oposta. Em uma aproximação das visões de Theodor Adorno e Michel Foucault, Butler entende que criticar é tornar explícita a constituição fechada das categorias. A crítica, portanto, deve apreender “os modos pelos quais as categorias são, elas próprias, instituídas”, mas também “o modo como o campo do conhecimento é ordenado, e como o que ele prescreve retorna, por assim dizer, como sua oclusão constitutiva” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 160). Em outras palavras, a crítica precisa destacar a instituição das categorias, seu ordenamento e sua maneira de operar, que é justamente ocultando sua instituição.

A autora pretende oferecer então uma forma de crítica com forte compromisso normativo, cujo objetivo é destacar a própria estrutura de avaliação. Isso porque há uma relação entre conhecimento e poder que forja as certezas epistemológicas do sujeito, é suporte para sua maneira de estruturar o mundo e elimina a possibilidade ordenação alternativas. Com o objetivo de recuperar um sentido mais fundamental do termo crítica, Judith Butler pretende identificar o lugar da ética dentro da política. Ela entende que essa é a contribuição foucaultiana sobre o significado da crítica como prática questionadora dos limites de nossas formas de conhecimento.

Para tanto, a autora parte da ideia de crise como esgarçamento do tecido de nossa rede epistemológica, em que “as categorias segundo as quais nossa vida social é ordenada produzem uma certa incoerência ou domínios inteiros de ininteligibilidade” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 163-164). A prática da crítica, portanto, surge exatamente de um impasse produzido pelo confronto com os discursos dominantes. Mais do que apresentar uma função ordenadora, a crítica possibilita a exposição dos limites do conhecimento. E estaria relacionada à virtude, conforme afirma Foucault, porque é contrária à regulação e à ordem, já que desafia a ordem estabelecida (ARAÚJO, 2018ARAÚJO, Dhyego Câmara de. Atitude crítica e o sujeito de direitos das políticas (não)identitárias. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 1-27, 2018.).

Judith Butler apresenta nesse trabalho a ideia de relação crítica com as normas, ou seja, a possibilidade de deliberação e de compreensão crítica do significado normativo, a viabilidade de alteração das normas pelos processos de subjetivação. Em sua análise das “artes de existência” de Michel Foucault, presente na obra A história da sexualidade, Judith Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 165) entende como “o ‘eu’ que se modela nos termos da norma passa a habitá-la e a incorporá-la”, motivo pelo qual “a norma não é nesse sentido exterior ao princípio pelo qual o ‘eu’ se forma”.

A autora fala em uma autoprodução materializada pelo sujeito a partir da incorporação de regras de conduta. Nessa autoprodução, o sujeito constrói para si uma determinada forma de subjetivação, em uma atividade que Foucault identificou como exercício de poder e prática da liberdade. A relação do sujeito com as normas, portanto, não é previsível, mas crítica, pois não se conforma com nenhuma categoria dada, mas antes procura desestabiliza-la, modifica-la e rechaça-la. É o que Butler afirma como “relação problematizadora com o próprio campo de categorização”, pois a pessoa remete seu processo de subjetivação para os limites epistemológicos em que essa prática se forma.

A crítica para Judith Butler (2013)BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013. é, antes de mais nada, a própria exposição dos limites do horizonte epistemológico e também a transformação do “eu” em sua relação com as normas. Seu objetivo é compreender como essa mudança do sujeito se relaciona a uma prática de liberdade e à atitude crítica foucaultiana. Primeiro, a autora diferencia a condução do sujeito conforme um código de conduta de sua constituição como sujeito ético em relação a uma norma. E depois distingue também sua constituição como sujeito desafiador de uma ordem rígida do código de conduta.

Sua leitura do texto de Foucault, mais vinculada à ética do que o próprio autor, entende a prescrição moral como impulsionadora de uma espécie de ação. Ela diferencia então uma ética baseada no comando, relacionada à obediência, de uma ética que convida o “eu” a se criar, fundamentada na virtude foucaultiana. Segundo Butler, resistir à autoridade é a principal característica foucaultiana do Esclarecimento, e a prática da crítica consiste em questionar a obediência absoluta e submeter as obrigações governamentais a um exame racional. Há, portanto, uma relação íntima entre a capacidade de aduzir razões e a transformação de si (ASSY, 2016ASSY, Bethânia. Subjetivação e ontologia da ação política diante da injustiça. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 777-797, 2016.). Uma postura crítica à autoridade com pretensões absolutas é construir uma prática crítica cujo fundamento é as transformações do “eu”, pois o sujeito forma essas razões sozinho, se transforma e coloca em risco o próprio campo da razão.

Judith Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 168) enfrenta então a possibilidade de autonomia do sujeito, já que “não há como aceitar ou rejeitar uma regra sem um ‘eu’ que se estilize em resposta à demanda ética que se lhe impõe”. O desejo de não ser governado analisado por Foucault está relacionado à objeção da imposição do poder, contra o preço a se pagar pela sujeição e contra a forma pela qual o poder é administrado. A crítica é o meio pelo qual a resistência se redesenha, mas ela não “descobre esses direitos universais; ela os posiciona”, perspectiva que Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 169) entende como contrária aos teóricos iluministas. Ela ainda afirma que o posicionamento desses direitos universais não é feito em forma de direitos positivos, já que “o ‘posicionar’ é um ato que limita o poder da lei, ato que contraria e rivaliza com os mecanismos do poder no momento em que estes se renovam” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 169). O posicionamento desses direitos universais é o posicionar da limitação, o qual afirma um “direito” de questionar, nas palavras da autora.

Por outro lado, a crítica como prática de liberdade não é puro voluntarismo, pois ela aponta os limites da autoridade absoluta a partir dos próprios horizontes em que opera. Ou seja, a crítica se forma por um embate, uma troca entre as normas dadas e a estilização de atos do sujeito, a qual reformula o conjunto prévio de regras. Quando o sujeito atribui ou destitui a autoridade de validade, portanto, ele realiza um movimento reflexivo, um ato de consentimento arriscado para si mesmo (ASSY, 2016ASSY, Bethânia. Subjetivação e ontologia da ação política diante da injustiça. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 777-797, 2016.). A recusa de uma exigência governamental também constitui uma recusa da sua possibilidade de torna-se legível. Também para Judith Butler a relação crítica parece uma ambígua operação de liberdade e de limitação do poder.

