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Adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero entre mulheres de comunidades assistidas pela Estratégia Saúde da Família da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

Adherence to cervical cancer screening among woman from communities assisted by the Family Health Strategy at the Baixada Fluminense, Rio de Janeiro State, Brazil

Resumos

OBJETIVOS

: Avaliar a adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero em população assistida pela Estratégia Saúde da Família (ESF) e identificar as causas referidas da não adesão.

MÉTODOS:

Estudo de prevalência seletiva sobre rastreamento para câncer do colo do útero entre mulheres assistidas pela ESF dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, nove anos após a participação em estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Câncer. Foram elegíveis apenas as mulheres que não tiveram diagnóstico de NIC II ou lesão mais grave na avaliação histopatológica, não se submeteram à histerectomia no período e ainda residiam nas comunidades. Foram identificados os locais, os resultados e os intervalos dos exames, as características socioeconômicas e demográficas, e as causas referidas de não adesão. Os resultados foram coletados por meio de entrevista e consulta a prontuários. Foi calculada a prevalência de adesão ao rastreamento e o teste qui-quadrado foi utilizado para comparar as proporções das variáveis estudadas e sua relação com os motivos referidos de atraso na realização dos exames.

RESULTADOS:

Foram entrevistadas 764 mulheres, das quais 70,7% estavam com os exames atualizados. As causas referidas para não adesão à coleta dos exames foram: não percepção de risco (44,6%), barreiras sociais (26,3%), barreiras percebidas à ação (22,3%) e barreiras institucionais (21,4%). Estas foram proporcionalmente mais frequentes entre residentes de Nova Iguaçu do que de Duque de Caxias (p<0,01), exceto quanto às barreiras institucionais (p=0,19).

CONCLUSÕES:

Apesar das dificuldades e barreiras apontadas pelas mulheres, observou-se boa adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero. No entanto, há necessidade de treinamento dos profissionais para cumprimento das recomendações do Ministério da Saúde quanto à regularidade de exames e facilitação do acesso ao rastreamento.

Neoplasias do colo do útero/ prevenção & controle; Programas de rastreamento ; Saúde da família ; Saúde da mulher


PURPOSE:

To assess the adherence to a cervical cancer screening program and to identify reported reasons for inadequate screening in women receiving care as part of the Family Health Strategy.

METHODS:

A selective prevalence study on cervical cancer screening in women receiving care as part of the Family Health Strategy in the cities of Duque de Caxias and Nova Iguaçu in the state of Rio de Janeiro, southeastern Brazil, nine years after they participated in a previous study of the Brazilian National Cancer Institute. Only those women who were not diagnosed with CIN II or more severe lesions by histopathology, did not undergo hysterectomy during the study period and still resided in the communities were eligible to participate in the study. Information on exam sites, test results and schedules, sociodemographic characteristics and reported reasons of non-adherence was obtained. Data were collected through interviews and medical record review. The prevalence of adherence to screening was estimated, and the chi-square test was used to compare proportions between the variables studied and their relationship with the reported reasons of non-adherence to screening.

RESULTS:

A total of 764 women were interviewed, 70.7% of whom received adequate cervical cancer screening. The reported reasons for inadequate screening included: no risk perception (44.6%), social barriers (26.3%), perceived barriers to action (22.3%) and institutional barriers (21.4%). These reasons were proportionately higher among residents of Nova Iguaçu than among residents of Duque de Caxias (p<0.01), except for institutional barriers (p=0.19).

CONCLUSIONS:

Although difficulties and barriers were reported, there was good adherence to cervical cancer screening among the women studied. Health providers should receive proper training for complying with the Brazilian Ministry of Health guidelines of regular testing and to facilitate access to screening.

Uterine cervical neoplasms/ prevention & control; Mass screening ; Family health Women's health


Introdução

O câncer do colo do útero é uma importante causa de morbidade e mortalidade na população feminina, particularmente nos países em desenvolvimento, onde ocorrem 85% dos casos diagnosticados11. International Agency for Research on Cancer. World Health Organization. GLOBOCAN 2012: estimated cancer incidence, and mortality and prevalence worldwide in 2012 [Internet] Lyon: IARC; 2013. [cited 2014 Feb 11]. Available from: http://globocan.iarc.fr/Default.aspx
Available from: http://globocan.iarc.fr/...
. No Brasil, é a terceira causa de óbito por câncer entre as mulheres, desde 2006, após as correções realizadas para óbitos por câncer do útero porção não especificada (SOE) e causas mal definidas22. Silva GA, Girianelli VR, Gamarra CJ, Bustamente-Teixeira MT. Cervical cancer mortality trends in Brazil, 1981-2006. Cad Saúde Pública. 2010;26(12):2399-407.. Tem sido observada queda na tendência de mortalidade em todas as capitais das regiões brasileiras e nos demais municípios das regiões Sul e Sudeste. No entanto, nos municípios do interior das regiões Norte e Nordeste, a tendência é crescente, sinalizando a necessidade de atenção para as áreas menos privilegiadas economicamente, que concentram a população com maior risco e com menor acesso aos serviços de saúde. Já a taxa de incidência no país é superada apenas pela do câncer de mama e recentemente pela do cólon e reto, excluindo câncer de pele não melanoma33. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2013. . A incidência e mortalidade do câncer do colo do útero, contudo, podem ser significativamente reduzidas com a implantação de programas efetivos de rastreamento e tratamento oportuno das lesões precursoras.

