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Das Relações entre Dança e Movimento: reflexões sobre diferentes noções de movimento e a dança

A propos des Relations entre la Danse et le Mouvement: réflexions sur différentes notions de mouvement et de danse

Resumo:

O trabalho retoma algumas teses do teórico da dança André Lepecki (2008), com o objetivo de apontar limites de sua aposta na recusa do movimento como caminho de ruptura com a modernidade e com determinada noção de coreografia. Para tanto, efetua-se uma leitura crítica da narrativa da história da dança desenvolvida em uma obra desse autor, para que então sejam propostos três nuançamentos da noção de movimento, a fim de apontar, desse modo, que a articulação entre dança e movimento não é necessariamente unívoca e nem sempre tem as mesmas implicações com relação a dado projeto político ou metafísico característico da modernidade.

Palavras-chave:
Dança; Movimento; Coreografia; Crítica; Modernidade

Résumé:

Cet article reprend idées proposées par le critique et érudit de danse André Lepecki (2008), afin de réfléchir sur les limites de la compréhension d’un refus du mouvement comme une manière de rompre avec la modernité et avec une certaine notion de chorégraphie. Pour cela, il est proposé une lecture critique de la narrative de la histoire de la danse développé à cette œuvre, pour ensuite, être proposés aucunes distinctions conceptuelles sur la notion de mouvement, afin de défendre que l’articulation entre danse et mouvement n’est pas univoque e n’a pas plus toujours les mêmes implications politiques ou conceptuelles.

Mots-clés:
Danse; Mouvement; Chorégraphie; Critique; Modernité

Abstract:

This work resumes some ideas proposed by the dance critic and scholar André Lepecki (2008), in order to reflect about the limits of a refusal of movement as a rupture with modernity and with a certain notion of choreography. For this purpose, a critical reading of the way dance history is conceived in this work is made, and then three nuances for the notion of movement are proposed, in order to point out that the conjunction between dance and movement is neither univocal nor have always the same political or conceptual implications.

Keywords:
Dance; Movement; Choreography; Critics; Modernity

Movimento, Dança e Modernidade

O movimento humano abre o mundo, não fecha, como acontece com o agir da máquina - fechar o mundo é saber o que vai surgir nele (Tavares, 2013TAVARES, Gonçalo. Atlas do Corpo e da Imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Alfragide: Editorial Caminho, 2013., p. 514).

No presente texto, tomo como ponto de partida e interlocução uma obra específica do teórico da dança e performance, André Lepecki, que tem dialogado ou orientado parte significativa das reflexões sobre dança, principalmente no contexto norte-americano e em parte da Europa, desde sua publicação, sendo, tal obra, citada e tomada como referência tanto por teóricos, críticos e curadores de dança, como também por artistas e produtores. A referência a essa obra neste trabalho e a construção deste texto como uma resposta crítica a algumas de suas teses centrais, tem como objetivo, por um lado, colocar em questão e sob movimento reflexivo e crítico as principais teses defendidas por Lepecki, em especial aquelas que se referem às articulações entre movimento, coreografia e modernidade, assim como tem por objetivo contribuir com uma discussão mais ampla e geral a respeito da questão de quais elementos singularizam e caracterizam a dança como linguagem ou forma de arte, tendo em vista um contexto atual caracterizado pela hibridação de códigos e linguagens e pelo questionamento de fronteiras entre as diferentes formas de arte ou entre a arte e outros campos de conhecimento.

A obra que será doravante abordada e sobre a qual proponho uma leitura crítica é o livro intitulado, no idioma original, Exhausting dance: performance and the politics of movement, que em 2018 completa dez anos de publicação, mas que apenas muito recentemente foi publicado em português1 1 Até a data da redação da primeira versão deste artigo, a obra em questão não fora publicada em língua portuguesa, fato que se modificou em 2017 com a publicação, pela editora Annablume, da tradução brasileira, feita por Pablo Assumpção Barros Costa, intitulada Exaurir a dança: performance e política do movimento. , tendo reconhecido impacto no campo dos estudos e reflexões sobre a dança no Brasil e em diferentes contextos geográficos e de produção de conhecimento e discurso sobre dança e artes cênicas. Nesse trabalho, o autor, André Lepecki (2008LEPECKI, André. Agotar la Danza: performance y política del movimiento. Barcelona: Centro Coreográfico Galego / Mercat de les Flors / Universidad de Alcalá, 2008.), defende a ideia de que há uma associação direta entre a constituição da noção de coreografia na modernidade e o projeto de um sujeito cinético e de uma ontologia do movimento, projeto que seria o fundamento central da modernidade em geral, tal como discute Peter Sloterdijk (2000SLOTERDIJK, Peter. La Mobilization Infinie: vers une critique de la cinétique politique. Paris: Christian Bourgois, 2000.).

Como ponto de partida, Lepecki afirma, a partir do trabalho do historiador de dança Mark Franko, que a associação entre dança e movimento, que nos parece, segundo o autor, atualmente imediata e inextricável, não era necessária ou evidente em outros períodos históricos, e que no início do Renascimento, por exemplo, “[...] a coreografia se definia só secundariamente em relação ao movimento” (Lepecki, 2008, p. 16)2 2 As citações diretas do texto de Lepecki são traduções livres feitas pelo autor da edição espanhola de seu trabalho. . Nas palavras de Franko, citado por Lepecki (2008, p. 16): “[...] quanto aos movimentos, é o conhecimento da dança em si mesma o que parece haver sido a menor das preocupações do bailarino”.

Sem detalhar quais seriam então as preocupações do bailarino ou o que, alternativamente ao movimento, definiria ou singularizaria a linguagem da dança em outros períodos históricos ou contextos distintos da modernidade, Lepecki defende que a inseparabilidade entre dança e movimento, presente em certo senso comum atual, se deve a que:

O desenvolvimento da dança como forma artística autônoma no Ocidente, a partir do Renascimento, se alinha cada vez mais com um ideal de motilidade constante. O impulso da dança para uma exibição espetacular do movimento se converte em sua modernidade, tal como o define Peter Sloterdijk [...] como uma época e um modo de ser em que o cinético se corresponde com ‘aquilo que na modernidade é o mais real’ (grifos adicionados ao original). Na medida em que o projeto cinético da modernidade se converte na ontologia da modernidade (sua iniludível realidade, sua verdade fundacional), o projeto da dança ocidental se alinha cada vez mais com a produção e a exibição de um corpo e de uma subjetividade aptos para executar essa incessante motilidade (Lepecki, 2008LEPECKI, André. Agotar la Danza: performance y política del movimiento. Barcelona: Centro Coreográfico Galego / Mercat de les Flors / Universidad de Alcalá, 2008., p. 17).

Baseando-se então nas teses de Sloterdijk, Lepecki desenvolverá, ao longo de sua obra, uma avaliação crítica da coreografia , compreendendo-a como um dispositivo de submissão do corpo e do desejo a regimes disciplinares, associando tal avaliação, então, a uma crítica mais ampla da modernidade, fundamentada na compreensão desta como engendramento de um projeto de sujeito que “[...] experimenta sua verdade como (e dentro de) um incessante impulso em favor de um movimento autônomo, automotivado, interminável, espetacular” (Lepecki, 2008, p. 33).

