Acessibilidade / Reportar erro

A visão afirmativa de Nietzsche na Segunda Consideração Extemporânea* * Tradução de Saulo Krieger.

Nietzsche’s Affirmative Vision of History in the Second Untimely Meditation

Resumo:

A Segunda consideração extemporânea geralmente é tida em conta por filósofos e historiadores, em razão de sua crítica ao que Nietzsche classifica como “doença histórica”, (“historische Krankheit”). Isso por uma boa razão: a crítica de Nietzsche tem como alvo não apenas a famosa tríade composta por historiadores monumentais, antiquários e críticos, mas também suas modalidades contemporâneas em historiografia e teleologia científicas. O que frequentes vezes é desconsiderado é que o próprio Nietzsche expõe - ainda que numa retórica altamente estilizada - uma concepção afirmativa da história. Essa concepção, como eu proponho, faz o leitor retornar ao enunciado que inaugura o livro, qual seja, o Ceterum Censeo, de Goethe. A demanda de Nietzsche de que a história serve à vida é uma nova aplicação da teoria de Goethe do crescimento morfológico como consequência de forças polares concorrentes para o reino da história. Uma vez que Goethe tinha os organismos vivos como a crescer por meio de forças em concorrência, também Nietzsche entendia que os indivíduos e culturas cresciam por meio de uma história considerada, acima de tudo, uma espécie de arena competitiva em que se expressam impulsos antagonistas.

Palavras-chave:
história; afirmação; Goethe; vida; competição; agon

Abstract:

The second Untimely Meditation is usually regarded by philosophers and historians for its critique of what Nietzsche labels ‘historische Krankheit’. This is for good reason, as Nietzsche’s critique not only targets the famous triad of Monumental, Antiquarian, and Critical historians, but also his contemporary fashions in scientific historiography and teleology as well. What is too often overlooked is that also Nietzsche exposits -- albeit in highly-stylized rhetoric -- an affirmative vision of history. This vision, I argue, returns the reader to the opening sentence of the book, namely, the Ceterum Censeo from Goethe. Nietzsche’s demand that history serve life is a novel application of Goethe’s theory of morphological growth as a consequence of polar competing forces to the realm of history. As Goethe thought living organisms grow by means of intrinsic competitive forces, so Nietzsche thought individuals and cultures grow by means of a history that is, above all, considered as a sort of competitive arena in which to express antagonistic drives.

Key-words:
history; affirmation; Goethe; life; competition; agon

Com a publicação de Sobre a utilidade e da desvantagem da história para a vida (1874), Nietzsche passa a criticar quase toda e qualquer modalidade com que em seu tempo se exercia a filosofia da história, desde as de historiógrafos objetivistas, como Mommsen e Ranke, a românticos acríticos, passando por darwinistas científicos, por historiadores sociológicos das escolas marxistas, por monumentalizadas idólatras, por críticos destrutivos, por antiquários de muito anseio, por construtores de visões teleológicas de mundo. Suas conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino (1872) escarneciam da educação especificamente histórica, que seria inimiga de uma cultura propriamente florescente. A Primeira consideração extemporânea (1873), sobre David Friedrich Strauss, desancava o impulso historicizante por trás da erudição teológica, já que tal impulso se mostrava ignorante das implicações míticas, simbólicas e culturais da religião cristã. Seus esboços de anotações sob o título de Nós, filólogos (1875) revelavam-se igualmente impiedosos contra os filólogos tradicionais, fossem eles os Wortphilologen [filólogos da palavra] ou os Sprachphilologen [filólogos da língua].1 1 O autor se refere à disputa entre duas correntes da filologia alemã. A primeira, dos Wortphilologen, liderada por Gottfried Hermann; a segunda, dos Sprachphilologen, liderada por August Boeckh. [Nota dos editores] O seu termo abrangente usado para encapsular todas essas variegadas “Nachteile” [desvantagens] é “historische Krankheit”: doença histórica. O tema abrangente da filosofia de Nietzsche de 1872 a 1875 - mais ainda do que a tragédia - era o de que a cultura europeia revelava-se mais e mais enferma da e pela história. Europeu orgulhoso do século XIX, você está perdendo o juízo! Seu saber não apefeiça a natureza - pelo contrário, mata-a.” (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.313)

Tem aparecido uma série de estudos acerca dessas críticas, e nos últimos anos a eles acrescentei o meu próprio.2 2 Minha análise mais abrangente da filosofia da história de Nietzsche em HL está em Jensen, 2016. Cf. também Jensen, 2020, pp. 37-55. O aspecto que desejo aqui examinar não é o “como” ou “por quê” Nietzsche criticou essas várias vertentes da investigação histórica, mas sim o de “o que vamos fazer dessas críticas?” Considerando que Nietzsche foi ao mesmo tempo professor de história clássica na Basileia e crítico estridente de quase todas e qualquer instanciação dela, trata-se de examinar o significado disso para o pensamento que ele acalentava sobre história naqueles anos. Três respostas parecem prevalecer na literatura, mas nenhuma delas é a minha. Em primeiro lugar, tem-se afirmado que Nietzsche seria apenas um crítico acerbo e sem muito a oferecer à disciplina. O seu emprego na Basileia, na melhor das hipóteses, lhe era uma ocupação incômoda e, na pior, um abjeto fracasso. Essa visão talvez seja tacitamente presumida por toda uma gama de historiadores ou por alguns filósofos da história menos cuidadosos, desejosos de dar conta das críticas de Nietzsche sem muito se preocupar com o lugar delas no pensamento do filósofo num âmbito mais geral.3 3 Ver, por exemplo, Iggers, 1997, p. 8; White, 1978, p. 32. Em segundo lugar, há quem proponha que, ao longo de sua carreira, Nietzsche teria aderido a uma das três célebres “formas” enumeradas na Utilidade e desvantagem, quais sejam, monumental, antiquária ou crítica. Diferentes estudiosos esboçam preferências diferentes, e costumam defender sua interpretação citando algumas semelhanças com a posterior genealogia de Nietzsche.4 4 Propostas desse tipo são discutidas em diversos trabalhos recentes, entre eles o de Jenkins, 2014, pp. 169-181; Shepherd, 2016, pp. 81-89; Merrick, 2016, pp. 228-237; Romero Cuevas, 2011, pp. 145-170; Caysa, 2005; Reginster, 2000, pp. 40-62; Bambach, 1990, pp. 259-72. Mas se, por um lado, seria natural para o autor do Zaratustra haver retido algo de positivo da célebre tríade da Utilidade e desvantagem em seu pensamento tardio, interpretações desse tipo são suscetíveis de três objeções intransponíveis. Se Nietzsche de fato reteve uma das formas da Utilidade e desvantagem em sua obra tardia, por que razão ele simplesmente não o disse? Se Nietzsche de fato reteve uma das formas, por que motivo se deu ao trabalho de articular não apenas as vantagens na Utilidade e desvantagem, mas também e, talvez de modo tanto mais indelével, suas desvantagens? - parece algo inteiramente desprovido de sentido abraçar uma orientação cujas maiores deficiências você mesmo não apenas vai apontar, mas vai efetivamente criar. Se Nietzsche de fato reteve uma das formas, então por que ele conscientemente desconsiderou a Utilidade e desvantagem em termos gerais, por que intencionalmente subestimou a sua importância tanto para leitores como para seus editores, chegando a dissimular o seu título num anúncio à Genealogia da moral? O fato é que nenhuma das três formas de historiografia chega a sequer ser discutida como tal após 1875, muito menos sendo endossada. Consequentemente, pode-se dizer, a defesa de uma dessas três formas de história na Utilidade e desvantagem como método preferido do Nietzsche da maturidade já começa com o pé esquerdo, e depois jamais chega a acertar o passo. A terceira interpretação acadêmica da atitude crítica de Nietzsche para com as formas de história de seu século compreende-o como tendo abandonado a história em favor do período de uma década de um filosofar naturalista ou mesmo positivista, que ele então tornará a incorporar de modo novo somente à época de Para além de bem e mal (1886) e de Para a genealogia da moral (1887). Se a mim parece claro que as chamadas “obras do período intermediário” ou “do ciclo do espírito livre” são uma tentativa de romper com o seu pensamento anterior de diversas maneiras, e até mesmo com seus enquadramentos filológico e historiográfico - e isto só seria de se esperar para o período de afastamento de suas funções na Basileia -, essa interpretação não é capaz de explicar a referência quase constante de Nietzsche ao passado ao apresentar concepções de moralidade, da mente, da psicologia e de tudo o mais. Além disso, tal concepção se fundamenta no que eu tenho pela falsa suposição de Nietzsche não deter um método histórico único e afirmativo que ele articulou pela primeira vez em Utilidade e desvantagem.