Em revisão sistemática da literatura sobre a cobertura do exame de Papanicolaou no Brasil44. Martins LFP, Thuler LCS, Valente JG. [Coverage of the Pap smear in Brazil and its determining factors: a systematic literature review]. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;27(8):485-92. Portuguese. , os autores identificaram poucos estudos sobre o tema e a maioria concentrado nas grandes cidades das regiões Sul e Sudeste do país. Os estudos sinalizaram que as mulheres mais jovens, de baixa escolaridade, de baixo nível socioeconômico e com menor renda familiar eram as que menos faziam o exame.

Diversas estratégias vêm sendo adotadas para garantir o acesso ao programa de rastreamento do câncer do colo do útero, bem como o seguimento das mulheres com exames alterados. A Estratégia Saúde da Família (ESF), por ser um modelo de assistência constituído por equipes responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias de uma área geográfica delimitada, favorece o acesso da população ao programa. Essa estratégia também possibilita a identificação e busca ativa das mulheres elegíveis para o rastreamento e tratamento, aumentando a resolutividade da assistência e consequentemente o controle dessa neoplasia.

Em estudo realizado em áreas cobertas pela ESF no município de Rio Grande, Rio Grande do Sul, o exame foi realizado na unidade de referência em menos da metade das mulheres para as quais o exame foi oferecido55. Gonçalves CV, Sassi RM, Netto IO, Castro NB, Bortolomedi AP. [Cytopathological coverage of the cervix in Basic Health Units of the Family]. Rev Bras Ginecol Obstet. 2011;33(9):258-63. Portuguese.. Em estudo qualitativo que incluiu usuárias da ESF na Parnaíba, Piauí, foi constatado que a maioria delas não realizava o exame em razão de timidez, medo, vergonha e dor, embora reconhecesse a importância66. Brito CMS, Nery IS, Torres LC. Sentimentos e expectativas das mulheres acerca da citologia oncótica. Rev Bras Enferm. 2007;60(4):387-90. . Apesar da gratuidade do exame na rede do SUS e de ser considerado um exame de fácil realização - pois demanda tecnologia relativamente simples e bem conhecida no país, mas cuja logística apresenta grande complexidade -, ainda há uma importante lacuna nos conhecimentos no que diz respeito às razões pelas quais as mulheres não se submetem ao exame na periodicidade recomendada pelo Ministério da Saúde.

Considerando que o câncer do colo do útero é uma das prioridades das políticas de saúde do país e que a ESF pode exercer um papel fundamental na redução da morbimortalidade dessa neoplasia, o presente estudo objetivou avaliar a adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero entre mulheres assistidas pela Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, do Estado do Rio de Janeiro, que estavam com exames atrasados. Procurou também identificar as causas referidas de não realização dos exames preventivos recomendados.

Métodos

Trata-se de um estudo de prevalência seletiva77. Kleinbaum DG, Kupper LL, Morgenstern H. Epidemiologic research: principles and quantitative methods. New York: Wiley & Sons; 1982. p. 62-95. , 88. Klein CH, Bloch KV. Estudos seccionais. In: Medronho RA, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL, editores. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009. p. 193-219. , tendo como população-fonte as participantes de estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) em 2002, em que foram avaliados quatro exames (Papanicolaou, citologia em meio líquido, captura híbrida para HPV com coleta por profissional de saúde e por autocoleta) no rastreamento do câncer do colo do útero99. Girianelli VR, Thuler LC, Szklo M, Donato A, Zardo LM, Lozana JA, et al. Comparison of HPV DNA tests and liquid based cytology with conventional cytology for the early detection of cervix uteri cancer. Eur J Cancer Prev. 2006;15(6):504-10.. Naquela ocasião, foram incluídas no estudo 2.059 mulheres de 25 a 59 anos, de 13 comunidades assistidas pela Estratégia Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu, que não faziam exame de Papanicolaou há mais de três anos. Após 9 anos, foram elegíveis apenas as mulheres que não tiveram diagnóstico de neoplasia intraepitelial cervical de grau II (NIC II) ou lesão mais grave na avaliação histopatológica e não se submeteram à histerectomia no período, e ainda residiam nas áreas de abrangência da pesquisa inicial.

Esses municípios estão localizados na região da Baixada Fluminense, periferia da capital do Estado do Rio de Janeiro, sendo o terceiro e quarto municípios mais populosos do estado. Eles apresentam alto índice de desenvolvimento humano geral e médio em relação às dimensões de educação e de renda. No entanto, as comunidades estudadas estavam entre as mais carentes de cada município.