Em oposição à centralidade do movimento, que caracterizaria a coreografia e a modernidade (associadas intrinsecamente) tal como compreendidas no trabalho citado, Lepecki recorre à noção de ato imóvel, proposta pela antropóloga Nadia Seremetakis, como um conceito que descreve “[...] momentos em que um sujeito interrompe o fluxo histórico e pratica a interrogação histórica” (Lepecki, 2008, p. 36), para, a partir dessa noção, salientar e avaliar diferentes obras de dança em que artistas recusam a mover-se, permanecendo, por exemplo, por longos períodos deitados ou em pausa3 3 Lepecki cita o laboratório coreográfico SKITE, ocorrido em 1992, na Cité Universitaire de Paris, quando a coreógrafa Vera Mantero e o coreógrafo Santiago Sempere declararam que, diante dos acontecimentos históricos daquele momento, não podiam dançar, enquanto Meg Stuart coreografou uma “dança imóvel para um homem tombado no chão” (Lepecki, 2008, p. 37), e o coreógrafo australiano Paul Gazzola apresentou um trabalho em que permanecia em repouso, nu, junto a uma estrada. , realizando concretamente o que seriam tais “atos imóveis”, cujo sentido implica, nas palavras de Lepecki (2008, p. 37-38):

Uma repentina crise da imagem da presença do bailarino (tanto no palco como no mundo) como uma presença sempre a serviço do movimento. O ato imóvel, o esgotamento da dança, abre a possibilidade de pensar a autocrítica da dança experimental contemporânea como uma crítica ontológica, mais ainda, como uma crítica da ontologia política da dança. A revogação do alinhamento inquestionado da dança com o movimento, iniciada pelo ato imóvel, supõe uma reconsideração da participação do bailarino na mobilidade: inicia uma crítica, desde o ponto de vista cênico, de sua participação na economia geral da mobilidade, que nutre, sustenta e reproduz as formações ideológicas da modernidade capitalista tardia.

Seguindo essa maneira de compreender trabalhos de dança em que os bailarinos recusam a mover-se ou propõem estados de imobilidade, bem como prosseguindo nessa trilha da crítica da injunção entre modernidade, coreografia e movimento, Lepecki defenderá ao longo do livro certa compreensão da constituição histórica da coreografia, tomando como base a obra Orchesographie, de Thoinot Arbeau (livro originalmente publicado em 1588), discutindo, a partir dessa obra, o projeto de associação entre dança e escrita e de constituição de um sujeito coreográfico caracterizado pelo solipsismo. A partir dessa retomada, Lepecki considera então os trabalhos de artistas como Xavier LeRoy e Jérôme Bel (entre outros) como trabalhos que efetuam rupturas radicais com os fundamentos do projeto de constituição da coreografia e com certas implicações da associação moderna entre dança e movimento: no caso de LeRoy, mediante a dissolução de certa noção de sujeito estável e fixo e, no caso de Bel, mediante um questionamento e tensionamento dos dispositivos da representação.

Em suma, o que Lepecki procura construir ao longo da obra citada até aqui é uma maneira de ler e situar historicamente determinados trabalhos e artistas contemporâneos sob a chave de como tais trabalhos se posicionariam frente ao sentido político que a concepção moderna de coreografia teria. Em outras palavras, Lepecki procura aplicar dedutivamente sua compreensão crítica geral das injunções entre coreografia e modernidade a trabalhos contemporâneos de dança, avaliando, desse modo, em que medida tais trabalhos desdobram, reproduzem ou produzem rupturas com tal projeto fundacional.

Tendo até aqui retomado em linhas gerais as teses defendidas pelo autor, pretendo então instaurar o que penso que podem também ser atos imóveis que tensionem em alguma medida o acelerado movimento de pensamento e avaliação de trabalhos contemporâneos de dança produzido por Lepecki. Para isso, busco desenvolver alguns recuos de interrogação e reflexão a respeito do caminho e dos posicionamentos tomados por esse autor, a fim de abrir certas fissuras de incerteza e outras possibilidades de leitura das relações entre dança e movimento, bem como outras maneiras de produzir discursos sobre trabalhos de dança.

A necessidade de abrir fissuras e recuos reflexivos sobre as ideias de Lepecki me parece, em primeiro lugar, justificada pelo fato de que seu trabalho, devido à maneira mesmo como constitui certo tipo de discurso sobre a dança (que examinaremos mais adiante), pode ser lido como uma avaliação crítica que é também amiúde prescritiva, isto é, que também indica quais caminhos a dança deve tomar se não quiser continuar reproduzindo e alimentando, por exemplo, um projeto disciplinar (e além disso, também em suas palavras, heteronormativo, sexista e colonial) de coreografia e de dança.

A possibilidade de ler o trabalho de Lepecki como um trabalho prescritivo é exemplificada no questionamento trazido pela artista e pesquisadora de dança Juliana Moraes (2013MORAES, Juliana. Dança Frente e Verso. São Paulo: SJT, 2013.), em livro publicado recentemente, escrito a partir de sua tese de doutoramento:

Fico maravilhada com a capacidade de Lepecki em alinhavar teorias complicadíssimas e fazer ver estruturas complexas que se colocam nas bases da dança moderna. O que acho complicado é o resultado das conclusões do autor: sua insistência na stillness como única estratégia viável para se contrapor ao que ele denomina de sujeito aprisionado na representação de si mesmo. Minha preocupação é muito simples e vejo isto no dia a dia: imagine um jovem estudante que adora dançar, mover-se livremente ao som de qualquer música, seja Madonna ou Lady Gaga, não importa. Sentir o vento bater no corpo suado, a energia que vibra por todos os poros, a alegria de dançar com mais uma pessoa, com muitas, com centenas. [...] Esse moço, que adora dançar, entra na faculdade e a teoria do movimento, a que mais ‘pegou’ nos últimos anos, é essa de valorizar a stillness. Bem, ele vai aprender que se deixar levar pelo movimento é manter-se aprisionado na estrutura da representação, na sujeição do ‘indivíduo automóvel’ (que se automove). Então, para romper com toda essa violência da modernidade, o menino aprende que deve deixar de lado o movimento e pesquisar a potência do still-act. Agora pergunto: onde está a violência aqui? Para mim, está em tirar a dança desse moço (Moraes, 2013MORAES, Juliana. Dança Frente e Verso. São Paulo: SJT, 2013., p. 136).

O trecho citado, ao construir uma situação hipotética ilustrativa de um possível conflito entre uma teorização prescritiva a respeito da dança (prescritiva no sentido de indicar o que deve ser feito e valorizado a fim de romper com a violência da modernidade) e o desejo de dançar e mover-se de um estudante, me parece justificar nosso intuito de interrogar criticamente as teses de Lepecki e sobretudo o recurso a elas como teoria que mais pegou nos últimos anos, nas palavras da autora, e que, por essa razão, pode determinar escolhas didáticas e também curatoriais de grande impacto.

Assim, em resposta aos conflitos que uma leitura prescritiva de certa teorização da dança pode de fato gerar no dançarino real-hipotético evocado por Moraes e no campo da reflexão e da produção de dança de um modo geral, cabe interrogar em que medida a valorização, efetuada por Lepecki, da escolha de certos bailarinos permanecerem em pausa, supostamente sem movimento em alguns de seus trabalhos, bem como sua leitura bastante literal dessa escolha, como sendo uma maneira de assumir o ato imóvel, pode ou não validar uma teorização prescritiva ou valorativa, baseada em certas deduções gerais sobre a modernidade e sobre a história da dança aplicadas a trabalhos específicos, estabelecendo o que então seria o sentido político de tais trabalhos e das escolhas estéticas neles implicadas.

De início, cabe salientar que a narrativa que Lepecki faz da história da constituição da dança na modernidade toma como base, como dissemos, uma publicação específica: Orchesographie, de Thoinot Arbeau, possivelmente sob a influência do trabalho do historiador Mark Franko, já citado, que, por sua vez, igualmente centrou sua discussão histórica sobre a dança no Renascimento na leitura do trabalho de Arbeau. No entanto, em uma resenha crítica ao trabalho de Mark Franko, a também historiadora de dança Angene Feves (1989FEVES, Angene. Trying to discover the renaissance dancing body. Dance Chronicle, Abingdon-on-Thames, v. 12, n. 3, p. 386-393, 1989.), questiona o empreendimento de Franko e sobretudo a escolha de centralizar a discussão sobre a dança renascentista na Orchesographie de Arbeau.