Assim sendo, meu argumento neste artigo será o seguinte: em HL, Nietzsche critica o caráter equivocado de sua prática contemporânea como sendo ou filosoficamente vazio ou culturalmente perigoso. Mas, e este aspecto é frequentes vezes desconsiderado, Utilidade e desvantagem também apresenta uma recomendação afirmativa com relação ao que seria um programa historiograficamente saudável e revitalizado.5 5 Contra Gianni Vattimo, 2001, p. 38: “Ainda assim, tendo em vista o caráter claro e direto do ânimo destrutivo do texto, seus aspectos construtivos parecem ser, na melhor das hipóteses, um conjunto de demandas amplamente carentes de unificação”. Esse programa em parte alguma é anunciado como tal, e em vez disso é entretecido entre alguns dos leitmotifs centrais do livro. Eu aqui tenciono explicar o modo como se entretece, e também devo sugerir por que ele supera os pontos falhos das outras modalidades que critica. No que segue, chamarei a modalidade preferida de Nietzsche de seu modo “afirmativo” de história.

I. As fraquezas das formas históricas

Para permitir que se torne claro o caráter e a importância do modelo afirmativo da história de Nietzsche, seria o caso de articular, ao menos brevemente, os pontos falhos dos outros modelos disponíveis de história, tal como ele os arrola em Utilidade e desvantagem. As articulações mais indeléveis das atitudes históricas são o trio formado pelas histórias crítica, antiquária e monumental. Todas essas três modalidades têm suas vantagens. Suas desvantagens são o que nos interessa aqui. Para caracterizá-las de modo eficiente, podemos dividir suas deficiências nas categorias ontológica, epistemológica e existencial. No âmbito epistemológico, a história monumental encontra problemas quanto a exaustividade, precisão e objetividade ao recontar o passado.6 6 “Quanta diferença se teve de omitir para que ela tivesse aquele efeito vigoroso, quão violentamente se teve de comprimir a individualidade do passado em uma forma universal e aparar arestas em proveito da conformidade!” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261). A história monumental compreende em si duas falácias ontológicas. Ela estabelece identidades analógicas onde há apenas semelhanças algo distantes na realidade; e necessariamente constroi um effectus que ignora a causae.7 7 Para a primeira: “A história monumental poderá não precisar daquela veracidade toda: ela sempre aproximará, universalizará e, enfim, igualará o desigual, sempre enfraquecerá a diversidade dos motivos e ocasiões a fim de tomar, de forma monumental, o effectus às custas das causae, isto é, como algo exemplar e digno de imitação...” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261). Para a segunda: a construção de monumentos históricos é possível somente “... às custas das causae: [...] por não se importar com as causas, ela poderia chamar-se, com um pouco de exagero, um conjunto de ‘efeitos em si’, como eventos que provocarão efeitos em todas as épocas” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261-2). No âmbito existencial, a história monumental inspira uma esperança baseada em pretensões resultantes de suas narrativas ontológica e epistemologicamente problemáticas, a redundar ou num fanatismo de se pensar uma causa justificada por analogia com a precedência histórica ou, ainda, numa complacência em pensar que o presente funcionará bem uma vez que o passado antes assim o fez.8 8 Para a primeira: “com semelhanças sedutoras, ela [a história monumental] estimula os corajosos à temeridade, os entusiastas ao fanatismo...” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.263).; para a segunda: “Tenham eles consciência disso ou não, agem como se seu moto fosse: deixai os mortos sepultar os vivos” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.264).

O antiquarianismo traz consigo os mesmos problemas epistemológicos de precisão e exaustividade.9 9 A história antiquária “possui sempre um campo de visão extremamente estreito; ela não percebe a maioria das coisas e, do pouco que vê, vê de forma muito próxima e isolada” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.267). Metafisicamente, ele reifica suas descobertas como “objetos” sem reconhecer o processo de objetificação pelo qual tal descoberta poderia ser representada como tal: a objetificação pela qual um pedaço de metal seria uma arma ou um brinquedo, um pequeno pedaço de papel escorregadio seria um selo de postagem ou um rótulo de garrafa. Ele falha em reconhecer até que ponto a sua própria atividade acrescenta sentido ao que de outro modo seria dele desprovido, e dessa maneira confunde o valor como estando a residir na suposta plenitude de sentido do objeto e não no valor de sua própria capacidade de agir ao tornar o objeto provido de sentido. O antiquarianismo difere da história monumental principalmente no que diz respeito à seletividade do que representa como sendo o passado. Enquanto os historiadores monumentais selecionam o que valorizam como “grande”, o antiquário aceita todo e qualquer aspecto do passado como digno de preservação pela representação contemporânea.10 10 Qualquer objeto histórico “é, no final, tomado suavemente como, também ele, merecedor de reverência” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.267). A consequente desvantagem existencial do antiquário hiperativo é um juízo indiscriminado que se orienta para o passado de maneira míope a ponto de perder o seu sentido do presente; ao fracassar em avaliar alguma coisa hoje, ele “mumifica” o presente (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.268).

Também a história crítica tem lá suas desvantagens. Com o ceticismo que lhe é característico, ela despedaça sem muito se preocupar em como reconstruir. O que se critica não são tanto monumentos ou edifícios, e sim normas ossificadas de interpretação - tradições - que se coagulam em torno de abordagens do passado de há muito aceitas. Algumas dessas tradições merecem ser desconstruídas, porém outras são os eixos que, juntos, sustentam uma sociedade que necessita de sua narrativa histórica como sendo sua cola social. A desvantagem, como a de podar uma árvore de seus ramos frutíferos ainda nem bem crescidos, não será tanto a da forma em si, mas a da sua aplicação imprópria: “é difícil conhecer o limite para se negar o passado” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.270). A história crítica, ademais, corre o risco existencial de cindir o indivíduo ou a cultura de seu passado, ou ao menos de acreditar que tal seja possível. O historiador crítico procura “dar [a si mesmo] um passado do qual [ele] gostaria de descender em oposição ao passado do qual [ele realmente] descende” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.267).

Ainda uma vez, as três formas de história nos capítulos iniciais do Utilidade e desvantagem são, de longe, as mais discutidas. Mas isso não quer dizer que não haja outras, ou que suas críticas às demais não sejam igualmente importantes. As seções intermediárias e finais de Utilidade e desvantagem revelam preocupação com os dois modismos históricos mais importantes do século XIX, ainda que sejam radicalmente opostos - o modismo dos historiadores “científicos” e o dos filósofos que historicizam o “teleológico”. A fim de visualizar de maneira clara a própria marca “afirmativa” da historiografia por Nietzsche, será útil contrastá-la também com as falhas desses modos.

Nietzsche manteve-se numa espécie de anuência aproximada com a crítica aos historiadores científicos dos românticos de Jena de início do século XIX - os Grimm, os Schlegel, Schiller, Schelling -, e com a crítica da parte daquela que é sua periferia tanto geográfica quanto filosófica: de Herder e de Hegel. Segundo os historiadores científicos da “escola historicista” de Berlim - Niehbuhr, Ranke, Mommsen e seus acólitos, Humboldt, Schleiermacher, Savigny e Bopp -, todos são culpados por ter imposto aos dados brutos referentes a acontecimentos históricos um sistema filosófico que a tudo abrange, esteja ele fundado na linguagem do emotivismo de Herder ou na razão a priori de Schelling e de Hegel. Nas seções intermediárias da Segunda consideração extemporânea, porém, Nietzsche se põe a criticar a insistência da historiografia científica em deixar os “fatos falarem por si mesmos”. Isso implicou um realismo acerca da descrição precisa, da explanação como sendo um ordenamento perfeito e completo sob as leis vigentes, e a objetividade neutra, tudo a redundar numa naiveté irreflexiva resultante de modelos insustentáveis de uma capacidade de agir cognitiva. Seu pressuposto de que a mente registra passivamente, de modo direto e realista, o modo como as coisas acontecem, desconsidera os funcionamentos de uma vida mental de ampla complexidade, os quais mais produzem do que recebem o modo como as coisas podem se fazer providas de sentido.11 11 “Ou as coisas deveriam, em todo momento, em sua atividade, serem igualmente desenhadas, retratadas, fotografadas em uma passividade pura?” (HL/Co. Ext. II, 6, KSA 1.290). Para Nietzsche, nem a atividade da mente, nem mesmo a complexidade do mundo permite uma correspondência direta entre as representações do historiador e o mundo tal como se distancia dele. Isso não faz com que Nietzsche seja um relativista, como não faz com que ele negue que certas descrições de acontecimentos sejam, de algum modo, “melhores” do que outras. Sua posição em Utilidade e desvantagem está a presumir muito do que ele propôs no esboço imediatamente precedente, intitulado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. Quando aplicada diretamente à representação historiográfica, essa orientação epistemológica aproxima Nietzsche do que hoje pode ser chamado de “construtivismo”.12 12 Até onde sei, Martin Stingelin realiza a primeira discussão sistemática sobre o construtivismo na historiografia de Nietzsche. Ali, contudo, ele segue mais a posição da Genealogia da moral. Em meu próprio trabalho, acredito que HL represente melhor a posição construtivista, enquanto a GM se classificaria mais adequadamente como um antirrealismo epistemológico. A diferença chave entre as duas obras é que em HL o historiador está construindo o passado, entretecendo elementos factuais de um modo que os faça prover uma espécie de imagem “verdadeira”. Na GM, acredito que o esforço é substituído pela convicção de Nietzsche de que simplesmente não há fatos históricos, uma vez que todas as solicitações são puramente expressões de impulsos. Ver Stingelin, 1993, pp. 28-41; e Jensen, 2019, p. 249-72. Para uma defesa mais pormenorizada do construtivismo em geral, cf. Remhof, 2018. Essa posição sustenta que o passado é de fato real e não sujeito a mudança. O ato intelectual, da parte do historiador, de representá-la, envolve necessariamente ordenamento, enquadramento, seleção e ênfase a obedecer ao intuito de, de um modo ou de outro, torná-lo relevante. Os diversos conceitos generalizantes ou categorizadores, não raro compreendidos pelas obras históricas, não são eles próprios encontrados “no” passado, mas acrescentados pela atividade do historiador. Assim, tanto os termos ordenadores de uma narrativa quanto seus conceitos intrinsicamente generalizantes são construções que o historiador incorpora em sua abordagem. E essa atividade, para Nietzsche, não é científica, e sim artística. Enfatizar, trazer para um primeiro plano, arranjar, ilustrar, retratar, converter o mundano em algo crucial, trazer o turbilhão desorganizado para padrões reconhecíveis, converter a pletora de fatos possíveis numa investigação relevante sobre os que são essenciais - para Nietzsche isto é arte tanto quanto a pintura ou a composição musical. Ao que ele escreve:

