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Artes de cordel: linguagem, poética e estética no contemporâneo

Cordel arts: language, poetics and esthetics in contemporary times

Resumo

Este artigo problematiza algumas questões relativas à poética do cordel no Brasil, procurando perceber como a inserção do cordel na contemporaneidade impõe aos pesquisadores a revisão de uma série de conceitos. Sublinhando o caráter híbrido dessa poética, discute-se o caráter artístico e criativo do cordel enquanto apropriação de diferentes linguagens e estéticas.

Palavras-chave:
cordel contemporâneo; história do cordel; arte

Abstract

This article puts into question some issues related to cordel poetics in Brazil, trying to determine how the social insertion of cordel in contemporary times forces on researchers a remodeling of a series of concepts. Highlighting the hybrid character of this poetics, we discuss the artistic and creative nature of cordel while an appropriation of different languages and esthetics.

Key words:
contemporary cordel; history of cordel; art

Nos diálogos realizados ao longo do I Colóquio internacional sobre poéticas da oralidade: cordel, uma tradição que se refaz, é possível perceber que estamos diante da possibilidade de construirmos um olhar diferente sobre o cordel. Esse novo olhar, que se materializa em uma nova formulação discursiva sobre a literatura de cordel, vem buscando compreender, em primeiro lugar, a inserção do cordel no mundo contemporâneo, as práticas sociais relacionadas a essa poética, bem como os modos de constituição de um campo particular de pesquisas. É partindo dessas premissas que analiso neste texto os processos envolvidos na feitura do cordel como arte e como linguagem que se desdobra - posto que é camaleoa - em múltiplos suportes, usos e lugares. O grupo de estudiosos reunidos no colóquio tem diante de si uma grande tarefa: contribuir para ampliar a percepção sobre essa poética que lança provocações ao mundo a partir dos códigos da imaginação criadora situada no presente.

Partindo dessas considerações, que permitem construir outro lugar discursivo, penso na importância de introduzir outras associações de palavras, pouco presentes na historiografia do cordel1 1 A historiografia do cordel tem alguns momentos importantes que merecem menção. No final do século XIX, momento inaugural da constituição do campo, a chamada “poesia popular” foi objeto de investigação de Celso de Magalhães no conjunto de artigos publicados no jornal O Trabalho, em 1873, sob o título “A poesia popular brasileira” e nos artigos de Silvio Romero, publicados em 1879 nos Estudos sobre a poesia popular do Brasil (1977). Em 1929 a publicação de Cantadores e poetas populares, por Francisco das Chagas Batista (1997), proprietário da Livraria Popular Editora, adiciona um novo acontecimento ao campo de estudos, uma vez que o autor conciliava as funções de autor de folhetos e de editor. Trata-se, portanto, de uma obra em que a autorrepresentação do poeta enquanto “poeta popular” se configura na escrita de uma outra modalidade de livro e de escritura, diferente do cordel. Nos anos 1920 têm início os estudos de Leonardo Mota: Cantadores, 1921; Violeiros do norte, 1925; Sertão alegre, 1928; No tempo de Lampião, 1930. Com a publicação de Vaqueiros e cantadores, em 1939, verifica-se um aprofundamento dos estudos no campo da “poesia popular” e o prestígio que esses estudos passam a ter com a criação da Comissão Nacional de Folclore, em 1947. As pesquisas sobre a cantoria e o cordel se institucionalizam. A criação do Centro de Pesquisas, na Casa de Rui Barbosa, conferem aos estudos sobre o cordel um lugar institucional específico. Com a formação do acervo de cordel, além do próprio prestígio institucional da Casa de Rui Barbosa, ocorre um fortalecimento das pesquisas em torno da poética impressa. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os estudos sobre o cordel ganham estatuto acadêmico e temos, então, um conjunto de dissertações e teses, produzidas em disciplinas distintas - linguística, literatura, semiótica, antropologia, história, sociologia -, que se opõem à tradição folclórica dos estudos inspirados nas pesquisas de Câmara Cascudo. Data dessa fase os trabalhos de William Almeida (1979), Ruth Brito Lemos Terra (1983) e Candace Slater (1984). Desde então há uma constante produção acadêmica que se sobrepôs tanto aos intelectuais do Movimento Folclórico Brasileiro quanto à produção da Casa de Rui Barbosa como “lugar de fala” no campo de estudos sobre a poética, a cantoria e o cordel (Carvalho, 1998; Galvão, 2000; Lima, 2000; Stinghen, 2000; Oliveira, 2002; Oliveira, 2002; Grillo, 2005; Nemes, 2005; Silva, 2007; Grangeiro, 2007; Santos, 2009). , por entender que no plano discursivo são produzidas as significações simbólicas que, por sua vez, se materializam nas práticas sociais. O conceito de historiografia, conforme explicita Michel de Certeau, é capital para entendermos as práticas sociais relacionadas ao cordel. A historiografia é o resultado de uma operação que se efetiva através da “combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita” (Certeau, 2000______ (2000). “A operação historiográfica”. In: A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 65-119., p. 66). Com a licença para ousar discordar de Milton Carlos e Isolda autores da canção imortalizada na voz de Roberto Carlos -, para quem “palavras são palavras”, penso que palavras não são inocentes atribuições a esmo para nomear vivências, objetos e práticas culturais. Estão aqui para serem pensadas e para, a partir delas, construir outros modos possíveis de pensar e estar no mundo.