Dentre os principais argumentos de Feves contra a escolha feita por Franko da Orchesographie como uma fonte central, está a consideração de que Arbeau, seu autor, segundo ela, era um dos menos profissionalizados dentre os autores de manuais e tratados sobre dança em sua época, e que mestres de dança italianos, sobretudo Caroso e Negri, tinham uma circulação maior pela Europa, sneod autores de tratados que, de acordo com os documentos por ela consultados, tiveram maior relevância do que o livro de Arbeau, bem como descrevem com maior detalhamento como podem ter sido as danças a que se dedicaram.

Outro questionamento feito por Feves ao trabalho de Franko e à escolha da Orchesographie é ainda mais relevante para o que queremos salientar aqui:

Se fosse possível abrir um livro e ter ‘dançarinos do Renascimento’ aparecendo como um holograma diante de nós, como eles se moveriam? Que tipo de passos eles fariam? De que área da Europa viria esta visão? Borgonha? Norte da Itália? Esta aparição seria do século XV ou XVI? Na verdade, quando e onde é o ‘Renascimento’? Historiadores da arte, músicos e historiadores da dança podem bem ter respostas diferentes. Mesmo os historiadores da dança podem não concordar entre si: ‘Renascimento’ pode significar meados do século XV para um especialista em dança e final do século XVI para outro. [...] Certamente, a ‘especificidade’ é essencial na pesquisa dessas informações neste campo. Espera-se que o conceito de dança ‘pré-clássica’, em que todo tipo de dança antes de Bach é misturado em uma única categoria, tenha-se provado um guarda-chuva genérico tão inútil quanto seria um conceito de dança ‘pós-clássica’ para descrever todas as danças desde Bach. As generalidades tornam-se não somente enganosas, como positivamente perigosas (Feves, 1989FEVES, Angene. Trying to discover the renaissance dancing body. Dance Chronicle, Abingdon-on-Thames, v. 12, n. 3, p. 386-393, 1989., p. 388)4 4 Tradução livre. .

Portanto, em que medida é possível e válido compreender e delimitar a dança do Renascimento, assim como as relações entre a constituição da noção de coreografia e a constituição da modernidade como um projeto único, com a homogeneidade que o texto de Lepecki indica? Em que medida não há justamente concepções radicalmente distintas de corporeidade, dança, movimento, escrita, sujeito, estética e política atuando nos processos históricos de constituição da dança na modernidade, que não se afunilam nem se amalgamam em um único projeto coerente, mas talvez sigam constituindo um campo diverso de tensões, de alianças e discordâncias sem uma síntese clara possível?

Por fim, a advertência, lembrada por Feves, feita por Jacques Amiot ao Rei Henrique III da França a respeito da inutilidade de se tentar escrever em texto os gestos e movimentos, não indica necessariamente (como o texto de Feves deixa claro) que os gestos e/ou o movimento não tivessem importância central na concepção de dança do período pré-Renascença, mas, sim, que já havia uma discussão (que permanece ainda atual) a respeito da desejabilidade, das possibilidades e dos limites de qualquer notação/escrita de movimento em relação às nuances e complexidades (de estilo, de qualidade etc.) do movimento, em especial do movimento humano, que podem ser encontradas na transmissão intercorpórea da dança (e que se perdem quando transmitidas via texto escrito/notação). Por essa razão, Feves questiona as próprias possibilidades do objetivo de Franko de “[...] desvelar a especificidade do corpo dançante como estilo ou qualidade de movimento” (Franko apud Feves, 1989, p. 386), sobretudo tomando como fonte somente a leitura de alguns tratados da época e da Orchesographie em especial.

Nesse sentido, o que a advertência de Amiot evidencia é que a associação imediata entre escrita e movimento, que é um dos fundamentos da crítica de Lepecki à coreografia como um dispositivo disciplinar, ainda que possa ser de fato o projeto manifesto na Orchesographie, não era um projeto unânime ou hegemônico nos séculos XV e XVI, nem nos subsequentes. Havia, como ainda há, uma tensão fecunda entre os esforços de fixar a dança em um texto escrito e reprodutível (que permitiria garantir de modo inequívoco seu caráter de obra e produto artístico) e justamente os furos a esse objeto fechado que a própria amplitude e complexidade da noção de movimento tem a potência de indicar e gerar.

Portanto, em suma, a resenha de Feves, independente de quão plenamente válida ou acertada seja sua avaliação sobre o trabalho de Franko, é importante como indicativo de que há controvérsia em relação a qualquer narrativa peremptória a respeito do que possa ter sido um projeto geral de concepção e constituição da dança no Renascimento e na chamada Idade clássica, assim como em relação à existência de um sentido único ou principal das relações da dança com a constituição da modernidade. Em outras palavras, há muitas razões para se sustentar que a dança fundada no Renascimento não tenha um ponto inaugural simples e único (como poderia ser o livro Orchesographie ou algum outro episódio ou documento), mas seja resultado de um conjunto complexo e heterogêneo de gestos em algum sentido fundacionais e de recursos diversos aos modos de fazer dança já existentes e com sua história pregressa.

Vale lembrar que escolher um ponto de início da história como uma espécie de marco zero, cujas características permitam descrever claramente os princípios daquilo que esse marco zero funda, é um empreendimento de compreensão da história bastante moderno, que, como discute Rosalind Krauss (1986KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge: The MIT Press, 1986.), baseia-se em certa noção de originalidade própria da modernidade, que possui as principais características estruturais dos mitos.

Portanto, não necessariamente a Orchesographie, sobre a qual Lepecki baseia sua análise da constituição da dança (como qualquer outro marco zero que se escolhesse), dá conta da complexidade dos projetos que viriam a convergir, de maneira não necessariamente unissonante, no que mais tarde se entenderia por coreografia e por dança cênica, e nos diferentes usos e implicações políticas da constituição desse campo.

Outro ponto, ainda mais crucial, da análise de Lepecki que merece ser abordado é a referência ao trabalho de Peter Sloterdijk (2000SLOTERDIJK, Peter. La Mobilization Infinie: vers une critique de la cinétique politique. Paris: Christian Bourgois, 2000.) e a maneira como tal trabalho fundamenta certa leitura crítica geral da associação entre dança e movimento.

Voltando ao texto de Sloterdijk, logo de início este autor propõe que sua crítica à “ontologia cinética” da modernidade implica em “[...] uma teoria na qual a diferença vital entre mobilidade e mobilização se propõe como um critério de uma ‘ética’ alternativa” (Sloterdijk, 2000, p. 14)5 5 Tradução livre. . Portanto, se é central afirmar uma diferença entre mobilidade e mobilização, no mínimo, a noção de movimento que fundamentaria sua crítica ao sujeito cinético e a uma ética e ontologia da mobilidade na modernidade merece ser nuançada e lida sob uma pergunta de base: o que está sendo, nesse caso, nomeado com a palavra movimento?

Retomando então ao texto de Sloterdijk, encontramos que sua crítica à utopia cinética da modernidade enfoca a injunção entre um projeto de mundo e certa concepção de movimento como possibilidade de execução precisa desse projeto de mundo. Em suas palavras:

O caráter projetivo desta era nova [a modernidade] resulta da suposição grandiosa segundo a qual se poderá em breve fazer evoluir o curso do mundo de tal maneira que somente se moverá aquilo que nós queremos razoavelmente manter em marcha por nossas próprias atividades. O projeto da modernidade repousa portanto - nunca se disse claramente - sobre uma utopia cinética: a totalidade do movimento do mundo deve tornar-se a execução do projeto que nós temos para ele (Sloterdijk, 2000SLOTERDIJK, Peter. La Mobilization Infinie: vers une critique de la cinétique politique. Paris: Christian Bourgois, 2000., p. 23).