Para materializar a análise da autora, podemos citar brevemente os exemplos da mudança do nome e do sexo no registro civil de pessoas trans e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ambos os temas foram objeto de estudo por Butler em outras obras, como Problemas de gênero (2015BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) e O parentesco é sempre tido como heterossexual? (2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, São Paulo, n. 21, p. 219-260, 2003.), respectivamente. Com a demanda pela mudança do seu registro civil, as pessoas trans colocaram em risco sua própria inteligibilidade no ordenamento jurídico. Mas, ao mesmo tempo, essa reivindicação demonstra os limites do instituto do sexo civil, do seu desenho institucional com os termos “feminino” e “masculino” e de toda sorte de significados jurídicos cristalizados com eles, como, por exemplo, a vinculação do instituto à morfologia humana.

As demandas por casamento entre pessoas do mesmo sexo também explicitam os limites da regulação jurídica das relações humanas, mas sem deixar de arriscar uma apreensão dos seus processos de subjetivação pelo direito. Sua inclusão na gramática jurídica não poderia contribuir para a legitimação de seu poder de regular essa forma de relação humana? Não auxiliaria de alguma forma a naturalização de determinadas maneiras de viver em detrimento de outros arranjos relacionais, como o casamento poligâmico ou qualquer outra forma alternativa de casamento a ser reivindicada pela sociedade?

Esse risco da incorporação dos processos de subjetivação pela gramática jurídica está diretamente relacionado no envolvimento inevitável das práticas de governo nas práticas das pessoas governadas. Nas palavras de Judith Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 170), “ser governado implica, além de ter um modelo imposto sob a sua existência, receber de antemão os termos dentro dos quais sua existência será ou não possível”. O sujeito tanto se constitui a partir de uma relação com o regime de verdade estabelecido quanto pode adotar uma perspectiva própria perante esse regime, mas não sem o recurso a esse mesmo regime.

Butler recupera aqui a política do desassujeitamento, desenvolvida por Michel Foucault, segundo a qual os processos de constituição da pessoa sujeito se dão concomitantemente aos seus processos de desassujeitamento. E esses processos compõem o risco da prática de um modo de existência não corroborado pelo regime de verdade foucaultiano. Para a autora, a liberdade da pessoa acontece nos limites do conhecimento e esse movimento formula o desassujeitamento do sujeito dentro de um regime de verdade. Posicionar a questão de quem posso ser dentre as possibilidades que me são oferecidas é colocar em risco nossa liberdade, motivo pelo qual manifestar a liberdade é uma virtude. Se o poder reprime o sujeito através de sua força coercitiva, “é a resistência a essa coerção que configura a estilização do ‘eu’ perante os limites estabelecidos do que se pode ser” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 172).

Butler destaca, como tarefa primordial da crítica para Foucault, identificar a relação entre formas de coerção e formas de conhecimento, já que conhecimento e poder não se separam, mas estabelecem um conjunto de critérios para a crítica. Para a autora, a crítica apresenta uma tarefa dupla. Primeiro, explicitar como as articulações entre conhecimento e poder constroem um modo de ordenação do mundo com condições próprias de inteligibilidade. Segundo, identificar as linhas de ruptura de sua própria constituição. A ideia de Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 173) é “rastrear o ponto em que este campo beira o colapso, os momentos de suas descontinuidades, os locais em que a inteligibilidade que tanto sustenta, ameaça caducar”. A tarefa da crítica parece ser identificar as condições e os limites da constituição de um campo a fim de explicitar sua mutabilidade manifesta.

A tarefa da crítica está imbricada no próprio processo de subjetivação dos sujeitos, cuja formação ocorre pela própria reflexividade, com a tomada para si da tarefa de formação. Nas palavras de Judith Butler (2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 178), “o ‘eu’ delimita a si próprio e escolhe o material a ser utilizado para a sua criação”, porém “a delimitação que o ‘eu’ realiza dá-se por normas que, invariavelmente, já estão dadas”. Não há, portanto, a formação de um sujeito fora de um modo de subjetivação, ou seja, não há a formação de um sujeito fora das normas que desenham as condições sociais de sua formação. O sujeito forma a si mesmo, mas sempre dentro de práticas de formação designadas por Butler como modos de subjetivação.

Também é importante a análise dos trabalhos de Judith Butler cujo principal foco é a contingência dos processos de subjetivação. Butler (2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a., p. 89) destaca a ambiguidade do termo “subjetivação” nos trabalhos de Michel Foucault, pois percebe “tanto o devir do sujeito quanto o processo de sujeição”, já que, segundo ela, “só se habita a figura da autonomia sujeitando-se a um poder”. Ela aponta que o processo de subjetivação foucaultiano forma o corpo, o que não significa sua causa ou determinação por um discurso de poder, como o discurso jurídico de Vigiar e punir (MALCHER, 2018MALCHER, Farah de Sousa. A Normalização do Sujeito de Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2100-2116, 2018.). Butler (2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a., p. 90) também faz notar que a regulação não parece estar fora do poder nas obras de Foucault, mas, ao contrário, há a construção de uma identidade dentro de uma gramática de poder. Esse processo de sujeição, portanto, constitui o sujeito, é o “princípio de regulação segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido”.

A sujeição seria então um poder que age sobre a pessoa, enquanto forma de dominação, mas também ativa o sujeito. Em outras palavras, o processo de sujeição não é apenas a dominação de uma pessoa nem significa a sua produção, mas “designa um certo tipo de restrição na produção” (BUTLER, 2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a., p. 90), uma espécie de limite necessário para a produção do sujeito. Para Judith Butler (2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a., p. 90) está explícito na obra de Foucault que o “sujeito produzido e o sujeito regulado ou subordinado são a mesma coisa, e a produção compulsória é a sua própria forma de regulação”. A autora se aproxima então das críticas psicanalíticas a Michel Foucault e afirma que a psique “é o que resiste à regularização que Foucault atribui aos discursos normalizadores” (BUTLER, 2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a., p. 92).

