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Fronteiras invisíveis e deslocamentos forçados: impactos da “guerra” de facções na periferia de Fortaleza (Ceará, Brasil)

Invisible frontiers and urban displaced: impacts of the “war” of factions in the periphery of Fortaleza (Ceará, Brazil)

Resumo

Fortaleza (Ceará), como diversas cidades brasileiras, passou por um período crescente nas taxas de homicídios. Umas das explicações é a chamada “guerra de facções”. A partir da pesquisada qualitativa, identifica-se que a violência armada urbana causa profundos impactos em comunidades periféricas, com estabelecimento de fronteiras invisíveis e deslocados urbanos. A pesquisa procura problematizar, no contexto da comunidade Conjunto Novo Perimetral, na periferia de Fortaleza, os limites e possibilidades normativos no tratamento do tema.

Palavras-chave:
Fronteiras invisíveis; Deslocamentos forçados; Facções criminosas

Abstract

Fortaleza (Ceará), like several Brazilian cities, went through an increasing period in homicide rates. One of the explanations is the so-called "faction war". From the qualitative research, it is identified that urban armed violence causes profound impacts in peripheral communities, with the establishment of invisible borders and urban displaced persons. The research seeks to problematize, in the context of the Conjunto Novo Perimetral community, in the outskirts of Fortaleza, the limits and normative possibilities in the treatment of the theme.

Keywords:
Invisible frontiers; Forced displaced; Criminal factions

1 introdução

Apesar de a violência não ser novidade no cotidiano das grandes metrópoles brasileiras, a situação de conflitos letais atingiu níveis impressionantes. Em 2016, ocorreram 62.517 homicídios no Brasil, alcançando a maior taxa da história, com 30,3 homicídios para cada 100 mil habitantes. As taxas de homicídio na região Nordeste cresceram mais de 80% entre 2006 e 2016. Os estados brasileiros com maiores variações positivas na taxa de homicídio no decênio apresentado foram Rio Grande do Norte (307,5%), Tocantins (152%), Sergipe (150,4%), Maranhão (148,5%), Acre (129,7%), Bahia (116,6%), Amazonas (107,7%), Pará (103,7%) e Ceará (103,2%), todos das regiões Norte e Nordeste do país (BRASIL, 2018).

Fortaleza, capital do estado do Ceará, assim como diversas cidades brasileiras, passou por um período crescente nas taxas de homicídios. Porém, em 2016, a capital cearense observou, em comparação a 2015, uma considerável redução de 14,2% na taxa de homicídios. Em 2015 a taxa de homicídios foi de 46,6 mortes para cada mil habitantes, enquanto em 2016 foi de 39,8, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública (2017).

Uma das explicações para essa redução seria o estabelecimento de um “acordo de paz” celebrado por facções criminosas, entre o final de 2015 e segundo semestre de 2016. Segundo Barros (2018SÁ, L. A “guerra das facções” no Ceará (2013-2018): socialidade armada e disposição viril para matar ou morrer. Anais do 42º do Encontro Anual da Anpocs. GT35-Violência, punição e desvio: reflexões e investigações empíricas. 2018., et al., p. 118), essa pactuação consistiu, especialmente por parte das organizações criminosas, da proibição do ciclo de vinganças e homicídios entre os grupos locais. O autor ressalta que essa pacificação não tem relação com uma política de diagnóstico, de segurança pública qualificada ou de políticas de promoção de justiça social, “mas da reorganização de grupos que disputam mercados ilegais de drogas e armas” (BARROS, et al., 2018BARROS, João Paulo Pereira. et al. “Pacificação” nas periferias: discursos sobre as violências e o cotidiano de juventudes em Fortaleza. Revista de Psicologia, Fortaleza, v.9 nº 1, p. 117-128. 2018., p. 118). O acordo entre facções teria sido rompido em meados de 2016, o que explicaria a considerável ampliação em 50,7% do número de homicídios, comparados os anos de 2017 e 2016.

Além do aumento da quantidade de homicídios, o fim do acordo entre grupos criminosos produziu um acirramento da disputa pelo controle do tráfico de drogas na cidade, gerando um impacto nas relações cotidianas de moradores, trabalhadores e servidores públicos que atuam nos territórios em conflito. Essa nova dinâmica conflituosa entre organizações criminosas impactou diretamente as relações sociais na periferia da cidade de Fortaleza.

Esse artigo tem por objetivo evidenciar o impacto do conflito armada urbano entre organizações criminosas no cotidiano de moradores e trabalhadores que atuam na periferia da cidade de Fortaleza, estado do Ceará. É parte de pesquisa realizada no curso de mestrado do Programa de Pós-graduação em direito da Universidade Federal do Ceará, com objetivo de analisar o acesso ao serviço público no contexto do que se denominou estado de exceção na periferia do capitalismo (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.; BERCOVICI, 2004BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: a atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.).

A pesquisa delimitou-se ao período de 2016, quando há o fim do “acordo de paz” entre facções criminosas, e 2018, com a conclusão do mestrado do autor. O recorte territorial deu-se na comunidade Novo Perimetral, também conhecida com Gereba, localizada no bairro Passaré, região centro-sul da cidade de Fortaleza. Essa comunidade, juntamente a outra fronteiriça, conhecida como Babilônia, tornou-se uma das referências do impacto da “guerra de facções” na cidade de Fortaleza. Para caracterização do contexto analisado, a pesquisa utiliza a expressão violência urbana armada (BARROS, 2018SÁ, L. A “guerra das facções” no Ceará (2013-2018): socialidade armada e disposição viril para matar ou morrer. Anais do 42º do Encontro Anual da Anpocs. GT35-Violência, punição e desvio: reflexões e investigações empíricas. 2018.; SÁ, 2018), valendo-se de expressões “guerra” apenas em sentido metafórico. Compreende-se que tais conceitos jurídicos são profundamente distintos.

