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Entre “ós”, “ais” e “jaguanhenhéns”: voz e linguagem em Padre Antônio Vieira e Guimarães Rosa a partir de Nuno Ramos

Between “ós”, “ais” and “jaguanhenhéns”: voice and language in Antônio Vieira and Guimarães Rosa from Nuno Ramos

Entre “ós”, “ais” y “jaguanhenhéns”: voz y lenguaje en Padre Antônio Vieira y Guimarães Rosa desde Nuno Ramos

resumo

O artigo toma por objeto a articulação voz e linguagem na obra Ó (2008), de Nuno Ramos, atentando à correlação desta bipartição à polaridade cultura e natureza, conforme consta na Política, de Aristóteles. Infere-se que Ramos elabora uma descida da linguagem à voz, procedimento que pode ser entendido como a inversão do esquema traçado por Padre Antônio Vieira no sermão “Nossa senhora do ó” (1640), no qual a voz é submetida à linguagem, o corpo ao espírito. Doravante, elegeremos o conto “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, como um possível precursor da expressão “ó” por fazer o ruído animal atravessar a comunicação, embora nossa conclusão seja a de que Nuno Ramos propõe uma decida de mão única do espírito à animalidade, do lógos à phoné, o que nos permitiria vincular sua humanista teoria da separação entre cultura e natureza àquela proposta pelo filósofo Giorgio Agamben; enquanto em Rosa haveria um procedimento perspectivista, como o teorizado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, segundo o qual a natureza seria capaz também de possuir linguagem, saber.

Palavras-chave:
Nuno Ramos; Padre Antônio Vieira; Guimarães Rosa; linguagem; voz; natureza; cultura

abstract

This article takes as its object the articulation of voice and language in Ó (2008), by Nuno Ramos, considering the correlation of this bipartition with the dichotomy culture and nature, as it is stated in Aristotle’s Politics. The essay concludes that Ramos elaborates a descent from language to the voice, a procedure that can be understood as the inversion of the scheme outlined by Padre Antônio Vieira in the sermon “Nossa Senhora do O” (1640), in which the voice is subordinated to language, body to the spirit. We choose the narrative “Meu tio o Iauaretê”, by João Guimarães Rosa, as a possible precursor of the expression "ó" for making possible the crossing of communication lines between human and animal noises, although our conclusion is that Nuno Ramos proposes a one-way street from the spirit to animality, from logos to phoné, which allows us to link his humanist theory of the separation of culture and nature to that proposed by the philosopher Giorgio Agamben; while in Rosa there is be a perspectivist procedure, similar to the one theorized by the anthropologist Eduardo Viveiros de Castro, according to which nature also possesses language, knowledge.

Keywords:
Nuno Ramos; Padre Antônio Vieira; Guimarães Rosa; language; voice; nature; culture

resumen

El artículo toma por objeto la articulación de voz y lenguaje en la obra Ó (2008), de Nuno Ramos, poniendo atención a la correlación en esta bipartición de la polaridad cultura y naturaleza, conforme consta en la Política, de Aristóteles. Se infiere que Ramos elabora un descenso del lenguaje a la voz, procedimiento que puede ser entendido como la inversión del esquema trazado por el Padre Antônio Vieira en el sermón Nuestra señora del ó (1640), en el que la voz es sometida al lenguaje, el cuerpo al espíritu. A partir de ello, elegiremos el cuento Meu tio o Iauaretê, de João Guimarães Rosa, como un posible precursor de la expresión “ó”, de hacer el ruido animal atravesar la comunicación, aunque nuestra conclusión es la de que Nuno Ramos propone un descenso de manera única del espíritu a la animalidad, del lógos a la phoné, lo que nos permitiría vincular su humanista teoría de la separación entre cultura y naturaleza a aquella propuesta por el filósofo Giorgio Agambens; mientras que en Rosa habría un procedimiento perspectivista, como el teorizado por el antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, según el cual la naturaleza sería capaz también de poseer un lenguaje, un saber.

Palabras clave:
Nuno Ramos; Padre Antônio Vieira; Guimarães Rosa; el linguaje; voz; naturaleza; cultura

Um “ó”

Logo na abertura de Ó, obra que o escritor e artista paulista Nuno Ramos publica em 2008, mais especificamente no fragmento intitulado “Manchas na pele, linguagem”, lemos que, na condição de corpos biológicos, recorremos à linguagem para deixarmos de ser simplesmente “espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 17), sendo a linguagem, portanto e como define o narrador, algo que nos “põe para fora do corpo” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 18). A partir disso, o texto se demanda uma tarefa: tentar apreender a linguagem, mesmo que o narrador não consiga se decidir - ou talvez justamente para que ele possa realizar tal escolha - “entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases”, ou seja, se “a vida é”, afinal, diz narrador ao concluir sua explanação, “bênção ou matéria estúpida”. Tal dúvida é o que o leva, posteriormente, a “examinar então [...] algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, [...] besouros dentro do ouvido”, além de a “fosforescência do organismo, (o) batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte” para, então e finalmente, poder optar: “matéria ou linguagem?” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 18).

A tentativa dessa “apreensão” ou decisão sobre se a vida se reduziria ao físico ou àquilo que se encontra além da physis é abandonada e o texto opta, como resposta, pela indecisão: ficar como uma “via intermediária” para “entrar e permanecer no reino da pergunta - ou de uma explicação que não explica nunca” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 18). Daí advém, para o narrador, uma curiosa relação que passa a estabelecer entre palavras e coisas: “assim, suspenso, murmuro um nome confuso a cada ser que chama minha atenção e toco com meu dedo a sua frágil solidez, fingindo que são homogêneos e contínuos” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 18) - sem, no entanto, “regredir à cadeia causal interminável” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 18). Estabelece-se, desta sorte, um contato singular entre linguagem e matéria, palavra e coisa, caracterizado pela inexistência de uma sistematização linear ou causal desta por aquela. Afinal, ele se diz confortável em permanecer em seu “torpor indagativo”, no qual haveria “uma vaga e humilde dispersão dos seres, fechados em seu desinteresse e incomunicabilidade de fundo”: o narrador, espécie de filósofo distraído, embora lidando de maneira desenvolta com problemas de larga recorrência na tradição filosófica ocidental, assume-se, por fim, “deitado na relva, tentando unir pedaços de frases a pedaços de coisas vivas” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 19).

