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Estudo fenomenológico sobre a visita domiciliária do enfermeiro à família no processo de terminalidade

Estudio fenomenológico sobre la visita a domicilio del enfermero a la familia durante un proceso terminal

Resumos

Pesquisa qualitativa e fenomenológica que teve como proposta compreender o fenômeno: Enfermeiros que atuam no PSF e o cuidado, em domicilio, à família que vivencia, nele, ao término de um dos seus membros. O estudo foi realizado com enfermeiros que atuam na Região Sudeste do município de São Paulo, SP. Utilizou-se como referencial teórico a fenomenologia existencial. Com este estudo foi possível desvelar que essa vivência significou para os enfermeiros um momento para estar-com-a-família em uma situação existencial de perda e morte, construindo no domicílio uma rede de proteção para que o processo de terminalidade de um de seus membros fosse o mais ameno possível. Apesar de ter sido permeada por um cuidado de enfermagem repleto de humanidade, significando uma vivência única e singular, foi também uma experiência difícil, desgastante, representando situações geradoras de agravos a sua saúde enquanto trabalhador.

Enfermagem; Cuidados de enfermagem; Saúde da família; Cuidados paliativos; Assistência domiciliar; Programa Saúde da Família


Investigación cualitativa y fenomenológica que tuvo como propuesta comprender el fenómeno: Enfermeros que actúan en el PSF y el cuidado, a domicilio, a la familia que experimenta, en él, el término de uno de sus miembros. El estudio fue realizado con enfermeros que actúan en la Región Sudeste del municipio de São Paulo, SP. Se utilizó como marco teórico la fenomenología existencial. Con este estudio fue posible revelar que esa vivencia significó, para los enfermeros, un momento para estar con la familia en una situación existencial de pérdida y muerte, construyendo en el domicilio, una red de protección para que el proceso terminal de uno de sus miembros fuese lo más ameno posible. A pesar de haber sido otorgado un cuidado de enfermería repleto de humanidad, significando una experiencia única y singular, fue también una experiencia difícil, desgastante, representando situaciones generadoras de agravios a su salud, en cuanto trabajador.

Enfermería; Atención de enfermería; Salud de la familia; Cuidados paliativos; Atención domiciliaria de salud; Programa de Salud Familiar


The present study is a qualitative and phenomenological research aimed to understand the phenomenon Nurses working in the FHP (Family Health Program) and home care provided to the family living in a home where terminality of one of its members is being experienced. The study was carried out with healthcare providers who work in the Southeastern Region of the city of Sao Paulo/SP, Brazil. Existential phenomenology was used as the theoretical background. This study made possible the comprehension of what this experience meant to healthcare providers in a moment of being with the family in an existential situation of loss and death, creating a home protection network in order to make this process of terminality of one of the family members as smooth as possible. Even though permeated by care giving filled with humane feelings, thus representing a unique and remarkable experience, it was also a weary and difficult event that triggered labor health problems.

Nursing; Nursing care; Hospice care; Family health; Home nursing; Family Health Program


ARTIGO ORIGINAL

Estudo fenomenológico sobre a visita domiciliária do enfermeiro à família no processo de terminalidade* * Extraído da dissertação "Cuidando no domicílio de famílias que vivenciam o processo de terminalidade: a percepção dos enfermeiros que atuam no Programa de Saúde da Família", Universidade de Guarulhos, 2007.

Estudio fenomenológico sobre la visita a domicilio del enfermero a la familia durante un proceso terminal

Silvia Helena ValenteI; Marina Borges TeixeiraII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Gerente da Unidade de Saúde da Família Pastoral no Município de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. sh.valente@bol.com.br

IIEnfermeira. Doutora em Ciências. Professora Titular da Universidade de Guarulhos. São Paulo, SP, Brasil. marina-teixeira@uol.com.br

Correspondência Correspondência: Silvia Helena Valente Alameda São Caetano 1122, Ap. 62, Barcelona CEP 09560-051 - São Caetano do Sul, SP, Brasil