Desse modo, pensar a história objetivamente é o trabalho silencioso do dramaturgo; ou seja, pensar tudo em correlação, tecer o particular em um todo - com o pressuposto geral de que se deveria colocar a unidade do plano nas coisas, caso já não esteja nelas. Assim o homem inventa o passado e o exorciza, assim seu impulso artístico se exterioriza - mas não o seu impulso à verdade e à justiça. Objetividade e justiça não têm nada a ver uma com a outra. Seria possível pensar em uma historiografia que não tivesse em si nenhuma gota de verdade empírica comum e, contudo, pretendesse receber o predicado de objetividade em seu mais alto grau (HL/Co. Ext. II, 6, KSA 1.290).

O último grande ataque conduzido por Nietzsche visou aos antípodas da historiografia científica de meados do século XIX, isto é, aos filósofos teleológicos da história, como são Hegel, Marx e, em especial, o representante seu contemporâneo, Eduard von Hartmann. Se boa parte da invocação ao nome de Hartmann por Nietzsche vem redundar em epítetos grosseiros, há em Utilidade e desvantagem uma crítica séria da historiografia teleológica, mantida ao longo de quatro linhas.13 13 A tese de doutorado que Nietzsche certa vez pretendeu realizar era também uma crítica aprofundada da teleologia de viés kantiano. Sobre esse esboço de juventude, ver Jensen, 2017, pp. 157-178. Em primeiro lugar, em vez de um corretivo racional à fé religiosa acrítica, a teleologia filosófica na verdade vem a ser uma espécie de garantidor disfarçado da escatologia cristã.14 14 “Não se esconde nessa crença paralisante […] o mal-entendido de uma concepção teológica cristã, herdada da Idade Média, a ideia paralisante da aproximação de um fim do mundo, de um juízo final temivelmente aguardado?” (HL/Co. Ext. II, 6, KSA 1.295). Quanto ao problema dos teleologistas antigos e cristãos, o valor ali estaria num “fim” idílico a justificar ou condenar as ações e acontecimentos do presente unicamente em relação àquele fim. Uma vez que aquele “fim” é apenas um ideal a refletir um certo momento cultural, ele se impregna na criação de novos valores quando estes são vistos como inconsistentes ou mesmo antiéticos em relação àquele que foi proclamado como o único fim desejável. Em segundo lugar, ao propor o fim da história como estando a refletir as condições dos dias de hoje, os teleologistas desculpam quaisquer iniquidades que viriam a ser observadas pelas gerações futuras. Com uma escravidão quase desenfreada, ausência de sufrágio feminino, disseminado colonialismo, poderia alguém presumir, com Hegel e Hartmann, que o século XIX tardio seria realmente a mais plena realização da liberdade autoconsciente? Em terceiro lugar, Nietzsche vê a fé no progresso racional da história como algo culturalmente perigoso, uma vez que ela pode levar a um caráter submisso da parte de alguns, e a egoísmo da parte de outros. Para os primeiros, é como se o processo da história fosse inexorável, e com isso não haveria razão em tentar modificá-lo.15 15 “Contivesse aquele resultado uma necessidade racional em si, fosse aquele evento a vitória da lógica ou da ‘Ideia’ - então que todos se ajoelhassem logo nos degraus dos ‘resultados’!” (HL/Co. Ext. II, 8, KSA 1.309). Para os últimos, a crença de que se está “do lado certo da história” justifica qualquer ação que possam optar por adotar. Lá onde os submissos cedem ao mundo a responsabilidade por si mesmos, os egoístas tomam para si a responsabilidade pelo mundo, ambos em nome de satisfazer uma suposta finalidade da história.

A crítica substancial final que percorre o Sobre a utilidade e a desvantagem da história envolve a redução da capacidade individual de agir ao modo de pensar coletivista ou “de rebanho”.16 16 “‘Grandioso’ será chamado então tudo o que moveu essa massa e, como se diz, possuiu ‘um poder histórico’. Mas isso não quer dizer confundir intencionalmente quantidade com qualidade?” (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.320). Se a ação do indivíduo é justa ou não, a atitude teleológica vem louvar ou condenar tão-somente no que diz respeito à subsequente popularidade disfarçada de justificação histórica. Essa atitude é hostil a Nietzsche à medida que subverte a formação, pelo indivíduo, de seus próprios valores com o intuito de aprovação ou condenação pelo rebanho.

II. Da crítica à afirmação

Voltando à questão que deu ensejo à nossa investigação: o que significa, para a filosofia de Nietzsche, ter ele criticado, em Utilidade e desvantagem, toda e qualquer orientação historiográfica contemporânea que prevalecia no século XIX? Podemos desse modo tê-lo por um crítico de todo negativo? Defenderemos uma ou outra dessas concepções como sendo a sua “preferida”? Ou suspenderemos a questão por algum tempo, até sua obra tardia, quando seu método histórico vier a assumir um caráter mais indelevelmente genealógico? Conforme eu referi acima, penso que cada uma dessas posições se revela problemática - e além disso, desnecessária, uma vez que Nietzsche de fato mantinha um modelo tão-somente afirmativo de história, que ele esposa nos últimos capítulos de Utilidade e desvantagem, ao modo de um contraste com suas formas anteriores, que foram rejeitadas. Uma vez que esse modelo encontra-se apenas sutilmente entretecido no texto, cabe a nós aqui explicá-lo. A título de clareza, devo observar que não pretendo propor que Nietsche esteja proporcionando uma forma de história mais verdadeira ou mais precisa, forma que teria mais fatos ou mais de certos fatos, uma forma mais abrangente, mais original, mais influente, ou com maior poder preditivo - uma forma que traria consigo as virtudes epistêmicas mais tradicionais dos campos profissionais de estudo. Não creio que esse modelo afirmativo de historiografia possa escapar aos problemas epistemológicos e ontológicos inerentes a todas as formas de representação do passado. Mas não penso que essa forma afirmativa venha a superar as lacunas existenciais das outras formas e desse modo venha a, de maneira bem-sucedida, “servir à vida”.

A história afirmativa de Nietzsche, se deve servir à vida, retorna tematicamente aos parágrafos que inauguram o livro, que enfatizam a demanda de Goethe para que a leitura da história seja condicionada pelos limites de uma atividade vivificada. Se o enunciado pode parecer um tanto inocente, quero aqui propor que a invocação de Goethe se deu para atrair a atenção do leitor não para uma filosofia da história - esta que Goethe em todo caso não alimentava -, mas para a concepção goethiana da vida biológica, que era então, ainda que não tão próxima quanto o que se tem hoje, algo bastante conhecido do estudo das ciências da vida. Por sobre um arco de um sem-número de escritos, Goethe acabou por compreender os organismos vivos, e mesmo os não vivos, como um processo formador de oposição polar, cuja atividade tensional produz formas mais complexas e intensificadas de si mesmos.17 17 Não obstante algumas versões anteriores, a teoria biológica de Goethe assume a sua máxima e melhor expressão em Sobre a formologia (Zur Morphologie) (1817). “Tudo o que aparece, tudo o que encontramos como fenômeno tem de sugerir seja uma dualidade original, capaz de ser fundida em unidade, seja uma unidade original capaz de se tornar uma dualidade. Separar o que está unido e unir o que está separado é a vida da natureza. É a eterna sístole e diástole, a eterna síncrese e diacrise, o inspirar e expirar do mundo em que vivemos, ao qual nos misturamos, e somos” (Goethe, XIII, 1994, 488).