Ao longo do colóquio os debates a respeito dos significados do cordel na contemporaneidade, por um lado, instigaram novas provocações aos participantes, por outro, trouxeram o desejo de contribuir para enriquecer nossas práticas de pesquisa, bem como para formular novos conceitos. É necessário reiterar o quão importante é conhecer a arqueologia do saber (Foucault, 1982FOUCAULT, Michel (1982). Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária .) relativo ao cordel, buscando perceber em que condições e sentido emergem enunciados, associações de palavras e significados, produzidos num campo particular, formado por produtores, consumidores, pesquisadores e instituições no século XX.

Nesse sentido, é fundamental trazer novas inquietações e provocações a uma tradição historiográfica que se acostumou a tratar do cordel nos termos de uma literatura popular, segregada da literatura e, no caso em questão, da literatura brasileira. A literatura popular deixou de ser um conceito para se tornar um fato, um dado natural e não uma formulação histórica. Partindo da noção de que as palavras vão construindo o que Michel Foucault (1982FOUCAULT, Michel (1982). Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária .) denominou de formação discursiva, é necessário compreender como, ao longo do século XX, alguns conceitos associados ao cordel - cultura popular, literatura oral, literatura popular - foram sedimentados, adequados, tradicionalizados (sic), num processo perigoso de des-historicização (Bourdieu, 2002BOURDEIU, Pierre. (2002). As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras., p. 319).

A formação discursiva que des-historicizou e tradicionalizou o cordel como um dado natural está amplamente calcada na década de 1920, quando acontecem o Movimento Modernista de 1922 e o Movimento Regionalista de 1926. O primeiro, com o interesse de ressaltar as raízes mestiças, autênticas e populares do Brasil, com o objetivo de evocar uma nacionalidade a partir do primitivo e, seu contraponto -, o Movimento Regionalista, centrado no Recife na figura de Gilberto Freyre - que buscava se assenhorear do que julgava seu: as tradições feudais, ibéricas, rurais, populares, preservadas intactas pelo ar seco do sertão na voz dos narradores e poetas. Depois de ter derrubado o pau-brasil e moer milhões de pessoas escravizadas nos engenhos de cana, restava-lhes o tesouro da cultura popular, ainda intacto, a ser explorado até a sua última gota.

