Acessibilidade / Reportar erro

Marcas da violência e jogos do poder no romance urbano de Patrícia Melo

Marks of violence and power games in Patrícia Melo’s urban romance

Resumo

Este trabalho realiza uma análise do romance O matador, de Patrícia Melo, cujo universo temático e estratégias discursivas rompem não só com as perspectivas da crítica literária feminista mais contemporânea, mas com o sistema ideológico burguês, de forma mais ampla. O objetivo é apontar como o aproveitamento da voz e da experiência cultural masculinas, levado às últimas consequências, pode converter-se numa crítica subliminar às formas como se constroem os discursos de discriminação por critérios sexuais, econômicos e sociais em nossa sociedade.

Palavras-chave:
Patrícia Melo; gênero; crítica da cultura

Abstract

This work analyzes the romance O Matador (The Killer) by Patrícia Melo. Its thematic universe and discursive strategies break not only with the prospects of the more contemporary feminist literary criticism, but also with the bourgeois ideological system, more broadly. The object is to highlight how the use of the male voice and masculine cultural experiences, taken to its ultimate consequences, may be converted into a subliminal criticism regarding the ways of how the discriminating speeches are built, through sexual, economic and social criteria in our society.

Key words:
Patrícia Melo; genre; cultural criticism

Os novos pactos de escrita que a produção de Patrícia Melo estabelece, dentro do conjunto da literatura de autoria feminina no Brasil, são claramente firmados no livro inaugural da escritora, Acqua Toffana (1994), com destaque para a presença de elementos masculinos desajustados, emocional e socialmente, que, como protagonistas-narradores, conduzem o discurso no mais alto grau de preconceito machista. Essa característica tende a se intensificar no romance O matador (1995), que aponta para uma versão mais moderna do roman noir, um tipo de romance policial em que os modelos mais rígidos desse gênero são substituídos por uma abordagem mais ampla e flexível, sobressaindo a violência bruta e a crítica aguda às formas de organização do mundo burguês (Coutinho, 1994COUTINHO, Sônia (1994). Rainhas do crime: ótica feminina no romance policial. Rio de Janeiro: Sete Letras., p. 50).

Sob essas diretrizes, Patrícia Melo expõe em O matador uma leitura desencantada do Brasil contemporâneo, analisando de modo eminentemente cruel as motivações e os sentimentos das personagens, deixando transparecer questões sociais e psicológicas mais profundas. A representação ficcional da violência se dá em diálogo com outras linguagens, dentre elas a televisiva e a cinematográfica, uma associação entre prosa e movimento que determina o ritmo acelerado da narrativa, cheio de cortes rápidos e fusões de imagens. Dá-se igualmente pelo aproveitamento de dados da realidade veiculados amplamente pela mídia e pela exploração de elementos da indústria cultural, expedientes esses que custaram a Patrícia Melo muitas críticas depreciativas, que associaram sua literatura a receitas de construção de best-sellers (Bastos, 2001BASTOS, Dau (2001). “Gosto a contragosto”. In: SANTOS, Wellington de Almeida. (Org.) Outros e outras na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Caetés., p. 31-47), destinadas ao gosto popular. Contudo, as tensões entre a alta cultura e a cultura de massa ou comercial têm sido revistas mais recentemente por importantes teóricos como Fredric Jameson, Mikhail Bakhtin e Humberto Eco. Este último chegou a dizer que “já não se pode mais pensar na cultura como algo que se articule segundo as imprescindíveis e incorruptas necessidades de um Espírito que não esteja historicamente condicionado pela existência de uma cultura de massa” (Eco, 1998ECO, Humberto (1998). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva., p. 15).