Diferentemente de Kant, para quem o conflito e o crescimento de um organismo eram apenas uma ideia regulativa, Goethe traz o modo como as partes opostas das plantas realmente protagonizam um conflito e apoiam uma à outra, trocando energia vital à medida que emergem na plenitude. Uma expansão de potência em um organismo ou em parte de um organismo demanda um fator limitante ou uma contramedida em outro lugar. O entrejogo competitivo dessas partes é o que permite ao organismo florescer, tornar-se uma versão mais plena do que era anteriormente. Uma parte compensa a outra em nome da intensificação ou “Steigerung” [crescimento] do todo. Uma vez que a morfologia de Goethe rastreia essas mudanças, o cientista começa a “ver” o padrão intrínseco emergir até o ponto em que seja atingida a perfeita tensão harmônica entre todas as partes em oposição: é o que ele chama de Urphaenomen [fenômeno primordial].18 18 Para uma abordagem da interpretação teleológica por Goethe das ciências da vida, cf. Bortoft, 1996. “Um fenômeno originário não deve ser considerado um princípio do qual resulta uma miríade de consequências; em vez disso, deve ser visto como uma aparição fundamental, no seio da qual a miríade deve ser mantida” (Goethes BriefeGoethes Goethes Briefe und Briefe an Goethe, org. por Karl Robert, 6vols. Hamburgo: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1982., IV, p. 231). Mineralogicamente, as forças que produzem estalagmites e estalactites são competitivas, mas produtivas; biologicamente, a evolução das preguiças de dois e três dedos mostra a resposta dos organismos, no decurso de muitas gerações, não apenas a circunstâncias externas, mas também a impulsos internos;19 19 O caso é bem elucidado por Tantillo, 2001, pp. 47-56. mesmo a cor seria o entrejogo dinâmico de forças competitivas de sombra e luz a resultar na refração prismática (Cf. Sepper, 1988SEPPER, D. L. Goethe contra Newton: Polemics and the Project for a New Science of Color. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.). Goethe dramatizou a sua teoria em obras como Torquato Tasso, Wilhelm Meister e Fausto, nas quais os personagens epônimos não mudam em coisa alguma a não ser em se tornar versões intensificadas de si mesmos pela via ou de uma competição externa com outro personagem ou de uma competição interna entre impulsos psicológicos. A chave está em que o organismo vivo saudável não é meramente uma força em expansão - (Goethe rejeitava sobretudo o Bildungstrieb [impulso de formação] de Blumenbach) -, e sim torna-se cada vez mais intensamente o que sempre foi, mediante o agonismo competitivo de expansão e refreação.

O que a teoria da vida orgânica de Goethe tem que ver com a teoria da história de Nietzsche? - três coisas: método, conteúdo e consequência. Em primeiro lugar, discordo que o método da forma da história de Nietzsche siga a visão de intuição de Goethe. Conforme o dito acima, a orientação epistemológica de Nietzsche à época de Utilidade e desvantagem, tal como ele expressa sobretudo no contemporâneo Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, pode ser classificada como “construtivismo”, no sentido de que a mente constrói de maneira ativa uma visão conceitualmente relevante da realidade com base no material bruto que de outro modo seria um ruído sensorial incipiente. De modo específico, com a história o historiador constroi uma história relevante a partir de uma infinidade de eventos, objetos, pessoas e lugares possíveis. Essa construção opera num nível subintencional, resultando em tipos como são os historiadores monumental, antiquário e crítico. Tomando essa infinidade de acontecimentos passados, o historiador afirmativo intui o princípio interno que está a animá-los. Assim como um cientista morfológico goethano intui - tanto a contar de um sem-número de mudanças pela quais passa um organismo, bem como das variedades quase inifinitas que relacionam um organismo individual a seu tipo - um único e atemporal Urtyp [tipo original] ao modo de ideia universal imanente à toda a vida, da mesma forma, no pastiche das mudanças históricas - as intrigas políticas, os patifes e os heróis, as mudanças no cerne dos agentes com o passar do tempo -, o historiador afirmativo de Nietzsche intui tipos indeléveis que eles próprios não mudam, mas se tornam o que mais plenamente são ao longo do tempo. A história afirmativa não é uma questão de registrar as datas, os lugares e as causas corretamente. A contar de uma profusão quase infinita de detalhes, a intuição do historiador deveria estar sintonizada com a decifração tão-somente daquelas poucas características que, de um vulto, de um acontecimento ou de uma era, iluminam uma única singularidade, de maneira perfeita e completa, como se fosse um tipo duradouro.20 20 Quanto a esse aspecto, é óbvio que Nietzsche se põe particularmente próximo de seu colega Jakob Burckhardt. Sobre a relação entre eles, que é bastante complicada, ver os refinados estudos recentes realizados por Posani-Löwenstein, 2017, e Walter-Busch, 2012. Um estudo clássico continua a ser o de Gossman, 2000.

Metodologicamente, a história afirmativa intui o passado de indivíduos indeléveis considerados como tipos de vida passíveis de ser intuídos, imutáveis, que devem ser desafiados e, por fim, superados. Um olhar às atividades de Nietzsche como estudante em Leipzig e às suas primeiras publicações e conferências na Basileia revela alguns desses estudos.21 21 Entre diversos estudos, cf. Schulin, 2005, p. 33-58; Jensen, 2013, cap. 1-4. Suas primeiras publicações sobre Teógnis e Diógenes Laércio estão menos preocupadas com uma história perfeitamente precisa dessas figuras ou de suas obras, e sim mais com a construção de um Charakterbild [esboço de personagem] de cada qual. Diversos ensaios de Nietzsche sobre Sócrates e o retrato que dele faz em O nascimento da tragédia apresentam aproximadamente a mesma coisa: uma tentativa de, partindo da plenitude de fatos sobre sua vida e pensamento, destilar somente os aspectos salientes, com o intuito de erigir um exemplar - um tipo duradouro trans-histórico que Nietzsche chamará de tipo “racional” ou “científico” ou “socrático”. Na verdade, a dualidade entre apolíneo e dionisíaco no Nascimento da tragédia é referida como tendo nascido com o auxílio da intuição estética. No prefácio a seu A filosofia na era trágica dos gregos, Nietzsche o explica de maneira bastante explícita. No lugar de uma história “científica” dos pensadores pré-platônicos, ele nos diz: “Vou recontar a história de certos filósofos - de maneira simplificada [vereinfacht]: quero extrair de cada sistema somente o fragmento que é um pedaço de personalidade [Persönlichkeit] e que pertence ao que há de irrefutável e indiscutível [Unwiderleglichen Undiskutirbaren], aquilo que a História deve guardar. [...] A tarefa consiste em trazer à luz aquilo que devemos sempre amar e honrar, e que não pode ser roubado por nenhum conhecimento posterior: o grande homem [der große Mensch]” (PHG/FT, KSA 1.801-2). Em cada um dos casos, o empreendimento histórico é aproximadamente o mesmo: construir uma personalidade indelével mediante um realce intuitivo, um ato de trazer para primeiro plano ou para segundo plano, com isso ignorando ou enfatizando os detalhes de uma vida, das circunstâncias culturais em seu entorno, de modo que o que se apresenta é um Urtyp [tipo original] goethiano. O objetivo da historicização de Nietzsche não é nem explicar nem provar que as coisas “realmente eram assim” - não é ser preciso, exaustivo ou completo. Em vez disso, o objetivo está em iluminar um tipo que intuitivamente se possa, como ele afirma, “amar e respeitar”. E esse modo de história encontra seu lugar nos últimos capítulos de Utilidade e desvantagem.

Virá o tempo que conterá sabiamente toda construção do processo universal ou também da história da humanidade, um tempo em que não se levará em consideração apenas a massa, mas novamente o indivíduo, que formará uma espécie de ponte sobre a corrente desordenada do devir. Estes indivíduos não continuarão nenhum tipo de processo, mas sim viverão na sincronicidade e na atemporalidade, graças à história, que permite esse efeito conjunto; eles viverão como uma república de gênios, como certa vez relatou Schopenhauer; um gigante chama outro através de intervalos de tempo desérticos, impassíveis aos anões pérfidos e barulhentos que rastejam sob eles, continuando um diálogo superior. A tarefa da história é ser a mediadora entre eles e sempre dar oportunidade à criação do grandioso, emprestando-lhe força. Não, o objetivo da humanidade não se encontra no fim, e sim apenas nos seus exemplares superiores. (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.317).22 22 Nietzsche apresenta formulação semelhante em HL 2: “O que foi capaz de expandir e tornar mais belo o conceito ‘homem’ deve estar presente pela eternidade, para eternamente realizar esse feito. O pensamento fundamental da crença na humanidade expresso pela exigência de uma história monumental é o de que os grandes momentos da luta dos indivíduos formam uma corrente que os une, no decorrer dos séculos, na cordilheira da humanidade; que, para mim, o mais elevado de cada momento há muito ocorrido ainda é vivo, claro e grandioso” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.259).