A figura de Câmara Cascudo encarna esse projeto, pois, como percebeu Renato Ortiz (1999ORTIZ, Renato (1999). Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho D’Água.), a elite cultural regionalista descobre, na propriedade sobre a cultura popular, a única saída para justificar sua autoridade e prestígio. A “ameaça” do desaparecimento das tradições populares, diante dos avanços da industrialização e urbanização no Brasil, se dissiparia ante a figura protetora do intelectual. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no artigo “A invenção da cultura popular” (mimeo), após investigação cuidadosa das relações entre o pensamento e a obra de Câmara Cascudo com o pensamento e a obra dos folcloristas ibéricos, demonstra as vinculações conservadoras que resultaram na participação do folclorista no movimento integralista nos anos 1930. Durval Muniz faz, então, importantes considerações que merecem atenção cuidadosa:

Espero ter apontado neste texto elementos suficientes, que precisam ainda ser reforçados por pesquisas posteriores, para pensar que a noção de cultura popular, de povo e de tradição de que partiu Cascudo para, em grande medida, inventar o que seria a cultura brasileira e mais particularmente a nordestina, está apoiada em uma visão estamental e hierárquica da ordem social, numa defesa das relações sociais e das estruturas políticas tradicionais e na luta contra a sociedade moderna, seja do ponto de vista das transformações que esta evoca nas relações econômicas e sociais, seja nas mudanças de ordem subjetiva, de valores e costumes. (Albuquerque Júnior, 2010ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de (2010). A invenção da cultura popular: uma história da relação entre eruditos, intelectuais e formas de expressões populares na Península Ibérica e Brasil (1870-1940). Disponível em: Disponível em: www.cchla.ufrm.br/ppgh/docentes/durval/artigos/.../a_invencao_ cultural.pdf . Data de acesso: 14 abr. 2010.
www.cchla.ufrm.br/ppgh/docentes/durval/a...
, p. 23)

Assim se construiu a invenção da tradição da poética popular como um elemento “natural” do Nordeste, como nos faz crer Manuel Diégues Júnior no enunciado tão repedido em que afirma que “tudo” conduziu para o surgimento de uma poesia popular no Nordeste (Diégues Júnior, 1975DIÉGUES JÚNIOR, Manuel (1975). Cadernos de Folclore. n. 2., p. 7). O que chama atenção não é a evocação dessa formação discursiva pelas elites agrárias em decadência nos anos 30 do século XX. O que surpreende é sua reprodução, perpetuação e recorrência nos dias de hoje. Por isso é tão importante evocar aqui Pierre Bourdieu quando afirma que “é possível um pensamento das condições sociais do pensamento que dê ao pensamento a possibilidade de uma liberdade com relação a essas condições” (Bourdieu, 2002BOURDEIU, Pierre. (2002). As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras., p. 347).

Cordel: repetição, adição e diáspora

Enquanto a historiografia hegemônica flertava com a tradição, os poetas e editores de cordel estavam e estão com olhos atentos no presente. Essa atenção no presente é, simbolicamente, personificada no gesto do editor João José da Silva. Em 1997, o editor, na ocasião com 74 anos de idade, publicou com o uso do computador 25 títulos, cada título com uma tiragem de 1.000 exemplares. O jornal Folha de São Paulo, na edição de 11 de janeiro, anuncia: “cordel entra no mundo cibernético” (Santiago, 1997SANTIAGO, Wernec (1997). “Literatura: cordel entra no mundo cibernético”. Folha de São Paulo, 11 jan. 1997., 7).

Atento não à tradição, mas à qualidade gráfica de seu produto, um dos mais experientes em atividade nos anos 1990 apresentou um argumento bastante plausível para o abandono da tipografia: “ficava tudo encardido e os folhetos estragavam logo”. Mantêm-se a estrutura narrativa em verso, o tamanho de 11x16. Quanto à imagem da capa, o computador foi novamente utilizado por João José da Silva, uma vez que, desde os primeiros folhetos, os editores de cordel buscaram lançar mão dos processos técnicos mais ágeis no momento, mesmo quando essa “agilidade” significou, na época, o uso da xilogravura. O professor Roberto Benjamin, solicitado pelo autor da matéria a opinar sobre o assunto, lembrou a estreita relação do cordel com a indústria cultural, desde quando se apropriou das capas de revistas e fotografias de artistas do cinema americano. Na matéria João José da Silva informa seu próximo lançamento editorial, intitulado “A peleja do poeta popular com o computador”. Entusiasmado com sua vitória na “peleja” com o computador, recorda que “no começo era difícil. Eu não sabia mexer em nada. Agora, até digitar eu já digito’’. João José da Silva introduziu em seu cotidiano novos objetos, como a impressora a laser e o disquete, e incorporou a linguagem da informática, mantendo o preço do folheto a R$1,00 e a secular venda dos títulos pelo correio ou no endereço do editor, no bairro da Mustardinha, no Recife. É provável que João José da Silva não tenha lido Roger Chartier, mas sabia, pela vivência, que o cordel é uma fórmula editorial que se apropria dos recursos tecnológicos disponíveis no seu tempo (Chartier, 1990CHATIER, Roger (org.) (1990). A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil., p. 165). Na lógica do editor, o cordel é um produto a ser consumido pelo mercado (Quintela, 2005QUINTELA, Vilma Mota (2005). O cordel no fogo cruzado da cultura. Tese (PósGraduação em Letras e Linguística). Universidade Federal da Bahia, Salvador.; Sousa, 2008SOUSA, Maurílio Antônio Dias (2008). A Estrella da Poesia: impressões de uma trajetória. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística). Universidade Federal da Bahia, Salvador.).