Pelo trabalho de Judith Butler (2017b)BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., também é possível compreender os termos disponibilizados pela gramática jurídica para a identificação dos sujeitos como impulsos interpelativos que provocam os processos de subjetivação. Mas ainda que o direito determine os termos de identificação, não necessariamente as pessoas constroem sua subjetividade restrita a eles. Como afirma Sonja Buckel (2014BUCKEL, Sonja. “A forma na qual as contradições podem se mover”: para a reconstrução de uma teoria materialista do Direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 366-385, 2014., p. 382) em relação ao direito, “estruturas criam somente possibilidades, não determinações”. É possível compreender então que a interpelação jurídica desencadeia um processo ambíguo de legitimação dessa gramática e de relação crítica com ela. Isso porque os sujeitos constantemente apropriam-se dos significados jurídicos das normas de regulação da personalidade para afirmar seus processos de entendimento de si, seus modos de vida, mas também para disputar novos sentidos da norma, modifica-la ou rechaça-la.

Um exemplo dessa determinação dos termos de identificação que não é suficiente para expressar os modos de subjetivação encontrados na sociedade é a relação de pessoas trans com o nome e o sexo civis. Antes da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.275/2018, não era possível modificar o nome e o sexo no registro civil sem um processo judicial, o qual invariavelmente patologizava as identidades trans em razão das provas requeridas no procedimento (SILVA, 2018SILVA, Simone Schuck da. Fora da norma? Conflitos dogmáticos nas demandas por retificação de nome e sexo no registro civil. 2018. 147 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, 2018.). E mesmo com a decisão do STF o sexo jurídico ainda é restrito aos termos “feminino” e “masculino”, o que impossibilita a identificação de pessoas trans não-binárias. Ou seja, os termos disponibilizados atualmente pela gramática jurídica do sexo civil não possibilitam a plena apropriação social dos seus significados. Eles permanecem fechados, rígidos e excluem alguns processos de subjetivação presentes na sociedade.

Para Judith Butler (2017b)BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., uma relação crítica com a norma significa exatamente essa possibilidade de as pessoas deliberarem sobre as normas que regem suas vidas, de construírem uma compreensão crítica do seu significado. Sua obra parece conectar as ideias de Michel Foucault sobre a relação crítica e a importância da criatividade para a criação de valores, as críticas psicanalíticas à sua obra e suas contribuições próprias de uma ética da responsabilidade. A autora aponta como a prática da crítica às normas jurídicas viabiliza a exposição dos seus limites. A relação crítica, portanto, é uma relação ambígua. A liberdade do sujeito de direitos funciona dentro de um campo normativo facilitador e limitante de restrições. Nem a norma produz o sujeito como um efeito puro de si, “tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade”, ou seja, “o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 31).

Para Judith Butler (2017b)BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., a relação crítica do sujeito com as normas e a consequente construção de sua autonomia está relacionada ao que denominou de opacidade primária do si mesmo. A pessoa, como ser relacional, engaja-se desde o início de sua vida em relações primárias que não podem ser completamente apreendidas pelo conhecimento consciente com o seu desenvolvimento. Mas essas relações primárias são necessárias para o entendimento de si. Em outras palavras, nossa formação como pessoa se dá no contexto de relações parcialmente irrecuperáveis. Essa opacidade parece então fazer parte da nossa formação “e é consequência da nossa condição de seres formados em relações de dependência” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 32).

Essa opacidade, ou seja, essa impossibilidade de o sujeito recuperar suas relações primeiras sustenta a sua responsabilidade. Sem poder ser capturado por uma narrativa completa, o sujeito sempre faz o relato de si para o outro. Quando se imbrica em seu processo de subjetivação, o faz em relação ao outro. E é o outro que estabelece a cena de interpelação, a possibilidade de o sujeito construir-se como sujeito (ASSY, 2016ASSY, Bethânia. Subjetivação e ontologia da ação política diante da injustiça. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 777-797, 2016.). Os termos desse relato de si, cuja pretensão é nos fazer inteligíveis para nós e para os outros, não são criados por nós. Pelo contrário, são sociais, mas isso não significa que eles possuam uma totalidade estruturalista ou invariabilidade transcendental (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b.).

Há um certo domínio de falta de liberdade na própria construção da autonomia. Butler (2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 35) explicita, porém, que “nossas decisões não são determinadas pelas normas, embora as normas apresentem o quadro e ponto de referência para quaisquer decisões que venhamos a tomar”. E ressalta ainda a indeterminação desse quadro normativo: “é através desse quadro que as normas que governam o reconhecimento são contestadas e transformadas” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 35).

Esse caráter social das normas estrutura a relação mediada pelo normativo. No direito, as normas jurídicas são sociais porque estruturam as relações jurídicas, ou seja, apenas constroem o sujeito de direitos a fim de posicioná-lo nas relações de direito, torna-lo centro de imputação em relação aos demais. Há uma reciprocidade no processo de reconhecimento, em que a pessoa reconhece e é reconhecida como sujeito de direitos em uma relação jurídica. Nesse processo, há também uma perda constitutiva, em que o sujeito é transformado pelas suas relações, ou, como afirma Butler (2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 42), “o si-mesmo é o tipo de ser para o qual a permanência de si prova-se impossível”. Portanto, além de não sermos os únicos agentes de nossa própria construção, essas relações com o outro provocam mudanças recíprocas em nossos processos de subjetivação.

Poderíamos analisar aqui as mudanças que o instituto da personalidade jurídica sofre em seu estado civil a partir da adoção do instituto do casamento. A pessoa muda sua forma de identificação dentro da gramática jurídica ao mesmo tempo em que também altera o estado civil da pessoa com quem realiza a relação de direito. Os institutos que constroem a personalidade jurídica tendem a incorporar assim os modos de subjetivação das pessoas.

Judith Butler percebe isso ao analisar a relação dos sujeitos com as normas, segundo a qual eles não são efeitos necessários das normas nem totalmente livres para ignorá-las. Em suas palavras, “as normas são sociais, mas isso não significa que elas possuam uma totalidade estruturalista ou invariabilidade transcendental” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 37). Por isso, Butler desenvolve em seus trabalhos o processo pelo qual as normas usam os modos de subjetivação dos sujeitos para constituir uma grade de inteligibilidade na mesma medida em que os sujeitos usam a norma para construírem seus processos de subjetivação. Há uma ambiguidade no sujeito de Judith Butler, pois ele não pode ser definido exclusivamente por sua própria vontade e nem completamento destituído dela. Pela relação crítica com as normas, o sujeito constitui a si mesmo, constitui sua reflexividade.