Após essa reflexão, a obra propõe uma irreverente hipótese acerca da origem do homem enquanto vivente linguístico. Tudo começou, especula o texto, quando os “primeiros homens teriam se dividido entre os seres linguísticos e heróis mudos”, sendo que “os últimos [...] teriam sido extintos” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 28). Estes, “ao contrário do que viemos postulando”, diz o narrador, talvez “fossem seres radicalmente linguísticos, a ponto de que tudo para eles pertencesse à linguagem. Cada árvore seria o logaritmo de sua posição na floresta, cada pedregulho parte do anagrama espalhado em tudo por tudo” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 28), ou seja, o mundo, para tais homens, era um “enorme livro”, um “texto dissipado por tudo” cuja “única restrição era ser feito de matéria física, mutável e perecível” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 29). Todavia, algum desastre o teria destruído, obrigando sua substituição e isolando os homens de seu próprio corpo, cindindo natureza e cultura, corpo e escrita. Diz Ó:

Talvez um grande cataclisma - um terremoto, um meteoro ou um incêndio - tenha transformado a tal ponto a matéria que os cercava que acabou por emudecer para sempre este texto físico, obrigando à sua substituição. Isolados em seu próprio corpo, que já não parecia parte desta escrita única, tiveram de usar a matéria mais leve e de fácil manuseio de que dispunham (a voz), e substituir com ela o que haviam perdido. Procuraram então marcar, para cada coisa que sumira, um som próprio, que a substituísse e presentificasse, ainda que de modo incompleto. Preferiram esta frágil duplicação à perda que haviam sofrido. E assim, por precaução, nunca mais atribuíram matéria à linguagem, mas apenas vento e signos sem matéria. Com isto, não corriam mais perigo (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 30).

Uma vez que os homens são expulsos da “escrita única”, a voz, como diz o trecho, seria o instrumento por meio do qual a estúpida matéria, vazia de significação, de sentido, seria por estes preenchida, ganhando, assim, uma alma, uma benção, um espírito. O interessante é que a atribuição de sentido àquilo que se torna unicamente físico permite não apenas preencher esse puro material com uma palavra, mas também substituí-lo e presentificá-lo, como diz a passagem supracitada, ainda que tais tarefas estejam fadadas à incompletude. Poder-se-ia concluir, com isto, que a voz se torna de extrema importância para “Ó”, pois seria o principal instrumento para reestabelecer, após a caída catastrófica que cinde a originária unidade indivisível entre corpo e alma - cataclismo muito comum em narrativas cosmogônicas e mitológicas, a ver pelo exemplo do dilúvio bíblico -, o vínculo perdido entre natureza e cultura. Tal tarefa seria, finalmente, a aventura do homem linguístico, segundo a descompromissada e despretensiosa antropologia de Ó - não se chega em tais formulações ao satírico ou à galhofa, embora algo como a seriedade epistemológica seja também de completa estranheza.

Aliás, nesse sentido, lembramos que Ó é composta por uma série de pequenas passagens enumeradas cujos títulos remetem aos temas que abordam, trechos estes que mesclam narrativas pronunciadas por um contador de histórias e filosofemas que oscilam, por sua vez, entre a conversa de bar e a filosofia sendo, entretanto, irredutível a ambos. Ou seja, as reflexões de Ó jamais se tornam mero blá-blá-blá assim como em nenhum momento aspiram à pura intelecção, à formulação de sentenças definitivas ou conceituais, movimento este que o livro realiza com notável desenvoltura e que não deixa de participar do já mencionado problema da linguagem que viemos abordando. Para mostrar isso, basta rever a passagem na qual Ó irá retomar tal questão, o que acontece no primeiro dos fragmentos que leva o título do livro - distribuídos ao longo da obra do primeiro ao sétimo “ó” - e que, pela homonímia, conclui-se ser basilar para o argumento geral produzido pelo texto. O primeiro “ó” narra o ato de carregar “frutos e pedras” no estômago quando “alguma coisa como canto sai de alguma coisa como boca, alguma coisa como um á, um ó, um ó enorme” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 59). Daí se começa a especular sobre este “ó” e, simultaneamente, traça-se um projeto para sua configuração:

feito microfonia, um ó que fosse crescendo também nos bichos, nas colmeias, no pelo dos ursos, na lã das mariposas e das taturanas, no chiado do leão sem dentes que segue de longe a própria matilha sem ouvir o ó crescente das hienas que comem, comem neste momento o seu próprio cadáver, um ó aos ratos, à astúcia entocada, ao espinho na pata, um ó em dó, em si, de lata, de lata, panelas de querosene incendiadas, um ó pelo menino assassinado por outro menino, um ó pelo seu assassino, um ó de todos os meninos, sem barba, sem pelo e sem castigo (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 60).

Se Ó vaga entre o pensamento e a conversa fiada, entre a filosofia e a besteira - termo cuja raiz remete à bestialidade -, entre as formulações do espírito e os movimentos da boca que joga a conversa fora, aqui a perspectiva antropológica dessa oscilação é retomada em termos de corpo e linguagem, matéria estúpida e espírito, finalmente, entre cultura e natureza. Daí a expressão “ó”, um entrelugar singular entre coisa e outra: uma vocalização capaz de fazer o espírito descer ao corpo, à matéria, levando o homem, ser linguístico, de encontro aos animais e aos objetos. “Ó” é o abandono da comunicação semântica, da mera transmissão do sentido, do pensamento, impregnando estes do que é físico, sensorial, fazendo a linguagem ser invadida pelo grito, pelo ruído ou algo como um canto, uma expressão de gozo: oh. Daí a cultura vai à natureza e este “ó”, na condição de um eco oriundo do homem que contata os animais, define-se, finalmente, como uma espécie de metafísica incompleta, invadida não apenas pela incerteza, pelo não saber, como também pelos bichos, pelo tempo e, logo, pela deterioração e pela inconstância.

Se se trata, então, de uma “metafísica incompleta”, animalesca, naturalmente que o livro queira manter sua distância das formulações conceituais; contudo, é preciso cuidado para que isso não sirva como simples estratégia retórica para evitar o confronto com a tradição, afinal, as categoriais com as quais Ó se articula são diretamente derivadas da filosofia: bastaria ver, por exemplo, como a dualidade matéria espírito encontra seu perfeito correspondente em voz (phoné) e linguagem (lógos) na Política, de Aristóteles, por exemplo. O estagirita é claro na abertura do seu tratado escrito na antiguidade, um dos mais significativos para a tradição ocidental, no qual é possível ler que:

o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil (Aristóteles, 2006ARISTÓTELES (2006). A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes., p. 5).