Esse acontecimento, recente na história do cordel no Brasil, demonstra o quanto a poética do cordel retira sua vitalidade como linguagem do estabelecer conexões com o presente, com as inovações técnicas, com as mudanças de comportamento do público e do mercado. A partir da repetição de uma estrutura de versificação rígida, o cordel incorpora novos padrões editoriais. Não se trata de um ser poético, uma essência poética que caracterizaria o cordel, mas um fazer poético (Gonçalves, 2007GONÇALVES, Marco Antonio. (2007). “Cordel híbrido, contemporâneo e cosmopolita”. In: Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v.4, n. 1. p. 21-38.), cotidiano, ordinário, situado na audição das histórias e do rádio, na leitura dos jornais, nos programas de televisão, na conversa no mercado, na participação em partidos políticos, em academias de cordel, nos cursos universitários, em bandas de rock, em sites e blogs na internet.

Portanto, trata-se de estar atento para perceber o que é fundamental na poética do cordel, enquanto arte e linguagem. Nesse sentido, aponto para algumas práticas que permanecem desde o final do século XIX e que caracterizam o cordel como um “estilo” (Gonçalves, 2007GONÇALVES, Marco Antonio. (2007). “Cordel híbrido, contemporâneo e cosmopolita”. In: Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v.4, n. 1. p. 21-38.), um modo de fazer, uma prática cultural, uma linguagem. A recorrência a uma estrutura formal em que o verso é a unidade primeira, central, na construção da narrativa. A ironia, como recurso narrativo por excelência, seja para desqualificar o adversário nas pelejas, seja para desqualificar o governo nos planos econômicos e nos escândalos políticos; a ironia, portanto, ocupa lugar central, porque, a partir dela, é possível estabelecer uma relação dialógica com o outro. A performance como modo de apresentação da narrativa, incluindo a passagem da narrativa poética do cordel para outras linguagens, como o cinema e o teatro. O uso reiterado do pastiche como recurso que se expressa na recorrência aos mesmos textos, personagens, tramas, desfechos, autores, lugares, situações. Portanto, os elementos mais significativos para os produtores e consumidores do cordel não estão no suporte oral, musical, impresso, imagético ou virtual, mas nas características que conferem uma qualidade de especificidade a esse fazer poético.

É possível afirmar que cordel tem sido, entre os gêneros literários, aquele que mais se associou à imagem. Os cordéis projetam no papel imagens, associam-se a imagens, traduzem imagens mentais, apontam para a dimensão imagética da condição humana, criam, apropriam-se, reinventam imaginários. A poética da imagem e a poética do verso estão associadas de tal modo que palavra e imagem são fundamentais nas artes do cordel, quando as figuras do desenhista, do xilogravurista, do escritor e do leitor se confundiram, pois tanto a imagem quanto o texto existem para serem lidos por alguém. A produção de imagens e de textos está cada vez mais presente no mundo contemporâneo. As imagens repetidas ao longo do tempo conferiram uma narratividade imagética, imaginária e estética ao cordel.