RESUMO

Pesquisa qualitativa e fenomenológica que teve como proposta compreender o fenômeno: Enfermeiros que atuam no PSF e o cuidado, em domicilio, à família que vivencia, nele, ao término de um dos seus membros. O estudo foi realizado com enfermeiros que atuam na Região Sudeste do município de São Paulo, SP. Utilizou-se como referencial teórico a fenomenologia existencial. Com este estudo foi possível desvelar que essa vivência significou para os enfermeiros um momento para estar-com-a-família em uma situação existencial de perda e morte, construindo no domicílio uma rede de proteção para que o processo de terminalidade de um de seus membros fosse o mais ameno possível. Apesar de ter sido permeada por um cuidado de enfermagem repleto de humanidade, significando uma vivência única e singular, foi também uma experiência difícil, desgastante, representando situações geradoras de agravos a sua saúde enquanto trabalhador.

Descritores: Enfermagem. Cuidados de enfermagem. Saúde da família. Cuidados paliativos. Assistência domiciliar. Programa Saúde da Família.

RESUMEN

Investigación cualitativa y fenomenológica que tuvo como propuesta comprender el fenómeno: Enfermeros que actúan en el PSF y el cuidado, a domicilio, a la familia que experimenta, en él, el término de uno de sus miembros. El estudio fue realizado con enfermeros que actúan en la Región Sudeste del municipio de São Paulo, SP. Se utilizó como marco teórico la fenomenología existencial. Con este estudio fue posible revelar que esa vivencia significó, para los enfermeros, un momento para estar con la familia en una situación existencial de pérdida y muerte, construyendo en el domicilio, una red de protección para que el proceso terminal de uno de sus miembros fuese lo más ameno posible. A pesar de haber sido otorgado un cuidado de enfermería repleto de humanidad, significando una experiencia única y singular, fue también una experiencia difícil, desgastante, representando situaciones generadoras de agravios a su salud, en cuanto trabajador.

Descriptores: Enfermería. Atención de enfermería. Salud de la familia. Cuidados paliativos. Atención domiciliaria de salud. Programa de Salud Familiar.

INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema da morte, em especial pela atuação dos profissionais de saúde em situações que envolvem a terminalidade humana, tem me acompanhado desde a graduação em enfermagem. No cotidiano do Programa de Saúde da Família (PSF), as descrições de enfermeiros ao relatarem o desgaste e o sofrimento, oriundos do cuidar de famílias durante o processo de terminalidade de um dos seus membros no domicílio, despertaram minha atenção, gerando indagações que culminaram com esta investigação.

O PSF, como estratégia de viabilização do Sistema Único de Saúde (SUS) e como reestruturação da Atenção Primária, teve seu início em 1994 e vem apresentando crescimento expressivo nos últimos anos. A abordagem do programa está centrada na família, que é o objeto principal de atenção, entendida a partir do ambiente onde vive, pois é nele que se constroem as relações intra e extra-familiares e onde se desenvolve a luta pela melhoria das condições de vida, permitindo, ainda, uma compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da necessidade de intervenções de maior impacto e significação social(1).

O enfermeiro, juntamente com a equipe de saúde da família, é responsável pela operacionalização do PSF e entre as suas várias atribuições, destaca-se a VD (Visita Domiciliar), que pode ser definida como uma tecnologia de enfermagem em saúde coletiva, utilizada para intervenção no processo saúde-doença da família(1-2).

A VD é um dos instrumentos que ajudam o enfermeiro a identificar como estão estruturadas na família as formas de trabalho e de vida dos seus membros, como essas formas são socializadas entre eles, quais os padrões de solidariedade que se desenvolvem nesse universo e como esses podem contribuir para o processo de cuidado, cura ou recuperação de um dos seus membros. A VD é uma atividade que deve ser subsidiada por um planejamento prévio juntamente com um processo de ações sistematizadas que se iniciam antes e continuam após o ato da visita, caso contrário, deve ser considerada como uma mera ação social(2-3).

Quando pensamos na VD para famílias que vivenciam a terminalidade de um dos seus membros no domicílio, seguindo os preceitos de Cuidados Paliativos é possível inferir que o lar do paciente é o local de escolha adequado para o cuidado, pois sua qualidade de vida pode ser favorecida pela convivência com familiares e amigos no seu próprio ambiente(4-6).