A pesquisa é de natureza qualitativa, descritiva e exploratória (DESLAURIERS, KÉRISIT, 2012DESLAURIERS, Jean-Pierre; KÉRISIT, Michèle. O delineamento da pesquisa qualitativa. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 127-153., p. 130) e utilizou as seguintes técnicas: observação na comunidade, com incursões e vivências em campo, entrevistas abertas em profundidade, relatos em diário de campo, registros fotográficos e análise documental. Foram entrevistados um morador, um policial militar e um defensor público, cujos nomes e características pessoais são preservadas ao longo do texto. Cabe destacar, dentre várias incursões, o percurso em uma viatura da Polícia Militar em território “controlado” por facções e a participação em eventos comunitários promovidos para enfrentar a situação de extrema vulnerabilidade.

Nas primeiras incursões ao campo, o olhar do pesquisador detinha-se especialmente para situação de vulnerabilidade dos moradores do Conjunto Novo Perimetral. Esta comunidade formou-se no entorno do antigo Aterro Sanitário de Fortaleza, conhecido como Lixão do Jangurussu, que funcionou entre 1978 e 1998. Centenas de catadores de material reciclável de diversas regiões da cidade se deslocaram para o Lixão, onde passaram a trabalhar e morar.

Logo no início da pesquisa de campo, também percebia-se a problemática da violência e da insegurança. Durante as entrevistas e no campo de pesquisa, não foram levantadas questões específicas sobre a segurança ou violência no território, mesmo assim o assunto aflorava na medida em que o diálogo ganhava confiança e empatia.

Era comum, ao comentar-se sobre a situação atual da comunidade, falar sobre contexto de agravamento da violência, como quando o morador entrevistado diz que “viver na comunidade hoje, o hoje que eu digo é de três anos pra baixo […] vem mudando, mudando, mudando muito [silêncio]”. Em outro momento, projetando a situação dos atendimentos na unidade de saúde localizada na comunidade, preocupa-se pois, “vai ser atendido todo mundo na mesma policlínica, é isso que eu estou vendo, atender todo mundo aí na mesma coisa. Se for pra melhorar vai melhorar, mas se for pra piorar [silêncio] porque se acontecer de morrer um de lá, vai morrer muita gente”.

O participante da pesquisa faz referência aos usuários do serviço público de saúde que residem em comunidades “controladas” por facções criminosas rivais, mas precisam frequentar a mesma Unidade de Saúde.

Por diversas vezes, os relatos sobre a violência eram precedidos ou sucedidos de pausas silenciosas, o que é relevante para análise, pois o silêncio, assim como a palavra, tem suas condições de produção (MINAYO, 2010MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 323). Ao citar a expressão “facção”, alguns participantes da pesquisa mudavam o tom da voz, conotando uma sensação de tensão. O morador participante da pesquisa, ao falar sobre aparentemente “tomar partido” em relação a algum grupo rival exclama, “nem pensar, por amor de Cristo, que aconteça um negócio desses, porque se acontecer um negócio desses, eu nunca fui envolvida, mas se acontecer um negócio desses até eu fico”.

A expressão “envolvido” popularizou-se como forma de dizer que indivíduos fazem parte de alguma facção, porém, como aparece nas falas, não necessariamente significa tornar-se praticante de algum fato tipificado como crime. Para o morador entrevistado, o envolvido “ou faz parte da facção ou que tem alguma relação de amizade com quem faz parte […] você foi visto com quem faz parte você é envolvido, e aí você não sabe o nível de envolvimento que essa pessoa tem, mas aí ele já é estigmatizado”. Ou seja, a estigmatização surge como uma representação social sobre o outro e sobre si mesmo, ao se dizer, por exemplo, que “até eu fico [envolvido]”.

Essa situação expressa, conforme Loïc Wacquant (2005WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005., p. 33) a estigmatização territorial, que “origina entre os moradores estratégias sociófobas de evasão e distanciamento mútuos e exacerba processos de diferenciação social interna, que conspiram em diminuir a confiança interpessoal”, o que acaba por minar “o senso de coletividade necessário ao engajamento na construção da comunidade e da ação coletiva”. Entender essa estigmatização social é fenômeno fundamental para o contexto pesquisado pois, conforme Alessandro Baratta (2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002., p. 161), a criminalidade revela-se como um “status atribuído a determinados indivíduos”, em primeiro lugar, pela seleção dos bens penalmente protegidos e dos comportamentos ofensivos destes bens e, em segundo, “a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas”.

No contexto da “guerra” entre facções e a acirrada disputa pelo domínio de territórios, a noção de “envolvido” é generalizada, estigmatizando todos os moradores da localidade. Para facção presente na comunidade, o simples fato de um morador ser de outra comunidade é motivo para considerá-lo inimigo. É o que diz o policial militar entrevistado, pois:

não é requisito a pessoa ser batizada [iniciada] [para] se intitular de uma determinada facção, mas pelo fato de ela morar naquela comunidade, e aquela comunidade ser de uma facção rival do bairro vizinho, ela não poder transitar, assim, andar a pé […] pelo fato de ela morar em um determinado local. (Policial Militar. Entrevista em 16.jul.2018).