Para implementar tal plano, a história tem de ser tomada das mãos de meros estudiosos e considerada, em vez, “o império da juventude” (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.324), daqueles tipos livremente criativos cujo encadeamento em direção ao passado ainda não é tão constritivo. A juventude se assoma contra os idólatras, contra os críticos, preservadores, contra os cientistas, teleólogos, em suma, contra todo o historiador que

Se o utiliza contra a juventude, para esta se adestar àquela maturidade de um egosímo almejado em todos os lugares, utiliza-o para romper a indisposição natural da juventude ao egoísmo viril-inviril por meio de uma luz transfiguradora, quer dizer, mágico-científica. Aliás, do que o sobrepeso de história é capaz se sabe muito bem: desenraizar os instintos mais fortes da juventude, como o seu fogo, repúdio, autoesquecimento e amor, abrandar o calor do seu sentimento de justiça, murchar lentamente seus desejos com os desejos contrários de estar rapidamente pronta, útil, fértil, pressioná-la para baixo ou para trás, adoecer a honestidade e polidez das sensações por meio da dúvida; ele é mesmo capaz de enganar a juventude em relação ao seu próprio belo privilégio de poder plantar, com inteira fé, um grande pensamento, e permitir que dele saiam outros ainda maiores. Um certo excesso de história é capaz de tudo, já vimos [...] (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.323).

Isso nos traz diante da segunda contenda, qual seja, a de que o modelo de vida de Goethe é aquele que, no entender de Nietzsche, o conteúdo adequado da história tem de se esforçar para satisfazer. O modelo de competição entre partes tem de ser adaptado das “partes do organismo” para os “participantes” numa abordagem histórica. Assim como a sístole e a diástole são antípodas polares cuja atividade mutuamente oposta é requerida para a saúde do organismo, o evento ou o vulto ou a cultura, no que tange à competência dos historiadores, deveriam ser apresentados como agon entre partes concorrentes. É desse modo que Nietzsche apresenta o dionisíaco somente em oposição concorrente ao apolíneo. E desse modo que Homero e Hesído são postos em Wettkampf [luta campal] (Nietzsche, 1870, pp. 528-540). E desse modo que alhures Homero é articulado como antípoda do misticismo mítico: o Estado grego é mostrado como exemplificação do agon em múltiplos níveis, e Schopenhauer, como adversário tipológico da cultura alemã.23 23 Tais eram os principais temas dos últimos três dos “Cinco prefácios a cinco livros não escritos”. Nietzsche primeiramente pensara em comercializá-los, mas depois os deu de presente de Natal para Cosima Wagner, em 1872. Heráclito e Parmênides são postos em justaposição competitiva como o mais florejado momento da era trágica dos gregos. O Nós, filólogos não opõe vultos históricos, mas historiadores e seus métodos em agon competitivo um com o outro, cada qual aspirando à posição dominante.24 24 Para um debate a respeito, cf. Raulet, 2000, pp. 185-202. E em Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, a principal lição é a de que o estudo da antiguidade deveria servir como baluarte contra correntes pedagógicas utilitaristas: “o máximo de conhecimento e educação possível - e desse modo o máximo de produção e necessidade possível - e desse modo o máximo de felicidade possível”(BA/EE, KSA 1.667).25 25 Uma visão sofisticada dessas ideias se encontra em Schnädelbach, 2000, pp. 169-183. Precisamente aquela combinação entre estatismo hegeliano, socialismo marxista, filistinismo straussiano, pessimismo hartmaniano, cienticismo comtiano e utilitarismo milliano, por cujas ramificações sobre a Alemanha de Bismarck da década de 1870 Nietzsche nutria tanta inamistosidade, tinha sua base de justificação na filosofia da história de cada pensador. Desfazer o mal-estar cultural presente é cultivar no jovem uma apreciação da capacidade da história de revigorar esse jovem com o agon competitivo mediante a grandeza do passado. Em momento algum Nietzsche apresenta vultos ou eras isoladamente, tampouco enceta a rota marxista para mostrar o crescimento desses vultos ou eras a partir de suas condições materiais. Procura sempre iluminar o cerne de vultos ou eras ou instituições como algo resultante da superação de uma luta entre oposição interna ou externa que, não obstante, era necessária para que aquele vulto ou era ou instituição se tornasse o que é. O que Niezsche tende a apresentar como algo degenerado são os aspectos da história que perderam o concorrente que lhe fazia oposição. Por exemplo, a força singular do racionalismo socrático veio a superar a inteira era trágica, para o grande detrimento da Grécia; a educação alemã contemporânea é um paradigma único de instrução cívica instrumental, no qual a tentativa de expressar impulsos antagonísticos é suprimida; as historiografias hegeliana e hartmaniana proporcionam apenas o monístico Weltprozess [processo universal], do qual a capacidade de agir de um indivíduo não pode escapar, muito menos com ele competir.

Dois bem conhecidos leitmotifs encontram-se sutilmente entretecidos a esse conteúdo goethiano: a noção de um “horizonte” e a de “força plástica”. “E esta é uma lei universal: uma coisa vivente pode ser saudável, forte, frutífera apenas quando limitada por um horizonte” (HL/Co. Ext. II, 1, KSA 1.251). Que Nietzsche de pronto venha a ilustrar esse princípio com a fronteira que divide o “reluzente e discernível” do “não iluminado e obscuro” é muito possivelmente uma referência à Zur Farbenlehre [Teoria das cores] (1810/40), que, com a mesma linguagem, argumenta em favor da expressão viva da cor. Assim como a vida da cor para Goethe seria uma propriedade emergente, resultante da competição dinâmica entre luz e escuridão, também a saúde é, para Nietzsche, uma propriedade a emergir numa parte, num organismo, numa pessoa, numa cultura, ou numa nação a resultar da competição dinâmica entre seus constituintes polares. De acordo com isso, o conteúdo da história afirmativa emerge do entrejogo de poderes do historiador, e isto desde o entrejogo entre abordagens concorrentes do mesmo fenômeno, entre contendores de uma cultura ou de uma nação numa disputa sobre o que realmente “conta” como seu passado. A forma ou configuração precisa e emergente de um organismo ou, aqui, a intepretação histórica assumida é quase que infinitamente variada, mas o papel de seu desenvolvimento é o mesmo: a expressão de um poder limitado por algum fator restritivo a fim de produzir a condição para o florescimento. Lá onde o fulgurante pôr-do-sol emerge do entrejogo momentâneo da luz radiante do sol à medida que ele refrata a terra escura, assim a história afirmativa apresenta aquele momento em que a expressão do historiador é posta a nu por sobre o que resiste a ela, seja este outra interpretação, sejam fatores que lhe rivalizam, seja uma tradição ou um valor por muito tempo alimentado, ou qualquer outra forma de restrição ou oposição. Só mesmo pelo entrejogo pode emergir o conteúdo afirmativo da história.

Com respeito à “plastische Kraft” [força plástica] (HL/Co. Ext. II, 1, KSA 1.251), Nietzsche introduz a noção logo depois de sua reflexão sobre a necessidade dos poderes da memória e do esquecimento. Assim como se tem com a noção do horizonte da expressão histórica, também aqui uma superpreponderância da memória ou do esquecimento é mostrada como a debilitar o indivíduo. O indivíduo que a tudo põe no esquecimento seria equivalente à horda de animais de pasto. O indivíduo que se lembra de tudo seria como o “verdadeiro discípulo de Heráclito”, que é incapaz de esquecer da particularidade radical e do vir-a-ser radical das coisas para formar conceitos comunicáveis que sejam gerais ou estáticos. Em ambos os casos, o remédio é o poder plástico não consciente a permitir ao indivíduo equilibrar os poderes da memória e do esquecimento em função de sua saúde. “Quero dizer, aquela força que cresce a partir de si mesma, de transformar e incorporar o passado e o estranho, de curar feridas, de substituir o que se perdeu e reconstituir a partir de si formas arruinadas” (HL/Co. Ext. II, 1, KSA 1.251). Vê-se a força plástica em funcionamento igualmente na leitura e escrita da história. O historiador que abraça todo e qualquer livro - seja para ler ou escrever - com o desejo insaciável de conhecer todo e qualquer fato, momento e lugar, presenteia-nos com um fanatismo hiperzeloso que jamais deixa o passado pelo brilho do sul radiante da produtividade do presente, sempre a ler sem nunca ele próprio se dando a ler. Aquele que, ao contrário, é de todo ignorante da história é simplesmente um tolo. Mas o leitor ou escritor que estuda o passado com um inato sentido de como reter somente o que é significativo para a sua vida, desconsiderando todo o resto, a fim de equilibrar as experiências positivas e negativas dos seus, a cultura dos seus, ou o passado de sua nação de um modo que lhes permite florescer no presente e no futuro, vindo então a esquecer sobre o resto - esse tipo de poder de plasticidade marca os que podem genuinamente usar a história para a vida.