O homem, enquanto “animal cívico”, é o único a possuir a palavra e, logo, a noção do justo e injusto, ao contrário dos demais animais, que possuem apenas os sons da voz para a expressão de prazer ou dor. Desse modo, por meio da linguagem - instaurada pelo comércio da palavra que permite nossa união enquanto comunidade -, separamo-nos ou conseguimos domar o animal que há em nós, saindo da expressão privada de gozo à vida pública do debate racional, ou seja, à política. Portanto, se é a linguagem (logos) que nos separa do animal - inclusive do animal que nós somos enquanto vida biológica, sujeita aos afetos, ao doloroso e ao prazeroso -, o que propõe Nuno Ramos é uma ida ao corpo e aos bichos, sair da linguagem e ir à voz: por isso um “ó”, um “ó” rumo ao prazer e à dor, à natureza, à matéria e ao tempo, enfim, ao mundo da physis.

Outro “ó” e um “ai”

Ao usar um “ó” como uma ligação entre matéria e benção, corpo e espírito, natureza e cultura, Nuno Ramos repete o gesto realizado nos seiscentos barroco por Padre Antônio Vieira, especialmente quando este pronunciava o sermão intitulado “Nossa senhora do ó”, em 1640. Inspirado pela tradição espanhola da “Senhora da Expectação do Parto” de Maria, mãe de Jesus, Vieira, como nota Antônio Saraiva, utiliza o termo “Ó” com muitos sentidos, a saber: “Deus, a imensidade, o ventre materno, o zero, a eternidade, o círculo na água, a expressão do desejo”, ou seja, conclui o crítico, “um significante vazio” que se torna “um ponto de encontro de uma série de significados” (Saraiva, 1980SARAIVA, Antônio J. (1980). O discurso engenhoso. Estudos sobre Vieira e outros autores barrocos. São Paulo: Perspectiva ., p. 12). Assim, “ó” é usado pelo sacerdote tanto pela sua forma, na qual há a semelhança com o círculo - “circular é o globo da terra, circulares as esferas celestes, circular toda esta máquina do universo, que por isso se chama orbe, e até o mesmo Deus”, finaliza Vieira, “como declarou S. Dionísio Areopagita” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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)2 2 Todas as citações do sermão de Padre Antônio Vieira reproduzidas neste artigo foram extraídas de uma versão do site Domínio Público, a qual não possui paginação. - quanto pelo seu som, em referência ao “O dos desejos da Senhora na expectação do parto” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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), sua expressão de prazer, amor e paixão explicitada pelo gemido da voz em devoção à criança vindoura, o menino Jesus.

Todavia, tal multiplicidade de sentidos traçada por Vieira em torno de um só significante tem a finalidade de reduzi-lo à unidade, o que concorda com o sistema de pensamento geral do padre, como infere João Adolfo Hansen, ao esclarecer que “a arte de Vieira multiplica o Um, espelhando-o por atribuição, proporção e proporcionalidade nas semelhanças de sons, letras, palavras, conceitos, imagens e argumentos de modo a fazer”, conclui, “do discurso e do ato do discurso uma figura eficaz do acontecimento da Presença eficiente, que faz o mundo ser e desejar o Ser” (Hansen, 2003HANSEN, João Adolfo (2003). Esquemas para Vieira. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe. Pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: UniverCidade., p. 101). Ora, este é precisamente o tema de “Nossa senhora do Ó”: diz o texto que “O é um círculo, e o ventre virginal outro círculo”, e o objetivo do sermão será o de demonstrar que “assim como o círculo do ventre virginal na conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso”, “os desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o eterno” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Correlacionando, portanto, o círculo uterino de Maria ao receber a encarnação de Deus - sendo este também um círculo, embora “sem limite, cujo centro está em toda a parte”, ou seja, infinito e não condicionado, diferentemente daquilo que é carnal - ao “Ó” vocal apaixonado e circular da mãe de Jesus à espera de sua chegada, propõe-se que em ambos os casos uma figura circular acolhe outra, ainda que a figura acolhida seja o Ser absoluto e infinito. Por isso Vieira define “a concepção matemática do infinito para mostrar que há sempre um infinito maior que o outro” (Saraiva, 1980SARAIVA, Antônio J. (1980). O discurso engenhoso. Estudos sobre Vieira e outros autores barrocos. São Paulo: Perspectiva ., p. 12), sendo Deus, finalmente, devido à sua imensidade, inconcebível à razão humana, que o deseja.

Talvez como provável leitor de Aristóteles, Vieira se mostra a par da articulação entre phoné e lógos ao propor que os “homens, quando se geram e concebem no ventre da mãe, não são homens, nem ainda meninos, porque só têm a vida vegetativa ou sensitiva, e ainda não estão”, finaliza, “informados com a alma racional; porém, o Verbo Encarnado, Cristo, desde o primeiro instante de sua conceição, foi varão perfeito [...], não só com todas as potências da alma e do corpo, senão também com o uso delas” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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).3 3 Ao menos dois séculos antes de Vieira, Dante Alighieri, em sua Commedia, havia unido o cristianismo ao legado grego, especialmente ao vincular aristotelismo à teologia de Santo Agostinho. Assim como no estagirita, a voz, enquanto estância corporal de dor ou prazer, é indício somente de uma vida sensível, como é a dos animais, e, somente com verbo, o lógos, a racionalidade, que o vivente humano se tornaria propriamente um homem. O ponto de Vieira é que Jesus estaria completamente para além desta vida sensível, jamais teria sido um in-fante, um não falante, de sorte que caberia explicar como sua pura espiritualidade teria se tornado carne, isto é, entidade limitada, como acontece com a encarnação de Deus em seu corpo e a presença deste no ventre de Maria. A descida da benção à matéria estúpida, para usar a expressão de Ramos, seria um contrassenso, uma atitude de absoluta excepcionalidade, como coloca Vieira ao avultar que “juntar a virgindade com o parto foi inventar Deus um nascimento digno da sua divindade, porque, como diz S. Bernardo, havendo Deus de ter mãe, não podia ser senão virgem, e havendo uma virgem de ter filho, não podia ser senão Deus” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Por isso, o evento da encarnação era também sorte de círculo, imenso e perfeito ato de Deus, que, como tal, era incompreensível aos homens:

Consiste em que a figura do O é circular, e assim como o O é um círculo, assim o mistério da Encarnação foi outro círculo [...]. O mistério da Encarnação do Verbo - diz S. Boa-ventura - foi um círculo porque, vestindo-se Deus de nossa carne, a humanidade de Cristo cercou e encerrou em si a divindade. E por este modo inefável ficou sendo a mesma divindade o centro, e a humanidade a circunferência. Sendo, pois, o mistério da Encarnação, que foi o fim e última perfeição de todas as obras de Deus, este perfeitíssimo círculo, por isso Cristo disse a S. João que, assim como ele, enquanto primeiro princípio, é a primeira letra, A, assim, enquanto último fim, é a última letra, O: Ego sum Alpha et Omega (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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).