Os jogos de poder nas relações sociais

Em linhas gerais, O matador narra a ascensão e a derrocada de Máiquel, um jovem da periferia de São Paulo que se transforma em um assassino profissional, admirado pela população e pela polícia, pois é visto como um justiceiro que livra a sociedade dos bandidos que ameaçam a ordem social. Tudo começa quando o personagem perde uma aposta de futebol e pinta os cabelos de loiro, passando, a partir daí, por uma espécie de transfiguração:

Aquela tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu minha autoconfiança, meu amor-próprio. Foi a primeira vez, em vinte e dois anos, que olhei o espelho e não tive vontade de quebrá-lo com um murro. Beijei Arlete [a cabelereira] e saí feliz, pensando que passei a maior parte da minha vida querendo ser outra pessoa. (Melo, 1995______ (1995). O matador. São Paulo: Companhia das Letras., p. 10)

A brincadeira de tingir o cabelo leva Máiquel a virar objeto de chacota de Suel, o colega de bar a quem o protagonista acaba matando num duelo, como forma de impressionar a namorada, Cledir. Depois disso, Máiquel transforma-se numa espécie de “herói por acaso”; todos lhe agradecem por ter tido a coragem de dar fim a um “filho da puta” (id., p. 24), um assaltante e estuprador da pior espécie. Começa aí o processo ascensional do matador, para o qual é decisiva a participação do dr. Carvalho, o dentista que lhe propõe um tratamento dentário gratuito em troca da morte de Ezequiel, o rapaz que teria abusado sexualmente de sua filha, dando início à educação sentimental do ódio no interior do protagonista.

Ele [o dr. Carvalho] queria que eu abrisse a torneira do esgoto. Acontece que, nessa época, eu ainda não tinha aprendido a odiar. (...) Ezequiel saía por aí fodendo as mulheres e o problema não era meu. Eu não sentia ódio. O dr. Carvalho queria que eu odiasse Ezequiel, mas eu não odiava Ezequiel, meu coração estava livre. (id., p. 43-4, grifos nossos).

Dobrando Máiquel pelo poder econômico, maquiado pelo discurso bíblico, o dr. Carvalho consegue igualmente contaminá-lo com o seu ódio, um ódio disseminado entre os demais membros de uma sociedade à mercê do crime (“Cada pessoa no bairro me trazia um naco de ódio para engolir”, id., p. 44). Depois do primeiro crime sob encomenda, desencadeia-se uma série de homicídios que farão do protagonista um criminoso brutal. É essa condição off-center ou excêntrica do protagonista que a autora transforma em veículo estético e centro irradiador de consciência crítica.

A linguagem é opressiva, despida de entornos retóricos ou eufemismos, só atenuada por algum humor negro e corrosivo, apesar do jogo de imagens (belíssimas, aliás) que aparece aqui e ali como resultado das reflexões e do fluxo de consciência do protagonista. Como observou Dau Bastos (2001BASTOS, Dau (2001). “Gosto a contragosto”. In: SANTOS, Wellington de Almeida. (Org.) Outros e outras na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Caetés., p. 40), em análise feita ao romance Inferno, “Patrícia faz do texto algo semelhante a uma pipa que se entrega ao vento com vistas a ganhar leveza e altura.”

Atrai o leitor a forma despojada com que são tratados temas da mais alta gravidade, como a banalização do crime, a desvalorização total da vida humana e o descaso e a omissão das autoridades com o que se costuma chamar “estado paralelo no Brasil”. Evidenciando um apurado trabalho de pesquisa, Patrícia Melo reproduz com fidelidade a realidade do submundo do crime, a linguagem desse universo e seus modos de organização, explorando, além das formas psicológicas de violência mais sutis, as formas de violência física, visíveis, explícitas. A par disso, redimensiona os dramas pessoais dos grupos humanos que vivem à margem do sistema organizado do mundo burguês e confere novos critérios de significação à condição marginalizada do chamado “bandido”, apontando o quanto essa condição é, ou pode ser, produzida nas brechas abertas pelo Estado.

A perspectiva é a do próprio bandido, um personagem denso, negativo, que é “escavado” pela autora em suas angústias, conflitos e sentimento de inadequação.

Eu sou o viajante solitário (...) Espero o pior da vida, o pior do destino, das pessoas, da natureza, do diabo. Quando penso em fazer alguma coisa desisto porque sei que não dará certo. E se começo, faço pela metade. Largo tudo pela metade. (id., p. 17-18)