A VD em cuidados paliativos, no contexto do PSF, é uma tecnologia que exige enfermeiros aptos para trabalhar com a família dentro do seu próprio domicílio, capazes de articular os seus conhecimentos técnicos com a realidade de vida das pessoas e aptos para compreender o significado da doença, da morte e do morrer dentro do núcleo familiar: temáticas essas, pouco trabalhadas e discutidas na prática de enfermagem(7-8).

Apesar da VD ser descrita como uma atividade da enfermagem moderna, ainda hoje impõe desafios para as escolas de enfermagem, pois exige a formação de enfermeiros com profundo conhecimento e habilidade para lidar com as relações humanas em seu contexto de vida. O estudo da família, enquanto unidade de cuidado, tem mostrado ser uma área emergente para a enfermagem e tem apresentado um grande avanço teórico; porém, esse movimento, na prática, ainda é muito tímido. Somando-se a essa discussão, destaca-se a falta de habilidade do enfermeiro ao lidar com a terminalidade humana devido à insuficiência dos currículos da área de saúde ao abordarem essa temática(2,7-10).

Nesse sentido, o delinear da presente pesquisa conduziu-me à busca da compreensão do fenômeno: Enfermeiros que atuam no PSF e o cuidado domiciliar à família que vivencia a terminalidade de um dos seus membros, interrogando: como esses profissionais se sentem ao atender essas famílias? Como essas situações são vivenciadas por eles? Dessa forma, a proposta deste estudo foi apreender, através dos discursos desses profissionais, o significado atribuído a tal experiência.

Acredito que, por meio desta pesquisa, seja possível contribuir com os enfermeiros do PSF, ampliando-lhes a compreensão em relação ao cuidado prestado às famílias em situações de doença e de morte no domicílio e viabilizando discussões acerca da prática assistencial, do ensino e da pesquisa relacionados à temática em questão.

O REFERENCIAL TEÓRICO-FILOSÓFICO

Para responder as interrogações deste estudo, optei pela pesquisa qualitativa e fenomenológica utilizando concepções da ontologia existencialista de Martin Heidegger.

A fenomenologia de Heidegger coloca em questão o modo de ser do homem na sua existência, a qual só pode ser revelada a partir do desvelamento do mundo. Ela busca recuperar a estranheza das coisas, ou melhor, o estranhamento do homem diante das coisas, para tentar mostrar que o cotidiano e o habitual, em sua aparente monotonia, escondem o mistério do ser. A ontologia heideggeriana pode ser um caminho para esclarecer o sentido de pensamentos, de sentimentos, de percepções e de comportamentos, aproximando-se da compreensão do outro como ser humano, foco desta pesquisa(11-12).

Considerando tais conceitos, vislumbro na vertente fenomenológica a possibilidade de compreender alguns aspectos do ser-aí-enfermeiro convivendo com a família e compartilhando com ela situações de terminalidade no domicílio, na sua condição existencial de ser-no-mundo.

MÉTODO

O estudo foi realizado em Unidades de Saúde da Família da região sudeste, na cidade de São Paulo. Os aspectos éticos implicados nessa abordagem seguiram as recomendações da Resolução 196/96, a qual regulamenta normas e diretrizes de pesquisa com seres humanos (Parecer Bioética nº 024/2006).

Os sujeitos da pesquisa foram enfermeiros que atuavam nessas Unidades de Saúde da Família na fase de coleta de dados e que estavam vivenciando ou tinham vivenciado o cuidado para famílias com um membro em fase final de vida no domicílio. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Marquei com os enfermeiros data e local para as entrevistas, utilizando a pergunta norteadora: Como é para você cuidar de uma família que está vivenciando a terminalidade de um dos seus membros no domicílio?

As entrevistas foram gravadas e o seu número determinado no momento em que os discursos tornaram-se repetitivos para o desvelamento do fenômeno. Foram coletadas 17 entrevistas e dessas, quatro foram excluídas, ao se perceber, após uma leitura atenta, que não respondiam à questão norteadora. Os discursos foram caracterizados na pesquisa com a letra D maiúscula, seguida por números romanos, de acordo com a ordem em que foram coletados.

