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A emergência de um sistema dualista: trânsitos e autonomias

The emergency of a dual system: traffics and autonomies

Resumo

O objetivo deste trabalho é examinar algumas práticas do mercado editorial do cordel no século XX. Para isso, a ordem que regia os diversos personagens envolvidos nesse sistema editorial, bem como suas relações de interesses e dependências, foram questões pesquisadas. Constatou-se um alto grau de concentração das atividades editoriais em torno da figura do poeta-editor, que, ocupando posição central no universo dessas relações produtivas, detém um considerável poder de interferir nas diversas etapas da editoração e publicação do cordel.

Palavras-chave:
cordel; sistema editorial; editor

Abstract

The aim of this paper is to examine some practices in the editorial market of cordel in the twentieth century. So, we try to show the order that regulated the various agents at work in this system, as well as their relationship of dependency and interest. We verified the high degree of concentration of editorial activities around the character of the poet-editor who, occupying a central position in the universe of such productive relations, achieves a considerable amount of power of interference in the many steps of editing and publishing the cordel.

Key words:
cordel; editorial system; editor

A literatura de cordel é a poesia popular que se torna texto tipográfico, por isso o folheto de cordel, enquanto suporte, também está submetido, a partir de sua própria materialidade, à dinâmica do processo editorial. Escreveu Moxon (apudChartier, 1994______ (1994). A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary Del Priore. Brasília: Editora Universidade de Brasília.) que, entre o gênio criativo do autor e a aptidão do leitor, “uma multiplicidade de operações define o processo de publicação como um processo colaborativo, no qual a materialidade do texto e a textualidade do objeto não podem ser separadas”. Mediante o suporte, foi possibilitado ao poeta popular transpor os seus versos do círculo de seus ouvintes imediatos para a leitura do cordel pelas gerações pósteras.

Sendo a literatura, na Idade Moderna e em comunidades letradas, antes de qualquer coisa, um fenômeno gráfico, isto é, de imprensa, foi mediante a impressão dos folhetos, que eram exibidos nas feiras livres ou cantados pelos poetas populares, que tais produtos se tornaram objetos de compra, veículo de comunicação de massa e suporte mantenedor de uma tradição oral que, com as devidas modificações, torna-se registrada, documentada. O folheto é a poesia popular mediatizada pelo suporte impresso no qual é dado à leitura (Chartier, 1994______ (1994). A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary Del Priore. Brasília: Editora Universidade de Brasília.).

Na medida em que o gesto poético é também um gesto de comunicação por intermédio de um impresso, a literatura de cordel supõe o folheto e, ao mesmo tempo, é a sua razão de ser. Diferentemente da cantoria, imediata e performática, o cordel é antecedido por um texto original manuscrito ou datilografado que, por sua vez, passará pelo olhar editorial e pelas mãos do tipógrafo que o tornará impresso. Essa clivagem é a marca inconfundível da passagem da poesia popular oral para a escrita, da passagem do ofício de cantador para o de poeta de bancada. É a passagem da voz para o impresso:

Façam o que fizerem, os autores não escrevem livros. Os livros não são de modo nenhum escritos. São manufacturados por escribas e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressoras e outras máquinas. (Stoddard, apudChartier, 1990CHARTIER, Roger (1990). História cultural: entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil.)

A história da editoração na literatura chamada de “cordel” no Nordeste brasileiro está relacionada com a história da imprensa e da indústria gráfica no país e na região. É necessário compreender como o surgimento das tipografias no Nordeste brasileiro deu ensejo a esse tipo de impresso, sabendo-se que para tanto devem ser consideradas as relações sociais e culturais que contingenciaram as condições de produção do folheto.

Do final do século XIX ao início do século XX já se inicia o movimento dos poetas populares em direção aos jornais locais e às primeiras tipografias, que não eram especializadas em publicação de folhetos: as tipografias dos jornais ou outras tipografias que não viviam exclusivamente do ramo de cordel. A rigor, até 1909 não havia tipografias especializadas, que só vieram a surgir quando os poetas populares foram se inserindo no mercado editorial. A partir de então é que os autores passam a publicar com mais frequência nas tipografias especializadas ou tipografias/folhetarias que, por sua vez, já cresciam significativamente na região.