Em terceiro lugar, eu discordo de que o modelo afirmativo da história deveria ser visto como consequência do fato de fomentar a expressão da vida. Uma vez que o historiador afirmativo revelou o cerne interno da personalidade tipologicamente ideal do indivíduo, o seu leitor assume para com ele uma postura existencial - uma espécie de diálogo de espíritos -, pela qual eles aguçam os seus próprios melhores poderes contra o desafio competitivo de uma grandeza histórica. Assim como o organismo biológico goethiano passa por uma intensificação ou “Steigerung” [crescimento] por meio da luta contra forças oposicionais, assim Nietzsche pensa a vida do leitor histórico como servida por seu embate com os grandes vultos do passado de um modo que produz um “Steigerung” [crescimento] semelhante. Onde uma única abordagem se faz empedernida ou uma única interpretação, dominante, o leitor da história já não é desafiado a pensar por si mesmo acerca do passado, mas sim a obedecer à ortodoxia historiográfica. Uma razão pela qual Eduard von Hartmann era tão perigoso envolvia a hegemonia de sua representação da teleologia no seio da cultura popular. Os leitores haviam abraçado a atitude fatalista que via a história como um único processo predestinado do qual não há escapatória nem oportunidade de, ali, aspirar a alguma coisa. Em razão dessa unilateral ausência de competição, a história de Hartmann provocou, como afirma Nietzsche, “a completa rendição da personalidade ao processo do mundo” (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.317). Em vez de eles próprios se renderem a um inevitável Weltprozess [processo universal] os leitores precisam olhar para o passado como uma exigência para fazer melhor, para sempre aspirar a algo melhor. A história deveria ser a pedra de amolar na qual o leitor afia os seus melhores poderes. E essa consequência existencial da história afirmativa vale não apenas para o leitor, mas também para o escritor. Também a vida do historiador é abastecida não simplesmente ao se acrescentar outro fato à pilha da história, mas o é no ato mesmo de lutar para superar interpretações dominantes. Em razão desse agon competitivo, a atividade da historicização de si mesmo auxilia na produção de um novo exemplar de grandeza para o futuro. Nessa medida, é de maneira bem-sucedida que a história serve à vida.

III. As vantagens da afirmação

Esse novo e afirmativo modo de história não deveria ser equivocadamente imputado a quaisquer dos dissimuladores já criticados por Nietzsche. Em oposição a historiógrafos científicos, a história não deve ser considerada apenas uma coleção de fatos descritivos ou de demonstrações explanatórias acerca do passado. A prova de alguma interpretação histórica que se mostre falha em avivar a atividade encontra-se, para todos os intentos e propósitos, morta. Assim, Nietzsche rejeita a demanda por objetividade do historiador científico não apenas como uma impossibilidade, mas como algo em si mesmo indesejável. Os fatos a ser descritos ou explicados devem, em vez disso, ser aqueles que apresentam uma conexão pessoal direta com a vida do historiador, devem ser os que impelem os interesses dos autores e leitores da história. Conduzida por seu interesse em competir com os tipos mais elevados, a atividade do historiador afirmativo não pode ser objetiva no sentido de ser ou “livre de valores” ou “neutra quanto aos valores” da história científica. Não como cientistas, mas como mediadores entre colegas gênios, os historiadores afirmativos julgam “de maneira justa” a partir de um reconhecimento honesto e aberto de sua relação pessoal com o passado, fazendo-o de forma serena com base na suprema confiança de estarem por sobre os insignificantes “anões tagarelantes”. A história afirmativa, por essa razão, é preferível em termos de servir à vida melhor do que os historiadores científicos, que tentariam ignorar ou suprimir as forças da vida que são necessariamente ativas em sua capacidade de agir.

Em oposição competitiva com visões de mundo teleológicas, a historiografia afirmativa demanda a livre capacidade de agir daqueles com potencial de grandeza para aprender com o conflito dinâmico, e crescer em tal conflito, travado com os que foram grandes no passado, e isto pelo tal exaltado “diálogo de espíritos”. Esse leitor sente as cadeias do passado - as condições históricas de sua vida -, mas isso apenas de maneira leve; acredita que só mesmo ele próprio, e não um “Weltprozess” [processo universal] guia a sua ação. Forças sociológicas, econômicas, psicológicas lhe são meramente desculpas que obstruem a sua capacidade de agir, sendo na verdade circunstâncias que lhe suscitam a ação. Aqui os impulsos individuais vêm dissipar as compulsões racionais de Hegel, as forças sociológicas de Marx e as influênicas místicas de Hartmann. Em contraste com todos eles, a história afirmativa de Nietzsche envolve um leitor que opera num reino de livre possibilidade, aguilhoada pela crença de que o curso de sua vida reside, em última instância, somente em suas próprias mãos. “Não um respeito pela história, mas sim [ele] deveria ter a coragem de fazer história.” (NF/FP 27[81]; KSA 7.611).

A história afirmativa, por fim, põe-se em oposição competitiva com a tríade formada pela história monumental-antiquária-crítica. Segundo Utilidade e desvantagem 9, o leitor correto da história não simplesmente converte em ídolo, não simplesmente retém ou preserva, e não simplesmente critica ou desconstroi. (E esse traço, ainda uma vez, vem combater a contenção frequente, segundo a qual alguma dessas três modalidades seria um ideal para Nietzsche). Afirmar o passado para o presente demanda habilidade em identificar o que é nobre e valoroso, como faz o historiador monumental, mas não o idoliza às expensas de seu próprio desenvolvimento. O “amor e respeito” que A filosofia na era trágica dos gregos (Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) conecta à sua reconstrução das personalidades dos pré-socráticos não é um tipo de amor adorador festivo ou sicofântico - e sim bem o oposto; o historiador afirmativo traz para o passado uma insígnia nietzschiana de amor, e esta insígnia demanda do amado uma espécie de força oposicional que pode servir para intensificar suas próprias melhores qualidades.26 26 Cf. Owen, 2017, pp. 137-157; Piazzesi, 2012, pp. 271-285. É o tipo de amor que anseia pela perfeição a partir da oposição, um amor que necessita de seus inimigos tanto quanto o inimigo necessita de amor. Assim como o historiador antiquário, o afirmativo buscará preservar e reter; mas ele o fará para reter tão-somente o que pode ser utilizado para intensificar o seu próprio caráter. Retidas serão só mesmo aquelas memórias, só mesmo aqueles registros do passado que possam servir ao modo de outros concorrentes para efeito de superação, não como lembretes nostálgicos dos “bons velhos dias”, e sim como uma espécie de desafio para fazer algo maior. O restante - algo contra o qual ele não pode competir de um modo que intensifique a sua atividade - é descartado como objeto que meramente tem de ser superado. O historiador afirmativo sem dúvida será crítico, mas vai demolir tão-somente para erigir algo novo. Aquelas normas constitutivas fossilizadas de tradições santificadas têm de ser desfeitas. Mas em vez da arbitrária desconstrução de todas as tradições ou de todos os valores que foram consequências de certas interpretações históricas, a atividade afirmativa do historiador é levada a criticar o que é mais forte e mais durador em seu esforço de as fortalecerem contra a referida desconstrução. O limite que o historiador crítico achou tão difícil de suportar é o limite mesmo que o historiador afirmativo requer como seu outro concorrente - a diástole para a sua sístole. A expressão histórica na qual cada um dos três casos encontra o seu horizonte por meio da luta com o passado é possibilitada pelo poder plástico. O historiador afirmativo é mais forte por ter lutado com o forte.

IV. Pensamentos concludentes

Se Nietzsche elaborou uma visão afirmativa da história em Utilidade e desvantagem, que é de 1874, por que motivo ele não a teria retido, doravante? O que aqui procurei esboçar apresenta assumidamente poucas conexões, se é que alguma, com o que o Nietzsche maduro propõe como modo de fazer história em Para a genealogia da moral. Em outro texto eu sugeri que a resposta giraria em torno de um deslocamento na ontologia do passado de Nietzsche, ocorrido em algum momento entre o final do projeto das Considerações extemporâneas e a Genealogia.27 27 Cf. Jensen, 2013, pp. 155-80. Para dizê-lo de maneira sucinta: aqui em Utilidade e desvantagem e em anos subsequentes, Nietzsche pensava o passado como ontologicamente real, mas impossível de ser representado à perfeição - daí a epistemologia construtivista que estive a propor acima. Na Genealogia, eu suspeito que Nietzsche tenha considerado o vir-a-ser de maneira mais radical quanto à impossibilidade de que os conceitos façam mais do que expressar perspectivas psicológicas sem referência no mundo real, posição esta que, segundo procurei fazer ver, é ao menos uma forma nascente de antirrealismo epistemológico acerca do passado.28 28 Ver também, Jensen, 2019, pp. 249-72.