Os processos de subjetivação portanto, são sempre sociais, pois a própria “relação com o si-mesmo é uma relação social e pública, sustentada inevitavelmente no contexto de normas que regulam as ações reflexivas” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 147). As práticas críticas dos sujeitos revelam os esquemas sociais de inteligibilidade, mas também são seu meio de ruptura, transformação e revisão desses esquemas. São sua forma de consolidar as normas sociais ou contestar sua hegemonia. Mas a autora não deixa de indicar os problemas de enfrentar normas cristalizadas historicamente, o risco do sujeito de enfrentar as normas pelas quais se torna inteligível. Para Butler (2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b., p. 155), se as normas são naturalizadas ou dadas como certas, se elas são consideradas “fundacionais e necessárias, se se tornam os termos que devem guiar o que fazemos e como vivemos, então nossa própria vida depende de uma negação de sua historicidade, uma renegação do preço que pagamos”. A proposta deste artigo é demonstrar como essa atitude crítica viabilizada pelas reivindicações da pessoa na gramática do direito é o espaço democrático para negociar esse preço.

Mas Butler só trata explicitamente do direito em seu último trabalho, Critique, crises, and the elusive tribunal, em que apresenta as ideias de pessoa como intérprete crítica da norma jurídica e a consequente instauração de uma crise no direito. Butler (2019, p. 547, tradução nossa) compreende crítica como um termo passível de ser jurídico, mas vê o tipo processo de tomada de decisão que a crítica caracteriza se estender para além desse domínio, especialmente, afirma, “quando a justiça não pode ser encontrada no direito”. A autora aponta para outras formas de lidar com os conflitos sociais para além da regulação jurídica tradicional. Butler (2019, p. 551, tradução nossa) fala em uma “técnica de governança civil” para designar “um modo de viver com disputas” ou “um modo de aprender a conviver com disputas sem destruição”. A autora entende neste trabalho que o direito destrói formas de vida porque cria tanto um “dentro” quanto um “fora” com sua gramática, o que exclui grupos sociais vulneráveis. Afirma que sua técnica de governança civil é apenas um outro nome para “a crítica como um modo de vida não regulamentado pelo direito” (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Critique, crises, and the elusive tribunal. In: GORDON, Peter; HAMMER, Espen; HONNETH, Axel (Ed.). The Routledge Companion to the Frankfurt School. New York: Routledge, 2019. p. 542-553., p. 551). Sua intenção é construir uma técnica fora do direito que “aceite e trabalhe com o conflito de forma continuada, não elimine conflitos, mas busque uma forma de resolução em uma forma de vida” (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Critique, crises, and the elusive tribunal. In: GORDON, Peter; HAMMER, Espen; HONNETH, Axel (Ed.). The Routledge Companion to the Frankfurt School. New York: Routledge, 2019. p. 542-553., p. 551, tradução nossa).

Não seria possível, contudo, pensar esse “processo de tomada de decisão” para além da decisão judicial realizada por um tribunal? E se caracterizarmos essa narrativa de injustiça, pela qual o sujeito de direitos opera sua crítica às normas jurídicas, como parte de processo autônomo de construção da gramática do direito? A decisão tomada seria então postular um modo de subjetivação ao domínio jurídico a partir do domínio de liberdade subjetiva viabilizado pela própria gramática do direito.

Butler (2019)BUTLER, Judith. Critique, crises, and the elusive tribunal. In: GORDON, Peter; HAMMER, Espen; HONNETH, Axel (Ed.). The Routledge Companion to the Frankfurt School. New York: Routledge, 2019. p. 542-553., contudo, parece estar mais preocupada em afastar qualquer vínculo necessário entre a ideia de julgamento e os tribunais de direito, pois compreende que o julgamento é ativado pela crise, cuja resolução não se dá pela restauração de uma ordem prévia. Para a autora, o julgamento forma e abre caminho para a crise. Essa perspectiva parece identificar necessariamente o direito como um processo de restauração do estado das coisas. Mas se tomarmos sua promessa de igualdade perante a lei como potencial de inclusão incessante de novas demandas, conforme José Rodrigo Rodriguez (2013)RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desintegração do status quo: direito e lutas sociais. Novos estudos, São Paulo, n. 96, p. 48-66, jul./dez. 2013. demonstra, o papel do direito se inverte. A gramática jurídica como gramática da desintegração parece justamente disponibilizar a forma e os caminhos para a crise. Para Butler (2019, p. 549, tradução nossa), por outro lado, “a crítica age como direito, até toma o lugar do direito, revisa o direito e não é exatamente direito”.

A autora critica o poder do indivíduo como sujeito de direitos, pois entende que o povo só teria direitos em relação ao poder do Estado, ou seja, nos termos de sua sujeição ao poder do Estado, um problema para uma visão crítica do direito, conforme Neumann já havia demonstrado. Em seguida, Butler (2019, p. 549, tradução nossa) afirma que essa contradição é dissolvida quando “a soberania popular prova não depender mais do estado do qual se rompe revolucionariamente”, o que ela entende por “romper sem permissão para romper, libertando-se dessa dependência e exercendo a liberdade de estabelecer uma nova política”. Mas não seria exatamente essa a operação crítica que o sujeito pratica em relação às normas quando as reivindica com o objetivo de transforma-las? Há um poder do Estado que não seja aquele conformado a partir do processo político em que as pessoas são as criadoras das normas que regem suas vidas?

Essa parecia ser a perspectiva de Butler em um trabalho anterior, O Clamor de Antígona, no qual ela analisa o processo de absorção da linguagem estatal contra a qual a personagem Antígona se rebela. Butler (2014BUTLER, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis: UFSC, 2014., p. 23) entende então que Antígona “ocupa um espaço de tensão dentro de um sentido ambíguo da lei”. A resistência de Antígona às normas estatais está implicada no próprio poder a que ela se opõe, o que revela a ambiguidade e a contingência da linguagem do estado, uma possibilidade de sua disputa e transformação. Antígona assimila a linguagem da soberania estatal para expressar a recusa de seus termos. Afirma-se pela voz do outro a quem contesta. Antígona conquista sua autonomia, portanto, “através da apropriação da voz autorizada daquele a quem se resiste, uma apropriação que traz consigo traços de uma simultânea recusa e assimilação dessa própria autoridade” (BUTLER, 2014BUTLER, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis: UFSC, 2014., p. 30).