Para além da supracitada explanação acerca do fato de o ventre circular de Maria circundar o inefável Verbo, resta a Vieira demonstrar como o “oh” vocal da virgem santíssima seria também infinito, já que ele poderia ser entendido como aparente expressão de algo meramente corporal como o gozo ou o desejo. Primeiramente, Vieira coloca que o fato de “oh” ser a maneira encontrada pelo corpo para exprimir um desejo significa uma escolha da natureza por uma figura circular e que, como tal, expressa a eternidade. Para exemplificar, Vieira cita os desejos de Maria: “Oh! quando chegará aquele dia! Oh! quando chegará aquela ditosa hora, em que veja com meus olhos e em meus braços ao Filho de Deus e meu! Oh! quando? Oh! quando? Oh! quando?” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Nota-se a figura da repetição empregada que confere, por um lado, circularidade às exclamações da mãe de Jesus e, por outro, um certo tom sensualidade. Porém, como mesmo reconhece o padre, tal questão não está plenamente resolvida, pois se “estes desejos da Senhora começaram na conceição e acabaram no parto”, ou seja, se seriam “desejos que tiveram princípio e fim”, como “podiam ser eternos? [...] Como podia igualar a duração de uma eternidade o espaço que foi somente de nove meses?” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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).

Assumindo-se em um possível diálogo com algum filósofo, Vieira esclarece que o objeto de desejo de Nossa Senhora, qual seja, o filho único de Deus, é o sumo bem e que, se ele estivesse presente somente no passado, despertaria saudade; se, ao contrário, se fizesse presente, causaria gosto; e, por fim, se a presença de Jesus fosse uma possibilidade futura, tal condição despertaria o desejo daquele que o ama. Porém, estando no ventre de Maria, Jesus marcava uma presença paradoxal, pois sua estada no interior do círculo do ventre virginal o mantinha, todavia, longe do alcance das vistas da virgem, ou seja, “enquanto o tinha dentro em si, por muito presente, fazia-o presença invisível; porém, depois que o teve fora de si, e em seus braços, esta mesma distância, que era parte de ausência, fez que o pudesse ver e gozar” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Neste momento, finalmente com Cristo defronte a seus olhos, Maria emitiria uma sucessão de “ós”: “Oh! círculo, que cercas e compreendes o incompreensível! Oh! invento maior da Sabedoria! Oh! milagre sem igual da Onipotência! Oh! firmeza! Oh! excesso! Oh! extremo do amor infinito para com os homens!” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Portanto, haveria desejo e suspiro da virgem somente porque Cristo faltava à sua visão e, tão logo após o parto, finalmente com a encarnação de Deus diante dos olhos, ela poderia gozar deste Ser absoluto e infinito. O mesmo, segundo o padre, deveria acontecer com nós mortais: se tivermos Cristo dentro de nós devemos desejar uma outra felicidade ainda maior que é a de estar com o Verbo “onde o vejamos e gozemos por toda a eternidade” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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): porque para acabar com a fome e saciar os desejos “basta termos a todo Deus em nós; mas desta mesma fome, já satisfeita, há de nascer uma sede insaciável de se romperem aquelas nuvens, e o vermos descobertamente na glória” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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).

Obviamente que Vieira se refere à vida espiritual após à morte, quando iríamos finalmente abandonar o mundo sensível e transitório, dos excessos da carne, para se entregar ao único excesso permitido: o da razão divina nos céus. “Estes hão de ser os OO dos nossos desejos, como eram os do mesmo profeta: Oh! quando virá aquele ditoso dia, em que apareça, meu Deus, diante de vós?”, coloca o padre, “Oh! quando se verá livre a minha alma do cárcere deste corpo mortal, que lhe impede a vossa vista” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Para Vieira estes devem ser nossos desejos, ou melhor, os “OO dos nossos desejos”, com diz e conclui: “e não os do mundo, os da cobiça, os da ambição, os do falso amor, que não são OO, senão ais” (Vieira, 2016VIEIRA, Padre Antônio (2016). Nossa senhora do Ó. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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). Ora, aqui a tese de João Adolfo Hansen se comprova e fica patente a inexistência de elogio da sensualidade ou da multiplicidade dos sentidos na prosa barroca de Vieira: há, antes, a figuração do corpo com seu movimento desejante, mas somente para colocá-lo em absoluta submissão ao Ser, ao espiritual, ao uno. O mesmo segue para a figura de um “ó”: ela marca a subserviência total do doloroso/prazeroso à intelecção pura, ou melhor, a completa servidão da voz ao Verbo, da phoné ao lógos, do corpo ao espírito uno, enfim, da natureza à cultura. Desejar somente a metafísica monoteísta cristã e domar a physis.

Consciente disso, Vieira propõe uma outra designação ao amor não direcionado ao Ser, ou seja, aquele que se impregna das paixões carnais: ele não seria expresso pela figura circular e, por isso, eterna do “Oh”, mas seria, antes, um “ai”. Nesse movimento, o padre visa reprovar a cobiça ou a ambição, mas, é preciso notar, tais pecados são designados em seu texto como “desejos do mundo”, o que qualifica em suas ideias a objeção àquilo que é da ordem corporal, do mundo material. É por isso que, segundo o sermão, os desejos carnais como a fome e a sede devem ser saciados somente pela presença de Deus no interior dos homens. E se dessa maneira a divindade se torna invisível no exterior, uma vez que estaria no interior, o homem deve desejar o dia em que ela se fará presente a seus olhos, isto é, o dia da morte, quando, finalmente, abandonará definitivamente o próprio corpo, livrando-se “da fusão indeterminada” nesta matéria estúpida e finita para, não mais condicionado pela voz, tornar-se lógos puro e se deleitar - único gozo permitido - com a presença do Verbo puro, da benção.