O referencial de análise foi a modalidade da Estrutura do Fenômeno Situado(13), no qual os discursos foram submetidos a duas fases de análise: a ideográfica, na qual o pesquisador busca nas falas as informações mais relevantes e essenciais para desvelar o fenômeno, e a análise nomotética, na qual os discursos são analisados em conjunto, com o objetivo de se alcançar a estrutura geral do fenômeno. Posteriormente, as categorias temáticas foram aprofundadas e discutidas à luz do pensamento de Martin Heidegger.

CONSTRUINDO OS RESULTADOS

Durante a trajetória em busca do fenômeno, emergiram cinco categorias temáticas que apontam para a sua compreensão, as quais descrevo e discuto a seguir.

Sendo-enfermeiro-com-a-família

O enfermeiro, lançado na realidade do PSF, trabalhando em regiões periféricas da cidade de São Paulo, depara-se no seu cotidiano cuidando de famílias com um membro em processo de morrer no domicílio e, nessa espacialidade, acaba coexistindo nesse mundo e convivendo com os sentimentos de tristeza, de dor, de desespero, de medo e de esperança dessas pessoas diante da terminalidade, da pobreza, da miséria e da exclusão social.

O que muito me angustia é essa restrição humana. Pragmática, mesmo... trabalhar em um lugar onde se tem muita miséria, muita pobreza, muita criminalidade, muita negligência (DII).

Ao de-cair-se no mundo dessas famílias, o enfermeiro vivencia de forma autêntica essa experiência, e convivendo com essa realidade, inicia um relacionamento de compartilha com essas pessoas:

No PSF, no subúrbio de São Paulo, [...] só tem velho, idoso, a criança muitas vezes fora da escola, e o adulto que está lá é porque está desempregado, é uma característica. É uma mazela muito grande, um abandono muito grande, são muitas faces do abandono. E aí a gente chega, e está junto! Senta ao lado, no começo sem saber muito o que fazer, mas a gente vai construindo essa direção (DI).

Então, passamos a criar um vínculo, tornando-nos família. Família! A gente trata aquelas pessoas, e não só o doente, todos daquela família passam a ter uma relação muito forte com a gente (DIII).

Em algumas falas, pude perceber que o vínculo desse profissional com a família é experienciado com sofrimento, pois, ao envolver-se com a problemática familiar, o enfermeiro não consegue estabelecer limites nessa relação:

Você faz o vínculo com a família, e, no fim, você acaba... parece que eles fazem parte da sua vida, você fica com dó da pessoa... fica muito solidário. Eu lembro que era perto do dia das mães e eu torci para... ai, meu Deus, para que ele não falecesse justo no dia das mães, porque... imagine essa mãe, como é que ia ficar? ia passar um dia... É complicado, você acaba meio que vendo essa família... se colocando no lugar um pouco do outro, eu acho. Às vezes, acho que a gente se coloca até demais. E você... é aquela história: é você ter o seu lado profissional, mas ter o lado humano, que também é muito forte, porque você tem o vínculo (DXI).

Já em outras falas, apesar da tristeza compartilhada com a família, vê-se que o profissional percebe tal vínculo como um fator importante e positivo para o desenvolvimento do seu cuidado:

Gosto muito, é positivo, tem um retorno positivo, embora o produto final seja a morte do paciente, e a gente não tenha como resolver isso. É bom, porque você cria um elo muito maior com a família. A família te busca mais, e vem chorar também porque a pensão atrasou, e vem rir também, vem te convidar para festinha, vem te trazer uma coisa diferente (DVIII).

É possível apreender pelos discursos, nessa unificação ontológica, que o co-existir com a família, em seu mundo existencial, permite ao enfermeiro compartilhar, conviver e construir em conjunto com essas pessoas um caminho permeado de cuidado, porém, a forma como o profissional vivencia essa unificação é definida a partir das várias possibilidades de ser-no-mundo-com-os-outros. A percepção do vínculo como um fator ruim, experenciado durante a VD, pode estar centrado no próprio contexto social da enfermagem que visa atender a produtividade do sistema capitalista, centrada no cumprir tarefas e na execução de procedimentos. Quando o enfermeiro se depara com a possibilidade de construir um cuidado centrado no humanismo, inerente à filosofia do PSF, não sabe como conduzir sua assistência, sofrendo com os sentimentos que permeiam a relação entre ele e a família(11-12,14).