Uma vez tendo se apropriado dos recursos tipográficos para a impressão do cordel, os poetas populares passam a adequar as técnicas tipográficas às suas demandas editoriais específicas, encontrando em Athayde o editor que vai, nas palavras de Roberto Benjamin, sistematizar os padrões editoriais do cordel:

Como editor, [Athayde], muito contribuiu para consolidar esse veículo, não apenas sistematizando as edições, estabelecendo agentes vendedores nas principais cidades, como também através da reformulação da apresentação gráfica do produto. [...] Antes dele, as edições eram sempre tiragens do autor, isto é, os serviços gráficos eram contratados para impressão de um determinado número de exemplares. Com Athayde, surgem verdadeiramente os contratos de edição. [...] Foi João Martins de Athayde quem utilizou sistematicamente a zincogravura para a capa do folheto, dandolhe importância devida, como chamada para o conteúdo. Utilizou serviços de ilustradores de categoria para confeccionar os desenhos de capa adequados aos folhetos [...] Para os romances, Athayde, acompanhando o gosto da moda, usava reproduções de cartõespostais românticos da belle époque [...] Foi também com Athayde que se deu a sujeição da criação poética ao espaço disponível, fixando-se os padrões de folhetos pelo número de páginas, sempre em múltiplos de 4: romances de 24 a 56 páginas; folhetos de 8 a 16 páginas, classificação ainda hoje utilizada. (Benjamin, 2004BENJAMIN, Roberto (2004). Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Comissão Gaúcha de Folclore.)

Com o estabelecimento da literatura de cordel no universo da poesia popular, em comparação com o mundo da cantoria, inscreve-se uma nova ordem produtiva instaurada sobre as realidades do impresso e da economia de mercado. A poesia popular agora se identifica a um bem negociável, dotado de um “valor comercial” e que, por consequência, pode ser objeto de equivalências monetárias e de formalizações contratuais.

Afirmar que a literatura de cordel impõe um novo modelo de enunciação no universo da poesia popular, isto é, que instaura uma reorganização das práticas poéticas não equivale a dizer que a entrada na era da poesia popular impressa marque um apagamento ou uma ruptura brutal com a poesia popular oral. Antes nos sugere que a literatura de cordel, certamente e por muito tempo, vive em estado de trânsito com a poesia oral. Para Eric Havelock (1995HAVELOCK Eric (1995). “A equação oralidade-cultura: uma fórmula para a mente moderna”. In: OLSON, David R.; TORRANCE, Nancy (orgs.). Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática.), o que ocorre no encontro da oralidade com a escrita é um “processo cultural de transição em que a colisão e a contradição constituem a essência do processo”. No caso em particular dessa literatura, Ria Lemaire (2002LEMAIRE, Ria (2002). “Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e escrita. In: Literatura d’America. Itália: Facoltà di Scienze Umanistiche dell’universitá di Roma.) afirma que esse encontro se torna um espaço que, além de possibilitar a coexistência de todas as fases da história das tecnologias de comunicação, guarda as marcas que indicam a lenta passagem do texto oral para o impresso. Portanto, segundo a autora, não se trata de rupturas entre modalidades de enunciação, mas de práticas que transitam entre si:

No Nordeste brasileiro, até hoje, vivem poetas analfabetos que ditam os seus textos, outros que sabem ler, outros que sabem ler e escrever (com níveis de domínio bem diversificados) e outros que já enviam por Internet os seus poemas compostos segundo as regras e códigos poéticos tradicionais da oralidade. Trata-se de um imenso laboratório vivo, em que coexistem, transitam, se confrontam e se completam todas as fases, transições e combinações que a história das tecnologias da comunicação pôde provocar no mundo ocidental no seu percurso milenar. (Lemaire, 2002LEMAIRE, Ria (2002). “Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e escrita. In: Literatura d’America. Itália: Facoltà di Scienze Umanistiche dell’universitá di Roma., p. 91)

Fundando uma nova modalidade de enunciação da poesia popular, a literatura de cordel estabelece com a poesia oral um trânsito, uma dinâmica de relação entre duas formas de enunciação. Entendo que havia dois mecanismos que paralelamente se desenvolviam e descreviam contornos definidos: um relacionado à estética (dialógico) e o outro ao mercado (distinto). No primeiro campo, ocorria um diálogo entre os aspectos estéticos, tais como a definição de gêneros, as formas de enunciação e aspectos estilísticos que tendem a um trânsito maior entre as duas formas poéticas. Nele estabelece-se um continuum estético. No campo da circulação do produto, concretizavam-se as práticas mercadológicas, e nessa direção a literatura de cordel introduz estratégias e procedimentos mais específicos, que lhe imprimem um caráter progressivamente mais distinto diante da literatura oral.