O romance retrata, na verdade, um personagem desterritorializado1 1 Segundo Guattari (Guattari & Rolnik, 1999, p. 323), existem os processos de territoriali- dade, desterritorialidade e reterritorialização: “o território pode ser relativo tanto ao espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente ‘em casa’. O ter- ritório é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”. na medida em que ele vive um processo de perda de identidade, entendida sob um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a determinados quadros de referência (imaginários ou não). Essa desterritorialização é visível desde a escolha do seu nome, Máiquel, forma aportuguesada do inglês Michael, e se estende a seguir pelo cabelo loiro, “que nem esses cantores de rock da Inglaterra” (id., p. 10), gaba-se ele. Mas a fase mais dramática do processo de desterritorialização do personagem se dá quando ele tenta invadir um lugar social que não é o seu, o lugar dos “bacanas”, vivendo a utopia de ter ultrapassado a linha que separa as classes sociais e de integrar o círculo fechado dos ricos e poderosos, uma vez que ele passa a desfrutar do convívio de “doutores”, empresários e autoridades policiais. Transformar-se num matador profissional configura, assim, uma solução, levando o personagem a integrar a sociedade de consumo, uma espécie de clube fechado, onde só entra quem tem a senha de acesso - o capital. O romance reproduz o tema comum do adulto que se tornou complexado porque, desde a infância, não teve condições de adquirir os produtos veiculados pela mídia e as roupas de grifes famosas que ditavam a moda: “Quando era pequeno (...), calça de brim era calça Lee. (...) Eu sempre quis ter uma, mas não tinha dinheiro, nunca tive calça Lee.” (id., p. 12)

A ilusão de ter migrado para “o lado de lá” só é quebrada ao fim do romance, quando descobrem que Máiquel matou a própria esposa e sua aura de herói se desfaz diante da opinião pública, momento em que o personagem ensaia sua reterritorialização, reassumindo sua identidade original de fracassado ao virar um mero foragido da lei, um bandido comum procurado pela polícia, um migrante marginalizado que não foi aceito pelo grupo para o qual migrou. Abandonado pelos donos do poder, que querem vê-lo morto, o personagem conscientiza-se, enfim, de que era meramente “o revólver desses caras” (id., p. 195), um joguete nas mãos “deles”; de que “eles”, na verdade, nunca o admitiram além do papel de prestador de serviços, de executador de ordens.

Eu não estava muito longe de entender que existe o lado de lá e o lado de cá, e que não se muda de lado. Nunca. Você pode até pensar que mudou, eles fazem você pensar isso, entre e feche a porta, eles dizem, você entra, você acha que está ali, você fecha a porta, você acha que mudou, mas não, na verdade não é uma mudança, se você está do lado de lá é porque eles estão precisando de alguém para lavar o banheiro de mármore deles. É isso simplesmente. (id., p. 180)

É bem verdade que, para se definir, a personalidade de Máiquel depende do centro - os donos do poder, os que se encontram, ainda que só na superfície, dentro dos preceitos de legalidade e de justiça - e que todos os movimentos de contestação do personagem estão comprometidos com as próprias categorias históricas de pensamento que ele procura transgredir. A despeito disso, seguindo a teoria e a prática pós-modernas, Máiquel funciona na trama como um veículo para o despertamento de uma consciência estética, crítica e política, como o tem sido a mulher, o negro, o homossexual e demais representantes das minorias culturais. O investimento na figura do marginal como centro irradiador dessa consciência vai ao encontro do pensamento de Linda Hutcheon, para quem “o pós-modernismo não leva a margem para o centro, mas utiliza o posicionamento marginal para criticar o interior a partir, ao mesmo tempo, do exterior e do próprio interior” (Hutcheon, 1991HUTCHEON, Linda (1991). Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago., p. 3).

Bem no espírito pós-moderno, o romance questiona o conceito de autoridade, o sistema, os centros de poder, apontando uma atitude enunciativa que deixa saltar o problema da diferença sócio-econômico-cultural e as formas de realização de vida resultantes dessa diferença. E o faz trazendo a primeiro plano o marginal, o recalcado, o excluído. O original aqui é o fato de o assassino não ser, pelo menos no início da trama, o elemento para o qual as forças repressoras do Estado devem dirigir seu potencial defensivo, mas um herói cujos crimes vão ao encontro da ânsia de justiça da população, já que ele se propõe a eliminar das ruas os elementos que perturbam a paz social: ladrões, estupradores, assassinos, sequestradores, etc., enfim, seres miseráveis como ele mesmo.

