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O ensino da saúde coletiva no método de aprendizagem baseado em problemas: uma experiência da Faculdade de Medicina de Marília

Teaching collective health using problem based learning: an experience at the Faculty of Medicina of Marilia

Resumos

Este trabalho relata a estratégia de incorporação das bases da Saúde Coletiva no currículo da Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Em 1991, a Famema passou a desenvolver o Projeto UNI, financiado pela Fundação Kellogg, iniciando um conjunto de mudanças no ensino de Medicina, resultando, em 1997, na introdução do método de ensino da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). A ABP trabalha com a perspectiva holística do processo ensino aprendizagem e, por isso, estimula a participação ativa dos estudantes, principalmente, na cooperação em pequenos grupos; no auto-estudo e na educação multidisciplinar. Algum tempo após a introdução do ABP, identificou-se a dificuldade do uso de explicações das dimensões psicológicas e sociais para os problemas. A solução construída para a incorporação da dimensão social nos problemas foi a adoção da perspectiva sociológica das categorias fundantes da Saúde Coletiva: tempo, espaço e pessoa. O resultado foi a construção de uma matriz formada por seis tópicos e orientada para estimular os alunos a alcançar as noções de totalidade e integralidade do cuidado em saúde.

Educação Médica; Saúde Pública; Sociologia Médica; Aprendizagem Baseada em Problemas


This paper relates the strategy of introducing the bases of Collective Health to the curriculum of the Faculty of Medicine of Marília (Famema). In 1991, Famema started the UNI Project funded by the Kellogg Foundation, with this initiating a set of changes in medical teaching that in 1997 resulted in the introduction of Problem Based Learning. Problem Based Learning works with a holistic view of the teaching-learning process, encouraging students to actively participate, mainly through small group co-operations, self-study and multidisciplinar y education. Some time after the introduction of PBL, difficulties were identified with respect to working with psychological e sociological issues. The solution found for incorporating the social dimension of problems was adopting the sociological perspective of the basic conceits of Collective Health: time, space and the individual. The result was the construction of an analytical matrix composed by six topics, aimed at stimulating the students to achieve the dimensions of totality and integrality of collective health care.

Education, Medical; Public Health; Sociology,Medical; Problem-Based Learning


PESQUISA

O ensino da saúde coletiva no método de aprendizagem baseado em problemas: uma experiência da Faculdade de Medicina de Marília

Teaching collective health using problem based learning: an experience at the Faculty of Medicina of Marilia

Nelson Felice de BarrosI; Lídia C. de Almeida LourençoII

IFaculdade de Ciência Medica, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

IIFaculdade de Medicina de Marília, Marília, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Nelson Felice de Barros Rua Abílio Vilela Junqueira,681/2 13085-420 Campinas - São Paulo-SP E-mail: nelfel@uol.com.br Lídia C. de Almeida Lourenço Rua Antônio Augusto Neto,195 17501-280 Campinas-SP E-mail: lcal@terra.com.br

RESUMO

Este trabalho relata a estratégia de incorporação das bases da Saúde Coletiva no currículo da Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Em 1991, a Famema passou a desenvolver o Projeto UNI, financiado pela Fundação Kellogg, iniciando um conjunto de mudanças no ensino de Medicina, resultando, em 1997, na introdução do método de ensino da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). A ABP trabalha com a perspectiva holística do processo ensino aprendizagem e, por isso, estimula a participação ativa dos estudantes, principalmente, na cooperação em pequenos grupos; no auto-estudo e na educação multidisciplinar. Algum tempo após a introdução do ABP, identificou-se a dificuldade do uso de explicações das dimensões psicológicas e sociais para os problemas. A solução construída para a incorporação da dimensão social nos problemas foi a adoção da perspectiva sociológica das categorias fundantes da Saúde Coletiva: tempo, espaço e pessoa. O resultado foi a construção de uma matriz formada por seis tópicos e orientada para estimular os alunos a alcançar as noções de totalidade e integralidade do cuidado em saúde.

Palavras-chave: Educação Médica; Saúde Pública; Sociologia Médica; Aprendizagem Baseada em Problemas.