Tecendo uma rede de proteção à família

A partir da convivência com o mundo-vida da família, o enfermeiro, juntamente com sua equipe, organiza o espaço domiciliar no qual o cuidado é desenvolvido. Por vezes, utiliza sua criatividade e improvisa ambientes dentro da casa, buscando por recursos materiais existentes para construir um espaço no qual a família possa estar protegida para vivenciar a situação de terminalidade:

No fim, esse paciente acabou dando óbito dentro de casa. Tínhamos arrumado todas as medicações mais potentes para amenizar as dores dele. Improvisamos alimentação de sonda nasogástrica, na parede; pusemos prego na parede, sabe? A gente fez um terremoto lá! (DIII).

Os recursos tecnológicos encontrados em nível hospitalar, não estão disponíveis nas Unidades de Saúde da Família. Quando o enfermeiro constata a dor do cliente em fase final de vida em seu cuidado durante a VD, vivencia com ele e a família o sofrimento inerente à situação e acaba buscando pela medicação em outros níveis de assistência, ultrapassando as regras impostas pelo próprio sistema de Atenção à Saúde.

Eu gosto, eu gosto. Trabalhava na UTI, tinha muitos pacientes terminais também, e precisando de Dolantina, coisa que você não consegue fácil fora do hospital; a gente roubava literalmente, cansei de roubar (DVIII).

Na filosofia heideggeriana, o homem existe de fato, estabelece relações com o mundo e, sendo aberto a ele, conhece-o e o revela. O estar-aqui humano nos conduz a colocar o homem no espaço e sendo um ser-no-mundo, dele participa, organizando, relacionando e dando sentido aos entes que estão a seu redor. Assim o ser-no-mundo enfermeiro do PSF, reúne os objetos do mundo (entes) e os aproxima de si, construindo uma rede proteção para a família do doente terminal(11-12).

No movimento de tecer a rede de proteção para a família, o enfermeiro, apesar do conhecimento tecnológico disponível na área de cuidados paliativos, ao se deparar com a realidade de trabalho do PSF, visitando domicílios permeados por miséria e pobreza, percebe a riqueza da sua tecnologia humana como suporte e recurso:

Há locais, como os hospices, onde a pessoa vai num processo de dor para descansar, a família vai participar dessa internação e a pessoa vai descansar um pouco, utilizar artigos que são melhor controlados dentro do hospital[...]. Essas são realidades completamente fora da nossa. Mas o que é que podemos fazer? Se lá fazem assim, e muito bem, o que é que a gente faz em nosso metro quadrado? Como fazer o melhor e sair com a sensação de dever cumprido? Dando apoio, segurando a mão, escutando o choro, e se não der para a gente se segurar, choramos junto (DI).

Cabe ressaltar que esse enfermeiro, em seu discurso, descreveu sua experiência de realizar um estágio em um hospice em Paris durante a graduação em enfermagem. Dessa forma, traz em sua fala, seu conhecimento em cuidados paliativos. Ao lembrar-se da sua vivência anterior em um centro de alta tecnologia, tanto médica, como humana, consegue sobrepô-la a atual, articulando seu conhecimento e sua história, prestando um cuidado de qualidade centrado no humanismo, numa realidade de miséria e pobreza. No pensamento heideggeriano, a presença, ou seja, o ser-aí possui sua história e pode tê-la porque o ser desse ente se constitui de historicidade sendo o acontecer da história, o acontecer do ser-no-mundo. Assim, a historicidade desse enfermeiro, marcada pela experiência de cuidados paliativos em uma realidade de primeiro mundo, influencia sua visão de mundo, singularizando seu cuidado à família com um membro em fase final de vida no domicílio na realidade do PSF. Quando se faz um paralelo entre esse discurso com os demais, é possível compreender tal peculiaridade(11-12).