João Adolfo Hansen comenta que Vieira exortou o massacre do quilombo dos Palmares, defendeu a catequização de índios e a escravização dos africanos sob a alegação de que eram bárbaros e animalescos, louvou as empreitadas coloniais portuguesas na China e no Japão, assim como a sacralização da dinastia dos Bragança, qualificando-os como escolhidos diretamente por Deus, sendo a finalidade de sua obra, portanto, a “integração ordenada de indivíduos, estamentos e ordens do Império Português [...] visando sua redenção coletiva como único corpo místico de vontade e liberdade dirigidas para a realização do Império de Deus na Terra” (Hansen, 2003HANSEN, João Adolfo (2003). Esquemas para Vieira. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe. Pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: UniverCidade., p. 100). Nota-se não somente o quão ambiciosa e cobiçosa era a empreitada das pregações do sacerdote mas, especialmente, como se inscreve a dicotomia physis e nomos na exortação à catequização ou escravização dos índios e negros para domesticá-los, de onde subentende-se uma construção hierárquica de origem religiosa indissociável, entretanto, da disposição do corpo social, como diz Hansen, na qual do não branco ao homem branco, cumpria-se igualmente um percurso da natureza à cultura, do animal ao homem racional, da voz ao sentido. E este sempre deveria ordenar e tornar aquele submisso, tarefa, como mostramos, a ser realizada pelo O.

Jaguanhenhém

Se o “ó” de Vieira engendra a pura passagem da natureza à cultura, enquanto o de Nuno Ramos visaria justamente o contrário, a saber, a descida da cultura à natureza, poderíamos dizer que o “ó” deste escritor equivaleria perfeitamente a um “ai” de Vieira. Menos pela existência da cobiça ou ambição, a qual Vieira só se opõe na sua mais profunda hipocrisia, mas pelo apreço de Ramos a tudo que é deste mundo, terreno. Nesse sentido específico, o projeto ou expressão “ó” de Nuno Ramos, embora de singular inspiração barroca, não somente pela escolha do termo mas pela designação do espírito enquanto benção e das coisas como matéria estúpida, ainda que prefira de maneira singular estas àquelas, invertendo, assim, a lógica cristã do sermão de Vieira, só encontraria precursor justo na literatura brasileira moderna. Um dos melhores seria o conto “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, cuja primeira versão foi publicada em 1969 na revista Senhor. Essa narrativa nos faz saber somente através da voz de Macuncozo - um mestiço caçador de onça que se instala numa fazenda para desonçar a região - do encontro deste com um viajante, no qual a articulação voz e linguagem se desenvolve de maneira especial. Durante a conversa, ao se embriagar com a cachaça oferecida pelo hóspede, o protagonista vai revelando ter se transformado em onça por diversas ocasiões, na quais, subentende-se, teria atacado e matado homens. Temeroso, o interlocutor saca uma arma e ao final do conto lemos:

Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda... Mexo não, tou quieto, tou quieto... Ói, cê quer me matar, ui? Tira, tira o revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à-toa... Ói o frio. Mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa do preto? Matei preto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu - Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...

Hé... Aar-rrã... Cê me arrhoôu... Remuaci... Reiucàanacê... Araaã... Uhm...Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê...” (Rosa, 2001ROSA, João Guimarães (2001). Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas histórias. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 235)

O frio e o ato de colocar as mãos no chão sinalizam a possível metamorfose do protagonista em onça, como ocorre em diversos outros momentos de sua história. O processo de metamorfose é verificável também, como notou Haroldo de Campos, pela alteração da fala do onceiro, que vai sendo invadida por uma voz animal, com seus ruídos, interjeições e também pela língua indígena tupi. Ou seja, elementos exteriores à língua portuguesa (fazendo-a tocar, como acontece ao fim do trecho supracitado, o incompreensível e o consequente aborto de sua capacidade narrativa, desarticulando-a enquanto linguagem) denotam o advento do animal, pois, segundo o crítico, esta quebra “em restos fônicos”, com resmungos onomatopaicos e monossílabos tupis, sinaliza o “fungar e o resbunar da onça” (Campos, 2010CAMPOS, Haroldo de (2010) A linguagem do Iauaretê. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva., p. 61), engendrando no texto o advento do “jaguanhenhém”, termo usado por Macuncozo para se referir ao linguajar das onças - “jaguaretê” significa onça e “nhenheng” seria uma “desinência verbal” (Campos, 2010CAMPOS, Haroldo de (2010) A linguagem do Iauaretê. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva., p. 61) que remete ao ato da fala. Sobre os últimos termos presentes na citação destacada, Erich Soares Nogueira lembra o ponto da pesquisadora Suzi Sperber, segundo a qual haveria muitos termos em tupi - língua ignorada pela maioria dos leitores brasileiros - que poderiam ser confundidos com ruídos desconexos. Assim, “a autora propõe uma tradução para essa cadeia sonora”, a saber: “Sim. Saudação. Eu. Você me fez cair-nascer. Você se ofendeu. Deve de ser matar índio. Saudação. Oh Oh não. Oh. Oh. Sim sim sim sim. Sim sim sim sim sim” (Sperber apud Nogueira, 2013NOGUEIRA, Erich Soares (2013). A voz indígena em “Meu tio o iauaretê”, de Guimarães Rosa. Nau Literária, Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan./jun. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/H7snSH >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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, p. 4), o que também teria feito Walquíria Wey, estudiosa da Universidade Nacional Autônoma do México, que traduziu o conto de Rosa ao espanhol e propôs duas leituras possíveis para a passagem referida, quais sejam: “Você fez um buraco em mim, me feriu. Como me matas, não não sei por quê. Como, parente de minha mãe” (Wey apud Nogueira, 2013NOGUEIRA, Erich Soares (2013). A voz indígena em “Meu tio o iauaretê”, de Guimarães Rosa. Nau Literária, Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan./jun. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/H7snSH >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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, p. 4). Na segunda, como explica Nogueira, a expressão “você me feriu também poderia ser simplesmente eu embarco” (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Erich Soares (2013). A voz indígena em “Meu tio o iauaretê”, de Guimarães Rosa. Nau Literária, Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan./jun. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/H7snSH >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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, p. 4). Segundo Nogueira, Wey conclui que há nas passagens em tupi da fala de Macuncozo um “eco que ressoa no vazio deixado pela própria extinção da cultura do narrador” (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Erich Soares (2013). A voz indígena em “Meu tio o iauaretê”, de Guimarães Rosa. Nau Literária, Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan./jun. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/H7snSH >. Acesso em: 14 nov. 2016.
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, p. 4). Ora, parece que, mesmo testando as mais variadas possibilidades da língua tupi para efeito de possível tradução da passagem, o trecho continua a tocar a ininteligibilidade, reforçando o ponto já salientado por Haroldo de Campos.

