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Os gênios perante a medicina: Nietzsche* * Publicado na revista Carioca . Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1938, p. 12 e 60.

Resumo

Explorando dados da biografia e da correspondência de Nietzsche, o autor coloca em relevo o modo como o filósofo lidava com sua própria saúde. Portador de uma enfermidade que lhe levava a sofrimentos desesperadores, Nietzsche teria ensaiado todos os métodos terapêuticos para curar-se a si próprio. Dotado de um organismo hipersensível, os padecimentos do solitário hipocondríaco cessariam no momento em que seu gênio finalmente penetrou na loucura.

Palavras-chave
Nietzsche; saúde; doença; solidão; loucura

Abstract

In exploring Nietzsche´s biography and correspondence dates, the author highlights the way the philosopher dealt with his own healthy. Having an illness that caused him desperate sufferings, Nietzsche would have try all therapeutic methods to cure himself. Endowed with an hypersensible organism, the woes of the lonely hypochondriac man would end at the same time when his genius finally entered the madness.

Keywords
Nietzsche; healthy; illness; solitude; madness

Friedrich Nietzsche, como já havia dito Zweig, foi "um lutador solitário, sob o tempestuoso céu de seu destino".

Foi o gênio da solidão: viveu afastado do mundo, fora do mundo, isolado num quarto de hotel ordinário, sem amigos, sem parentes, sem carinhos, sem conforto, num egocentrismo selvagem.

Vemo-lo assim durante toda a sua vida. Basiléia, Sils-Maria, Naumburg, Nice, Sorrento e muitos outros lugares da Alemanha e da Itália, são apenas refúgios momentâneos, simples experiências de clima, porque a aversão à chuva, ao vento, ao frio, à nebulosidade, era um imperativo do seu organismo hipersensível.

Nietzsche não pretendia conhecer as cidades onde pousava. Interessava-lhe apenas a condição meteorológica. Só o barômetro e o termômetro mereciam a sua atenção.

Apesar de viver na sombra, entre as paredes de um quarto, isolado de tudo e de todos, esse homem singular, com magnifica aparência de robustez, filho de um sadio pastor protestante, oriundo, pelo lado paterno de uma família de rijos poloneses, e pelo materno, de excelentes varões germânicos - foi sempre um fanático da luz, dos dias claros, dos céus limpos, das noites estreladas e tranquilas.

Nietzsche era alto, espadaúdo, com um peito saliente de atleta, fartos cabelos castanhos, bigode espesso a cobrir-lhe a boca, fronte convexa e ampla, olhos profundamente escuros.

Mas esta ostentação de robustez era toda falsa, toda aparente.

Os seus sofrimentos eram desesperadores. Os olhos de míope mal viam, através dos grossos cristais das lunetas, as próprias letras que vertiginosamente lançava no papel durante horas seguidas, sob a luz fortíssima de uma lâmpada. E, mesmo assim, com "seis sétimos de cego", escrevia dia e noite, como se o tomasse furioso delírio.

As consequências desse esforço brutal eram dolorosamente aflitivas.

Sobrevinham-lhe cefalalgias terríveis que o desesperavam. Tinha insônias tormentosas. Os intestinos, apesar de uma dieta implacável, nunca funcionavam, detidos por uma inércia perigosa. As câimbras de estômago eram um martírio permanente. E para tudo isso, mantinha no seu pobre aposento um armário de tóxicos!

Era uma série infernal de calmantes e hipnóticos que iam desde o bromureto à morfina.

Vivia num circulo vicioso: ‒ Conseguia dormir à custa de doses incríveis de cloral; mas acordava com o estômago avariado pelo veneno que ingerira. O seu suplício era, então, pior ainda! E durante seis, oito dias, entre dores pavorosas, procurava acalmar os órgãos em revolta.

Suportava toda essa tortura diabólica, sozinho, abandonado, isolado no seu leito, sem uma criatura que o amparasse, que o trata-se; sem ninguém na vida!

***

Durante dezesseis anos viveu assim, sempre assim. Jamais permitiu que um médico entrasse no seu aposento; jamais aceitou um conselho para se submeter a tratamento; e ensaiava todos os métodos terapêuticos, na esperança de se curar por conta própria.

O sofrimento tornava-o cada vez mais sombrio, mais afastado do mundo, insociável, mudo, retraído, ignorado, na ânsia de um isolamento maior, de uma solidão maior.

Só os livros denunciavam a sua existência de pária intratável; e por vezes, raríssimas vezes, em alguma carta a alguém que já o esquecera ou aos seus editores, contava um ou outro incidente da sua vida de dores atrozes.

Em uma dessas cartas, ele confessa a sua desdita:

"Em todas as épocas de minha vida, o excesso de dor foi monstruoso para mim!".

Noutra missiva, ao seu velho editor, teve essas doloridas expressões:

"Uma pistola é para mim, atualmente, um pensamento consolador. Por certos indícios, parece-me próximo um ataque cerebral que me trará a liberdade".

Ao mudar sua residência para a Itália, teve momentos em que pensou que tudo mudaria no seu destino de aflições. O doce clima de Sorrento inebriava-o. O seu hino "Ao Sul", à luz, ao sol da Itália, é um cântico soberbo de alegria, de entusiasmo, de ternura imensa.

Mas, o seu organismo já não podia resistir a tantos tormentos; e o isolamento, que fora a sua única preocupação, se tornava, enfim, uma lamentável amargura.

"Oh! Solidão! Solidão! Minha pátria!" é o lamento que lhe sai da alma asfixiada.

Demais, Nietzsche bradava, então, contra o abandono em que jazia. Ninguém mais ouvia a sua frase sublime; nenhum amigo o procurava; os próprios editores recusavam os seus livros que eram como vergastadas ferozes nos homens e nas instituições germânicas.

O abandono exasperava-o cada vez mais. E são desse tempo, dos seus últimos meses de insano trabalho: "Zaratustra", "Ecce homo", "O anticristo", verdadeiros lampejos fulminantes da sua inteligência.

Além disso, estava pobre, consumira todas as economias, enquanto pelo seu quarto se acumulavam montes e montes de manuscritos, devolvidos pelos editores apavorados com as rajadas arrasadoras do seu gênio.

As suas queixas eram sempre mais dolorosas:

"Sempre o mesmo silêncio da solidão! É mais terrível do que se pode conceber, e faz sucumbir mesmo os mais fortes! E eu não sou o mais forte. Parece-me, às vezes, que estou ferido de morte!".

Os seus sofrimentos chegavam, afinal, ao ultimo limite, à extrema tensão, como um fio metálico excessivamente distendido.

Um dia, num esplêndido dia de outono, Nietzsche teve a ultima vibração da inteligência e do raciocínio. A chama do seu cérebro formidável extinguiu-se de súbito, tal como ele previra meses antes.

E bruscamente, sem transições, o gênio que assombrara o mundo pelas concepções mais fortes e mais lucidas, penetrou na esfera tenebrosa da loucura!

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    Publicado na revista Carioca . Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1938, p. 12 e 60.
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    Aurélio Pinheiro (1882-1938). Cronista e escritor brasileiro. Autor de Macau (1930) e À margem do Amazonas (1937).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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