Percebe-se como a conflituosidade criminosa não é necessariamente externa à comunidade, mas um conjunto de relações sociais e comunitárias profundamente enraizado nos territórios periféricos. Como fala o defensor público participante da pesquisa “no geral, a comunidade não quer facção e ela está lá porque a comunidade é muito vulnerável, se a comunidade se fortalecer, sem dúvida esse fenômeno da facção perderia força […]”.

Há uma mudança de “códigos de ética” entre indivíduos praticantes de crimes e a comunidade onde vivem. O defensor público identifica a diferença do “tráfico clássico”, que “tinha um código de ética de sobretudo defender a comunidade, e as pessoas muitas vezes se sentiam mais protegidas pelo tráfico do que pela própria polícia”. Isso porque:

o tráfico não adotava postura autofágica, não expulsava os seus moradores, por exemplo, a não ser em casos excepcionais que ficavam ali, pontuais, e não chegavam nem a ter esse alcance público que está tendo hoje em termos de refugiados urbanos. (Defensor Público. Entrevista em 16.mai.2018).

Os moradores da comunidade convivem com algozes e vítimas dessa “autofagia” provocada pelo novo “código” imposto pela facção. Se antes, não eram comuns mortes entre moradores da própria comunidade, no atual cenário, fala o morador participante:

comprou a droga e não pagou, dívida né, ou estava atrapalhando ou desconfiava, leva e trás, X9, alguma coisa assim, e aí ele foi ameaçado, aí o negócio é tão assim que o cara não levou a sério, aí eles foram lá e mataram, aí agora a comunidade [silêncio] Porque, tipo assim, ‘Eu nasci aqui, vocês me conhecem’, aí ele não levou a sério, ficou lá, ai no outro dia eles executaram o cara. (Morador. Entrevista em 16.mai.2018).

As falas nas entrevistas sugerem uma situação de exceção, em que o Estado não consegue se legitimar como mediador das relações sociais conflituosas. Assim, as organizações criminosas submetem a população a códigos de conduta próprios. Por outro lado, o Estado, por meio dos órgãos da Segurança Pública, vale-se da força, muitas vezes violando o ordenamento jurídico, para alcançar o objetivo de eliminação das facções criminosas, declaradas como inimigas a serem combatidas. Nesse cenário, cabe retomar Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 15) para quem o estado de exceção, não é um direito especial, como o direito da guerra, mas a suspensão da própria ordem jurídica, o que indica seu conceito limite.

Seguindo os pressupostos do jurista e filósofo italiano, Carlos Vainer (2011VAINER, Carlos. Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. In: Anais do XIV Encontro Nacional da ANPUR, v. 14. 2011.) afirma que a crise urbana, que é expressão da crise econômica e política, exige e instaura, como necessidade emergencial, uma nova forma de constituição do poder na/da cidade. Para o autor, “a cidade de exceção se afirma, pois, como uma forma nova de regime urbano”, posto que, “não obstante o funcionamento (formal) dos mecanismos e instituições típicas da república democrática representativa, os aparatos institucionais formais progressivamente abdicam de parcela de suas atribuições e poderes” (VAINER, 2011VAINER, Carlos. Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. In: Anais do XIV Encontro Nacional da ANPUR, v. 14. 2011., p. 10).

Para enfrentar essa situação de exceção, o Estado, por meio da atuação de diversas instituições, serviços e ações de governo, tem procurado superar ou ao menos mitigar, o impacto da violência armada urbana. Ao longo da pesquisa, identificaram-se iniciativas, algumas amplas, outras pontuais, para se tentar mitigar os impactos da violência urbana armada na rotina de moradores de comunidades da periferia da cidade. A partir da análise dos dados empíricos, o pesquisador construiu a categoria empírica (MINAYO, 2010MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 355-356) de “fronteiras invisíveis” e “deslocamentos forçados” provocados pela violência armada.

2 Impacto da violência armada: fronteiras invisíveis e deslocamentos forçados no conjunto novo perimetral (Fortaleza, Ceará)

O clima de tensão e medo é parte da rotina da vida na comunidade. O pesquisador, durante as incursões em campo, sentia a atmosfera de insegurança. Ao entrar na comunidade, havia a necessidade de baixar os vidros do automóvel e ter previamente marcado pontos seguros para encontrar os sujeitos participantes da pesquisa. Caso fosse confundido com agente de segurança pública ou com integrante de facção rival, poderia sofreria algum constrangimento ou agressão. Notícias de motoristas desavisados que morreram ao adentrar locais marcados pelas disputas entre organizações criminosas têm sido comuns nas cidades brasileiras e em Fortaleza não é diferente.

Fotografia 1
Pichação com ameaça entre facções rivais

A imagem acima indica a sigla de uma facção “CV” (Comando Vermelho), que “controla” a comunidade Conjunto Novo Perimetral, ameaçando de morte integrantes da facção rival “GDE” (Guardiões do Estado), escrito em um dos acessos à comunidade. Como exposto nas falas dos sujeitos da pesquisa, essas ameaças são estendidas aos moradores das comunidades, independentemente de vínculo efetivo com os grupos criminosos.