ABSTRACT

This paper relates the strategy of introducing the bases of Collective Health to the curriculum of the Faculty of Medicine of Marília (Famema). In 1991, Famema started the UNI Project funded by the Kellogg Foundation, with this initiating a set of changes in medical teaching that in 1997 resulted in the introduction of Problem Based Learning. Problem Based Learning works with a holistic view of the teaching-learning process, encouraging students to actively participate, mainly through small group co-operations, self-study and multidisciplinar y education. Some time after the introduction of PBL, difficulties were identified with respect to working with psychological e sociological issues. The solution found for incorporating the social dimension of problems was adopting the sociological perspective of the basic conceits of Collective Health: time, space and the individual. The result was the construction of an analytical matrix composed by six topics, aimed at stimulating the students to achieve the dimensions of totality and integrality of collective health care.

Key-words: Education, Medical; Public Health; Sociology, Medical; Problem-Based Learning.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, tem se produzido intenso debate em torno da reforma curricular das escolas médicas no Brasil1-8. Um dos maiores desafios para o sucesso dessas mudanças é a adoção de uma metodologia mais holística e de métodos mais participativos.

Acredita-se que uma forma de alcançar essas mudanças no campo da saúde é a aproximação entre a universidade e os serviços. Obviamente, não é possível uma única estratégia de aproximação para todo o Brasil, mas a maior parte procura introduzir alunos nas unidades da rede para conhecerem a realidade "de um modo estranho ao da universidade, promovendo mobilização do corpo, do afeto e do pensamento, e gerando novo padrão de exigência de aprendizado" 9.

O ensino médico com a perspectiva coletiva é bastante antigo nas ciências da saúde10, mas, com o processo de reforma curricular, sofreu diferentes transformações. Uma das escolas médicas que adotou mudanças foi a Faculdade de Medicina de Marília (Famema). A partir de 1991, começou a participar do Projeto UNI, financiado pela Fundação Kellogg, que preconizava o estreitamento das relações com a comunidade e com os serviços de saúde. Algumas mudanças estruturais foram necessárias, e foi escolhida a metodologia da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), de acordo com os preceitos da Universidade de MacMaster (Canadá) e de Maastrich (Holanda).

Neste artigo, apresentamos uma proposta de incorporação de elementos da Saúde Coletiva aos problemas da ABP na Famema.

O MÉTODO DE APRENDIZAGEM BASEADA EM PROBLEMAS

Por volta de 1965, foi desenvolvido o método da Aprendizagem Baseada em Problemas11-14, na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de McMaster, no Canadá, sob a influência da metodologia do estudo de casos empregada nos anos 1920, na Escola de Direito de Harvard.

No contexto da escola médica, a ABP foi e ainda é uma ação de contracultura na medida em que é um método de aprendizagem ativa, que procura compreender os princípios e os processos dos fenômenos investigados e que estimula o interesse pela investigação.

A ABP pressupõe: cooperar em pequenos grupos; condução do tutor; auto-estudo; educação multidisciplinar; educação em bloco e teste progressivo.

O PROBLEMA: FUNDAMENTO DO MÉTODO

O problema é a parte mais interna da ABP e deverá plantar no aluno a dúvida, estimulando a formulação de questões. Trata-se do instrumento de promoção da primeira ruptura epistemológica15,16,17,18 ou seja, da passagem das explicações fundadas no senso comum para as baseadas no conhecimento científico. Portanto, é a ferramenta que propiciará a construção-passagem do problema social para o problema sociológico.

Assim, a partir da apresentação de algumas referências e sinais de um indivíduo ou coletivo, o estudante formula questões para compreender a determinação multicausal do desequilíbrio, bem como a sistematização dos sinais em sintomas. Segundo Caprara14, o problema:

Funciona como 'ativador' dos conhecimentos prévios; constitui o foco para aprendizagem de conhecimentos oriundos de diversas fontes; fornece o contexto para a aprendizagem; constitui o elemento gerador da motivação intrínseca dos estudantes14.

Entre outras questões sobre os problemas, existe uma de cunho epistemológico. Sabidamente, o modelo biomédico é criticado pelo reducionismo, por privilegiar o aspecto biológico do processo saúde-doença em detrimento do psicológico e do social. Dessa maneira, uma tarefa extra para os problemas na ABP é alcançar a integralidade, estimulando as relações sociopsicomédicas ou psicossociomédicas, em lugar da exclusividade médico-psicossocial.

Pode parecer apenas um jogo de palavras, mas não é, pois o processo de construção de problemas na Famema foi amadurecendo. Inicialmente, refletia a justaposição de conteúdos, ao incluir situações que respondiam mais à demanda de "criar um gancho" do que propriamente reproduzir e/ou criar contextos e cenários relevantes de reflexão para estimular a aprendizagem do aluno. Os estudantes tiveram um papel fundamental em denunciar "os penduricalhos" de cada problema, em particular aqueles que supostamente deveriam ensejar uma discussão dos conteúdos "não biológicos"20.