Percebendo o cuidado como singular

O enfermeiro compreende a singularidade que caracteriza seu cuidado na VD e, posteriormente, interpreta-o descrevendo as características que o tornam único. Um dos fatores que emergem nas falas, como peculiar a essa atividade do enfermeiro no PSF, é o local em que o cuidado é realizado, além da proximidade física e emocional do enfermeiro com a família:

É diferente do hospital, de onde você vai embora e sabe que o outro colega vai dar continuidade ao atendimento; tem toda uma estrutura que vai dar um suporte a essa família. E dentro da saúde pública, de quem trabalha no PSF, a situação é muito diferente, você é uma referência para aquela família: ela deixa de seguir orientações do hospital e dá muita credibilidade aos nossos profissionais do Posto de Saúde (DIII).

O domicílio, espaço rico de significações sociais e culturais, proporciona ao enfermeiro uma aproximação com a humanidade na qual a família está inserida, viabilizando um cuidado que vai além do técnico-biológico.

Sei que nossas professoras de administração nos pregariam na cruz se nos ouvissem falar isso. Porque enfermeira é uma nurse, e nurse não pode chorar, envolver-se. A profissional tem que construir limites na relação com seu cliente. Mas no PSF, esses limites ultrapassam a nossa capacidade de imaginação! Por isso, somos muito felizes, e às vezes sofremos. E temos que amadurecer para lidar com esses limites. A realidade está aqui batendo no nosso glúteo, não se está ileso, como nas paredes do hospital. As regras do hospital nos forram de papéis e burocracias. Já trabalhei em hospital. Até o paciente chegar em você no hospital, já passou por não sei quantos seguranças, por recepcionistas, por não-sei-o-quê. Aqui não, eles batem à sua porta e te chamam pelo nome: Fulano está lá, chorando de dor, está chamando por você (DI).

Ao analisar essas falas, compreendo que o enfermeiro vivencia sua possibilidade de ser-para, ou seja, de cuidar-com, de preocupar-se por, ultrapassando os limites técnicos que a profissão de enfermagem, muitas vezes, impõe no cotidiano de trabalho. As possibilidades de utilizar os recursos humanos da profissão são exacerbadas dentro do PSF pelo aproximação com a realidade de vida das pessoas, favorecendo o estar-com-os-outros-no-mundo e o estar-para-os-outros-no-mundo. O homem, através de maneiras de solicitude, não apenas se faz conhecer como um ser-no-mundo, mas também busca conhecer os entes encontrados no mundo(11-12, 14).

Sentindo dificuldade para estar-com-a-família

O enfermeiro do PSF, como um ser lançado no mundo da família que experiencia o morrer de um dos seus membros no lar, e co-existindo com ela, depara-se com situações inusitadas de maus-tratos, de descuidos e de negligência:

E também o fato de que às vezes, numa visita, a própria família não quer cooperar e se isolou. Isso é um sofrimento muito grande, para mim, enquanto enfermeiro. Porque é uma negligência (DII).

A negligência familiar, a falta de cuidado para com o parente, é vivenciada de forma negativa pelo enfermeiro à medida que emergem sentimentos de tristeza, surpresa, impotência e raiva quando se depara com tal situação; e, ao visitar essa família, acaba prestando um atendimento meramente técnico ao cliente, excluindo a família da possibilidade de ser cuidada.

Tal atitude é uma opção do enfermeiro, pois envolver-se subjetivamente nessas situações exige que esse profissional adentre na história das famílias a qual, muitas vezes, é permeada por cicatrizes profundas entre seus membros, o que exige uma formação específica para trabalhar com elas e preparo para articular, dentro da equipe multidisciplinar, outros profissionais que possam trabalhar em conjunto nessa situação(7).

Outro fator que dificulta a relação enfermeiro/família vivenciada pelos sujeitos desta pesquisa está relacionado à solicitação dos familiares para um cuidado que vai além da capacidade da atenção primária de saúde, ou seja, da equipe de saúde da família:

Já para dona Maria, acho que foi um alívio. Acho assim: foi um alívio. Porém, ela achou que foi um pouco de culpa nossa, da equipe, que não deu assistência suficiente. Ela queria que nós visitassemos o paciente todos os dias, entendeu? (DIV).