Fotografia 2
Sigla da facção criminosa na comunidade

Metáforas bélicas tornaram-se comuns para caracterizar o agravamento da violência após o rompimento do pacto entre facções. O contexto de violência armada em determinados territórios da periferia de Fortaleza assemelha-se, em representações expostas pelos participantes da pesquisa, pela imprensa e mesmo por gestores do Poder Público, como um cenário de guerra, sendo comum expressões como “guerras de facções”, “terrorismo”, “ocupação do território”, “refugiados urbanos” e “acordo de paz”.

Compreende-se a violência urbana, a partir de Souza (2005SOUZA, Marcelo Lopes de. O desafio metropolitano: um estudo sobre a problemática sócio-especial nas metrópoles brasileiras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005., p. 52), como as diversas manifestações de violência interpessoal explícita que, para além do ambiente urbano “apresentem uma conexão bastante forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se concretizarem no meio citadino”. Além disso, a violência armada urbana, como compreendida nessa pesquisa, restringe-se ao “contexto de esgaçamento do tecido social” (SOUZA, 2005SOUZA, Marcelo Lopes de. O desafio metropolitano: um estudo sobre a problemática sócio-especial nas metrópoles brasileiras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005., p. 52, o grifo está no original). Assim, estão excluídas da análise ações com motivações políticas explícitas, como protestos ou ações políticas violentas, armados ou não, e ainda crimes violentos que por sua generalidade não guardam relação direta com o espaço urbano.

A convivência com a violência urbana é algo comum, na rotina da comunidade. O morador diz que

[…] as mortes que tinham era de briga de bar ou alguém vinha das comunidades do entorno, que eram mais perigosas e que as gangues tinham mais domínio, aí o cara passava correndo […] e o outro acertava ele lá […] aí chegava um Barra Pesada ou 190 da vida1 1 Os chamados “programas policiais” ou “imprensa marrom”, que noticiam especialmente a ocorrência de crimes violentos e a atuação das polícias, predominantemente em fatos ocorridos nos bairros periféricos. e falava ‘aqui na comunidade do Gereba mais um assassinato’, como se fosse lá, entendeu? (Morador. Entrevista em 16.mai.2018).

A ideia de uma “bandidagem” da comunidade é comum em vários bairros periféricos da cidade de Fortaleza, “a coisa mais fácil era entrar e sair de lá porque os bandidos, os criminosos que tinha eram os conhecidos ladrões de galinha, que era só ganhar dinheiro e ganhar em cima dos outros”, fala o morador.

Mais recentemente, há novas percepções sobre a violência. Ao mencionar as mudanças na forma de andar pela comunidade, diz que “eles não estão mais passando, um menino não pode andar a pé, as moças não podem ir pra lá, um negócio assim meio esquisito”. Mesmo em um cenário em que as pessoas convivem com a violência, o acirramento do conflito entre facções alterou profundamente o cotidiano:

na rua ali, na esquina ali, onde a gente estava fazendo outra reunião, eles morreram ali, um tinha dezenove e outro tinha quatorze […]. Aí várias pessoas foram botadas pra sair da comunidade para outros locais […] Aí em novembro do ano passado as […] meninas estavam todas estudando fora, chegando tarde […] além dos assaltos dentro dos ônibus a menina ainda descia aqui e não podia entrar […] que tinha dia que não conseguia descer […] eu achava muito ruim […]. (Morador. Entrevista em 1º.jun.2018).

Nessa fala, percebe-se o impacto do aprofundamento da violência armada sobre a rotina, como mortes próximas às residências, expulsão de moradores de suas casas e a proibição de passar por certos lugares.

Em todas as falas, nas entrevistas, diálogos e escutas no campo, a percepção na mudança da criminalidade está acompanhada de alterações na rotina comunitária e na ideia de “entrar e sair”, “passar”, “ir e vir” pela comunidade. Na fala acima, por exemplo, o morador afirma que “a coisa mais fácil era entrar e sair de lá [da comunidade]”. Porém, o cenário se altera profundamente com o estabelecimento das facções criminosas. A fala do morador explica com riqueza de detalhes o novo contexto vivenciado na comunidade:

Aí quando uma facção vem e domina lá e a outra do outro lado, do outro lado do morro outra facção, aí começa os conflitos de território, só o morro separa a comunidade do Gereba da Babilônia, e a Babilônia é um caso específico porque era pra ter sido um conjunto habitacional lá, o conjunto habitacional foi construído, mas aí a facção dominou, teve uma invasão […]. Porque é um ambiente de guerra agora, porque é bem na fronteira […] onde fica a outra comunidade que é dominada por outra facção, então a outra facção tem mais poder de fogo aparentemente, quando eles resolvem eles invadem de uma vez, chegam atirando, as casas que estão mais perto que são justamente as do entorno da favela, os barracos, no entorno do morro do lixão, são as primeiras atingidas, aí as pessoas ficam com medo […]. (Morador. Entrevista em 16.mai.2018).

O confronto armado e as disputas territoriais entre as organizações criminosas estabelecem “fronteiras invisíveis” que repercutem sobre a rotina dos moradores e frequentadores em geral. O percurso de estudantes de suas casas para a escola é impactado pela situação, Diz o morador que “as mulheres estão botando muito os meninos pra irem a pé pra fazer a escola lá, para o [nome da escola omitido] eles não estão mais passando, pro Jardim União também não pode mais passar, então só estão indo para esse colégio aí”.