Os problemas podem ser de tipo descritivo, explicativo, de obstáculo de processo e de dilema; e devem conter título sugestivo e que direcione o interesse; texto claro, não muito extenso, nem muito prolixo; e instruções ou interrogações que dirijam a discussão para um tema definido e que explicitem como abordar o problema14.

INCLUSÃO DE ELEMENTOS DA SAÚDE COLETIVA NOS PROBLEMAS DA ABP

O objetivo da proposta foi introduzir elementos da organização social nos problemas da ABP, compreendendo que eles devem conter estrutura e processo, alcançando a totalidade como produto e a totalização como método21. Assim, por um lado, insere-se nos problemas um sentido de (re)estruturação do conjunto de dimensões qualitativas e quantitativas da economia, da política, da cultura, da epidemiologia, etc; e, por outro lado, introduz-se a dúvida sociológica de identificar se, após as mudanças, se trata de outra sociedade ou da mesma sociedade em movimento.

O meio de introduzir esses elementos foi trabalhar com as categorias constitutivas, simultaneamente, da organização social e da Saúde Coletiva: o tempo, o espaço, a pessoa e os modelos explicativos do processo saúde-doença. Embora essas categorias estejam presentes na malha conceitual apresentada por Venturelli22, a forma como as introduzimos em nossa proposta é diferente.

A forma de operacionalizá-las foi tomar o conjunto de problemas da 1ª série como uma totalidade, na qual são identificadas diferentes categorias da organização social. Assim, cada problema teve um aspecto do tempo, do espaço, da pessoa e dos modelos explicativos do processo saúde-doença, levando em consideração também a relevância, a seqüência lógica, a extensão, a factibilidade, a contextualização, a monitoração e a avaliação14.

Tempo

A noção de tempo é fundante da racionalidade ocidental, mas não é única em seu entendimento estrutural e simbólico.Estruturalmente, pode ser diferenciada em formas puras de passado, presente e futuro ou em híbridos sucessivos de passado-presente e presente-futuro. Simbolicamente, o tempo pode ser compreendido como o resultante da elaboração e interação de elementos coletivos de cada cultura.

Decorre da categoria tempo a demarcação dos intervalos da vida social e a operacionalização com os pares tempo linear/ tempo cíclico e tempo histórico/tempo mítico. O "desencanto do mundo" foi sentenciado ao identificar a opção da racionalidade ocidental pelo racionalismo, portanto pelos tempos linear e histórico, em detrimento das racionalidades "tradicionais", de traço holístico, apoiadas nos tempos cíclico e mítico.

No quadro dos tempos, encontram-se as formas estruturais puras: passado (remoto/recente), presente e futuro (próximo/ longínquo)23. Todavia, pode-se construir, ainda, o quadro da experiência do tempo híbrido: passado-presente, que delimita duração, memória de longo prazo, simultaneidade e sucessão; e presente-futuro, que define o tempo de curto prazo ou a percepção de intervalos curtos, ritmo ou timing, além da perspectiva temporal com a experiência do vir-a-ser.

Assim, é possível criar um problema que esteja se desenvolvendo no instante, na atualidade, na década passada, nos anos 1970, numa série histórica, etc., proporcionando o resgate temporal, a construção de cenários e contextos, e a determinação cronológica dos problemas de saúde.

Espaço

O espaço é outra noção fundante da racionalidade ocidental e, como o tempo, também tem representação diferenciada, estrutural e simbolicamente. Uma ciência da demarcação dos espaços estruturais é a geografia física, com o estudo das formações rochosas, relevos, climas, etc. Por sua vez, o espaço simbólico pode ser estudado pela ciência política e geografia, na justaposição que formou a geopolítica como disciplina. Certamente, a máxima especialização simbólica da geopolítica traduz-se no exercício da cartografia, que reduz e amplia as proporções do foco.

"O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único no qual a história se dá"24. Continua Santos:

No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. Através da presença desses objetos técnicos o espaço é marcado por esses acréscimos24.

Ao adotarmos esse conceito de espaço, estamos ampliando a perspectiva do espaço naturalizado do positivismo, para identificá-lo como resultante da atividade histórica e dialética dos homens.

No caso da saúde, o espaço passa a ser um território cujos objetos técnicos presentes são as redes de relações criadas pelos coeficientes de morbi-mortalidade do local, pelas diferentes alternativas de cuidado, pela complexidade dos serviços instalados, pelo modelo gerencial e pelas políticas públicas da saúde local e nacional.