Naquilo que aparentemente se trata de repetição é possível divisar a diferença, a adição na recorrência. Repetir para introduzir o novo, repetir para adicionar outro elemento, criar a partir da repetição, a fabulação criativa a partir da obediência a uma estrutura narrativa, a reinvenção poética do mundo objetivo representado pela forma do verso.

Para superação da naturalização e des-historicização do cordel é necessário atentar para o caráter diaspórico dessa poética. Lembrar que enquanto poetas, editores, leitores e ouvintes produziam e consumiam a poética em verso na região que se inventou Nordeste, outros sujeitos - poetas, editores, leitores e ouvintes - o faziam também na região amazônica e, a partir da década de 1950, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, e, na década seguinte, em Brasília. Não existem condições naturais, geográficas, que expliquem o surgimento e o desenvolvimento de uma poética num lugar; todas as condições são contemporâneas de seu tempo, históricas e, por isso mesmo, em processo de mudança. Basta acompanhar as pelejas na internet, como acompanhou Maria Alice Amorim (2007AMORIM, Maria Alice (2007). No visgo do improviso ou a peleja virtual entre cibercultura e tradição. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.), e a veiculação de folhetos através da rede de computadores para perceber outras espacialidades possíveis de produção e consumo da poética do cordel, com a mesma legitimidade que as espacialidades amparadas na geografia tiveram no século XX.

Uma nova compreensão da poética do cordel passa, necessariamente, pela revisão crítica da dicotomia erudito versus popular e pelo seu abandono. A arqueologia dessa dicotomia que revela as implicações simbólicas e práticas do uso da categoria popular para designar a cantoria e o cordel - que resultam, necessariamente, na hierarquização das práticas culturais, em que o popular acaba tento um valor inferior (basta constatar o valor, expresso no valor em dinheiro, que pagamos por um cordel) no mercado dos bens culturais. Os valores simbólicos têm correlação direta com os valores materiais que atribuímos aos bens culturais. Por isso, as condições de vida e trabalho de “cantadores e poetas populares” são bem diferentes das condições de vida e trabalho dos “artistas”.

Por esse motivo, é de importância estratégica a utilização de uma nova formação discursiva que possa compreender como acontecem a produção e o consumo do cordel no século XXI. Trata-se de um esforço conceitual para pensar práticas que se tranformam e linguagens que se “incorporam”, como acontece nas relações entre o cordel, a cantoria e o audiovisual.

A realização de um colóquio sobre cordel como parte das atividades do grupo de estudos da literatura brasileira contemporânea não é um mero acaso: representa a possibilidade de construção de uma nova discursividade sobre o cordel, que considera o caráter artístico dessa poética. Considera também que o cordel é afetado pelos discursos elaborados pelo campo - que inclui poetas, consumidores e pesquisadores - que define a legitimação social dessa linguagem. Por sua capacidade híbrida de romper e manter tradições, o cordel se situa numa situação de fronteira e, portanto, cabe cuidar em rever os conceitos solidamente ancorados numa visão regionalista e essencialista dos processos culturais.

A feitura do cordel como uma experiência artística - considerada em sua dimensão poética, literária, imagética e criativa - é tão evidente que, talvez por isso mesmo, tenha estado tão despercebida. Por outro lado, creio que o problema reside justamente na nossa concepção do que vem a ser arte, amparada numa visão essencialista, herdeira da tradição kantiana, que associou a arte ao sublime, ao genial, ao único.

A potência do cordel reside na capacidade de estar relacionado com informações e práticas culturais de seu tempo.

Por receber a adição das subjetividades individuais e coletivas está sempre no plano do devir.

É essa potência que nos inquieta, encanta e entorpece.