Porém, há outra característica da articulação entre linguagem e ruído nesse conto para a qual vale chamar a atenção. O protagonista deixa de ser caçador de onça ao conhecer e se apaixonar por Maria-Maria, onça fêmea, encontro que ocorre da seguinte maneira: “Eh, ela rosneou e gostou, tornou a se esfregar em mim, mião-miã. Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhenhém” (Rosa, 2001ROSA, João Guimarães (2001). Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, João Guimarães. Estas histórias. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 208). A partir dessa passagem, Campos conclui que “jaguanhenhém” seria o termo usado por Macuncozo como transcrição do “‘pensamento’ da onça” (Campos, 2010CAMPOS, Haroldo de (2010) A linguagem do Iauaretê. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva., p. 61). Ou seja, trata-se de uma espécie de linguajar limítrofe entre homem e animal que, de um lado, aponta para metamorfose do homem em bicho, mas, de outro, e diferentemente do que foi colocado até agora, remete à possibilidade de o animal adquirir uma linguagem - para além do ruído que lhe é próprio emitir - ou pensamento capaz de contatar o humano, como aquele que permite Maria-Maria se comunicar com Macuncozo. Ou seja: na relação de Macuncozo com Maria-Maria, entre homem e animal, há dois processos concomitantes: aquele no qual o protagonista desprende-se do seu lógos e vai à phoné, tornando-se bicho ao ficar nu, de cócoras e resbunando como uma onça; e o segundo, no qual Maria-Maria, a onça amada pelo onceiro, tem seus bramidos e ruídos agraciados por uma capacidade de ser racional, de ter pensamento e, finalmente, de possuir uma linguagem ao falar com o humano. O “jaguanhenhém” é o instrumento que elabora a articulação desses dois movimentos.

Entre “ó”, “ai” e “jaguanhenhém”

Ora, assim como o “jaguanhenhém” rosiano, o “ó” de Ramos marcaria o advento do ruído, dos bichos, do material em meio à linguagem, sendo esta, por sua vez, uma especificidade da cultura humana, o modo como o homem abandona o “estado de natureza”. Mas “ó” representaria também a ida do material ao cultural, como acontece em Rosa? Isto é, os animais, a partir do “ó”, poderiam adquirir o que seria privilégio do humano, como Maria-Maria angaria um pensamento/linguagem? Quando a narrativa evoca o “ó”, ela deseja uma expressão que cresça “também nos bichos”, mas o movimento contrário não é realizado em Nuno Ramos por um motivo muito específico sobre o qual gostaríamos de nos deter, considerando a separação homem e animal nessa obra.

Em determinada passagem, Ó propõe que aquilo que diferencia o homem dos animais é a capacidade de escolha do humano, uma vez que os bichos “cumprem apenas, em linha razoavelmente reta, a lista de suas alternativas, sem diferenciá-las demais” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 63). (A escolha a que se refere Ramos diz respeito à possibilidade exclusivamente humana de optar por perder ou ganhar tempo, mas o modo como o autor a emprega a torna completamente similar à ideia do juízo que se instaura pela abertura de um vazio, de um possível, ou seja, de um não condicionamento do espírito pelo corpo que permitiria espaço à dúvida e, logo, à escolha.) A temática da animalidade, especialmente relacionada ao condicionamento do ser pela matéria, retorna quando Ó trata da velhice humana, qualificando-a como a “incapacidade de distanciar-se dos próprios automatismos o que faz com que velhos humanos lembrem animais muito velhos” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 127). O tema será ainda retomado em sentido próximo no fragmento “Galinhas, justiça”, o qual tem seu início com a especulação acerca da burrice desses animais, colocando-os como vítimas de um mecanismo de seu próprio corpo, que os faz se comportar “como alguém com um tique nervoso anônimo, mas comum a toda espécie. [...] Pois as galinhas”, continua o texto, “como tantos outros bichos, formam logo legião, mal conseguindo elevar-se a um significado próprio” (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 74). A passagem também compara tais animais às multidões, ressaltando como as aglomerações humanas parecem, aos olhos do narrador, a melhor imagem do inferno, o que ele associa à triste condição das galinhas, uma vez que são submetidas pela indústria de alimentos a viverem amontoadas (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 78). Essa situação, como confessa o narrador, incomoda-o e o impele ao um sentimento de compaixão, que ele classifica como um “grau mínimo de identificação” em relação aos viventes não humanos, no caso, as galinhas. Diz o texto:

No entanto, mesmo neste grau mínimo de identificação, o sofrimento animal incomoda. E mais do que a ameaça ou efetivação da morte, é a compressão massiva de um largo número de indivíduos num espaço exíguo que parece insuportável. A multidão, tornada coisa física, peso e matéria, torna-se também repugnante - acho mais fácil ver cortado o pescoço de uma galinha do que observá-las enjauladas. Talvez seja apenas num momento como este, num estádio de futebol ou numa passeata, sufocados por quem também nos sufoca, que percebemos nossa dependência da atmosfera, nossa troca de umidade com o ar que nos circunda, a samambaia de nosso pulmão procurando gotículas suspensas (Ramos, 2008RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras., p. 78).