Assim, para qualificar o espaço, que pode ser do tamanho de um bairro, região, cidade, município, etc., deve-se identificar muito além do nome, latitude e altitude, ou seja, é necessário destacar a organização das suas práticas e o modelo de gerenciamento e atenção dos serviços.

Pessoa: o hábito individual e o habitus coletivo

O conceito de habitus foi mais recentemente desenvolvido por Bourdieu. Trata-se de constructo teórico complexo, porém com boas condições de operacionalização. O habitus apresenta-se como um estado:

Quase biológico, do [corpo social] se reproduzir. (...) Um segundo sistema de hereditariedade propriamente social que tende a assegurar, mediante a transmissão consciente ou inconsciente do capital acumulado, a perpetuação das estruturas sociais ou das relações de ordem que formam a 'ordem social' (...) através de mudança incessante e da renovação permanente, dos indivíduos, claro, mas também das manifestações da diferença, o que faz falar constantemente em 'mutação'25.

As demarcações "quase biológico", "hereditário" e "mutação" são bastante importantes, pois com elas explicita-se a força reprodutora da estrutura social e da cultura, mas também garante-se que não serão tomadas como determinantes exclusivos.

Em outro trecho, Bourdieu25 afirma ser o habitus Um sistema de disposições duráveis e transferíveis que integram todas as experiências passadas e funciona a todo momento como matriz de preocupações, apreciações e ações. O habitus torna possível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciais, graças às transferências analógicas e esquemas que permitem resolver os problemas, da mesma forma, graças às correções incessantes dos resultados obtidos e dialeticamente produzidos por estes resultados25.

Assim, para apresentar as pessoas em sua condição social, pode-se partir da definição de habitus para qualificar seus atributos e os do grupo a que ele pertence. Considerando que as pessoas são sujeitos dos problemas, é importante qualificar sua posição social, na estrutura social, e sua condição social, no plano da cultura.

A estrutura social ressalta a diferença, ou seja, o modo como as pessoas se relacionam de acordo com suas posições sociais. A teoria dos papéis sociais é bastante adequada para esse tipo de análise, dado que, além de identificar o indivíduo na posição, também qualifica seus atributos de poder, prestígio e perspectiva26.

Por outro lado, como complemento da inserção na estrutura social, apresenta-se a condição social, qualificada por sua identidade cultural. O estudo da identidade é bastante complexo, sendo possível defini-la pela participação do grupo dos proprietários ou dos não proprietários, como pensou Marx de maneira geral, e defini-la de acordo com a posição e condição social, como desenvolveu25.

Alguns atributos que qualificam a condição social dos indivíduos são as crenças, os valores e as normas.

MODELOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE E EXPLICATIVOS DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA

Se for certo que em todas as sociedades complexas existem setores de cuidado, também é certo que existem modelos em disputa, cujas variações são determinantes fundamentais do espaço.

A construção da hegemonia dá-se pela legalidade e legitimidade, de forma que a primeira garante o reconhecimento por um conjunto de leis e de agentes que as fazem cumprir, e a segunda garante o reconhecimento no plano simbólico, ético e moral. Como as sociedades estão em movimento, também os diferentes modelos de saúde estão em processo, de forma que são identificadas mudanças na hegemonia e na homogeneidade dos modelos.

Da ciência política sabe-se que o instituinte das mudanças é a variação na correlação de forças dos blocos de poder em disputas. Cada novo momento de alteração de poder apresenta reflexos na política, na construção de modelos de operação/desenvolvimento e na forma de gerenciamento. Ao transpor essa matriz teórica para o campo da saúde brasileiro, reconhecem-se, ao longo das últimas décadas, blocos de poder público e privado, que criaram políticas, sustentaram socialmente a construção de modelos de organização dos serviços de saúde e exibem formas gerenciais específicas, de acordo com seu ideário27,28.

O ideal é que já tivéssemos superado as tipologias sociopsicomédicas, psicossociomédicas ou médico-psicossociais, tendo alcançado a integralidade e a totalidade, mas há várias dificuldades para essa concretização.