Judith Butler (2014BUTLER, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis: UFSC, 2014., p. 50) afirma que “Antígona não pode fazer sua reinvindicação fora da linguagem do Estado, porém a reivindicação que deseja fazer tampouco pode ser plenamente assimilada por este”. Antígona, portanto, não está falando de fora da gramática do direito. Ela não é exatamente ininteligível pela norma, mas formula sua existência dentro das normas do estado para então subverte-las. Na mobilização das normas estatais, há um aceite e uma recusa do quadro normativo. E a reivindicação das normas é uma prática crítica na medida em que elas são usadas de formas não necessariamente concebidas pelo Estado. De qualquer forma, “a crítica não pertence a um sujeito singular, mas ao público” (BUTLER, p. 550, tradução nossa), tampouco está restrita às possibilidades da gramática jurídica. Mas, quando se opera a crítica no interior dos termos do direito, é pela ideia de pessoa que é possível estabelecer essa relação.

Sua operação crítica compreendida como “técnica de governança civil” estaria então exatamente fora do direito? Em O clamor de Antígona (2014) e Relatar a si mesmo (2017b), Butler explicita que é a partir de próprio repertório jurídico que se torna possível transformá-lo ou mesmo rechaça-lo, ou seja, utilizá-lo como resistência à sua própria normalização (ARAÚJO, 2018ARAÚJO, Dhyego Câmara de. Atitude crítica e o sujeito de direitos das políticas (não)identitárias. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 1-27, 2018.). É possível perceber, portanto, que neste último trabalho de Butler está pressuposta o que José Rodrigo Rodriguez (2019)RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019. denominou de gramática jurídica de regras, pela qual são regulados comportamentos abstratos e a eles relacionados consequências jurídicas positivas ou negativas.

Há uma identificação compulsória do direito com essa gramática. Em outras palavras, há uma naturalização da gramática do direito no trabalho de Butler em razão de uma aposta nos problemas do dilema da diferença, segundo o qual “a regulação jurídica precisa se vincular a certas características” (HOLZLEITHNER, 2016HOLZLEITHNER, Elisabeth. Emancipação por meio do direito? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 889-900, 2016., p. 895). A autora também naturaliza o desenho institucional do direito ao afirmar que as decisões jurídicas são tomadas necessariamente pelo judiciário, ou seja, que as decisões jurídicas são necessariamente judiciais. Suas proposições trilham para uma solução mais ética do que jurídica para lidar com as divergências sociais, o que pode apontar para um déficit democrático em sua obra. Afinal, uma proposta ética impõe uma estrutura de valores sem que haja espaço para as disputas sociais. Seu problema parece ser justamente entender a justiça como “uma busca viva em meio a crises e conflitos, antecipando sua resolução” (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Critique, crises, and the elusive tribunal. In: GORDON, Peter; HAMMER, Espen; HONNETH, Axel (Ed.). The Routledge Companion to the Frankfurt School. New York: Routledge, 2019. p. 542-553., p. 552, tradução e grifo nossos), como se houvesse uma solução pré-determinada aos conflitos da sociedade.

Apesar das importantes críticas dos trabalhos de Michel Foucault e Judith Butler sobre a apreensão dos processos de subjetivação pela forma jurídica, ao contextualizá-las com uma teoria crítica do direito, é possível perceber que elas não consideraram outras formas de juridificação além da regulação tradicional. Seu próprio diagnóstico faz notar que a universalidade postulada pelas normas jurídicas são o recurso preciso para transformá-las. Em nossa perspectiva, este aspecto aproxima seus trabalhos da teoria crítica do direito desenhada por José Rodrigo Rodriguez.

Para possibilitar uma forma democrática de relação crítica com as normas ou mesmo de um processo de ressignificação, como Judith Butler defende em A vida psíquica do poder (2017a), é necessário um processo de institucionalização. Ou seja, é necessário dispor de uma forma institucional que garanta a participação de todas as pessoas na prática da crítica aos seus processos de subjetivação, sob pena dessa prática ficar restrita à imposição de uma congruência ética entre os sujeitos sociais.

É fundamental para esta análise da função da ideia de pessoa no direito, portanto, a análise da teoria da institucionalização democrática desenvolvida por José Rodrigo Rodriguez. Em sua obra mais recente, Direito das lutas (2019), Rodriguez constrói um diagnóstico sobre a existência de duas gramáticas jurídicas. A primeira é denominada gramática das regras, pela qual o direito regula comportamentos sociais de forma abstrata e prevê efeitos jurídicos positivos e negativos. É a essa gramática que críticas sobre normalização e padronização burocráticas das formas de vida normalmente se referem. O problema dessas críticas é a naturalização de uma instrumentalidade do direito, cuja aplicação seria a subsunção de casos concretos a normas abstratas a partir de uma racionalidade técnica.

A partir dos trabalhos de Klaus Günther, Rodriguez (2019)RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019. demonstra o erro desse diagnóstico para quem a norma abstrata não é capaz de prever todos os casos concretos futuros. A racionalidade jurisdicional se pauta, portanto, muito mais no caso concreto do que nas próprias normas. Essas críticas também ignoram a participação da sociedade civil na formulação das normas e a própria função democrática dessa operação, que também é, podemos dizer, uma prática crítica. Se por um lado é possível criticar o desenho institucional em relação a sua abertura social para processo de criação de regras, não é possível compreender essa gramática como puramente arbitrária e autárquica.

Rodriguez analisa, contudo, a existência de conflitos sociais para os quais a gramática de regras não oferece respostas adequadas. O autor traz exemplos como os conflitos familiares e escolares, em que “a utilização da gramática de regras pode destruir os laços sociais ao invés de restaurá-los” (RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 359). Ele também indica diversos estudos com o diagnóstico de fragmentação da regulação. Eles demonstram a criação de regras por diversas organizações da sociedade fora dos centros de poder tradicionais, além da existência de poderes locais que não se enquadram no modelo clássico de separação de poderes. Sobre esses aspectos é possível criticar a gramática de regras para a regulação de alguns conflitos sociais.

A gramática de regras também apresenta seus próprios limites na regulação de comportamentos sociais. José Rodrigo Rodriguez (2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 360) demonstra que “não é mais possível pensar a solução dos casos concretos tendo a racionalidade lógico-formal como modelo”, em razão da centralidade da atividade interpretativa na criação de exceções a normas gerais. A proposição de sentido para normas abertas com relativa indeterminação não é resultado de um raciocínio lógico-formal, e isso se torna um problema em uma modelo tradicional de separação dos poderes, pois o judiciário não apresenta uma relação política aberta com a sociedade. Nesse caso, afirma Rodriguez, seria necessário reavaliar o desenho institucional que restringe o judiciário como órgão competente para a criação das regras.