No paradigma da modernidade, alicerçado na visão do homem racional e individualizado e na técnica como sinônimo de progresso para o futuro humano, ainda predominante na nossa sociedade e intensamente difundido na formação dos profissionais de saúde, o enfermeiro do PSF, longe das tecnologias presentes nos hospitais, acaba por sentir-se restrito na sua atuação e insuficiente no seu trabalho junto às famílias que recebem seus cuidados no domicílio. Tal concepção paradigmática, centrada no individualismo e na intervenção/cura, enfoca um modo-de-ser-no-mundo inautêntico do enfermeiro em sua vivência existencial junto às famílias, inviabilizando um cuidado além do conhecimento científico e um projeto de possibilidades de poder pensar o não pensado, de criar e de cuidar das famílias não apenas através de conhecimento e de recursos técnicos, mas por si mesmo, em sua condição ontológica de ser cuidado(15).

Sentindo desgaste físico e mental

Em determinadas visitas domiciliárias, vivenciando sua experiência existencial de forma inautêntica, o enfermeiro acaba centralizando seu cuidado em uma visão técnico-biológica e percebe-se diante das dificuldades relacionadas ao controle de sintomas físicos advindos da doença grave, de difícil cuidado no domicílio. Buscando um suporte dentro da rede assistencial, em níveis de atenção secundária e terciária, esse profissional percebe as deficiências do Sistema de Saúde quando referencia o cliente em fase final de vida para o hospital, e sofre por se sentir, juntamente com a sua equipe, solitário no cuidar dessa família dentro da atenção primária:

Os hospitais não davam muito respaldo, e acabamos cuidando dele até o último instante (DIII).

Ao se sentir inserido numa rede assistencial que não dá suporte à família, ele sofre sentimentos de frustração por entender que não consegue, na atenção primária, prestar cuidados com a qualidade técnica que está disponível no âmbito hospitalar:

Acho que a parte técnica fica limitada por algumas coisas, você não tem tantos recursos para você cuidar desse paciente (DIX).

Essas falas vêm demonstrar que o enfermeiro, centrado no cuidar dentro da dimensão técnico-científica, em detrimento da visão existencial do homem em sua plenitude, mas ao mesmo tempo longe das tecnologias, sente-se desgastado ao lidar com a família nessa situação peculiar, pois essa muitas vezes quer a cura do seu parente em fase final, solicitando uma atenção tecnicista além da capacidade da equipe de saúde da família e da atenção primária:

Angustiante. Porque você sabe que vai cuidar de um paciente. A angústia não é ir cuidar dele, a angústia é saber que você vai lidar com a família dele. O paciente está ali, você cuida, você presta toda a assistência para ele, mas a cobrança da família é... Para você, se ele vai melhorar ou não, o que é difícil é que a dona Ana era uma pessoa pouco compreensiva. Às vezes ela queria que a gente estivesse dentro da casa dela 24 horas por dia, coisa que a gente não pode fazer (DX).

Em alguns discursos os enfermeiros verbalizam que, para se proteger do desgaste inerente à visita domiciliária, apóiam-se numa postura técnica a fim de negar a situação existencial de terminalidade:

E às vezes acabamos ficando um pouco frios e calculistas, para lidar com isso com mais tranqüilidade. Porque, se você for ver com a emoção, acaba trocando os pés pelas mãos. Aí eu acho que fica mais complicado ainda (DIX).

No discurso XII, o enfermeiro percebe que seus sentimentos ficam abafados ao refletir sobre os sentimentos vivenciados durante a experiência de cuidar de uma família no processo de morrer de um dos seus membros:

Parei agora para conversar um assunto que eu vivencio o dia inteiro, mas tenho dificuldade para falar dele: o que será que eu sinto, o que será? Será que eu sinto, será que eu ainda sinto? Às vezes, estamos tão condicionados a pegar aquilo que não se consegue resolver e guardar naquela portinha que está trancada, que até nos esquecemos, fica difícil de abrir a porta e ver o que tem lá dentro: O que será que tem aí que eu possa falar para ela, que me incomoda? O que eu lembro é dessa ansiedade, eu acho que a gente sofre (DII).

Esses enfermeiros estão apontando para a falta de espaço em seu cotidiano de trabalho para discutir os sentimentos vivenciados durante sua experiência existencial. Tal deficiência em discussões relacionadas à temática da morte e do morrer pode levar o enfermeiro a ocultar seus sentimentos de tristeza e de impotência, deixando-o mais suscetível a psicopatologias relacionadas a seu trabalho. Dessa forma, torna-se necessária a abertura de espaços em seu contexto de trabalho para discussões sobre os sentimentos negativos que emergem durante essa atividade(9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento dessa pesquisa permitiu-me desvelar algumas facetas da visita domiciliária realizada pelo enfermeiro do PSF à família no processo de terminalidade de um dos seus membros no lar.