O acesso a uma Unidade de Saúde (Policlínica) também é prejudicado pois:

as pessoas têm medo de ir lá para a policlínica quando tem alguma coisa, porque a avenida lateral que dá acesso à Babilônia e dá acesso à [avenida] Perimetral, então quando se ia pra lá acontecia alguma coisa, sei lá, à noite, por exemplo, ninguém podia ir lá porque tinha o risco da facção rival por ali pegar alguém, aí justamente por isso que a base da polícia está lá, é do lado da policlínica. (Morador. Entrevista em 16.mai.2018).

E mesmo os equipamentos públicos da política social passam a ter o atendimento restringido. Quando houve oferta de cursos para juventude em situação de vulnerabilidade social dos bairros da região, não houve candidatos do Conjunto Novo Perimetral, pois, segundo o morador, “esses jovens […] têm medo de ir lá para o Cuca [Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte, mantidos pela Prefeitura de Fortaleza]”.

Fotografia 3
Sigla de facção em uma das ruas que dá acesso à comunidade

Ao adentrar e transitar em áreas sob a disputa dos grupos criminosos, deparava-se com pichações com determinações para “baixar os vidros”, “apagar faróis”, “tirar o capacete”, o que indicava o ingresso em fronteiras de determinadas facções.

Para quem mora ou trabalha nessa comunidade, a rotina parece tornar-se insustentável, como afirma o Policial:

fui reclamar, que ele [morador] andasse com o capacete, ele ‘não, senhor policial, eu não posso andar com capacete não porque da última vez que eu ia chegando do trabalho […] o cara [da facção] mandou tirar o capacete, tacou a mão na minha cara e disse que da próxima vez eu ia morrer, porque tem a ordem lá que não pode entrar de capacete’, justamente é uma forma de, por exemplo, as facções terem uma segurança para evitar, saber quem está entrando […] e foi a partir daí que começaram a criar essas ordens desse estado paralelo deles. (Policial Militar. Entrevista em 16.jul.2018).

Nos últimos três anos, como afirmou o morador, a convivência com relações violentas não é algo estranho à comunidade. Brigas, disputas, ameaças e homicídios são comuns, fazem parte, direta ou indiretamente, da rotina de quem vive no território. Isso não é uma particularidade do Conjunto Novo Perimetral, mas apresenta-se como uma característica dos processos estruturais de exclusão social, que são baseados na desigualdade social e econômica, somados a incapacidade de os poderes instituídos atuarem na mediação e resolução dos conflitos. Ademais, a formação dos Estados nacionais na América Latina é marcada por práticas violentas, informais e institucionais, desde a colonização, passando pela escravatura e por mais recentes golpes militares, que instauraram, de fato, estados de exceção (PAIVA; FREITAS, 2015). Briceño-León (2002, p. 35) chama a atenção para esse fenômeno na região, pois violência sempre esteve presente no cotidiano ou nos processos de transformação social latino-americanos, “violenta fue la conquista, violento el esclavismo, violenta la independencia, violentos los procesos de apropiación de las tierras y de expropiación de los excedentes”. Porém, segundo o autor, atualmente há “un proceso distinto, singular, y que se refiere a la violencia delincuencial y urbana”.

O problema da expulsão de moradores e da proibição da liberdade de passagem em determinados territórios também não é recente e marca a dinâmica do tráfico de drogas que, na cidade de Fortaleza, remete ao início dos anos 1990. A incorporação das “gangues” ao tráfico de drogas provoca uma ampliação dos conflitos armados e as disputas pelo mercado ilegal. Os bairros de Fortaleza eram delimitados por rivalidades territoriais, também mediadas por representações sobre valentia, defesa da honra e expressões de masculinidade. A ideia de territórios marcados pela criminalidade estabelece o estigma de lugares perigosos, cujas tipificações deve-se ao fato delas “propagarem uma sujeição intersubjetiva pautada nos referenciais provenientes do estigma territorial, não havendo a possibilidade objetiva, racional, de classificar quem é o cidadão ou quem é o bandido, porque todos os moradores são suspeitos” (PAIVA, 2007, p. 11).

A escassez de serviços e políticas públicas e a presença dos grupos criminosos armados, em disputas e mediações violentas com os moradores estabelecem, em determinados territórios da cidade, zonas de completa ausência de regulamentações estatais e de efetivação de direitos fundamentais. Chesnais (1999CHESNAIS, François. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo, SP: Xamã, 1999.) destaca a existência de uma crise na capacidade do Estado democrático brasileiro em sua tarefa de ser representante do bem comum e repositório legítimo do direito e da força. Paiva e Freitas (2015) afirmam, baseados em estudos etnográficos em bairros da periferia de Fortaleza, que há uma perda da confiança tanto entre as pessoas, quantos nas instituições que deveriam mediar as aproximações e distanciamentos entre quem vive em conformidade com as regras de convivência democrática e quem não as respeita.

O morador entrevistado descreveu uma situação de expulsão de morador. As razões demonstram, como já citado, a relação “autofágica” estabelecida pelas organizações criminosas:

Conheço uma senhora […] o filho dela foi preso, e namorou com uma menina da Babilônia, aí foi morar lá, aí os meninos daqui proibiram de ele vir pra cá, e aí não sei o que aconteceu que eles expulsaram ela, que eu acho uma burrice o que eles fazem, porque eu digo, conversando com as pessoas, cada pessoa que eles expulsam, cada família, vira contra eles […]. E aí como é que não querem que polícia venha? (Morador. Entrevista em 1º.jun.2018).