Em razão de seu diagnóstico, Rodriguez (2015RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Utopias” institucionais antidiscriminação: as ambiguidades do direito e da política no debate feminista brasileiro. Cadernos Pagu, São Paulo, n. 45, p. 297-329, 2015.; 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019.) identifica a partir da forma direito os critérios necessários para construir uma nova forma institucional além do modelo estatal da gramática de regras. O critério é a radicalização da democracia, ou seja, a capacidade desse novo desenho institucional de incorporar contínuas reivindicações sociais. O autor desenvolve então a ideia de uma gramática alternativa, a gramática da regulação social.

Na gramática da regulação social, explica Rodriguez, o poder soberano reconhece o caráter jurídico de normas produzidas de forma autônoma pela sociedade civil a partir do estabelecimento de alguns limites. Essas normas precisam cumprir alguns requisitos ou procedimentos específicos em sua produção e não podem desrespeitar determinados elementos invioláveis do ordenamento jurídico, “seja por estarem ligados diretamente à forma direito ou porque a sociedade decidiu assim ao estabilizar temporariamente determinadas avaliações normativas” (RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 365). O objetivo é manter a forma democrática do direito, cuja principal característica é a possibilidade de reivindicação de igualdade perante a lei, e ao mesmo tempo construir maior autonomia na regulação das relações jurídicas.

Rodriguez (2015RODRIGUEZ, José Rodrigo. “Utopias” institucionais antidiscriminação: as ambiguidades do direito e da política no debate feminista brasileiro. Cadernos Pagu, São Paulo, n. 45, p. 297-329, 2015.; 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019.) demonstra como o direito ocidental já reconheceu esses centros de regulação autônoma dentro da forma direito, mesmo que tenha sido afirmada a primazia das instituições estatais na produção das normas jurídicas. Algumas fontes do direito como os costumes e a autonomia privada, nesses casos, constituem um papel subordinado às normas estatais. O autor sugere então como os debates sobre direito realizados nos trabalhos de Michel Foucault e Judith Butler podem ser analisados em termos de uma crítica radical da gramática de regras. Em outras palavras, essa gramática provoca a formulação de agendas normativas positivas e seria limitada em relação às críticas realizadas em seus trabalhos. A crítica ao direito realizada por Foucault e Butler acaba por naturalizar a gramática jurídica das regras, porque naturaliza todo o seu desenho institucional, o que impede a construção de gramáticas alternativas dentro da própria forma direito.

Rodriguez (2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 371) compreende a ideia de resistência à norma de Butler como uma possibilidade de “desenvolver outra narrativa de justificação que permitisse ao sujeito reformular determinados problemas de acordo com uma outra gramática jurídica, por exemplo, a gramática da regulação social”. Para Rodriguez, em vez de lutar pela inclusão legislativa do casamento entre pessoas do mesmo sexo como uma forma possível de casamento, por exemplo, seria viável defender o papel do Estado apenas em termos de um registro dos efeitos da adoção desse instituto jurídico na relação entre as pessoas. Ao Estado caberia apenas “garantir os efeitos jurídicos decorrentes do mero registro administrativo de qualquer união denominada de ‘casamento’ pelos agentes sociais, abstendo-se de defini-la” (RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 371).

Para José Rodrigo Rodriguez, a crítica de Butler sobre a possibilidade de negociação livre pela sociedade do poder dos discursos carece de uma teoria crítica do direito que inclua essa distinção entre as gramáticas de regras e de regulação social. Segundo Rodriguez, também é necessário o estabelecimento de critérios relacionados a organização de ambas as gramáticas, a fim de se considerar a vontade social expressada na esfera pública. “Falta à Butler”, afirma, “uma visão mais clara e organizada do que significa fazer política e qual seria a sua relação com o Direito” (RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 373).

A gramática da regulação social autônoma fornece ao direito o papel de dispor à sociedade um controle descentralizado e ativo sobre a regulação de seus processos de subjetivação. Ou seja, em vez de limitar as formas de vida como a gramática de regras, essa gramática pretende enriquecer a experiência humana e manejar a sua complexidade. E isso não seria uma “desjuridificação” da regulação dos processos de subjetivação, não seria uma forma de governança civil fora do direito. Mas seria uma forma de regulação em que não seja necessário constituir determinados modos de subjetivação para garantir determinados efeitos jurídicos em suas relações (HOLZLEITHNER, 2016HOLZLEITHNER, Elisabeth. Emancipação por meio do direito? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 889-900, 2016.).

Se podemos dizer que a teoria crítica tem um déficit em termos de análise crítica dos processos de subjetivação, é certo que os trabalhos de Michel Foucault e Judith Butler padecem de uma naturalização da gramática do direito, nos mesmos termos do diagnóstico de Max Weber. Suas formulações sobre o direito recaem na ideia de código jurídico, cuja expressão necessária são as posições de “dentro” e “fora” do direito. Em suas obras, há uma cristalização do direito, o que impede a construção de desenhos institucionais alternativos, como uma gramática da regulação social, pensada por José Rodrigo Rodriguez e colocada aqui como hipótese mais apta a lidar com os processos de subjetivação.

A proposta deste trabalho foi justamente compreender como o sujeito de direito surge dessa proposição de igualdade perante a lei e se constrói então como um sujeito reivindicativo. Reiteradas novas demandas sociais consubstanciam um processo contínuo de relação com a normatividade do direito. É possível entender esse processo como uma relação crítica, porque ela expressa uma resistência da sociedade às normas jurídicas pela própria gramática do direito (ARAÚJO, 2018ARAÚJO, Dhyego Câmara de. Atitude crítica e o sujeito de direitos das políticas (não)identitárias. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 1-27, 2018.). As pessoas são provocadas pelo direito a produzirem elas mesmas os termos de sua gramática, mas, apesar de o direito disponibilizar alguns termos para o processo de subjetivação, as pessoas não necessariamente constroem sua subjetividade restrita a eles, o que caracteriza a prática de relação crítica. Formular uma demanda dentro de um espaço normativo pelos seus próprios fundamentos pode ser entendido, portanto, como uma operação crítica. O sujeito usa a gramática jurídica na intenção de modifica-la e acaba por modificar também a si mesmo.