A questão não é tanto o movimento em si (ou uma noção genérica não interrogada de movimento), mas certa concepção do movimento como execução de um projeto, que - e isso é o principal ponto criticado por Sloterdijk - não toma em consideração o excedente de movimento, isto é, o fato de que todo movimento posto em marcha como execução de um projeto põe também em marcha outros movimentos não previstos inicialmente nesse projeto, criando uma espécie de bola de neve de desdobramentos imprevistos, de modo que nada aconteça como de fato havia sido projetado ou de acordo com as intenções do projeto inicial. Em suas palavras:

O que se move, move sempre mais do que somente a si mesmo. O que faz história, faz sempre mais que somente história. Esse a mais [...] é o excedente cinético que ultrapassa os limites e distorce os objetivos para penetrar naquilo que não se quis. Esse excedente fatal se integra ao elã das massas mortas que, uma vez postas em circulação, não sabem mais nada das finalidades morais. O capital cinético faz explodirem os mundos antigos - ele não tem nada contra eles, isso se deve somente a seu princípio de incoercibilidade. Ele não pode fazer nada além de pôr a dançar as coisas em melodias aceleradas (Sloterdijk, 2000SLOTERDIJK, Peter. La Mobilization Infinie: vers une critique de la cinétique politique. Paris: Christian Bourgois, 2000., p. 29).

Tal crítica inicial sobre as contradições entre o que um projeto prevê e os movimentos não considerados nesse projeto, mas postos em ação em sua execução, desdobra-se, no texto de Sloterdijk, em uma crítica mais ao movimento, na medida em que este passa a ser valorizado na modernidade sob a noção de progresso e como evidência da execução dos projetos e concepções de mundo dos sujeitos modernos. Ainda, retomando as palavras do autor:

Progresso é o conceito de movimento no qual a consciência de si ético-cinética dos tempos modernos ao mesmo tempo se exprime ruidosamente e se vela o mais hermeticamente. Quando é questão de progresso, pensa-se na motivação fundamental cinética e cinestésica da modernidade, que visa apenas a liberar o automovimento do homem de seus limites. [...]

É uma característica dos processos progressistas começar por iniciativas éticas para continuar em um automatismo cinético. [...]

Não há imperativos éticos de tipo moderno que não sejam ao mesmo tempo impulsos cinéticos. A impulsão categórica da modernidade é: para haver constantemente uma atividade de seres do progresso, nós devemos superar todas as situações onde o homem é um ser travado em seu movimento, um ser imobilizado em si mesmo, um ser não livre, um ser lamentavelmente determinado (Sloterdijk, 2000SLOTERDIJK, Peter. La Mobilization Infinie: vers une critique de la cinétique politique. Paris: Christian Bourgois, 2000., p. 33-35).

Foge ao objetivo e escopo deste artigo fazer uma avaliação ou afirmar um posicionamento sobre as teses de Sloterdijk (que exigiria um exame mais específico e aprofundado sobre sua obra). De todo modo, o que pretendemos salientar aqui é que seu conceito de mobilização não implica necessariamente uma crítica a todas as formas de movimento, ou a qualquer forma de injunção entre o corpo e o movimento, mas uma crítica específica a uma determinada concepção e abordagem do movimento, ligada à noção de progresso e subordinada a um projeto de refundar a história e de o ser humano ser o único ou principal determinante das transformações da paisagem e do mundo, “fazendo natureza” (Sloterdijk, 2000, p. 23).

Portanto, uma argumentação como a de Lepecki, que, com base em Sloterdijk, conclui que a associação entre dança e movimento é consequência direta da constituição da utopia cinética na modernidade - e que, portanto, a ruptura, na dança, com o projeto moderno deva implicar numa recusa ao movimento, sendo que tal recusa traduzir-se-ia concretamente em trabalhos de dança nos quais os dançarinos permanecem em pausa ou repouso - não leva em conta as especificidades do conceito de movimento em discussão no trabalho de Sloterdijk (mais centrado na ideia de mobilização), tampouco leva em conta a possível existência de outras concepções de movimento presentes nos trabalhos de diferentes artistas da dança.

Nesse sentido, proponho como alternativa a esse caminho, que me parece linear e um tanto apressado (e, num certo sentido, caracterizado justamente pelo movimento acelerado que pretenderia criticar), o estabelecimento de diferenciações conceituais em torno da noção de movimento, que possivelmente ajudem a refletir sobre diferentes projetos e concepções (de corporeidade, de sujeito, de política) atuantes na dança atualmente. As principais diferenciações que defendo seriam: 1. Entre movimento e mobilização; 2. Entre movimento e ação (e ainda as diferenciações correlatas entre movimento sobre algo e movimento em si, e entre movimento como ação e movimento como estado); 3. Entre movimento e aceleração (ou movimento e impulsionamento).

Movimento e Mobilização

Uma primeira diferenciação, pertinente para o caminho de reflexão aqui proposto, é entre movimento e mobilização, já anunciada, como vimos, no próprio texto de Sloterdijk. A mobilização, no trabalho desse autor, é uma forma específica de abordar o movimento, no sentido de pôr ativamente coisas em movimento a partir de certo projeto de transformação e de certo resultado vislumbrado de antemão. Nesse sentido, nem todo movimento é mobilização.

Fundamentalmente, a mobilização pressupõe uma subordinação entre o movimento e a expectativa de um caminho determinado e de um resultado conhecido. No entanto, existem modos de o movimento relacionar-se deliberadamente com a abertura, a indeterminação e o desconhecido, não pela via do excedente de movimento indesejado e não considerado de antemão, discutida por Sloterdijk, mas por um tipo de abordagem e concepção do desconhecido e da indeterminação que certa concepção ou ética do movimento pode gerar, tal como acontece, por exemplo, no campo da improvisação em dança, que vem a ser uma atitude deliberada de suspensão do desejo de determinação, a fim de abrir espaço concretamente ao desconhecido e à alteridade. Nas palavras de duas dançarinas que se dedicam à improvisação, Nancy Stark Smith e Ann Cooper Albright, a esse respeito:

Onde você está quando você não sabe onde está é uma das situações mais preciosas oferecidas pela improvisação. É um lugar no qual mais direções são possíveis do que em qualquer outro. Eu chamo este lugar de o Vão. Quanto mais eu improviso, mais eu estou convencida de que é por meio destes vãos - essa suspensão momentânea de pontos de referência - que vem o inesperado e tão buscado material ‘original’. Ele é original porque sua origem está no momento presente e porque ele vem de fora de nosso leque de referências usuais (Smith, 1997SMITH, Nancy Stark. Taking No For an Answer. In: SMITH, Nancy Stark (Org.). Contact Quarterly’s Contact Improvisation Sourcebook. Northampton: Contact Editions , 1997. [1987]. P. 113-114., p. 113).

Acredito que a potência das práticas improvisacionais hoje está menos na abertura de mais opções de movimento (locomovendo-se pelo espaço, digamos, em três ou quatro membros ao invés dos dois usuais), e mais no entendimento de como encorajar uma disponibilidade para atravessar territórios desconfortáveis, para mover-se em face ao medo do que é desconhecido. Essa disponibilidade se faz possível pela habilidade paradoxalmente simples mas bastante sofisticada de estar ao mesmo tempo externo e interno - ao mesmo tempo aberto ao mundo e intensamente enraizado em uma consciência [awareness] da própria experiência acontecendo. ‘Morar nas possibilidades’ se refere a essa experiência dual de estar presente ‘aqui’ para poder ser capaz de imaginar o que poderia acontecer ‘fora daqui’. [...]. Morar é uma experiência intensificada de habitar - inteiramente e conscientemente - de modo que um espaço torna-se mais do que a soma de suas partes, sendo que esse espaço faz as coisas acontecerem. Essa concepção de morar é similar, acredito, ao que Simone Forti descreve como um ‘estado de dança’, onde as sensações fazem um suco com o corpo, encorajando conexões imaginativas que seriam de outro modo impossíveis (Albright, 2003ALBRIGHT, Ann Cooper. Dwelling in possibility. In: ALBRIGHT, Ann Cooper; GERE, David (Ed.). Taken by Surprise: a dance improvisation reader. Middletown: Wesleyan Universty Press, 2003. P. 257-267., p. 260, grifo da autora).