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    A historiografia do cordel tem alguns momentos importantes que merecem menção. No final do século XIX, momento inaugural da constituição do campo, a chamada “poesia popular” foi objeto de investigação de Celso de Magalhães no conjunto de artigos publicados no jornal O Trabalho, em 1873, sob o título “A poesia popular brasileira” e nos artigos de Silvio Romero, publicados em 1879 nos Estudos sobre a poesia popular do Brasil (1977). Em 1929 a publicação de Cantadores e poetas populares, por Francisco das Chagas Batista (1997BATISTA, Francisco das Chagas (1997). Cantadores e poetas populares. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB.), proprietário da Livraria Popular Editora, adiciona um novo acontecimento ao campo de estudos, uma vez que o autor conciliava as funções de autor de folhetos e de editor. Trata-se, portanto, de uma obra em que a autorrepresentação do poeta enquanto “poeta popular” se configura na escrita de uma outra modalidade de livro e de escritura, diferente do cordel. Nos anos 1920 têm início os estudos de Leonardo Mota: Cantadores, 1921; Violeiros do norte, 1925; Sertão alegre, 1928; No tempo de Lampião, 1930. Com a publicação de Vaqueiros e cantadores, em 1939, verifica-se um aprofundamento dos estudos no campo da “poesia popular” e o prestígio que esses estudos passam a ter com a criação da Comissão Nacional de Folclore, em 1947. As pesquisas sobre a cantoria e o cordel se institucionalizam. A criação do Centro de Pesquisas, na Casa de Rui Barbosa, conferem aos estudos sobre o cordel um lugar institucional específico. Com a formação do acervo de cordel, além do próprio prestígio institucional da Casa de Rui Barbosa, ocorre um fortalecimento das pesquisas em torno da poética impressa. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os estudos sobre o cordel ganham estatuto acadêmico e temos, então, um conjunto de dissertações e teses, produzidas em disciplinas distintas - linguística, literatura, semiótica, antropologia, história, sociologia -, que se opõem à tradição folclórica dos estudos inspirados nas pesquisas de Câmara Cascudo. Data dessa fase os trabalhos de William Almeida (1979ALMEIDA, Mauro William Barbosa de (1979). Folhetos: a literatura de cordel no Nordeste brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade de São Paulo, São Paulo.), Ruth Brito Lemos Terra (1983TERRA, Ruth Brito Lemos (1983). Memórias de lutas: a literatura de folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global.) e Candace Slater (1984SLATER, Candace (1984). A vida no barbante: a literatura de cordel no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Desde então há uma constante produção acadêmica que se sobrepôs tanto aos intelectuais do Movimento Folclórico Brasileiro quanto à produção da Casa de Rui Barbosa como “lugar de fala” no campo de estudos sobre a poética, a cantoria e o cordel (Carvalho, 1998CARVALHO, Gilmar de (1998). Madeira matriz. São Paulo: Annablume.; Galvão, 2000GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (2000). Ler/ouvir folhetos de cordel em Pernambuco (1930-1950). Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.; Lima, 2000LIMA, Marinalva Vilar de (2000). Narradores do padre Cícero. Fortaleza: UFC/ Casa de José de Alencar.; Stinghen, 2000STINGHEN, Marcela Guasque (2002). Padre Cícero: a canonização popular. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Oliveira, 2002OLIVEIRA, Ítalo Cajueiro de (2002). Tradução da literatura de cordel para o audiovisual. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade de Brasília, Brasília.; Oliveira, 2002OLIVEIRA, Ítalo Cajueiro de (2002). Tradução da literatura de cordel para o audiovisual. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade de Brasília, Brasília.; Grillo, 2005______ (2005). A arte do povo: histórias na literatura de cordel (1900-1940). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói.; Nemes, 2005NEMER, Sylvia Regina Bastos (2005). A função intertextual do cordel no cinema de Glauber Rocha. Tese (Doutorado em Comunicação). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Silva, 2007SILVA, Thiago Paulino da (2007). Cordel informativo: tecendo a trama entre cultura popular e cultura midiática. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade Federal de Pernambuco, Recife.; Grangeiro, 2007GRANGEIRO, Claudia Rejane Pinheiro (2007). A besta-fera, o padre Cícero e o Juazeiro: discurso político no folheto de cordel. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa). Unesp, Araraquara.; Santos, 2009SANTOS, Francisca Pereira dos (2009). Novas cartografias no cordel e na cantoria: desterritorialização de gênero nas poéticas das vozes. Tese (Doutorado em Literatura e cultura). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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