Com um objetivo mais modesto aqui, meu propósito foi o de corrigir o que tomei como um equívoco acadêmico que por muito tempo esteve a afetar a interpretação da Segunda consideração extemporânea de Nietzsche. Esse equívoco envolveu a desconsideração de quais são as insinuações do filósofo quanto a um modelo afirmativo de história que abarca, acima de tudo, o caráter agonístico da empresa historiográfica. O ato mesmo de fazê-lo, consequentemente, levou a que muitos supusessem que Nietzsche ou teria pouco a dizer sobre história, que suas críticas à história teriam inspirado uma viragem positivista desde o final da década de 1870 até seus escritos genealógicos, ou que Nietzsche, um tanto tacitamente, teria adotado uma das três formas de atitude histórica que ele esboçara em 1874. O que estive a propor é que cada uma dessas interpretações é em si mesma falha e de modo errôneo desconsidera uma visão muito interessante de acionar o passado. Trata-se de uma visão que se fiava estreitamente na teoria da vida de Goethe - o mesmo Goethe que, não por coincidência, recebeu menção elogiosa na primeira sentença do livro. Uma vez que o poeta alemão odiava “tudo o que meramente me instrui sem aumentar ou diretamente avivar minha atividade”, da mesma forma também a história afirmativa de Nietzsche se fez empregar, acima de tudo, como um instrumento para aumentar ou avivar sua atividade. E uma vez que Goethe entendia que a vida saudável emerge do entrejogo concorrente de polaridades, da mesma forma também Nietzsche concebe a empresa histórica saudável como uma espécie de competição, tanto na condição do leitor da história a concorrer com seus passados com o fito de superá-los quanto uma vez que os autores da história estavam a competitivamente disputar pela hegemonia interpretativa. A história foi construída mediante a intuição tão-somente daqueles tipos de vultos do passado, de culturas ou de acontecimentos do passado com que se pudesse competir, esquecendo-se do restante. Isso nos deixa com um conteúdo histórico que não foi necessariamente mais preciso, mais exaustivo ou mais explanatório, mas sim, em vez disso, com uma tentativa de iluminar o Urtyp [tipo original] goethiano da pessoa, do acontecimento ou da cultura. E a atitude existencial assim encorajada foi a de, em lugar da memorização ou de um mero empilhar de fatos, uma competição com o passado na esperança de superá-lo e de se aprimorar a partir dele. Assim sendo, afirmo, tratar-se-ia de uma história afirmativa, de uma história que genuinamente “serviria à vida” de um modo que nenhuma das diversas outras formas de história que Nietzsche discute em Utilidade e desvantagem poderia atingir. “Pois eu não saberia que sentido teria a filologia clássica em nossos dias senão o de intervir extemporaneamente, isto é, contra a época, sobre a época e a favor de uma época futura” (HL/Co. Ext. II, Prefácio, KSA 1.247).