As palavras de Smith e Albright subvertem tanto a noção mecanicista de movimento - em que este é entendido como o deslocamento de um corpo num espaço em que as referências são fixas (Abgnano, 2000ABAGNANO, Nicola. Movimento. In: ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 686.; Ferrater Mora, 1951FERRATER MORA, José. Movimiento. In: FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1951. P. 637.) - como também subvertem a noção de mobilização discutida por Sloterdijk, em que um movimento é submetido a um projeto.

A poética (modo de fazer) e a ética (modo de ser e estar) da improvisação em dança, como os trechos acima apontam, implicam na suspensão de referências, na valorização da indeterminação e no trânsito entre conhecido e desconhecido, a fim de manter o sentido da experiência em aberto, para que o desconhecido continue, ao longo do tempo da experiência, convidado a participar.

Como coloca Albright, a improvisação pode ser concebida como menos interessada na ampliação de possibilidades de movimento (que seria justamente a concepção de progresso criticada por Sloterdijk), e mais interessada num estado de morada na indeterminação. A concepção de movimento aí implicada é, em certo sentido, radicalmente diferente do ethos da mobilização, na medida em que, ao invés de pôr coisas em movimento com um projeto ou finalidade pré-determinados, trata-se de abrir espaço para que coisas aconteçam sem serem subordinadas a um sujeito humano concebido como exterior a elas. Aquilo que do ponto de vista da mobilização moderna é um problema - que coisas se movam a mais do que aquilo que foi posto inicialmente em movimento na execução de certo projeto, de modo imprevisível e diferente do que havia sido projetado e calculado - aqui é justamente o que se espera que aconteça: deixar que o imprevisto possa existir. Esse outro ethos implica uma concepção de ação e de sujeito distinta da concepção moderna de mobilização como sendo ação de um sujeito sobre coisas-objeto, como veremos a seguir.

Nesse sentido, esse tipo de abordagem da improvisação descrito até aqui exemplifica a possibilidade (que evidentemente não é a única) de não conceber ou abordar o movimento necessariamente como sinônimo de mobilização (no sentido trazido por Sloterdijk), mas, contrariamente até, como abertura de espaços de indeterminação e fissura de projetos pré-estabelecidos.

Movimento e Ação

Ainda nos detendo nas proposições da improvisação em dança, uma das práticas mais importantes no trabalho de Steve Paxton, um dos dançarinos que mais aprofundou as investigações nesse campo no século XX, é a chamada pequena dança. Como Paxton explica:

Tudo o que você deve fazer é ficar em pé e então relaxar - você sabe - e em um certo ponto você percebe que você relaxou tudo que você pode relaxar, mas você ainda está em pé e nesse estar em pé há bastante movimento mínimo... o esqueleto sustentando você para cima mesmo que você esteja mentalmente relaxando. Agora nesse mesmo fato de você pedir a si mesmo para relaxar e ainda assim continuar a ficar em pé - encontrando esse limite além do qual você não poderia mais relaxar sem cair, você é posto em contato com um esforço básico de sustentação que continua constantemente no corpo, do qual você não precisa estar consciente. [...] Estamos tentando entrar em contato com esse tipo de forças primárias no corpo e fazê-las prontamente aparentes. Eu chamo isso de ‘pequena dança’... Foi um nome escolhido principalmente porque é bastante descritivo da situação e porque enquanto você está ficando em pé e sentindo a ‘pequena dança’, você está consciente de que não está ‘fazendo-a’, então, num certo sentido, você está se assistindo performar; assistindo seu corpo performar sua função. E sua mente não está concluindo nada, nem procurando por nenhuma resposta, nem sendo usada como um instrumento ativo, mas sendo usada como uma lente para focar certas percepções (Paxton, 1997PAXTON, Steve. The Small Dance. In: SMITH, Nancy Stark (Org.). Contact Quarterly’s Contact Improvisation Sourcebook vol 1. Northampton: Contact Editions, 1997. [1977]. P. 23-24., p. 23)6 6 Tradução livre do original em inglês. .

O que a pequena dança de Paxton revela com clareza é a existência do movimento independente da ação, mais propriamente testemunhado do que agido.

Em certo sentido, essa existência do movimento independente da ação é uma realidade evidente, no entanto, sua valorização não é nada anódina, já que a associação direta entre movimento e mobilização, e a valorização do movimento como resultado da deliberação de um sujeito, e como associado a uma concepção de um sujeito que age sobre objetos - sendo o corpo, no pensamento moderno, um objeto passivo do conhecimento - obliteram outros sentidos possíveis para o movimento, para além da ação de um sujeito concebido como separado do corpo e das coisas. Na experiência da pequena dança, suspende-se o ethos ativo. Age-se apenas no sentido de interromper a mobilização, a ação sobre algo, e então emerge um sujeito que testemunha não uma ação, mas um acontecer em si mesmo. No entanto, não se suspende, com isso, o movimento.

Em outras palavras, a pequena dança de Paxton traz uma implicação filosófica importante. O que Paxton nos conta é, de certo modo, o que já contava Heráclito: não há um fora do movimento, não há imobilidade. A (suposta) imobilidade, do ponto de vista da fisicalidade, revela movimentos menos óbvios, mas não ausência total de movimento. Não um não-movimento, mas diferentes modalidades ou concepções e manifestações do movimento. A contração da musculatura com uma intencionalidade ativa é uma dessas modalidades de movimento, mas não a única, somente a mais óbvia e que, por ser tão evidente e comum, tende a subsumir a noção de movimento e obliterar os movimentos que existem fora dessa mobilidade ativa e evidente.

Outros campos de experimentação em dança, como várias das práticas da chamada educação somática, desdobraram princípios similares, ao proporem formas de contato e conexão com os movimentos em um nível ainda mais micro: movimento dos tecidos e das células, movimento do estado de vida de um corpo, que acontece para além ou aquém da deliberação e da ação de um sujeito7 7 Uma artista da dança que merece a referência e que descreve várias formas de abordar o corpo e o movimento nessa direção é, por exemplo, Deborah Hay, em seu, My body the buddhist (2000). .

Além disso, voltando ainda ao tema da improvisação, a dançarina e teórica da dança, Susan Leigh Foster, aponta que a experiência de improvisar pode subverter a própria noção hegemônica de agenciamento, isto é, das relações entre sujeito e ação, como um vetor unidirecional. Em suas palavras:

Na forma de sua função, a improvisação lembra muito de perto uma categoria gramatical encontrada nas formas verbais de muitas línguas (incluindo o Grego clássico) conhecida como voz média. Neste tipo de uso do verbo em particular [...] os eventos não acontecem nem na voz ativa nem na voz passiva. O sujeito não age, tampouco recebe uma ação. [...] O conceito de uma operação que não é nem ativa nem passiva, tal como a voz média, desafia profundamente os valores culturais hegemônicos que persistentemente forçam uma escolha entre um desses dois polos. A maioria das teorias sobre a significação da ação humana dependem da concepção de um sujeito individual e isolado, localizado dentro de um corpo, que controla e manipula para conseguir auto-expressão e preencher necessidades individuais. O sujeito dentro do corpo diz ao corpo o que fazer, e o corpo executa essas ordens, às vezes de maneira relutante e inadequada, ou desviante, mas nunca de maneira autônoma. [...] A experiência de improvisar, contudo, estabelece a possibilidade de uma teoria alternativa do agenciamento corporal, uma que refuta a mera instrumentalidade do corpo e sugere formulações outras de como acontecem os agenciamentos individuais e coletivos. A improvisação gera uma experiência de corpo em que este inicia, cria e explora ludicamente seu próprio potencial físico e semântico. O corpo pensante e criador se engaja na ação. [...] Esse corpo instigador, assim como responsivo, sustenta o desenvolvimento da consciência como uma hiperconsciência de relacionalidades. [...] Durante esse trabalho lúdico, a consciência transita entre os pontos de vista de: sujeito em relação a grupo, corpo em relação a corpo, movimento em relação a espaço e tempo, passado em relação a presente, fragmento em relação ao todo em desenvolvimento. Compartilhada por todos os improvisadores em determinada performance, essa consciência corporificada permite fazer a dança e, ao mesmo tempo, a dança fazendo-se a si mesma (Foster, 2003FOSTER, Susan Leigh. Taken by surprise: improvisation in dance and mind. In: ALBRIGHT, Ann Cooper; GERE, David (Ed.). Taken by Surprise: a dance improvisation reader . Middletown: Wesleyan University Press, 2003. P. 3-12., p. 7-8).