Nesse campo, a literatura de cordel cria seus níveis de agenciamento comercial (atacado e varejo), gera redes de representantes para alimentar os níveis de comercialização e atrela a obra a valores objetivamente econômicos, que se refletem em definições editoriais. Em função das leis desse mercado, estabelece uma tensão nas condições de produção poética quando vincula aspectos estéticos a aspectos mercadológicos. Em outras palavras, havia no campo estético uma relação de reciprocidade e trânsito entre a poesia oral e a poesia escrita, havia um trânsito estilístico que estabelecia um diálogo continuum entre as duas formas de enunciação poética. Entretanto, no campo mercadológico, as regras próprias de produção, circulação e comercialização do folheto determinam um distanciamento entre as formas de enunciação oral e escrita no universo da poesia popular. A autonomia da literatura de cordel foi sendo edificada desde as práticas iniciais dos poetas de bancada, cujas maiores referências se encontram na primeira geração de editores. Esse processo autonômico não ocorreu em forma de ruptura radical com a oralidade. Não se pode pensar a autonomia entre essas áreas como se fosse traçada entre elas uma linha nitidamente progressiva e ininterrupta de descontinuidades.

Interessa-me, pois, o cordel não como conteúdo literário, mas enquanto produto cultural que circula apoiado numa dinâmica das relações editoriais que envolvem os diversos agentes produtivos desse campo1 1 Campo no sentido dado por Bourdieu (1987): “espaços estruturados de posições” em um determinado momento, microcosmos sociais, com valores (capitais, cabedais), objetos e interesses específicos. , sobretudo o editor.

Essas novas relações no campo da poesia popular geraram a figura do editor-proprietário dotado do largo direito de fazer editar a obra. A preferência dada às tipografias especializadas por parte dos poetas populares é um fato que veio legitimar a função do poeta-editor e confirmar o caráter de uma “classe”2 2 Uso a expressão em destaque no sentido empregado por Bourdieu (1989): “Com base no conhecimento dos espaços das posições, podemos recortar classe no sentido lógico do termo, quer dizer, conjunto de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posições semelhantes”. poética e o de uma nova ordem que a literatura de cordel implantou no sistema de produção e circulação na poesia popular nordestina. No impresso expressa-se a autonomia do poeta-editor, apontando essa representação para um novo modelo de autor: o poeta editor de si mesmo. É um modelo que não se configura mais com aquele do poeta de bancada que se dirige às casas especializadas ou às tipografias de jornal para verem seus versos publicados. Buscar no literário o princípio da lógica e da eficácia do mercado do folheto é esquecer que a autoridade de que se reveste a publicação vem de fora da obra. Na verdade, o potencial de publicação não se reduz ao literário, localiza-se em grande parte na posição privilegiada do editor e na dinâmica das relações do autor nesse espaço de editoração. Há casos em que o prestígio que acompanha o poeta já basta como potencial para publicação, por exemplo, entre os anos 1953 e 1955, poetas de renome como Manoel Pereira Sobrinho e José Camelo de Melo Rezende veem, sem maiores dificuldades, os seus títulos editados pela Estrella da Poesia. Por outro lado, a estreita relação que havia entre o poeta Manoel Monteiro e o editor Manoel Camilo fez com que o editor, em 12 de abril de 1957, possibilitasse a publicação do primeiro cordel do poeta: “O crime da sombra misteriosa”. A Camilo coube a autoridade de legitimar Monteiro. Muito mais evidente torna-se esse potencial quando se trata de publicações e reedições dos títulos do próprio poeta-editor, como é o caso de Manoel Camilo. A atividade editorial, nesse sentido, transformase numa eficiente arma da qual pode dispor o editor Manoel Camilo na luta por uma posição de destaque, posto que dispunha da autoridade de dizer-se autor e dizer quem é autor (Bourdieu, 1996______ (1996). As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras. CHARTIER, Roger (1990). História cultural: entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil.).