Para disputar o controle sobre o próprio processo de subjetivação

A partir do debate com as perspectivas de Pachukanis e de Neumann sobre o direito, este trabalho estabeleceu relações entre a ideia de sujeito de direitos e as visões de poder, crítica, autonomia e resistência de Michel Foucault e Judith Butler. A partir de suas visões, consideramos que a pessoa é interpelada pelo direito a produzir-se nos termos de sua gramática, mas, apesar de o direito disponibilizar os termos para esses processos de subjetivação, as pessoas não constroem a sua subjetividade restrita a eles, o que caracteriza a prática de uma relação crítica com as normas jurídicas.

As principais contribuições de Franz Neumann para a compreensão do conceito de pessoa de direito foram sua noção de dominação e a demonstração histórica de que direito pode se tornar um espaço de disputa. Neumann monstra que, em determinadas circunstâncias, o direito é capaz de estruturar uma tensão entre sociedade e Estado, liberdade e soberania, e garantir às pessoas um espaço de autonomia para construir e gerir suas vidas em sociedade, inclusive no campo da economia. A forma jurídica viabiliza o dissenso e a disputa pelas regras que organizam a sociedade, pois garante um mínimo de liberdade e uma gramática para que sejam construídas narrativas de injustiça como a privação de direitos.

Em outros termos, a partir de uma reflexão sobre o nazismo, Franz Neumann demonstra que a forma direito abre a possibilidade de que os sujeitos sociais se identifiquem como sujeito de direitos ao reivindicar seus desejos e interesses na forma desta gramática. Ao oferecer uma igualdade universal, ou seja, a promessa de igualdade de direitos entre todas as pessoas, a forma do direito liberal passa a remeter para além de si mesma, abrindo espaço, por exemplo, para a criação de direitos sociais, contrários aos interesses burgueses.

O sujeito de direitos nasce justamente da promessa liberal de igualdade universal. E com ele a possibilidade de reivindicar conforme esta gramática, o que constrói lugar para os processos de subjetivação das pessoas e para a reivindicação constante de novos sujeitos sociais por novos direitos, desestabilizando a cada passo os direitos que já se encontravam garantidos pelas normas positivadas.

Neumann demonstra que são os sujeitos sociais os verdadeiros autores da forma direito. Na histórica do ocidente, esse processo iniciou na modernidade com a formulação das demandas burguesas na forma jurídica a partir da igualdade das pessoas perante a lei com o objetivo de destruir as hierarquias medievais. No século XIX, as reivindicações proletárias são figuradas pela mesma promessa da igualdade de direitos, revelando que esta forma tem a capacidade de incluir desejos e interesses para além dessa classe social, um potencial que só se revela de fato em um ambiente de democracia e dissenso.

Formular uma demanda dentro do espaço normativo do direito pelos fundamentos desse mesmo espaço pode ser compreendido como uma operação crítica. O sujeito faz uso da gramática do direito, mas com a pretensão de modificá-la. Abandonar a ideia de pessoa no direito significaria renunciar a essa possibilidade de transformação das normas e de reclama-las injustas. Há inclusive análises que demonstram como a supressão do status jurídico de pessoa impossibilita a proteção oferecida pelo direito e tornam as pessoas altamente vulneráveis à violência de seus pares (NERIS, 2018NERIS, Natália. Um efeito alquímico: sobre o uso do discurso dos direitos pelas/os negras/os. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 250-275, 2018.; WILLIAMS, 1991WILLIAMS, Patricia J. The Alchemy of Race and Right: Diary of a law professor. Cambridge: Harvard University Press, 1991.). Como afirma Patrícia Williams (1991)WILLIAMS, Patricia J. The Alchemy of Race and Right: Diary of a law professor. Cambridge: Harvard University Press, 1991. em uma reflexão sobre a experiência de sua avó, escravizada nos Estados Unidos, apenas uma pessoa branca e privilegiada seria capaz de desprezar a tradição ocidental do Estado de Direito em sua capacidade de criar condições de igualdade entre as pessoas e possibilitar a expressão de sua voz perante a sociedade e as instituições formais.

A ideia de pessoas como núcleo jurídico de responsabilidade possibilita aos sujeitos formular e identificar responsáveis por atos de dominação a partir da esfera pública e democrática da forma direito. Também há uma garantia de liberdade da pessoa em relação ao estado em razão da prática da crítica às suas normas. A possibilidade de resistir e questionar as normas do direito assegura a sobrevivência do sujeito de direitos nessa gramática e, ao mesmo tempo, reconfigura o quadro de reconhecimento que ela dispõe.

Michel Foucault e Judith Butler relacionaram em seus trabalhos essa operação com o próprio processo de subjetivação e de resistência. A reivindicação da gramática jurídica para expressar uma injustiça, ou seja, para demandar um modo de existência não corroborado pelas normas, provoca concomitantemente os processos de “criação do eu” e de desassujeitamento. As pessoas produzem suas existências dentro das normas, as reivindicam, negam e modificam, transformando seu próprio “eu”.

A ideia de pessoa no direito, portanto, viabiliza o controle democrático de nossa própria existência. Com a promessa de igualdade, o direito institui a universalidade das normas e formula a pessoa como centro de imputação de responsabilidade pela dominação. Essa construção permite a estruturação de relações jurídicas e de um domínio de liberdade dos sujeitos em relação ao Estado, o que fundamenta o próprio sentido de democracia, já que as pessoas participam da construção das normas que regulam suas vidas e viabiliza a expressão de seus anseios nos termos do direto.

As análises das obras de Foucault e Butler, no entanto, também demandaram a construção de formulações jurídicas possíveis a partir de suas críticas. Com a ideia de uma gramática da regulação social, o trabalho pretendeu materializar na gramática do direito a atitude crítica e a ressignificação. O objetivo foi apresentar uma forma pela qual é possível aos sujeitos e grupos sociais reivindicarem maior autonomia no direito. Esse desenho institucional parece capaz de ampliar o poder de ser sujeito de direitos, ou seja, o poder de reivindicar e construir formas de vida e defendê-las tanto do próprio direito quanto dos demais sujeitos de direito. Ser pessoa no direito é o poder ambíguo de fazer reivindicações por meio da gramática jurídica e colocar em risco sua própria subjetividade. Ser pessoa no direito é parte da própria configuração da forma direito que possibilita ao sujeito assumir o controle democrático de sua própria narrativa de vida.