Em suma, o que a “pequena dança” e a improvisação8 8 Cabe dizer ainda que no campo das reflexões sobre a dança a partir da coreografia, a ideia de uma subversão dessa noção de agenciamento como ação de um sujeito sobre o corpo também aparece com clareza em alguns trabalhos de diferentes autores. Por exemplo, a mesma Susan Leigh Foster, em outro trabalho (2016), a fim de responder a uma pergunta bastante relevante (por que a dança é experienciada como um tipo de movimento que sempre energiza ao invés de consumir ou esgotar?), retoma as ideias do artista e teórico da dança Randy Martin, para afirmar que, mesmo para um bailarino dançando uma coreografia (como foi o próprio Martin), a mobilização não é resultado da ação de um poder vindo de fora sobre o corpo do bailarino (como na relação imperativa entre mestre e discípulo descrita por Lepecki a partir da Orchesographie), mas é vivida pelo bailarino como afirmação de uma potência do próprio corpo-sujeito, borrando a dicotomia e a separação entre corpo e sujeito (Foster, 2016, p. 21-22). nos permitem encontrar é uma realidade do movimento, não necessariamente como resultado de uma ação ou como a ação em si, mas como um estado ou acontecimento. A bastante conhecida frase de Heráclito, “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” (Souza, 1996SOUZA, José Cavalcante de (Ed.). Os Pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores. Vol. 1)., p. 101), assim como sua imagem do fogo (incapturável, além das dicotomias e fixações, além da noção de ente e de ipseidade) como sendo o princípio de todas as coisas, não são discursos ou imagens inaugurados na modernidade, tampouco implicam em uma concepção ética ou política baseada na noção de progresso ou na mobilização, e, no entanto, propõem certa ontologia do mundo como movimento, para além da ação de um sujeito concebido a partir do solipsismo, antropocentrismo, da matematização e das outras várias operações bastante conhecidas no empreendimento da modernidade. Em outras palavras, há mais complexidade no campo visado pela palavra movimento do que somente o sujeito da modernidade, a mobilização ou o regime disciplinar.

Movimento e Aceleração

Por fim, ainda outro aspecto importante dessa reflexão e nuançamento sobre a noção de movimento e suas relações com a dança - e, sobretudo agora que a prefeitura da maior cidade do país é ocupada por um candidato eleito sob o lema acelera! - um exame das relações entre movimento, velocidade e aceleração.

No primeiro capítulo de seu livro Corpos de passagem (2001), Denise Bernuzzi de Sant’Anna reflete sobre as transformações na percepção e na subjetividade ocasionadas pela ampliação das velocidades dos deslocamentos dos corpos, a partir da invenção dos trens a vapor, e, mais tarde, dos aviões, automóveis e foguetes. Um dos efeitos do tipo de mobilidade em alta velocidade que tais máquinas permitem, segundo a autora, é um apagamento das singularidades do espaço e dos corpos, uma vez que a velocidade com que se passa por eles implica torná-los cada vez mais neutros e abstratos, coisas pelas quais se passa, mais do que coisas ou lugares com que se possa estabelecer relações de diálogo e troca.

Como lembra Roland Barthes, “[...] a 2000 por hora, em altitude constante, nenhuma sensação de velocidade” (Barthes apud Sant’Anna, 2001SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001., p. 16), ou seja, a altíssima velocidade cria paradoxalmente uma sensação de imobilidade, o corpo e o espaço se abstraem, os lugares por onde se passa são apenas pontos num espaço geometrizado e homogêneo.

Evidentemente, a valorização das altas velocidades e sobretudo da aceleração - do aumento constante da velocidade impulsionado por determinada força - se relaciona diretamente com o que Sloterdijk aponta como progresso e como utopia cinética da modernidade: quanto maiores as possibilidades de velocidade, maiores as possibilidades de mobilização, assim como de abordagem das coisas como objetos abstraídos de sua singularidade e indeterminação.

Junto a isso, coloca Sant’Anna (2001, p. 19):

O adjetivo lento resulta de comparações e é fruto de medidas, sempre culturalmente determinadas, historicamente sujeitas a modificações inusitadas. Quando a histórica conquista da velocidade cria novas lentidões como se elas fossem somente seus opostos, todo o peso material tende a ser percebido como mero obstáculo a ser ultrapassado, aniquilado. O peso do corpo é um deles. Sócrates já havia sido porta-voz de um antigo sonho: escapar da resistência da matéria, pois ‘o corpo nos causa mil dificuldades’.

Em outras palavras, a valorização da alta velocidade é também articulada a um projeto de superação dos limites e das características do corpo, de sua precariedade, de sua relativa lentidão e fraqueza em comparação às máquinas, e, sobretudo, de sua mortalidade e falibilidade.

Nesse sentido, queremos salientar que a ética da alta velocidade e da aceleração não é ou não é necessariamente uma ética que valoriza o movimento. A aceleração, como sabemos desde Newton, é característica de um tipo específico de movimento: o movimento uniformemente variado, isto é, o movimento que se faz em um espaço sem obstáculos e imprevisibilidades, um espaço o mais próximo possível do espaço abstrato de um plano cartesiano, em que o corpo se desloca submetido a um vetor único de uma força que aponta para uma direção precisa. O movimento irregularmente variado, tanto do ponto de vista da direção como da velocidade, é radicalmente diferente do movimento uniformemente variado (e, no caso, acelerado).

Sendo assim, a ética da aceleração é justamente uma ética resultante do desejo de o corpo libertar-se do movimento como devir e como imprevisibilidade, libertar-se tanto do micromovimento da vida das e nas coisas (o movimento que torna o corpo mortal, que faz as coisas estarem em constante transformação, ainda que de modo imperceptível a uma percepção), como de uma concepção de movimento como transformação aberta dos percursos, dos pontos de vista, e do sentido. Em alta velocidade, anda-se o mais próximo possível da linha reta, e então o espaço é cada vez mais não-lugar (no sentido dessa expressão discutido por Marc Augé, 2004AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2004.), e um tipo de relação utilitarista e abstrata com as coisas é cada vez mais a única forma de relação possível (dado que as coisas que podem ser obstáculos ao movimento retilíneo e acelerado são eliminadas e, as que restam, são marcos fugazes que pontuam a univocidade do sentido do movimento).

No entanto, o espaço do corpo humano em movimento, e ainda mais o corpo humano quando experienciando um movimento não-utilitário, tal como discute Paul Valéry (2003VALÉRY, Paul. Dégas Dança Desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. [1938].), é um espaço distinto do espaço abstrato onde o movimento retilíneo acelerado pode ocorrer. Como nos lembra a dança de Doris Humphrey e José Limón, a aceleração e a desaceleração dialogam e seu diálogo na vertical evidencia a importância radical do peso como princípio do movimento (também amplamente discutido por Laurence Louppe, 2012LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.).

Portanto, diferentes formas de dança surgidas no século XX, sob diferentes aspectos, podem apontar concepções de movimento diferentes de um projeto em superar o peso de uma materialidade da qual se pretenderia fugir.

Ainda, como Gonçalo Tavares (2013TAVARES, Gonçalo. Atlas do Corpo e da Imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Alfragide: Editorial Caminho, 2013.) nos lembra, a variação complexa, dos percursos e das velocidades (diferente da variação regular e uniforme própria da aceleração) implica uma relação ética de intimidade com o inesperado:

Olhemos de novo para aquela dança particular, a dança com o Diabo [imagem presente em um conto popular retomado pelo autor]. O Diabo é sempre o símbolo do inesperado e não apenas, diga-se, da maldade inesperada. Tudo o que não se espera, tudo o que não é habitual, assusta. [...] Estamos, pois, nesta dança com o diabo, numa dança que não é mais do que um acordo, um entendimento de movimentos com o inesperado. Dançar com o diabo é tentar entender os movimentos do imprevisível, é fazer par com aquilo que se desconhece, com aquilo que não se compreende. [...] A velocidade do imprevisível (simbolizada pelo diabo) é velocidade sem ritmo, velocidade des-ritmada, daí a dificuldade em acompanhá-la (Tavares, 2013TAVARES, Gonçalo. Atlas do Corpo e da Imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Alfragide: Editorial Caminho, 2013., p. 269).