Com base nos estudos de Cristina Ferreira Pinto (1990PINTO, Cristina Ferreira (1990). O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. Rio de Janeiro: Perspectiva., p. 13), Ana Cláudia Giassone aponta, na construção da personalidade do matador, aspectos do bildungsroman clássico e algumas inversões significativas em relação a esse gênero narrativo. “O herói do bildungsroman [tradicional] passa por um processo durante o qual se educa, descobre uma vocação e uma filosofia de vida, e as realiza.” A experiência social, amorosa, os relacionamentos e também o confronto das adversidades têm por finalidade a integração social do personagem, desencadeando um processo de crescimento efetivo, respaldado em modelos ideais. A educação de Máiquel é, ao contrário, a educação sentimental do ódio, a educação ideológica da violência (Giassone, 2000GIASSONE, Ana Cláudia (2000). “São Miguel e o dragão: cidade e violência em O matador, de Patrícia Melo”. In: Literatura depois das utopias. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. abr.-jun. n. 141., p. 73)

É importante considerar que o processo de formação pessoal do herói do submundo retratado no romance é, evidentemente, bastante peculiar, já que o heroísmo aqui mais se revela quanto mais o indivíduo consegue romper as formas consagradas de organização social. Trata-se, assim, de um bildungsroman fracassado, que surge dentro de um contexto sócio-histórico-cultural muito específico, que exige uma revisão do conceito de formação individual, levando-se em conta a total inversão de valores que impera atualmente na sociedade, e que surge superlativizada no âmbito da narrativa.

Os jogos de poder nas relações de gênero

No terreno específico das relações afetivas, o matador se comporta como o produto de um modelo distorcido de educação familiar. Educado sob as bases de um machismo radical, Máiquel é condicionado a conter qualquer forma de expansão emocional que possa revelar alguma possível fragilidade ou manifestação de carência.

Na minha família, os homens não costumam chorar. Não por causa de machismo, embora sejamos machistas. Não choramos porque também não rimos, não abraçamos, não beijamos e não dizemos palavras gentis. Não mostramos nada do que acontece debaixo de nossa pele. Isso é educação. Meu avô era assim, meu pai era assim e meus filhos serão educados dessa maneira. Nunca chorei na frente de ninguém (Melo, 1995MELO, Patrícia (1994). Acqua Toffana. São Paulo: Companhia das Letras., p. 19, grifo nosso).

É fácil perceber que boa parte da virilidade do personagem é canalizada para o ofício de matador; é como assassino que ele realiza mais intensamente sua fantasia de onipotência. A arma torna-se, então, um símbolo fálico, um substituto simbólico com o qual Máiquel tenta compensar sua sensação de impotência diante da vida. A educação machista ajuda a explicar também a forma violenta com que o personagem se relaciona sexualmente com as mulheres e a forma como percebe a sexualidade feminina: “Sempre exagerei no sexo, porque as mulheres me ensinaram que era preciso exagerar. Perguntem o que elas querem e elas vão dizer: foda-me. (...) É isso. Mulheres gostam de tropas, cavalos, lanças, coisas que invadem e conquistam.” (id., p. 36)

Para Georges Bataille (1980BATAILLE, Georges (1980). O erotismo. 2. ed. Trad. João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes., p. 16), a violência é o objeto fundamental dos interditos sociais; é ela que o mundo do trabalho/razão exclui através dos interditos, isso porque o mundo racional, que também é o mundo do trabalho e da produção, é a base da vida humana. Bataille considera, contudo, que a obediência do homem à ditadura da razão nunca é irrestrita, já que a edificação do mundo racional sempre será perpassada, de um modo ou de outro, por um fundo de violência, base do irracional, do irrefletido, do desgoverno.

Sob esse prisma, Máiquel revela ser justamente o protótipo da sucumbência humana ao movimento que não foi possível conter ou reduzir à razão; representa a resposta ao impulso imediato que comanda a violência do desejo. Representa, enfim, o excesso dos limites - e o excesso se manifesta justamente na medida em que a violência prevalece sobre a razão, diz Bataille (1980BATAILLE, Georges (1980). O erotismo. 2. ed. Trad. João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes., p. 38).