A entrada nesse sistema de produção cultural, na condição de proprietário de uma folhetaria, é um marco na carreira do poeta popular. Inegavelmente, era uma posição privilegiada. Se comparada com o número de poetas que não galgavam a tal posição, tem-se aí um caso de ascensão na hierarquia tanto no poder do capital como no poder representativo no interior da classe dos poetas populares. O jornal intitulado O trovador, de Rodolfo Coelho Cavalcante, datado de dezembro de 1957, afirma em um dos seus artigos:

Há no Nordeste, cerca de 1.500 trovadores. Mais de 100 poetas populares exercem suas atividades profissionais no ramo de folhetos. Uns 50 dos 1.500 poetas são mais populares entre milhares de leitores. Cerca de 2 milhões de nordestinos leem folhetos populares em versos. Há folhetos que somam 200.000 exemplares em edições seguidas. Calculadamente 3.000 pais de família vendem folhetos na feira, mas 5 apenas possuem tipografias. (apudSouza, 1976SOUZA, Liêdo Maranhão de (1976). Classificação popular da literatura de cordel. Petrópolis: Vozes.)

A função de editor produz o sentido das relações entre as diversas outras funções que gravitam em torno da função editorial. É a função de editor que conjuga em cadeia a importância das relações entre os diversos agentes envolvidos no sistema produtivo editorial: poeta de bancada, ilustrador, revendedor, distribuidor grossista, entre outros. O editor acaba atraindo para o seu campo de ação uma série de outras funções relativas e agregadas a ele e que finalmente solidificarão a sua função editorial. É essa dinâmica que fortalece e legitima a identidade funcional do editor. Tal estatuto torna o editor detentor de uma representatividade considerável por ter atingido uma posição de reconhecimento pelos diversos agentes componentes do sistema cultural e por ser-lhe facultado o poder de legitimar produções e produtores. O poeta-editor, no exercício de suas funções, ultrapassa as fronteiras do estético, estritamente falando, e estende-se ao espaço de publicação como agenciador do sistema de produção e circulação da literatura de cordel.

Ao entrar no campo da editoração, o editor popular é reconhecido pelo domínio das regras do jogo e pelo hábil uso que fizer das estratégias que lhe permitiam conservar ou conquistar posições, mediante uma luta que coloca em jogo os interesses de conservação de sua condição, embora essa tensão seja marcada por um estado não permanente de relações de força entre os diversos agentes desse sistema de produção cultural (Bourdieu, 1994______(1994). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad. de Mariza Corrêa. São Paulo: Papirus.). Essa condição é algo construído, não dado. É algo que o editor tem de fazer, construir individual e coletivamente. Individualmente quando entra em jogo a criação de novas estratégias de produção e circulação do produto de sua casa comercial; coletivamente quando, na cooperação e no conflito, mantêm ativo esse sistema editorial.

Nesse sentido, o seu capital representativo vai sendo gradativamente acrescentado, o que se dá não sem as disputas de posição na busca de um fortalecimento do seu poder de influências3 3 (Lessa, 1984). O autor, em A voz dos poetas, testemunha as conhecidas e tensas discordâncias entre Manoel Camilo dos Santos, proprietário da Estrella da Poesia, e José Bernardo da Silva, da Tipografia São Francisco, o que evidencia a disputa entre os pares desse sistema editorial. , que lhe permite, por conseguinte, o estabelecimento e a manutenção de uma marca editorial e uma “tomada de posição”4 4 Segundo Bourdieu (1996), ocorre no campo literário um espaço de concorrência entre diferentes agentes (editores, autores, produtores etc.) que negociam um lugar nessa esfera de atividade mediante um embate entre tomadas de posição pertinentes e distintas no interior do referido campo. , no sentido de definir um lugar de prestígio no sistema de publicação de folhetos.

No interior do universo da editoração literária nacional, o sistema editorial do cordel tornou-se um subsistema autônomo por ter sabido habilmente se apropriar dos recursos da tecnologia tipográfica ofertados pela imprensa dominante e tê-los redirecionado às suas demandas específicas. Centrado na figura do poeta-editor, esse sistema produtivo estabeleceu-se devido a sua competência criadora. Tal competência reforça a conquista da autonomia das suas condições de produção editorial e autoral, sendo tal conquista, em grande parte, o resultado dos esforços pessoais que encontraram, por sua vez, nas regras do setor as possibilidades de se positivarem.