O policial entrevistado relata que chegou a “fazer a mudança” de um morador, em uma comunidade próxima ao local pesquisado:

o filho era de uma determinada facção criminosa, não morava nem mais com o pai na residência, mas só pelo fato de aquela facção que dominava […] os integrantes daquela organização criminosa daquela comunidade determinaram que o pai dele saísse do local […] a família não é vinculada, mas pelo fato de o pai dele ter um parente que é vinculado a alguma facção criminosa acontece essa determinação, essa ordem para que se retire do local e abandone a casa com tudo, e também eles fazem também muito desse expediente aí justamente também para às vezes trazer uma determinada família ou determinadas pessoas que são do agrado deles para morar dentro daquela comunidade. (Policial Militar. Entrevista em 16.jul.2018).

Segundo Maricato (1996MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora HUCITEC, 1996., p. 74), a relação entre forma urbana e a violência não é apenas reflexo das sociedades modernas que produzem violência, mas “é parte importante de um processo que tem no funcionamento do mercado imobiliário segregador um expediente central de exclusão”. Para a autora, a presença ambígua e arbitrária do Estado, somada à ilegalidade generalizada na ocupação do solo urbano, à segregação ambiental e ao isolamento, “tornam as áreas de convivência social solo fértil para as ‘subculturas locais’, que convivem contraditoriamente com a regulação hegemônica estatal” (MARICATO, 1996MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora HUCITEC, 1996., p. 84).

Fotografia 4
Local onde ocorreu expulsão de moradores

Fotografia 5
Local onde ocorreu expulsão de moradores

As fotografias acima foram realizadas em uma rua próxima à comunidade pesquisada, onde ocorreu a expulsão de várias famílias por membros de grupos criminosos.

No próximo tópico, analisa-se, a partir dos limites do objeto desta pesquisa, os aspectos normativos relativos às vítimas da violência armada, especialmente relativo às pessoas obrigadas à deslocar-se e/ou impedidas de transitar livremente em seus territórios por força da violência.

3 Aspectos normativos relacionados às vítimas da violência armada urbana

Não há no Brasil uma legislação específica, nem políticas ou serviços públicos para lidar com a situação de pessoas impedidas de transitar em locais marcados pela violência urbana ou, nos casos extremos, forçadas a deslocar-se. Cabe ressaltar que, nos casos identificados ao longo da pesquisa, as pessoas que sofreram impacto em sua liberdade de locomoção não receberam assistência do Poder Público em relação a essa questão específica.

Há uma dificuldade em relacionar o problema com as questões estruturais vividas na periferia das cidades. No esforço de estabelecer essa relação, a pesquisa identificou semelhanças com a problemática dos refugiados em decorrência de guerras ou de situações de vulnerabilidade social em diferentes partes do mundo.

A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) define como deslocados internos, as pessoas deslocadas dentro de seu próprio país, pelos mesmos motivos de um refugiado, mas que não atravessaram uma fronteira internacional para buscar proteção (ONU, 2018). Assim, mesmo tendo sido forçadas a se deslocarem por razões semelhantes às dos refugiados, (perseguições, conflito armado, violência generalizada, grave e generalizada violação dos direitos humanos), os deslocados internos permanecem sob jurisdição e tutela de seu próprio Estado. Pode-se aplicar, portanto, em analogia, a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, adotada, em 28 de julho de 1951, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto 50.215/1961, e o Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, de 4 de outubro de 1967.

O termo “deslocados internos” derivou de um acordo de paz relacionado ao encerramento do conflito no Sudão, nos anos 1970, quando fez-se referência a um grupo de populações deslocadas em um contexto de ação emergencial que promovesse o reassentamento dessas pessoas (PHUONG, 2005PHUONG, Catherine. The international protection of internally displaced persons. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. 318p., p. 14). No final da década de 1980, duas conferências, no âmbito da Organização das Nações Unidas, trataram do tema, porém, a centralidade dava-se sobre a questão dos refugiados: a Conferência Internacional sobre o problema dos refugiados, repatriados e pessoas deslocadas no Sul da África (1988), e Conferência Internacional sobre Refugiados Centro-Americanos (1989) (OLIVEIRA, E. C., 2004OLIVEIRA, Eduardo Cançado. A proteção jurídica internacional dos deslocados internos. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, v. 5, n. 5, p. 73-92, 2004., p. 76).

Já na década de 1990, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, aprovou a resolução 1992/7347, com o intuito de estabelecer um representante especial que se dedicasse ao estudo do tema e pudesse obter informações de todos os governos com relação aos deslocados internos, incluindo a investigação das normas (direito humanitário, direito internacional dos direitos humanos e direito internacional dos refugiados) que poderiam ser aplicadas na assistência às deslocadas internas (WEISS; KORN, 2006WEISS, Thomas; KORN, David. Internal displacement: conceptualisations and its consequences. Londres: Routlege; Nova Iorque: Routlege, 2006., p. 2).

Em 1998, foram publicados os Princípios-Guia sobre o Deslocamento Interno (ONU, 1998), que têm servido como norma internacional para orientar os governos, as organizações internacionais/regionais e todos os atores pertinentes na provisão de assistência e proteção aos deslocados internos.

Os deslocados internos são descritos como, como afirmado no item 2, da introdução dos Princípios-Guia, “pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em consequência de, ou com vista a evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado”.