A forma direito possibilita aos sujeitos colocar em questão categorias sociais que provoquem sua ininteligibilidade. Em outros termos, a gramática jurídica promove o controle democrático do próprio processo de subjetivação (RODRIGUEZ, 2009RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.). Toma forma então a ideia de autonomia, pela qual o sujeito gerencia sua relação com o normativo. A ideia de pessoa possibilita que as normas sejam criticadas, aceitas ou transformadas. Ela viabiliza a prática de autonomia no direito ao provocar um processo de autoprodução do sujeito, o que Michel Foucault (2005b)FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: DA MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Coleção Ditos & Escritos, vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p. 335-351. entendia como exercício de poder e prática da liberdade.

Ser pessoa, sujeito de direitos ou ter uma personalidade jurídica fundamenta o reconhecimento da igualdade entre pessoas e grupos sociais. É a ideia de pessoa que provoca a construção de estruturas jurídicas cujo objetivo é possibilitar a manifestação das pessoas em igualdade de condições nas instituições formais. O status jurídico de pessoa parece ter sido fundamental para garantir a proteção das pessoas de violências sobre seus corpos. Ainda que nem sempre tenha impedido violações, é a partir da personalidade jurídica que se torna possível acusar uma violência como injusta e então reivindicar sua responsabilização.

A promessa de igualdade do direito oportuniza uma gramática para pessoas e grupos sociais formularem demandas em relação a indivíduos que já gozam de proteção jurídica. O direito também oferece instrumentos para que agentes sociais possam transformar as instituições, desde que “sejam desarmados os mecanismos que procuram perverter o direito e estabilizar injustamente determinados indivíduos e grupos em posições de poder” (RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Liber Ars, 2019., p. 60).

A indeterminação das normas jurídicas é explicitada nessa relação crítica, na medida em que “a relação subjetiva com essas normas não será previsível nem mecânica”, ao contrário, “a relação será ‘crítica’ na medida em que não se conformará com nenhuma categoria dada” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 166). Quando o sujeito se apropria criticamente da gramática jurídica, ele constitui uma “relação problematizadora com o próprio campo de categorização” (BUTLER, 2013BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, n. 22, p. 159-179, ago. 2013., p. 166). A dignidade da pessoa humana, o livre desenvolvimento da pessoa, a proteção de sua singularidade e de sua individualidade, por exemplo, não são figuras inerentes da ideia de pessoa no direito, mas proteções jurídicas que resultaram de processos históricos de lutas sociais pela inclusão na gramática do direito (GOMES, 2018GOMES, Camilla de Magalhães. Os sujeitos do performativo jurídico: relendo a dignidade da pessoa humana nos marcos de gênero e raça. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 2-35, 2018.). Judith Butler (2017a)BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017a. demonstra que teorias psicanalíticas e sociais atuais entendem a singularidade como o outro inconsciente dentro de nós, por assim dizer. Isso significa que nossa singularidade permanece em desenvolvimento por toda a vida, é um processo contínuo que não pode ser contido.

A gramática jurídica não impõe um modo de vida único ao estabelecer o texto legal. Ela fornece uma estrutura pela qual pode permitir alguns modos de vida e proibir outros, em especial a gramática jurídica das regras. No entanto, é necessária uma regulação social da personalidade jurídica a fim de não deixar os processos de subjetivação à mercê de decisões jurídicas. Se todas as pessoas são iguais perante a lei, é necessário estabelecer limites para o poder estatal sobre as definições de sujeitos de direito (GOMES, 2018GOMES, Camilla de Magalhães. Os sujeitos do performativo jurídico: relendo a dignidade da pessoa humana nos marcos de gênero e raça. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Ahead of print, p. 2-35, 2018.).

Isso fica claro com os trabalhos de Robert Cover (1983COVER, Robert. The Supreme Court, 1982 Term - Foreword: Nomos and Narrative. Harvard Law Review, Cambridge, v. 97, n. 1, p. 4-68, 1983.; 1986COVER, Robert. Violence and the word. Yale Law Journal, New Haven, v. 95, n. 1, p. 1601-1629, 1986.), para quem a interpretação do direito envolve o caráter violento do exercício da jurisdição. A violência da interpretação jurídica implica a eliminação de várias possibilidades de significado em favor de apenas uma, um processo que também pode ser entendido como a eliminação de formas de vida da gramática do direito. Ao decidir, a pessoa intérprete destrói múltiplas outras interpretações, direitos e modos de vida existentes na sociedade. É importante, então, que a decisão sobre quem é uma pessoa no direito, ou seja, sobre quem pode ser sujeito de direitos, não seja deixada nas mãos do judiciário ou restrita aos termos eleitos no trabalho legislativo. É necessário que à qualificação da personalidade jurídica seja garantida uma ampla abertura à dinâmica social.

Nosso trabalho pretendeu analisar essa possibilidade como uma prática da crítica, em que é possível ao sujeito de direitos fazer uso das normas jurídicas com a pretensão de transforma-las. A ideia de pessoa foi considerada imprescindível para promover a possibilidade de reivindicação de novas formas de vidas e para construir os processos de subjetivação no interior do direito. Ele assegura a formulação, de forma contínua e nos termos da autonomia do sujeito, de critérios normativos na gramática jurídica. Ser uma pessoa no direito serve para garantir um domínio de liberdade do sujeito em relação ao Estado, a partir do qual o sujeito pode expressar, negociar e transformar seu próprio modo de vida nos termos de uma gramática democrática. Ser uma pessoa de direito serve para disputar o controle sobre o próprio processo de subjetivação com fundamento na relação crítica com as normas jurídicas. Ser uma pessoa de direito serve para resistir ao domínio jurídico em sua forma de poder e construir uma subjetividade livre de toda autoridade exceto a do argumento que o próprio sujeito produz em sua relação crítica com as normas jurídicas.

Espera-se, portanto, haver estruturado as bases teóricas para a compreensão da ideia de pessoa no direito como propulsora de processos de construção autônoma e constante de critérios normativos, com base na formulação de igualdade dos sujeitos perante a lei em estado de dissenso. Ser uma pessoa no direito parece servir para garantir um domínio de liberdade do sujeito para disputar o controle sobre o próprio processo de subjetivação, um elemento central da ideia de democracia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2019
  • Aceito
    01 Out 2019
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