Seus agentes articulavam-se segundo as leis próprias do seu campo literário, existiam e subsistiam pela diferença das posições ocupadas no modelo de produção cultural, não mantendo, desse modo, nenhum vínculo de dependência diante do Estado, a exemplo dos autores da literatura erudita que, por muitas vezes, se submetiam à condição de “escritor-funcionário”5 5 Miceli (1979), em Intelectuais e classe dirigente no Brasil, ao analisar as particularidades do campo da produção simbólica no Brasil, aponta para a dependência existente entre o autor e o Estado, bem como os favorecimentos e exclusões, entre os escritores da literatura erudita, como resultado do tráfico de influências nesse campo, decorrentes da posição dos intelectuais no sistema político-partidário de São Paulo. , dependentes do mecenato estatal, para assim se manter no ofício de escritores. Pragmáticos, os poetas-editores populares não se apoiavam em nenhum projeto idealista, mas tinham sua força no dinamismo da própria condição social de poeta popular, o que os tornou construtores das relações e posições no interior do próprio campo, isto é, edificadores da própria visibilidade e representação, elementos constitutivos da identidade e da história da editoração do cordel.

O editor popular internalizou a lógica dominante do mercado do livro, buscando a partir de sua capacidade inventiva apresentar respostas eficazes para o seu campo editorial, sem pautar suas estratégias segundo o ritmo do mercado editorial dominante, mantendo-se indiferente a ele. Em decorrência dessa postura, a editoração popular produziu e gerenciou de maneira autônoma seus agentes, autores, editores, ilustradores, distribuidores, revendedores e seu espaço próprio. Gerou seu público preferencial, criou suas normas próprias e seu cânone específico. Dinamizou as leis internas de seleção, aquisição e publicação de títulos, introduziu novas estratégias de marketing para a difusão do folheto, inovou nos procedimentos editoriais e articulou uma extensa rede de distribuição do folheto. O sistema editorial popular tornou-se tão eficiente em sua atuação que extrapolou os limites do próprio sistema e passou a dialogar com a chamada cultura erudita, mediante a sua notável presença na literatura, na música, na pintura, na dramaturgia e no cinema (Debs, 2007DEBS, Sylvie (2007). Cinema e literatura no Brasil - os mitos do sertão: emergência de uma identidade nacional. Fortaleza: Interarte.), (Curran, 1973CURRAN, Mark J. (1973). A literatura de cordel. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.), (Peregrino, 1984PEREGRINO, Umberto (1984). Literatura de cordel em discussão. Rio de Janeiro: Presença.).

Portanto o sistema editorial da literatura de cordel encontra-se em movimento perpétuo. É um sistema aberto à história e que sempre encontra nas fissuras apresentadas pelo sistema cultural hegemônico o caminho pelo qual seus agentes atuarão com certa liberdade e, por isso mesmo, é um modelo que se refaz, evolui. É inegável que as influências culturais externas ao universo da poesia popular alteraram a realidade editorial do cordel e, nesse sentido, a editoração popular é relativamente autônoma, todavia a potencialidade criativa que emana do seu interior lhe possibilita uma constante revitalização. As gerações de editores da literatura de cordel permanecerão, juntamente com os autores, sucedendo-se e realizando o seu papel em cada momento histórico, bem como continuarão realizando conquistas e inovações tecnológicas, certamente em ritmo mais acelerado que as primeiras gerações de editores.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Campo no sentido dado por Bourdieu (1987BOURDIEU, Pierre (1987). A economia das trocas simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva.): “espaços estruturados de posições” em um determinado momento, microcosmos sociais, com valores (capitais, cabedais), objetos e interesses específicos.
  • 2
    Uso a expressão em destaque no sentido empregado por Bourdieu (1989): “Com base no conhecimento dos espaços das posições, podemos recortar classe no sentido lógico do termo, quer dizer, conjunto de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posições semelhantes”.
  • 3
    (Lessa, 1984LESSA, Orígenes (1984). A voz dos poetas. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.). O autor, em A voz dos poetas, testemunha as conhecidas e tensas discordâncias entre Manoel Camilo dos Santos, proprietário da Estrella da Poesia, e José Bernardo da Silva, da Tipografia São Francisco, o que evidencia a disputa entre os pares desse sistema editorial.
  • 4
    Segundo Bourdieu (1996), ocorre no campo literário um espaço de concorrência entre diferentes agentes (editores, autores, produtores etc.) que negociam um lugar nessa esfera de atividade mediante um embate entre tomadas de posição pertinentes e distintas no interior do referido campo.
  • 5
    Miceli (1979MICELI, Sérgio (1979). Intelectuais e a classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel.), em Intelectuais e classe dirigente no Brasil, ao analisar as particularidades do campo da produção simbólica no Brasil, aponta para a dependência existente entre o autor e o Estado, bem como os favorecimentos e exclusões, entre os escritores da literatura erudita, como resultado do tráfico de influências nesse campo, decorrentes da posição dos intelectuais no sistema político-partidário de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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