Destaca-se que, nos últimos apontamentos dos Princípios-Guia sobre o Deslocamento Interno são relativos aos reassentamentos e reintegração das pessoas deslocadas ao local de origem. No princípio 28 é a assegurado a participação plena dos deslocados internos no planejamento e gestão do seu regresso e, no princípio 29, a recuperação da propriedade e bens perdidos como resultado do deslocamento, e mesmo se não for possível, as autoridades competentes deverão fornecer uma compensação ou reparação dos danos de forma justa.

Em relação a definição e tratamento de deslocados internos apresentada no direito internacional, podem ser apontadas como parâmetros básicos para o tratamento dos deslocamentos internos no contexto da violência analisado na pesquisa, bem como a possibilidade de colaboração entre o Estado brasileiro e Organizações Internacionais para estabelecimento de mecanismo de defesa do direito dos deslocados.

Na Colômbia, é interessante citar a legislação específica existente, uma vez que o país possui grande número de deslocados internos. A lei colombiana nº 387, de 18 de julho de 1997, traz uma interessante definição para pessoas deslocadas, em seu art. 1º:

Del desplazado. Es desplazado toda persona que se ha visto forzada a migrar dentro del territorio nacional abandonando su localidad de residencia o actividades económicas habituales, porque su vida, su integridad física, su seguridad o libertad personales han sido vulneradas o se encuentran directamente amenazadas, con ocasión de cualquiera de las siguientes situaciones: Conflicto armado interno, disturbios y tensiones interiores, violencia generalizada, violaciones masivas de los Derechos Humanos, infracciones al Derecho Internacional Humanitario u otras circunstancias emanadas de las situaciones anteriores que puedan alterar o alteren drásticamente el orden público. (Sem grifos no original).

Cabe destacar que, conforme a lei colombiana, no art. 3º, o Estado assume a responsabilidade de formular “políticas y adoptar las medidas para la prevención del desplazamiento forzado; la atención, protección y consolidación y estabilización socioecómica de los desplazados internos por la violencia”. Para isso, dentre outras medidas, como previsto no art. 13 da mesma lei, foi criado pelo Governo Nacional um Observatorio del Desplazamiento Interno por la Violencia com a produção de informações sobre a dimensão e tendências dos deslocamentos e dos resultados das polícias estatais em favor desta população. Esse observatório deve fomentar uma Red Nacional de Información, com a participação de especialista e acadêmicos. Também ressalta-se, previsto no art. 19 a articulação de um Sistema Nacional de Atención Integral a la Problación Desplazada, onde as instituições devem adotar, dentre várias medidas, um Sistema General de Seguridad Social en Salud que deve implementar mecanismo para população deslocada acessar serviços de assistência.

No Brasil, esse debate segue tateando a problemática. Existem programas de proteção a pessoas ameaças: o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas (Provita), previsto na lei nº 9.807/1999 que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal; o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), criado pelo decreto nº 8.724/2016; e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM), instituído pelo decreto nº 8.724/2016. Além disso, existem os Centros de Apoio à Vítimas de Violência (CRAVV), no Ceará, instituído pela lei nº 14.215/2018. Porém, esses programas não têm por escopo a atuação no contexto da violência armada. Não se pretende transplantar experiências estrangeiras para a particular realidade brasileira. Porém, não se pode deixar de verificar a existência de tratamentos no direito comparado para situações que guardam semelhanças na realidade nacional.

O problema de expulsão de moradores ou impedidos de deslocar-se livremente também atinge moradores beneficiados do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A ocorrência dessa situação, em várias localizados do país, ensejou o Ministério das Cidades do Governo Federal a publicar a Portaria nº 488, de 18 de julho de 2017, que dispõe sobre o distrato dos contratos de beneficiários de unidades habitacionais do Programa. No artigo 1º desta portaria, diz que o contrato firmado entre o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), representado pela Instituição Financeira Oficial Federal (IF), e a pessoa física, na qualidade de beneficiária do PMCMV, será objeto de rescisão nos casos de descumprimento contratual, ocupação irregular, desvio de finalidade, inadimplemento com os pagamentos das prestações da compra e venda ou por solicitação do beneficiário. No artigo 2º, são enumeradas outras situações que motivam a rescisão contratual, cabendo destacar o impedimento de ocupação ou retirada da unidade habitacional por invasão ou ameaça.

Essas situações são comprovadas mediante apresentação de declaração do ente público responsável pela indicação da demanda, acompanhada de Boletim de Ocorrência ou de declaração do órgão de Segurança Pública. A Portaria nº 488 do Ministério das Cidades altera a previsão anterior da Portaria nº 469, de 4 de setembro de 2015, que também regulamentava a rescisão de contratos no PMCMV. Porém, na portaria anterior, não havia previsão da situação de “ocupação ou retirada” por “invasão ou ameaça”. Além disso, mesmo que houvesse previsão de rescisão do contrato por invasão de um terceiro, a situação deveria ser atestada por órgão da Segurança Pública e “reconhecimento da Instituição Financeira responsável pela contratação da operação”, ou seja, dependia-se da aprovação da Instituição Financeira.

A Portaria nº 488, também afirma que instituição financeira que houver efetivado a contratação da operação deverá manter sob sua guarda e nos dossiês dos beneficiários, dentro dos prazos legais, os documentos comprobatórios das situações elencadas nos incisos deste artigo, mantendo-os sob regime de sigilo (art. 2º, inc. 2º) e que o titular do contrato objeto de rescisão poderá optar pela desistência do benefício ou ser beneficiado novamente com outra unidade habitacional (art. 3º).