Mas apesar de o excesso e de a violência traduzirem a discriminação sexual por critérios machistas em sua forma mais bruta, os elementos femininos do romance desfrutam de uma poderosa ascendência sobre os homens. A forma como se constroem as relações de gênero acaba por exaltar as virtudes femininas e o medo intenso que os homens - revestidos de um poder construído sobre bases falsas - têm das mulheres mais fortes. Bem ilustrativa é a fala de uma personagem secundária que, referindo-se ao marido, define-o jocosamente como “um pedaço de bosta que não serve nem para boiar no rio Tietê” (Melo, 1995______ (2000). Inferno. São Paulo: Companhia das Letras., p. 104.).

A narrativa não deixa de apostar na tradicional visão da mulher sob a dualidade que define modelos consagrados historicamente. Essa dualidade põe em confronto as duas mulheres de Máiquel: Cledir, a esposa, e Érica, a amante, situação que se altera no decorrer da trama, quando a esposa é assassinada pelo marido e a amante assume o lugar daquela. Os expedientes utilizados para a configuração das personalidades de ambas permitem concluir que a autora trabalha com polaridades intensificadas como forma de sublinhar a oposição fundamental entre a “santa” e a “serpente”. Cledir encarna o papel da mulher doméstica, a mulher-mãe, boa e decente, algo muito distante da realidade de vida do “matador”, que a define como “doce” (id., p. 27), “muito higiênica, gostava das coisas brancas, fórmica branca, era paz, uma paz fora de mim.” (id., p. 105, grifo nosso) Ao assassiná-la com requintes de crueldade, Máiquel elimina a parte do triângulo amoroso que mais o incomodava, porque o trazia para junto de uma domesticidade para ele impossível de ser suportada.

Inegavelmente, o grande referencial do poder feminino no romance é sintetizado na figura de Érica, a amante, única mulher que consegue satisfazer plenamente ao protagonista, porque, além de seduzi-lo pelo poder sexual, também o atrai pela inteligência e agilidade mental. Diante de Érica, toda a virtude de Cledir se ofusca. Érica encarna o movimento, a ação, a agressividade, o arquétipo da guerreira, conforme definido pelos estudos de Elizabeth Badinter, segundo a qual “em diversas culturas pré-patriarcais surge o arquétipo da deusa solitária e selvagem caçadora, amante dos animais, irmã dos homens e professora das outras mulheres” (Badinter, 1986BADINTER, Elisabeth (1986). Um é o outro: relações entre homens e mulheres. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 62).

Mais do que como professora, Érica atua no romance como uma espécie de alter-ego de Máiquel; uma consciência didática que ilumina aquilo que foge ao entendimento mais imediato dele. É ela quem o ensina tanto a atirar quanto a duvidar da boa vontade dos homens. Como cúmplice perfeita, é ela quem o ajuda a livrar-se dos cadáveres que ele faz, incluindo o da própria esposa. Como mulher combativa, Érica é admirada por Máiquel pelos mesmos motivos por que é temida por ele: pela sólida segurança e autossuficiência. Na classificação de Suzana Pravaz, Érica enquadra-se no modelo de mulher combativa, definida como a “guerreira que defende o seu orgulho (...) o orgulho de se saber livre, independente, autoabastecida, autorizada a encarar os homens quase de igual para igual, condenada a não poder descansar no papel tradicional de mulher protegida” (Pravaz, 1981PRAVAZ, Suzana (1981). Três estilos de mulher: a doméstica, a sensual, a combativa. São Paulo: Paz e Terra., p. 61). Contudo, a certa altura, Érica escolhe o caminho da salvação por meio da entrega à fé evangélica e livra-se do submundo a que a relação com Máiquel a submete.

O fato é que Érica confronta a fragilidade emocional do “matador”, põe em xeque sua fantasia de onipotência. A certa altura, o personagem ajoelha-se literalmente diante dela, momento que marca a queda do poder viril do “matador” diante da mulher desejada:

Quero falar com você Érica. Pedi para voltar. Ela disse que não. Que ela queria ficar com Deus. Máiquel, eu preciso de alguma coisa que eu não sei o que é, deve ser Deus, eu estou tentando (...) eu me ajoelhei aos pés dela, implorei, chorando, não se ajoelhe, ela disse, eu não mereço (...) você merece tudo, eu vou fazer o que você quiser, mas ela disse que não queria nada, queria tirar aquela dor do coração, que dor Érica, que dor é essa que você tem no coração? Ela entrou na igreja e não me explicou que dor era aquela. (Melo, 1995______ (1995). O matador. São Paulo: Companhia das Letras., p. 117)