O diabo evocado por Tavares, aquele que dança no conto popular, é bastante diferente do Mefistófeles, que garante o resultado esperado aos empreendimentos de Fausto. Esse diabo do conto popular não propõe um movimento uniforme de aceleração (o movimento que inevitavelmente atropelará os velhos mundos, como atropela a casa de Filêmon e Baucis), mas um ritmo radicalmente irregular, portanto, um tipo de movimento que é também um problema para um projeto moderno de mobilização/aceleração.

Conclusão

A partir das diferenciações e nuançamentos da noção de movimento defendidas até aqui - a saber, entre movimento e mobilização, movimento e ação e movimento e aceleração - considero válido afirmar que uma suposta recusa da mobilidade num espetáculo de dança - tanto sob as formas mais evidentes, como as citadas por Lepecki nos exemplos de artistas que se mantêm em pausas longas, em relativa lentidão, ou permanecem em uma mesma posição, como também outras escolhas que este autor consideraria formas dessa mesma recusa, como as analisadas nos trabalhos de Xavier Le Roy e Jérôme Bel -, ainda que possa ter significativa potência como gesto de questionamento e tensionamento das fronteiras em relação ao que se considera dança e das expectativas que instituem certo status quo a esse respeito, não necessariamente rompem, por conta disso, efetivamente com a modernidade, pois a modernidade é sempre esse projeto de ruptura com o status quo (como discute Krauss, na obra já citada). Ademais, quando essa recusa do movimento ainda é lida de forma prescritiva (isto é, compreendida como o caminho que deve ser tomado), criando, portanto, um novo status quo (uma nova forma de hegemonia e território de poder daqueles que primeiro atingiram a suposta genialidade de compreender que a dança como movimento se esgotou e agora, mais uma vez, como tantas vezes ao longo da modernidade, uma nova dança deve ser feita), ela pode obliterar outros aspectos da experiência de dançar e de assistir dança que igualmente teriam a potência de subverter, dialetizar ou complexificar o projeto moderno.

Diferentes experiências com a dança, tanto a partir da posição de artista, como de pesquisador e espectador, me parecem exigir afirmar que a dança compreendida como fundamentalmente articulada ao movimento, quando há espaço de interrogação e nuançamento do que concebemos como movimento, tem a potência de evidenciar a impossibilidade de fixidez da forma e entificação do corpo. Nesse sentido, mesmo que o projeto moderno da coreografia tente submeter o corpo a um tipo de disciplinamento docilizante que o entifique como objeto fechado e de sentido acabado, o dançar pode ser sempre em algum grau a falha desse projeto. A experiência de assistir ou dançar formas de dança concebidas como formas de movimento (movimento, no entanto, não utilitário e não necessariamente reprodutível ou compreendido como execução de um projeto ou de um texto coreográfico), pode ser, amiúde, a de testemunhar a construção e a incompletude das formas. Impossibilidade de capturar ou entificar.

Nesse tipo de construção evanescente e precária das formas, subvertem-se as categorias e a dialética tradicional entre forma e conteúdo. Ainda que possam ser identificados (entificados) elementos desse tipo no que seria uma linguagem da dança, sua matéria mesmo é vivida como passagem. Experiência heraclitiana.

Poder-se-ia argumentar que a possibilidade do registro em vídeo subverteria esse caráter evanescente da dança, ao fixar o acontecimento em uma imagem que pode ser reproduzida e reassistida. No entanto, a experiência de assistir um trabalho de dança em vídeo (como a de ver uma fotografia dele) não é suficiente para totalizar o trabalho em um ente fixável e objetivável, tendo em vista a mobilidade do próprio olhar, que o vídeo exige e seu caráter igualmente fragmentário e contingencial9 9 A esse respeito, faço referência aos trabalhos de Amelia Jones (2012) e Nick Kaye (2012) a respeito das relações entre uma obra performática/cênica e suas formas de registro, recriação, desdobramento etc. em fotografia e vídeo. .

De todo modo, não por acaso, a história e a teoria (e a filosofia) da arte costumam relegar à dança um papel bastante secundário (em comparação com as artes visuais, abordadas como sinônimo de arte per se, mas também em comparação com o teatro, a literatura, a música e o cinema), possivelmente porque sua matéria poética em certo sentido contradiz e escancara os limites da teorização e do trabalho conceitual sobre a arte, calcados em certa ontologia da obra e do artista como entes. A obra de dança, quando articulada a certa noção de movimento, somente em parte é fixável em um texto ou registro, mas em (grande) parte depende da vida dos corpos, do contato corpo a corpo, portanto, de relações não alcançadas pelos meios da aceleração e da objetificação. Ao mesmo tempo, é também por isso que uma tensão e uma contradição latente atravessam toda a constituição da noção de coreografia e de espetáculo em dança, na medida em que essas são noções que justamente implicam certa concepção de obra (objeto, ente, texto, coisa fixável e minimamente estável) que entra em contradição com o caráter heraclitiano do movimento (ou de determinadas concepções e abordagens do movimento). Por conseguinte, discordando de Lepecki, penso que a marca da modernidade na instituição da coreografia não está em afirmar o ser-em-movimento, mas, pelo contrário, em tentar entificar e fixar o movimento em texto, concebido como coisa com forma delimitada, com contornos definíveis e com linearidade.

Em resposta a esse empreendimento, penso que muitos coreógrafos no século XX (mas também ao longo da história da dança clássica), conscientemente ou não, têm jogado com esse paradoxo, às vezes afirmando sua impossibilidade na medida mesmo em que tentam cumprir tal projeto. E, nesse sentido, a experiência de assistir a um espetáculo de dança é quase sempre a experiência de assistir a um devir intransitivo, à forma que nunca se constrói completamente ou como se pretendia quando concebida como texto.

Post scriptum

A motivação inicial para a escrita deste artigo é oriunda de uma experiência de fracasso na escrita de um outro trabalho. Nesse outro texto, minha intenção era discutir criticamente o trabalho de Jèrôme Bel, compreendendo-o como exemplo de artista que aposta em certa concepção, discutida por Jacques Rancière (2012RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes , 2012., p. 45), do “processo social global como um processo de autodissimulação” - concepção que implica o pressuposto da impossibilidade de qualquer distinção entre “imagem e realidade”. Em seguida, meu objetivo seria retomar e defender a proposta de Rancière da arte como produção de dissenso, apontando limites e problemas do trabalho de Bel a esse respeito (oriundos justamente de sua adesão irônica a esse pressuposto da impossibilidade de distinção entre imagem e realidade).

Minha tomada de partido por uma visão crítica (e bastante discordante) em relação ao trabalho de Bel partia da experiência como espectador de Pichet Klunchun and myself, trabalho de 2004, apresentado no SESC Santana (São Paulo, SP) em 2014, e que, naquele momento, me pareceu um exemplo claro dos limites e problemas de uma posição irônica e paródica do autor. Compreendi a ironia, neste trabalho, como estratégia de criação de um campo aparentemente seguro (ou bem defendido) de consciência autocomplacente (ou culpada) em relação a um eurocentrismo evidente no tipo de encontro com o outro estabelecido pelos dispositivos desse espetáculo e pretendia desenvolver uma crítica a essa posição.