Como atestam os exemplos citados, é possível dizer que Ó elabora a diferença entre homem e animal postulando este como um ser completamente condicionado por seu corpo, seus instintos e necessidades fisiológicas, enquanto o homem seria a descontinuidade entre cultural e natural, ou seja, entre necessidade e vontade, o que o livraria do comportamento automático. Não completamente escravo ou unido à matéria, portanto, o homem pode se abrir à dúvida e à possibilidade de escolha, ao descompasso entre palavra e coisa, oscilando entre corpo e linguagem, abdicando desta para ir àquele, mas também acessando a cultura quando lhe convier, fazendo uso da palavra, mesmo com a consciência da incapacidade desta de totalizar a coisa referida. Devemos lembrar que, no trecho de caráter mitológico citado por nós, Ó havia qualificado a não cisão entre matéria e linguagem como uma língua una e material que os homens falavam desde o início dos tempos, isto é, a língua à qual a própria natureza estaria inevitavelmente atada (ainda que submetida à transformação), e em algum momento teria se instaurado a cisão entre palavra e coisa, própria do homem como ser linguístico. Poder-se-ia presumir, com isso, que os animais ainda estariam nesse estádio, e a natureza, para eles, seria um grande livro, ou o contrário: toda cultura seria absolutamente natureza, havendo, finalmente, indistinção entre coisa e outra: a voz seria sua linguagem, assim como única linguagem a que eles possuem acesso é a própria voz, seus mugidos, latidos, resbunar etc.

É interessante notar como há uma surpreendente concordância entre essa despretensiosa mitologia acerca da separação entre homem e animal presente em Ó com aquela propalada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, especialmente na obra Infância e história, de 1978. Segundo o pensador italiano:

Os animais não entram na língua: já estão sempre nela. O homem, ao invés disso, na medida em que tem uma infância, em que já não é sempre falante, cinde esta língua una e apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, de dizer eu. [...] Somente porque existe uma infância do homem, somente porque a linguagem não se identifica com o humano e há uma diferença entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isso o homem é um ser histórico. Pois a língua pura é, em si, anistórica, é, considerada, absolutamente, natureza [...] Imagine-se um homem que nascesse já provido de linguagem, um homem que fosse já sempre falante. [...] Como a besta, da qual Marx diz que “é imediatamente una com a sua atividade vital”, ele se confundiria com esta e jamais poderia opô-la a si com objeto (Agamben, 2008aAGAMBEN, Giorgio (1978/2008a). Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 64).4 4 Em 1995, em um texto em homenagem a Guy Debord, Agamben volta a reafirmar essa teoria quando afirma ser o homem “o único animal que se interessa às imagens enquanto tais”, pois “os animais interessam-se bastante pelas imagens”, mas somente “na medida em que são enganados por elas”. Explica melhor o filósofo: “podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele serpa ebgabadi” (Agamben, 1995). Por isso o homem vai ao cinema e aprecia a pintura, pois ele é o único a se interessar pela cultura desvinculada da natureza, da funcionalidade. Tal abordagem também é verificável na obra do autor exclusivamente dedicada ao animal. Para tanto, ver Agamben (2004).

Antônio Vieira, em passagem sublinhada por nós, já havia chamado a atenção para a condição in-fante, ou seja, não falante do animal humano, que deveria, para tanto, buscar se unir ao Verbo para abandonar sua própria animalidade; vale lembrar também que a ideia de os animais serem espécie de máquinas em virtude de seu condicionamento à matéria, enquanto o homem é aquele que se libera das condicionantes, obtendo espaço para a dúvida, é um ponto desenvolvido por René Descartes n’O discurso do método.5 5 Na quinta parte dessa obra Descartes diz: “O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo (os animais) quanto autômatos diferentes, ou máquinas que se movem, o engenho dos homens pode fazer só empregando muito poucas peças, em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias, e todas as demais partes que há no corpo como uma máquina que, feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens” (Descartes, 2011, p. 93-94). De todo modo, resta-nos sublinhar que a inferência agambeniana poderia muito bem ser a inspiração da irreverente teoria de Nuno Ramos acerca da origem da linguagem humana enquanto cisão entre cultura e natureza. E nesse mesmo sentido seguem as demais formulações de Agamben, uma vez que o animal está irreversivelmente atado à língua natural, ou seja, seu lógos é uma phoné, ou sua phoné é o seu lógos, enfim, sendo o homem aquele que, como dito, pode oscilar entre o semiótico e semântico, forma e essência, voz e linguagem e, logo, cultura e natureza.

No texto “O fim do poema”, Agamben nota que uma das principais marcas da poesia seria o enjambement, caraterizado, por sua vez, como a descontinuidade entre semiótico e semântico, ou melhor, um hiato entre o “som e o sentido”, conforme a formulação de Paul Valéry (Agamben, 2008bAGAMBEN, Giorgio (2008b). O fim do poema. Tradução de Sérgio Alcides. Revista Cacto, São Paulo, n. 1.) citada pelo italiano. Portanto, a poesia seria a maneira pela qual o homem pode experimentar com maior intensidade essa lacuna entre phoné e logos, que é a base de sua constituição enquanto espécie. E é justamente pela atividade poética, engendrada pela força do “ó”, que Nuno Ramos toca esse mesmo descompasso, uma vez que no “ó” se inscreve um enjambement. Atento, no entanto, para a presença da dicotomia natureza e cultura que se coloca nesse hiato, o “ó” implica, igualmente, a impregnação da racionalidade humana pelos gritos dos bichos, o atravessamento do saber pelo não saber, do racional pelo irracional, o que impediria um comando totalizante e autoritário da natureza pela cultura, da voz pela linguagem, como teríamos em Antônio Vieira.

Porém, como os bichos não teriam a possibilidade de uso da palavra ou qualquer atividade racional, capacidade de escolha ou juízo, sendo apenas obedientes de sua própria engrenagem corporal - jamais seriam capazes de realizar algo como o enjambement -, a identificação mínima entre homem e animal que resta em Ó é o sentimento de piedade pelas galinhas, uma vez que, sendo burras e incapazes de pensar, provavelmente elas teriam somente a possibilidade de sofrer; afinal, como já queria Aristóteles, a voz é capaz de manifestar o gozo, mas também a dor. E o homem, único apto para discernir entre o bem e o mal, oferece seu lamento ao reconhecer a forma pela qual trata esses bichos, especialmente quando os subjuga a seu comércio. A “identificação” de Nuno Ramos com o animal se dá, portanto e finalmente, através de um atributo que o próprio texto reconhece como exclusivamente humano, a saber: a capacidade de discernimento entre bem e mal, justo e injusto, ou seja, a racionalidade, realizada sintomaticamente numa passagem intitulada “Galinhas, justiça”. Com ela o homem, no caso, o narrador de Ó, torna-se capaz de desvendar e confessar a monstruosidade de sua própria espécie, bestialidade, aliás, insuperável pelos viventes não humanos. Movimento este que não deixa de se realizar no interior de um mesmo pensamento humanista, ou seja, aquele que classifica a razão como exclusivo privilégio humano, ainda que o livro manifeste a consciência da impossibilidade da justiça e, logo, da racionalidade, o que faz, não podemos esquecer, na exata mesma medida em que atesta a impossibilidade da linguagem e, por isso, intitula-se “ó”, convocando os animais.