Neste trabalho pude compreender que o enfermeiro do PSF tem características próprias, o que singulariza sua atuação profissional. A capacidade em estabelecer vínculo, pela proximidade com as pessoas que recebem os seus cuidados, é um ponto marcante de sua atuação junto a estas famílias.

Outro aspecto que pode ser considerado como característica desse enfermeiro é sua capacidade criativa ao se deparar com as diversidades inerentes a seu trabalho. Apesar de sofrer em muitas situações por estar inserido numa realidade sócio-cultural permeada por pobreza, miséria e exclusão social, supera tal situação usando de sua criatividade para estar-com-a-família e construir uma rede de proteção quando do processo de terminalidade.

A percepção do enfermeiro sobre a singularidade de seu cuidado, muitas vezes só se dá a partir de sua vivência positiva com a família, ou seja, o enfermeiro só percebe a importância de ser-com-a-família quando esses se sentem cuidados por ele e valorizam sua presença no domicílio, agradecendo sua atuação repleta de humanidade. Pela proximidade com a família, o enfermeiro percebe outras formas de cuidar, e aprende novos caminhos da assistência em saúde, a partir da sua prática.

Alguns aspectos de grande significado para tais enfermeiros são os sentimentos de raiva, tristeza e impotência que emergem frente aos conflitos familiares e às atitudes de negligência. Eles repercutem no modo de como a família é cuidada, pois o enfermeiro acaba se distanciando dessas pessoas para se poupar de situações indesejáveis e constrangedoras. A dificuldade de estar com tais núcleos familiares pode sugerir sua falta de habilidade para cuidar de famílias.

Apesar da grande potencialidade de prestar um cuidado holístico para a família, pela proximidade com a realidade de vida dessas pessoas, em algumas situações, o enfermeiro se distancia do cuidado humano e se centra no cuidado técnico-científico, visando a cura daquele que está diante da morte, paradigma fortemente difundido em sua formação profissional. Sofre com seu distanciamento em relação a alta tecnologia presente em outros níveis de atenção à saúde, a qual poderia mascarar a situação de terminalidade vivenciada durante a VD. Como não encontra um espaço para compartilhar esse sentimento, acaba ficando mais suscetível aos agravos à sua saúde enquanto trabalhador.

O PSF encontra-se em plena expansão no país e a sua filosofia tem se tornado mais sólida com o passar dos anos. Pela sua complexidade e amplitude de atuação, a pesquisa de temas específicos como o cuidado a família em situações de morte e morrer podem contribuir para o avanço desse programa, favorecendo a humanização preconizada por ele. A partir das vivências relatadas pelos enfermeiros desta pesquisa foi possível repensar a forma como essa assistência tem sido realizada, viabilizando a criação de novas estratégias para que as dificuldades relatadas por eles sejam supridas através de capacitações e discussões.

O investimento em estudos sobre o enfermeiro em situações relacionadas à família e à doença, à morte e o morrer e à VD, poderá favorecer novas discussões sobre a temática, permitindo a construção de uma enfermagem mais humana e mais pronta para atuar em situações inerentes ao cuidado de enfermagem. Além do mais, novos estudos sobre essa temática poderão ampliar o conhecimento sobre cuidados paliativos, que ainda hoje está muito centrada no ambiente hospitalar.

Recebido: 29/08/2007

Aprovado: 08/10/2008

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  • Correspondência:
    Silvia Helena Valente
    Alameda São Caetano 1122, Ap. 62, Barcelona
    CEP 09560-051 - São Caetano do Sul, SP, Brasil
  • *
    Extraído da dissertação "Cuidando no domicílio de famílias que vivenciam o processo de terminalidade: a percepção dos enfermeiros que atuam no Programa de Saúde da Família", Universidade de Guarulhos, 2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Recebido
      29 Ago 2007
    • Aceito
      08 Out 2008
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