Mantenho ainda minha posição crítica sobre esse aspecto do trabalho de Bel (ainda que não vá desenvolvê-la neste momento). No entanto, retomo o que pretendia relatar logo de início: durante as pesquisas para este texto, entrei em contato com um vídeo de Le dernier spectacle, trabalho de 1998 (sobre o qual Bel fez uma conferência, em 2004, disponível na internet)10 10 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OGpsTArU82Y>. Acesso em: 16 maio 2017. e fui totalmente conquistado pelo momento do trabalho em que Bel dança um trecho do solo Wandlung (Transformação) de Susanne Linke. Vi ali justamente presentificadas questões que me afetam e me interessam em camadas muito importantes: a vida de outros corpos em nosso corpo, o irreproduzível que apenas a reprodução/repetição permite acessar, o trabalho do luto, a tensão entre masculino e feminino na dança...

Incorporando/citando o solo de Linke, Bel justamente deslizou da posição de paródia e ironia, que eu lhe atribuía, para um lugar de dissenso com a potência de furar a inteligibilidade e a narrativa quase fechada que eu já havia construído a seu respeito.

Ter sido derrotado em minha posição inicial, por ter sido atravessado afetivamente por uma cena do trabalho de um artista de quem eu a princípio esperava um distanciamento irônico, me parece uma experiência muito significativa, como exemplo para apontar as insuficiências ou precariedades do discurso crítico (me refiro à crítica de arte e a grande parte daquilo que nós, pesquisadores e teorizadores das artes, nos esforçamos por fazer). Até porque, antes do contato com essa cena, eu já havia lido os capítulos de André Lepecki (2008LEPECKI, André. Agotar la Danza: performance y política del movimiento. Barcelona: Centro Coreográfico Galego / Mercat de les Flors / Universidad de Alcalá, 2008.), em defesa do trabalho de Bel (inclusive suas descrições e análises desse mesmo espetáculo) e já formulara minhas próprias respostas críticas aos argumentos de Lepecki, reforçando minha posição inicial sobre Bel. Ou seja, o que me deslocou não foi o poder argumentativo do crítico - que seria capaz de iluminar o trabalho do artista, explicitando as suas implicações filosóficas e sentidos políticos muito mais amplos do que a experiência do espetáculo (opaca, não iluminada pela tradução teórica do crítico) permitiria vislumbrar -, mas o encontro mesmo com o trabalho do artista.

Por conseguinte, e movido por essa experiência, este artigo aponta discordâncias em relação às teses de André Lepecki, não tanto com a intenção de produzir uma leitura que seria melhor ou mais acertada do que a desse autor em relação a determinados artistas contemporâneos da dança ou em relação à dança mais genericamente -, até porque considero que muitas das ideias de Lepecki, sobretudo sua crítica ao aspecto disciplinar de certa noção de coreografia e ao caráter colonial de sua maneira de abordar o chão (o lugar onde acontece), são muito contundentes e relevantes. Minha intenção então é principalmente apontar problemas e limites de uma certa maneira de teorizar a dança que cumpre justamente o projeto moderno de fundar o conhecimento partindo de sua concepção como ação de um sujeito exterior ao objeto a ser conhecido - um projeto baseado numa certa concepção específica de corpo, de espaço, de sujeito, de ação, como discutimos. Esse projeto é o que subjaz à atitude de um fazer teórico-crítico como o de Lepecki, que se permite fazer afirmações sobre o sentido dos trabalhos de dança, principalmente a partir daquilo que seria seu conteúdo.

Minha intenção, portanto, é, além de afirmar o que já se discutiu até aqui, também propor, nesse sentido, um fazer crítico e teórico sobre a dança menos comprometido com uma lógica dedutiva, que avalia trabalhos de dança segundo seus encaixes e desencaixes em relação a uma teoria geral ou cosmovisão soberana previamente assumida pelo autor-avaliador (a qual ele aplica sobre os trabalhos). Alternativamente, penso que a crítica pode ser bastante mais potente quando se direciona à experiência concebendo-a como polissêmica, em certo grau sempre aberta e indeterminada. Tal polissemia me parece mais evidente na posição do espectador e do artista, mobilizados por um acontecimento que sempre atravessa a subjetividade, que está além de um vetor único de sentido (como o de um sujeito que conhece seu objeto). Teorizar com atenção a essa posição pode favorecer uma reflexão em movimento e em diálogo, desdobramento do encontro, ao invés de estabelecer leituras prescritivas e, consequentemente, territórios de pertencimento e não pertencimento (quais artistas merecem ser vistos, quais são bons, quais rompem de verdade com o que precisa ser rompido etc.), mediante uma teorização que acaba por atuar efetivamente também como gesto de poder.

Referências

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  • VALÉRY, Paul. Dégas Dança Desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. [1938].
  • 1
    Até a data da redação da primeira versão deste artigo, a obra em questão não fora publicada em língua portuguesa, fato que se modificou em 2017 com a publicação, pela editora Annablume, da tradução brasileira, feita por Pablo Assumpção Barros Costa, intitulada Exaurir a dança: performance e política do movimento.
  • 2
    As citações diretas do texto de Lepecki são traduções livres feitas pelo autor da edição espanhola de seu trabalho.
  • 3
    Lepecki cita o laboratório coreográfico SKITE, ocorrido em 1992, na Cité Universitaire de Paris, quando a coreógrafa Vera Mantero e o coreógrafo Santiago Sempere declararam que, diante dos acontecimentos históricos daquele momento, não podiam dançar, enquanto Meg Stuart coreografou uma “dança imóvel para um homem tombado no chão” (Lepecki, 2008, p. 37), e o coreógrafo australiano Paul Gazzola apresentou um trabalho em que permanecia em repouso, nu, junto a uma estrada.
  • 4
    Tradução livre.
  • 5
    Tradução livre.
  • 6
    Tradução livre do original em inglês.
  • 7
    Uma artista da dança que merece a referência e que descreve várias formas de abordar o corpo e o movimento nessa direção é, por exemplo, Deborah Hay, em seu, My body the buddhist (2000HAY, Deborah. My body the Buddhist. Middletown: Wesleyan University Press , 2000.).
  • 8
    Cabe dizer ainda que no campo das reflexões sobre a dança a partir da coreografia, a ideia de uma subversão dessa noção de agenciamento como ação de um sujeito sobre o corpo também aparece com clareza em alguns trabalhos de diferentes autores. Por exemplo, a mesma Susan Leigh Foster, em outro trabalho (2016), a fim de responder a uma pergunta bastante relevante (por que a dança é experienciada como um tipo de movimento que sempre energiza ao invés de consumir ou esgotar?), retoma as ideias do artista e teórico da dança Randy Martin, para afirmar que, mesmo para um bailarino dançando uma coreografia (como foi o próprio Martin), a mobilização não é resultado da ação de um poder vindo de fora sobre o corpo do bailarino (como na relação imperativa entre mestre e discípulo descrita por Lepecki a partir da Orchesographie), mas é vivida pelo bailarino como afirmação de uma potência do próprio corpo-sujeito, borrando a dicotomia e a separação entre corpo e sujeito (Foster, 2016FOSTER, Susan Leigh. Why Is There Always Energy for Dancing? Dance Research Journal, Cambridge, v. 48, n. 3, p. 12-26, 2016., p. 21-22).
  • 9
    A esse respeito, faço referência aos trabalhos de Amelia Jones (2012JONES, Amelia. Temporal anxiety/‘Presence’ in Absentia: experiencing performance as documentation. In: GIANNACHI, Gabriella; KAYE, Nick; SHANKS, Michael. Archaeologies of Presence: art performance and the persistence of being. New York: Routledge, 2012. P. 197-221.) e Nick Kaye (2012KAYE, Nick. Photographic presence: time and the image. In: GIANNACHI, Gabriella; KAYE, Nick; SHANKS, Michael. Archaeologies of Presence: art performance and the persistence of being . New York: Routledge , 2012. P. 235-256.) a respeito das relações entre uma obra performática/cênica e suas formas de registro, recriação, desdobramento etc. em fotografia e vídeo.
  • 10
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OGpsTArU82Y>. Acesso em: 16 maio 2017.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2017
  • Aceito
    04 Jan 2018
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