Nesse ponto há uma notável diferença em relação ao conto de Guimarães Rosa, que pode ser mais bem compreendida se levarmos em consideração que Macuncozo, o onceiro protagonista da narrativa, era filho de uma índia do Xingu, integrante de uma tribo cujo animal totêmico era a onça. Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, para os povos indígenas amazônicos “os animais são ex-humanos, e não os humanos são ex-animais” e, por isso, os animais não humanos são capazes de intenção consciente, de racionalidade, pensamento. Ora, nesse sentido poderíamos pensar na saída de Maria-Maria de sua língua-instintiva para a comunicação com Macuncozo, pois o animismo indígena não seria, conforme Viveiros de Castro, uma projeção das qualidades humanas sobre os não humanos, como acontece com o “grau mínimo de identificação” de Nuno Ramos, mas uma “equivalência real entre as relações que humanos e não humanos mantêm consigo mesmos: os lobos veem os lobos como os humanos veem os humanos - como humanos” (Castro, 2002CASTRO, Eduardo Viveiros de (2002). A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify., p. 374).6 6 Vale notar que, enquanto Giorgio Agamben se ancora em Karl Marx para embasar a ramificação antropológica de seu estudo, como mostrado, Viveiros de Castro, evocando Marshall Sahlins, objeta frontalmente a antropologia contida no pensamento do autor de O capital ao diagnosticar seu antropocentrismo. Para este debate, ver Castro (2002, p. 375-376). E é dessa maneira que procede o conto “Meu tio o Iauaretê”, pois Maria-Maria, na perspectiva de Macuncozo, é um sujeito capaz de pensamento, não apenas um corpo biológico obediente a seus instintos.

Conclusão

Nuno Ramos inverte o esquema Antônio Vieira rompendo, através de seu “ó”, com a irrestrita submissão do corpo ao Verbo, o que realiza tomando apenas a linguagem, colocada pela tradição como acesso transparente à essência ou à síntese histórico-empírica (Foucault, 2007FOUCAULT, Michel (2007). As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes .), em consideração. O estampido do “ó” quebra a balança universal do mundo, privilégio concedido por Deus somente aos homens. Nesse sentido, o conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, seria um autêntico precursor de Ó, uma vez que nele temos igualmente a voz atravessando a linguagem, movimento este que, como salientou Haroldo de Campos, é característico da literatura moderna: bastaria tomar como exemplo a obra Finnegans Wake, de James Joyce, na qual há um “trecho zoomórfico, em que a linguagem se imbrica a nomes de bichos e insetos” (Campos, 2010CAMPOS, Haroldo de (2010) A linguagem do Iauaretê. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva., p. 63). Porém, se Ó realiza uma notável atualização de tal processo, articulando de maneira absolutamente singular o que poderíamos, em alguma medida, ler retrospectivamente em Rosa, acrescenta-se a importância da crítica que esta obra faz à submissão do corpo à norma em sua possível referência ao barroco. Daí um “ó” como “ais”, ou seja, como perene irrupção corporal e material de insubmissão a qualquer princípio normativo que se queira definitivo e universal, ou melhor: a proposição de uma linguagem, de uma expressão ou uma língua porvir que estabeleça uma relação não totalitária da cultura com a natureza. Mas, ao ser tomada em comparação com Guimarães Rosa, parece que a linguagem “ó” ganha uma sugestão a mais para sua constituição: pois, em vez de somente descer do metafísico ao físico, caberia produzir, outrossim, o movimento inverso - abandonar o humanismo em direção ao perspectivismo ao notar como os animais podem ter um saber, como a natureza é tecnologia. É uma lição que Rosa parece ter aprendido das culturas indígenas e que nos ensina que em todo “ó” há um “ai”, mas que, como mostra o “jaguanhenhém”, em todo “ai” há também um “ó”.

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    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000020pdf.pdf
  • 2
    Todas as citações do sermão de Padre Antônio Vieira reproduzidas neste artigo foram extraídas de uma versão do site Domínio Público, a qual não possui paginação.
  • 3
    Ao menos dois séculos antes de Vieira, Dante Alighieri, em sua Commedia, havia unido o cristianismo ao legado grego, especialmente ao vincular aristotelismo à teologia de Santo Agostinho.
  • 4
    Em 1995, em um texto em homenagem a Guy Debord, Agamben volta a reafirmar essa teoria quando afirma ser o homem “o único animal que se interessa às imagens enquanto tais”, pois “os animais interessam-se bastante pelas imagens”, mas somente “na medida em que são enganados por elas”. Explica melhor o filósofo: “podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele serpa ebgabadi” (Agamben, 1995AGAMBEN, Giorgio (1995). O cinema de Guy Debord. Tradução de Antônio Carlos Santos. Conferência em Genève.). Por isso o homem vai ao cinema e aprecia a pintura, pois ele é o único a se interessar pela cultura desvinculada da natureza, da funcionalidade. Tal abordagem também é verificável na obra do autor exclusivamente dedicada ao animal. Para tanto, ver Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio (2004). The open: man and animal. Translation by Kevin Attell. Stanford: Stanford University Press.).
  • 5
    Na quinta parte dessa obra Descartes diz: “O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo (os animais) quanto autômatos diferentes, ou máquinas que se movem, o engenho dos homens pode fazer só empregando muito poucas peças, em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias, e todas as demais partes que há no corpo como uma máquina que, feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens” (Descartes, 2011DESCARTES, René (2011). Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes ., p. 93-94).
  • 6
    Vale notar que, enquanto Giorgio Agamben se ancora em Karl Marx para embasar a ramificação antropológica de seu estudo, como mostrado, Viveiros de Castro, evocando Marshall Sahlins, objeta frontalmente a antropologia contida no pensamento do autor de O capital ao diagnosticar seu antropocentrismo. Para este debate, ver Castro (2002CASTRO, Eduardo Viveiros de (2002). A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify., p. 375-376).
  • Este trabalho foi realizado com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2017
  • Aceito
    21 Jan 2018
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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