No geral, a condição masculina de Máiquel em nada o favorece; ele não desfruta aqui da condição de centro privilegiado de poder, antes atua como elemento de análise mais ampla das contradições que esteiam o tecido social. Patrícia Melo (ab)usa do sistema de dominação masculina para desqualificá-lo. O matador acaba vencido por suas próprias escolhas, suas fraquezas mascaradas de poder, suas tendências amorais e autodestrutivas que tanto o levam a perder Érica, seu único ponto de contato com a vida, como o levam a perder-se de si mesmo.

Em suma

Ao reforçar o domínio cultural masculino e a fantasia de poder viril dos homens, a narrativa de O matador afasta-se radicalmente de qualquer proposta de ensimesmamento ou de interiorização, pela qual a literatura de autoria feminina afirmou a sua especificidade, o que, num primeiro momento, parece contrariar toda a gama de reivindicações postuladas pela crítica literária feminista. Contudo, um dos resultados dos movimentos emancipatórios feministas das décadas anteriores é o acesso irrestrito da escritora contemporânea tanto a uma ampla liberdade de temas como à forma de veiculá-los discursivamente. Infere-se que não se trata mais da escritora que “deve” fazer de sua vivência objeto e tema literários porque se vê cobrada a demarcar territórios - o que não deixa de ser redutor em relação à criação literária, que, por sua própria natureza, deve gozar de ampla e incondicional liberdade de expressão. Tal liberdade figura ser o resultado da superação das crises de identidade e de autorrepresentação vividas pelas escritoras das décadas precedentes. Na instância histórica atual, a mulher não precisa necessariamente apontar para a questão da identidade feminina, da mesma forma como pode romper radicalmente com a obrigação, muitas vezes autoimposta, de fazer-se respeitar por sua diversidade em relação aos homens, como se isso já não tivesse tanta importância.

Na verdade, toda a (pseudo)valorização da experiência cultural masculina observada em O matador reverte-se numa crítica subliminar às formas como se constroem os discursos de discriminação por critérios sexuais, econômicos e sociais em nossa sociedade. Levar esse discurso às últimas consequências, por meio de um discurso sexista e até mesmo misógino, é um modo criativo - e válido - de realizar a crítica da cultura.

Referências bibliográficas

  • BADINTER, Elisabeth (1986). Um é o outro: relações entre homens e mulheres. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • BASTOS, Dau (2001). “Gosto a contragosto”. In: SANTOS, Wellington de Almeida. (Org.) Outros e outras na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Caetés.
  • BATAILLE, Georges (1980). O erotismo. 2. ed. Trad. João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes.
  • COUTINHO, Sônia (1994). Rainhas do crime: ótica feminina no romance policial. Rio de Janeiro: Sete Letras.
  • ECO, Humberto (1998). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.
  • GIASSONE, Ana Cláudia (2000). “São Miguel e o dragão: cidade e violência em O matador, de Patrícia Melo”. In: Literatura depois das utopias. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. abr.-jun. n. 141.
  • GUATTARI, Félix & ROLNIK, Sueli (1999). Micropolítica. Cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes.
  • HUTCHEON, Linda (1991). Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago.
  • MELO, Patrícia (1994). Acqua Toffana. São Paulo: Companhia das Letras.
  • ______ (1995). O matador. São Paulo: Companhia das Letras.
  • ______ (2000). Inferno. São Paulo: Companhia das Letras.
  • PINTO, Cristina Ferreira (1990). O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. Rio de Janeiro: Perspectiva.
  • PRAVAZ, Suzana (1981). Três estilos de mulher: a doméstica, a sensual, a combativa. São Paulo: Paz e Terra.
  • 1
    Segundo Guattari (Guattari & Rolnik, 1999GUATTARI, Félix & ROLNIK, Sueli (1999). Micropolítica. Cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes., p. 323), existem os processos de territoriali- dade, desterritorialidade e reterritorialização: “o território pode ser relativo tanto ao espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente ‘em casa’. O ter- ritório é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Jan 2010
  • Aceito
    Abr 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com