A ampliação das possibilidades de rescisão, prevista na portaria mais recente, foi resultado de solicitação da Defensoria Pública da União do Estado do Rio Grande do Sul, a partir do atendimento de cidadãos beneficiados pelo PMCMV expulsos de suas residências no contexto de violência urbana. Constatou-se, durante a pesquisa, que no estado do Ceará não houve ainda a aplicação da Portaria nº 488 por nenhum órgão responsável pelas políticas habitacionais. Além disso, percebe-se o desconhecimento por parte da população e de gestores públicos da existência de normas que permitem lidar com situações desse tipo. Outro problema percebido reside no temor e descrença da população em procurar os órgãos de Segurança Pública que, no caso da referida portaria, é condição para pleitear a rescisão do contrato e, se desejar, reinserção no PMCMV em outra unidade habitacional. Assim, pela ausência do Boletim de Ocorrência ou outro meio de informação do fato, os beneficiários do Programa não podem instruir os pedidos de rescisão contratual.

4 Considerações finais

Esse artigo objetivou evidenciar o impacto do conflito armada urbano entre organizações criminosas no cotidiano da comunidade Conjunto Novo Perimetral, no bairro Passaré, na periferia da cidade de Fortaleza, estado do Ceará. A partir da pesquisa, identifica-se o problema da dificuldade do Poder Público em lidar com os impactos da violência armada urbana. Há uma dificuldade em admitir e reconhecer o problema. Ainda faltam dados e informações oficiais que mensurem o efetivo impacto do conflito armado urbano sobre a rotina de moradores e trabalhadores. Quando se admite o problema, seu enfrentamento e solução é, em geral, reportado à atuação da Segurança Pública. Como disse um gestor da política habitacional a um jornal de grande circulação na cidade de Fortaleza: “nosso problema é habitação, facção não é comigo”.

A complexidade do problema extrapola, em muito, medidas estritamente de policiamento ostensivo e repressivo. As razões que produzem os conflitos armados urbanos entre facções criminosas, devem considerar diagnósticos sociais e econômicos do contexto analisado, como estruturação dessas organizações, que conseguem estabelecer laços comunitários profundos, inclusive vínculos de afeto e medo.

Limitada a período analisado, ou seja, entre o agravamento do conflito entre facções na cidade de Fortaleza, especialmente a partir de 2016, até o início de 2018, o presente artigo aponta para necessidade de aprofundamento de pesquisas no âmbito do direito para identificação e compreensão dos problemas gerados pela violência armada urbana. Esse desafio se mostra ainda mais complexo em relação às metodologias empíricas na pesquisa jurídica.

As disputas entre organizações criminosas geram um “faccionamento” dos territórios, estabelecendo fronteiras invisíveis e instáveis, onde moradores, independentemente de vínculos com grupos criminosos, são impedidos de passar livremente. Em situações extremas, moradores são expulsos de suas residências e proibidos de retornar, por ordem de organizações criminosas. Ao longo da pesquisa, não foi possível verificar um acompanhamento ou atendimento, por parte do Poder Público, específico sobre os impactos da violência urbana, relacionado à expulsão de moradores ou impedimentos ao livre trânsito.

Experiências no direito internacional e no comparado, especialmente de contextos latino-americanos, podem lançar luzes para formulação de instrumentos normativos e políticas públicas. A Agência da ONU para Refugiados e os “Princípios-Guia sobre o Deslocamento Interno” (ONU, 1998), podem servir de parâmetros básicos para o tratamento dos deslocamentos internos no contexto da violência analisado na pesquisa, porém ainda não há um status jurídico definido para a situação analisada na pesquisa.

Na Colômbia, a lei nº 387, de 18 de julho de 1997, ainda que não se tenha analisada sua efetividade, tem o mérito de estabelecer uma definição jurídica para os deslocados internos, bem como uma série de obrigações do Estado em relação à assistência e superação do problema.

Na pesquisa, analisou-se que o Programa Minha Casa Minha Vida reconhece o problema da expulsão ou impedimento de acesso dos beneficiários do programa, a partir de demandas oriundas de situações de violência armada urbana, porém ainda não houve aplicação deste dispositivo na cidade de Fortaleza.

Os impactos da violência armada na cidade de Fortaleza exigem um profundo esforço de reflexão teórica e de discussão dos aspectos normativos para seu enfrentamento e superação. As realidades trazidas a partir da pesquisa, especialmente as “fronteiras invisíveis” impostas pelo “faccionamento” dos territórios urbanos e o problema dos deslocamentos forçados, apontam para diálogos e aprofundamentos posteriores. As próprias categorizações e definições exigem reflexões mais acuidades, sob risco do transplante acrítico de conceituações fundamentadas em contextos diferentes.

Nos limites da presente pesquisa, verifica-se ainda a insuficiência do Poder Público em lidar com uma situação que, aparentemente, deve continuar assolando grandes contingentes populacionais na cidade de Fortaleza. A análise empírica, social e jurídica deve subsidiar medidas propositivas e específicas, na busca da efetivação de direitos fundamentais das populações mais vulnerabilizadas diante da violência armada urbana.

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  • 1
    Os chamados “programas policiais” ou “imprensa marrom”, que noticiam especialmente a ocorrência de crimes violentos e a atuação das polícias, predominantemente em fatos ocorridos nos bairros periféricos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2019
  • Aceito
    05 Nov 2019
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