Crendo que a melhor estrutura dos problemas é a que utiliza elementos de diferentes modelos explicativos do processo saúde-doença, propõe-se: se a orientação inicial é a social, porém, obviamente, sobre um problema de saúde biológico, então elementos históricos do espaço – história dos conceitos, das técnicas de intervenção individual e das formas de intervenção coletiva sobre o problema biomédico (das políticas, das instituições, dos modelos de organização das práticas e das formas de administração) – devem somar-se a elementos da inserção da pessoa na estrutura social – papel, poder, prestígio e perspectiva – e na cultura – crenças, valores e normas –, com suas construções psíquicas.

Dessa maneira, trabalhando com os modelos explicativos histórico, sociológico, biomédico clínico e epidemiológico, e psicológico, são produzidos problemas, como, por exemplo, o de "Juninho Alves".

"Problema Juninho Alves"

Entre as mudanças mais significativas desse novo formato de um "velho" problema, está o trabalho com a noção de totalidade e integralidade. Para desenvolver a primeira noção, inserimos o sujeito do problema numa estrutura mais ampla – a família –, na qual, como em qualquer família, se desenvolvem outros problemas. É importante ressaltar que a dinâmica desse grupo é formada por cada um de seus membros, em seus diferentes aspectos, mas é uma totalidade diferente da simples soma de cada parte29. Para trabalhar com a integralidade, apresentamos sujeitos inseridos, muitas vezes, em espaços iguais, mas em territórios diferentes. Assim, a família de "Juninho", que tem uma condição social de renda média, habita diferentes territórios da saúde frente aos problemas que apresenta. Em outros termos, portanto, mesmo tendo acesso a serviço privado de saúde, a família foi levada a procurar o apoio do serviço público de saúde por uma situação de emergência e pela circunstância da mudança.

Estrutura do problema "Juninho Alves"

Problema explicativo – diferentes aspectos do processo são explicitados, deixando claros os mecanismos causais

  1. Tempo – presente.

  2. Espaço – território do município de Marília.

  3. Organização das práticas

  1. Modelo de atenção – atendimento de pronto-socorro no SUS

  2. Pessoa

  1. Modelo explicativo

ORGANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE SAÚDE

Em qualquer sociedade complexa, é possível identificar a (co)existência de diferentes formas de assistência à saúde30.Essa pluralidade pode ser compreendida pelo fato de que os sistemas médicos31 ou racionalidades médicas32 possuem dois aspectos inter-relacionados: um aspecto cultural, que inclui determinados conceitos básicos, teorias, práticas normativas e formas comuns de percepção; e um aspecto social, que inclui sua organização em determinados papéis específicos (como os de médico e de paciente) e princípios que regem as relações entre estes papéis em ambientes específicos (no hospital, no consultório médico, no centro de saúde, etc.)30.

As formas de assistência são diferenciadas pela estrutura constituída pelos complexos cultural e social, e podem ser identificadas como informal, popular e profissional.

As práticas profissionais são desenvolvidas pelos profissionais da medicina oficial e constituem um grupo de "curandeiros" cuja atividade é assegurada por um conjunto de leis33,34. Eles gozam de status social mais alto, renda maior, além de direitos e obrigações mais claramente definidos do que os outros tipos de curandeiros. Têm o poder de interrogar e examinar seus pacientes, prescrever tratamentos e medicamentos poderosos e, algumas vezes, perigosos, e privar algumas pessoas de sua liberdade – confinando-as em hospitais – se estas forem diagnosticadas como psicóticas ou infecciosas. No hospital, eles podem controlar rigorosamente a dieta, comportamento, padrões de sono e medicação do paciente, além de introduzir uma variedade de exames – biópsias, radiografias ou secções de veias. Podem ainda rotular seus pacientes (em alguns casos, permanentemente) como doentes, incuráveis, simuladores, hipocondríacos ou plenamente recuperados – um rótulo que pode entrar em conflito com a perspectiva do paciente30.

Essas práticas podem ser identificadas em diferentes estruturas, ações e agentes, de acordo com o quadro a seguir.

Entre as práticas profissionais, há um conjunto de instituições, ações e agentes que têm os atributos oficiais para o exercício da prática, mas desenvolvem outros sistemas ou racionalidades.Trata-se das chamadas práticas alternativas e complementares, em franco crescimento do número de usuários e praticantes e, por isso, com forte apelo para o aumento de investigações sobre sua eficácia, eficiência, padrão de formação, custo e possibilidade de inserção nos sistemas nacionais de saúde35.

O quadro das instituições, ações e agentes dessas práticas ainda não está muito bem definido, mas sabemos que, além de se desenvolver nos espaços oficiais, também se expande em outras instituições, dadas as suas características.