Referências

  • BAMBACH, Charles. “History and Ontology: A Reading of Nietzsche’s Second ‘Untimely Meditation’”. In Philosophy Today 34.3, 1990, pp. 259-72.
  • BORTOFT, H. The Wholeness of Nature: Goethe’s Way Toward a Science of Conscious Participation in Nature Hudson, NY: Lindisfarne Press, 1996.
  • CAYSA, Volker. Kritik als Utopie der Selbstregierung: über die existenzielle Wende der Kritik nach Nietzsche Berlin: Frank & Timme, 2005.
  • GOETHE, J. W. von. Werke 14volumes, org. por Erich Trunz et al. Munique: C. H. Beck, 1994.
  • Goethes Goethes Briefe und Briefe an Goethe, org. por Karl Robert, 6vols. Hamburgo: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1982.
  • GOSSMAN, L. Basel in the Age of Burckhardt: a Study in Unseasonable Ideas Chicago: The University of Chicago Press, 2000.
  • IGGERS, G. Historiography in the Twentieth Century: From Scientific Objectivity to the Postmodern Challenge Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 1997.
  • JENKINS, S. “Nietzsche’s Use of Monumental History”. In: The Journal of Nietzsche Studies 45.2, 2014, p. 169-181.
  • JENSEN, A. “Typologies of History”. In: SANTINI, C. & JENSEN, A. The Re-Encountered Shadow: Nietzsche on History and Memory Berlin: Walter De Gruyter Press, 2020, p. 37-55.
  • JENSEN, A. “Nietzsche and the Truth of History”. In STERN, T. (org.). The New Cambridge Companion to Nietzsche Cambridge: Cambridge University Press, 2019, p. 249-72.
  • JENSEN, A. “Teleological Judgment and the Ends of History”. In: HAY, K. et al. (org.). Nietzsche’s Engagements with Kant and the Kantian Legacy Vol 3; Aesthetics, Anthropology and HistoryLondon: Bloomsbury, 2017.
  • JENSEN, A. An Interpretation of Nietzsche’s “On the Uses and Disadvantage of History for Life” London: Routledge, 2016.
  • JENSEN, A. Nietzsche’s Philosophy of History Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
  • MERRICK, Allison. “Of Genealogy and Transcendent Critique”. In: The Journal of Nietzsche Studies, 2016, 47.2, p. 228-237.
  • NIETZSCHE, F. “Der Florentinische Tractat über Homer und Hesiod, ihr Geschlecht und ihren Wettkampf, 1-2”. In: Rheinisches Museum für Philologie, vol. 25, 1870, 528-540.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke Kritische Studienausgabe. Berlim/Munique: de Gruyer/dtv, 1988.
  • OWEN, D. “Freedom as Independence: Kant and Nietzsche on non-Domination, Self-Love and the Rivalrous Emotions. In: CONSTÂNCIO J. & BAILEY, T. (org.). Nietzsche and Kantian Ethics London: Bloomsbury , 2017.
  • PIAZZESI, C. “Das Spannungsfeld von ‘großer Liebe’ und Moral der Selbstverkleinerung: ‘verachtende’ Liebe vs. Nächstenliebe und Mitleid”. In: CAYSA, V.; SCHWARZWALD, K. (Orgs.). Nietzsche - Macht - Größe Berlin: De Gruyter, 2012.
  • POSANI-LÖWENSTEIN, M. Buckhardt e Nietzsche: Cinque Studi Pisa: Edizioni della Scuola Normale, 2017.
  • RAULET, G. “Nietzsches Kritik der Historie: ein zweifelhafter Kampf, Études Germaniques 55.2, 2000, pp. 185-202.
  • REGINSTER, Bernard. “Perspectivism, Criticism and Freedom of Spirit,” European Journal of Philosophy 8.1, 2000, p. 40-62.
  • REMHOF, J.Nietzsche’s Constructivism: A Metaphysics of Material Objects New York: Routledge, 2018.
  • ROMERO CUEVAS, J. M. “Historia y Crítica en el último Nietzsche,” Episteme31.2, 2011, p. 145-170.
  • SCHNÄDELBACH, H. “Nietzsches Kritik der historischen Bildung”. In: Études Germaniques55.2, 2000, pp. 169-183.
  • SCHULIN, E. “Zeitgemäße Historie um 1870: zu Nietzsche, Burckhardt und zum ‘Historismus’”. In: Historische Zeitschrift 281.1, 2005, p. 33-58.
  • SEPPER, D. L. Goethe contra Newton: Polemics and the Project for a New Science of Color Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
  • SHEPHERD, Melanie. “Genealogy and Perspectivism: Nietzsche’s Transformation of Kantian Critique”. In: HEIT, H. & THORGEIRSDOTTIR, S. Berlin: DeGruyter, 2016, p. 81-89.
  • STINGELIN, M. “Historie als ‘Versuch das Heraklitische Werden […] in Zeichen abzukürzen”. In: Nietzsche-Studien22, 1993, p. 28-41.
  • TANTILLO, A. O. “Goethe’s Evolutionary Thinking.” In: ROWLAND, H. (org.), Goethe, Chaos, and Complexity Amsterdam: Rodopi, 2001, p. 47-56.
  • VATTIMO, Gianni. Nietzsche: An Introduction Trad. Nicholas Martin. Stanford: Stanford University Press, 2001.
  • WALTER-BUSCH, E. Burckhardt und Nietzsche im Revolutionszeitalter München: Fink, 2012.
  • WHITE, H. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978.
  • *
    Tradução de Saulo Krieger.
  • 1
    O autor se refere à disputa entre duas correntes da filologia alemã. A primeira, dos Wortphilologen, liderada por Gottfried Hermann; a segunda, dos Sprachphilologen, liderada por August Boeckh. [Nota dos editores]
  • 2
    Minha análise mais abrangente da filosofia da história de Nietzsche em HL está em Jensen, 2016JENSEN, A. An Interpretation of Nietzsche’s “On the Uses and Disadvantage of History for Life”. London: Routledge, 2016.. Cf. também Jensen, 2020JENSEN, A. Nietzsche’s Philosophy of History. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., pp. 37-55.
  • 3
    Ver, por exemplo, Iggers, 1997IGGERS, G. Historiography in the Twentieth Century: From Scientific Objectivity to the Postmodern Challenge. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 1997., p. 8; White, 1978WHITE, H. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978., p. 32.
  • 4
    Propostas desse tipo são discutidas em diversos trabalhos recentes, entre eles o de Jenkins, 2014, pp. 169-181; Shepherd, 2016SHEPHERD, Melanie. “Genealogy and Perspectivism: Nietzsche’s Transformation of Kantian Critique”. In: HEIT, H. & THORGEIRSDOTTIR, S. Berlin: DeGruyter, 2016, p. 81-89., pp. 81-89; Merrick, 2016MERRICK, Allison. “Of Genealogy and Transcendent Critique”. In: The Journal of Nietzsche Studies, 2016, 47.2, p. 228-237., pp. 228-237; Romero Cuevas, 2011ROMERO CUEVAS, J. M. “Historia y Crítica en el último Nietzsche,” Episteme31.2, 2011, p. 145-170., pp. 145-170; Caysa, 2005CAYSA, Volker. Kritik als Utopie der Selbstregierung: über die existenzielle Wende der Kritik nach Nietzsche. Berlin: Frank & Timme, 2005.; Reginster, 2000REGINSTER, Bernard. “Perspectivism, Criticism and Freedom of Spirit,” European Journal of Philosophy 8.1, 2000, p. 40-62., pp. 40-62; Bambach, 1990BAMBACH, Charles. “History and Ontology: A Reading of Nietzsche’s Second ‘Untimely Meditation’”. In Philosophy Today 34.3, 1990, pp. 259-72., pp. 259-72.
  • 5
    Contra Gianni Vattimo, 2001VATTIMO, Gianni. Nietzsche: An Introduction. Trad. Nicholas Martin. Stanford: Stanford University Press, 2001., p. 38: “Ainda assim, tendo em vista o caráter claro e direto do ânimo destrutivo do texto, seus aspectos construtivos parecem ser, na melhor das hipóteses, um conjunto de demandas amplamente carentes de unificação”.
  • 6
    “Quanta diferença se teve de omitir para que ela tivesse aquele efeito vigoroso, quão violentamente se teve de comprimir a individualidade do passado em uma forma universal e aparar arestas em proveito da conformidade!” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261).
  • 7
    Para a primeira: “A história monumental poderá não precisar daquela veracidade toda: ela sempre aproximará, universalizará e, enfim, igualará o desigual, sempre enfraquecerá a diversidade dos motivos e ocasiões a fim de tomar, de forma monumental, o effectus às custas das causae, isto é, como algo exemplar e digno de imitação...” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261). Para a segunda: a construção de monumentos históricos é possível somente “... às custas das causae: [...] por não se importar com as causas, ela poderia chamar-se, com um pouco de exagero, um conjunto de ‘efeitos em si’, como eventos que provocarão efeitos em todas as épocas” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.261-2).
  • 8
    Para a primeira: “com semelhanças sedutoras, ela [a história monumental] estimula os corajosos à temeridade, os entusiastas ao fanatismo...” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.263).; para a segunda: “Tenham eles consciência disso ou não, agem como se seu moto fosse: deixai os mortos sepultar os vivos” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.264).
  • 9
    A história antiquária “possui sempre um campo de visão extremamente estreito; ela não percebe a maioria das coisas e, do pouco que vê, vê de forma muito próxima e isolada” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.267).
  • 10
    Qualquer objeto histórico “é, no final, tomado suavemente como, também ele, merecedor de reverência” (HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.267).
  • 11
    “Ou as coisas deveriam, em todo momento, em sua atividade, serem igualmente desenhadas, retratadas, fotografadas em uma passividade pura?” (HL/Co. Ext. II, 6, KSA 1.290).
  • 12
    Até onde sei, Martin Stingelin realiza a primeira discussão sistemática sobre o construtivismo na historiografia de Nietzsche. Ali, contudo, ele segue mais a posição da Genealogia da moral. Em meu próprio trabalho, acredito que HL represente melhor a posição construtivista, enquanto a GM se classificaria mais adequadamente como um antirrealismo epistemológico. A diferença chave entre as duas obras é que em HL o historiador está construindo o passado, entretecendo elementos factuais de um modo que os faça prover uma espécie de imagem “verdadeira”. Na GM, acredito que o esforço é substituído pela convicção de Nietzsche de que simplesmente não há fatos históricos, uma vez que todas as solicitações são puramente expressões de impulsos. Ver Stingelin, 1993STINGELIN, M. “Historie als ‘Versuch das Heraklitische Werden […] in Zeichen abzukürzen”. In: Nietzsche-Studien22, 1993, p. 28-41., pp. 28-41; e Jensen, 2019, p. 249-72. Para uma defesa mais pormenorizada do construtivismo em geral, cf. Remhof, 2018REMHOF, J.Nietzsche’s Constructivism: A Metaphysics of Material Objects. New York: Routledge, 2018..
  • 13
    A tese de doutorado que Nietzsche certa vez pretendeu realizar era também uma crítica aprofundada da teleologia de viés kantiano. Sobre esse esboço de juventude, ver Jensen, 2017, pp. 157-178.
  • 14
    “Não se esconde nessa crença paralisante […] o mal-entendido de uma concepção teológica cristã, herdada da Idade Média, a ideia paralisante da aproximação de um fim do mundo, de um juízo final temivelmente aguardado?” (HL/Co. Ext. II, 6, KSA 1.295).
  • 15
    “Contivesse aquele resultado uma necessidade racional em si, fosse aquele evento a vitória da lógica ou da ‘Ideia’ - então que todos se ajoelhassem logo nos degraus dos ‘resultados’!” (HL/Co. Ext. II, 8, KSA 1.309).
  • 16
    “‘Grandioso’ será chamado então tudo o que moveu essa massa e, como se diz, possuiu ‘um poder histórico’. Mas isso não quer dizer confundir intencionalmente quantidade com qualidade?” (HL/Co. Ext. II, 9, KSA 1.320).
  • 17
    Não obstante algumas versões anteriores, a teoria biológica de Goethe assume a sua máxima e melhor expressão em Sobre a formologia (Zur Morphologie) (1817).
  • 18
    Para uma abordagem da interpretação teleológica por Goethe das ciências da vida, cf. Bortoft, 1996BORTOFT, H. The Wholeness of Nature: Goethe’s Way Toward a Science of Conscious Participation in Nature. Hudson, NY: Lindisfarne Press, 1996..
  • 19
    O caso é bem elucidado por Tantillo, 2001TANTILLO, A. O. “Goethe’s Evolutionary Thinking.” In: ROWLAND, H. (org.), Goethe, Chaos, and Complexity. Amsterdam: Rodopi, 2001, p. 47-56., pp. 47-56.
  • 20
    Quanto a esse aspecto, é óbvio que Nietzsche se põe particularmente próximo de seu colega Jakob Burckhardt. Sobre a relação entre eles, que é bastante complicada, ver os refinados estudos recentes realizados por Posani-Löwenstein, 2017POSANI-LÖWENSTEIN, M. Buckhardt e Nietzsche: Cinque Studi. Pisa: Edizioni della Scuola Normale, 2017., e Walter-Busch, 2012WALTER-BUSCH, E. Burckhardt und Nietzsche im Revolutionszeitalter. München: Fink, 2012.. Um estudo clássico continua a ser o de Gossman, 2000GOSSMAN, L. Basel in the Age of Burckhardt: a Study in Unseasonable Ideas. Chicago: The University of Chicago Press, 2000..
  • 21
    Entre diversos estudos, cf. Schulin, 2005SCHULIN, E. “Zeitgemäße Historie um 1870: zu Nietzsche, Burckhardt und zum ‘Historismus’”. In: Historische Zeitschrift 281.1, 2005, p. 33-58., p. 33-58; Jensen, 2013POSANI-LÖWENSTEIN, M. Buckhardt e Nietzsche: Cinque Studi. Pisa: Edizioni della Scuola Normale, 2017., cap. 1-4.
  • 22
    Nietzsche apresenta formulação semelhante em HL 2: “O que foi capaz de expandir e tornar mais belo o conceito ‘homem’ deve estar presente pela eternidade, para eternamente realizar esse feito. O pensamento fundamental da crença na humanidade expresso pela exigência de uma história monumental é o de que os grandes momentos da luta dos indivíduos formam uma corrente que os une, no decorrer dos séculos, na cordilheira da humanidade; que, para mim, o mais elevado de cada momento há muito ocorrido ainda é vivo, claro e grandioso” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.259).
  • 23
    Tais eram os principais temas dos últimos três dos “Cinco prefácios a cinco livros não escritos”. Nietzsche primeiramente pensara em comercializá-los, mas depois os deu de presente de Natal para Cosima Wagner, em 1872.
  • 24
    Para um debate a respeito, cf. Raulet, 2000, pp. 185-202.
  • 25
    Uma visão sofisticada dessas ideias se encontra em Schnädelbach, 2000SCHNÄDELBACH, H. “Nietzsches Kritik der historischen Bildung”. In: Études Germaniques55.2, 2000, pp. 169-183., pp. 169-183.
  • 26
    Cf. Owen, 2017OWEN, D. “Freedom as Independence: Kant and Nietzsche on non-Domination, Self-Love and the Rivalrous Emotions. In: CONSTÂNCIO J. & BAILEY, T. (org.). Nietzsche and Kantian Ethics. London: Bloomsbury , 2017., pp. 137-157; Piazzesi, 2012PIAZZESI, C. “Das Spannungsfeld von ‘großer Liebe’ und Moral der Selbstverkleinerung: ‘verachtende’ Liebe vs. Nächstenliebe und Mitleid”. In: CAYSA, V.; SCHWARZWALD, K. (Orgs.). Nietzsche - Macht - Größe. Berlin: De Gruyter, 2012., pp. 271-285.
  • 27
    Cf. Jensen, 2013, pp. 155-80.
  • 28
    Ver também, Jensen, 2019RAULET, G. “Nietzsches Kritik der Historie: ein zweifelhafter Kampf, Études Germaniques 55.2, 2000, pp. 185-202., pp. 249-72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
Grupo de Estudos Nietzsche Rodovia Porto Seguro - Eunápolis/BA BR367 km10, 45810-000 Porto Seguro - Bahia - Brasil, Tel.: (55 73) 3616 - 3380 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosnietzsche@ufsb.edu.br