Um segundo conjunto de práticas de cuidado e cura disponível nas sociedades complexas é o das práticas populares. É necessário afirmar que elas são compreendidas como um conjunto de práticas e, portanto, não formam um sistema ou uma racionalidade. A OMS35 as denomina como práticas da medicina tradicional, para diferenciá-las das práticas alternativas e complementares. São, em grande parte, realizadas por curandeiros populares que compartilham os mesmos valores culturais básicos e visões de mundo das comunidades em que vivem, incluindo crenças sobre a origem, significado e tratamento de doenças. Sua abordagem é, geralmente, holística, pois trata de todos os aspectos da vida do paciente, inclusive seus relacionamentos com outras pessoas, com o meio ambiente natural e com poderes sobrenaturais, além de seus sintomas emocionais e físicos.

O quadro de instituições, ações e agentes das práticas populares é bem menor que o da alternativa profissional, pelo fato de que elas não são a prática oficial e se mantêm como resistência cultural das populações periféricas das grandes cidades ou das comunidades com forte ascendência rural.

A terceira alternativa de cuidado de saúde é um conjunto de ações não estruturado e não oficial. São as práticas informais, constituídas por uma série de relações de cura informais e não pagas, de duração variável, que ocorrem na própria rede social do paciente29, particularmente na família. Ela é a sede primeira da assistência à saúde em qualquer sociedade. Na família, os principais responsáveis pela assistência à saúde são as mulheres, geralmente as mães ou as avós, que diagnosticam as doenças mais comuns e as tratam com os recursos disponíveis30. Há estimativas de que cerca de 70% a 90% dos tratamentos de saúde ocorrem neste setor, tanto nas sociedades ocidentais quanto nas não ocidentais. As pessoas, quando "adoecem", obedecem normalmente a uma "hierarquia de recursos", que vai desde a automedicação até a consulta a outras pessoas31,35.

Os encontros terapêuticos acontecem sem regras determinadas de comportamento e ambiente, e têm duração variável. Os papéis podem ser invertidos, e o paciente de hoje poderá ser o curandeiro amanhã. Determinados agentes, contudo, tendem a atuar como fontes de aconselhamento à saúde mais do que outros. São eles: aqueles com longa experiência numa doença específica ou num determinado tipo de tratamento; aqueles com larga experiência em acontecimentos da vida, como mulheres que criaram muitas crianças; os profissionais técnicos (enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, recepcionistas de médicos, etc.), consultados informalmente a respeito de problemas de saúde; esposas ou maridos de médicos, que compartilham as experiências de seus cônjuges, às vezes até com algum treinamento na área; indivíduos tais como cabeleireiros, vendedores ou até gerentes de banco, que se relacionam com freqüência com o público e, algumas vezes, atuam como confidentes ou psicoterapeutas leigos; coordenadores de grupos de auto-ajuda; e membros de determinados cultos de cura ou igrejas30 .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certamente, um dos fatos mais importante das duas últimas décadas no campo da saúde foram os debates em torno das mudanças nos currículos das escolas médicas. Várias propostas foram formuladas, e algumas escolas promoveram reformas com poucas mudanças, ao passo que outras assumiram mudanças profundas na forma e conteúdo de ensino.

A Faculdade de Medicina de Marília foi uma das escolas que mudou em profundidade e desde 1997 vem construindo o melhor formato para o desenvolvimento da Aprendizagem Baseada em Problemas. Como se pode prever, enfrenta problemas de várias ordens, pois se trata de uma mudança estrutural e cultural numa das instituições mais "reprodutoras" da ordem social.

Entre as dificuldades está o ensino da dimensão coletiva do processo saúde-doença por meio dos problemas. Não se trata de uma tarefa simples: por um lado, existe a forte presença da clínica individual do caso; por outro, a perspectiva coletiva, na sua dimensão macrossocial, não encontra relação direta e imediata com o problema individual.

Nosso objetivo foi apresentar uma proposta de inserção da dimensão coletiva, aquilo que os alunos chamam de "social", na construção dos problemas. Para isso, fundamentalmente, trabalhamos com as noções fundantes da Saúde Coletiva – tempo, espaço e pessoa – para alcançar a determinação multicausal da doença e as noções de totalidade e integralidade.

Recebido em: 27/04/2005

Reencaminhado em: 24/03/2006

Aprovado em: 04/09/2006

Conflito de Interesse: Declarou não haver.

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    Nelson Felice de Barros
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Recebido
      27 Abr 2005
    • Aceito
      04 Set 2006
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