As mulheres foram novamente contatadas por meio de visita domiciliar pelos agentes de saúde da área adscrita para participarem do estudo. As que aceitaram agendaram entrevista na unidade de saúde da ESF. Elas assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram entrevistadas, no período de janeiro a novembro de 2011, por quatro enfermeiras selecionadas e treinadas para o estudo. Foi utilizado um questionário semiestruturado sobre as características socioeconômicas e demográficas, a realização de exames preventivos para câncer do colo do útero e os critérios de elegibilidade supracitados, e consultado o prontuário da unidade de saúde.

Os exames foram classificados como documentado quando era apresentado o laudo com o resultado ou havia registro no prontuário da paciente; os demais foram classificados como relatados. No caso de desconhecimento do dia ou mês do exame realizado, foi registrado o meio do período do mês ou do ano informado, ou foi considerado ignorado quando a mulher não recordava. A adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero foi considerada quando a mulher estava com os exames em dia, conforme a recomendação do programa nacional1010. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Coordenação de Prevenção e Vigilância . Nomenclatura brasileira para laudos cervicais e condutas preconizadas: recomendações para profissionais de saúde. 2a ed. Rio de Janeiro: INCA; 2006. .

O local de realização dos exames foi categorizado em unidade da ESF, outras unidades da rede pública (SUS) ou unidades da rede privada (Não SUS). Foi avaliada a periodicidade de realização dos exames de Papanicolaou com resultado negativo, considerando o intervalo em anos entre os dois últimos exames e entre o penúltimo e o antepenúltimo exames realizados. Os intervalos foram categorizados em menos de três anos; três anos, recomendação do programa nacional1010. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Coordenação de Prevenção e Vigilância . Nomenclatura brasileira para laudos cervicais e condutas preconizadas: recomendações para profissionais de saúde. 2a ed. Rio de Janeiro: INCA; 2006. ; e maior ou igual a quatro anos.

As mulheres que estavam com os exames de prevenção do câncer do colo do útero atrasados também foram indagadas quanto aos motivos para o atraso. As causas referidas de não realização do exame foram posteriormente categorizadas em: não percepção de risco - considerar-se não suscetível ao câncer do colo do útero, ou seja, acreditar que essa doença não pode afetá-la; barreiras percebidas à ação - aspectos negativos relacionados à intervenção, como desconforto, dor, vergonha, medo do diagnóstico de câncer; barreiras sociais - aspectos impeditivos para a realização do exame preventivo, como indisponibilidade em razão do trabalho, afazeres domésticos, problemas de saúde; barreiras institucionais - questões administrativas, burocráticas e relativas ao relacionamento entre equipe de saúde e a mulher que dificultam a realização do exame como: dificuldade para marcar o exame, indisponibilidade de recurso material ou pessoal, extravio do resultado do exame, demora na entrega do resultado, mau atendimento.

Foi calculada a prevalência de adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero e respectivo intervalo com 95% de confiança (IC95%) e as proporções das demais variáveis avaliadas.

O teste do χ2 foi utilizado para analisar a existência de diferença estatisticamente significativa (p<0,05) entre as proporções, quanto às características socioeconômicas (anos de estudo: até 7 anos, 8 anos ou mais), demográficas (município de residência e faixa etária: 25 a 34, 35 a 49, 50 a 59 anos) e resultados dos exames realizados na pesquisa anterior (normais ou alterados), entre as mulheres entrevistadas e aquelas elegíveis para o estudo. Entre as entrevistadas foi avaliada a existência de diferença na periodicidade da realização dos exames de Papanicolaou com resultado negativo (<3 anos, 3 anos e ≥4 anos) em relação ao local de realização (ESF, SUS e Não SUS); e entre as características socioeconômicas (situação conjugal e anos de estudo) e demográficas (município de residência e faixa etária) e os motivos referidos de atraso na realização dos exames preventivos.

Os dados foram armazenados e analisados no programa estatístico Epi Info, versão 3.5.2, 2010. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob o número 0012.0.259.000-10, em 19 de outubro de 2010.

Resultados

Das 2.059 mulheres que participaram do estudo inicial foram excluídas do estudo 56 com diagnóstico de NIC II ou lesão mais grave na avaliação histopatológica, 16 por terem se submetido à histerectomia, 51 que haviam falecido e 843 por mudarem de endereço residencial.

Foram elegíveis para o estudo 1.093 mulheres. Destas, 317 (29,0%) faltaram aos agendamentos realizados pelos agentes de saúde, 7 mulheres não tinham disponibilidade em decorrência do trabalho, 4 se recusaram a participar do estudo e 1 estava hospitalizada no período da realização da entrevista. Entre as que faltaram à entrevista, 163 (51,4%) tinham registro no prontuário de saúde de exames preventivos realizados, sendo que 83 (50,9%) estavam com os exames em dia. As mulheres entrevistadas (764) foram similares às elegíveis para o estudo quanto à faixa etária, escolaridade, município de residência e resultado dos exames anteriores realizados (p>0,05) (Tabela 1).

Tabela 1
Características das mulheres entrevistadas e elegíveis para o estudo

A prevalência de adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero foi 70,7% (IC95% 63,7-73,9). Entre as 540 mulheres que estavam com os exames em dia, 307 (57,0%) apresentaram o resultado do exame ou havia registro em prontuário. No entanto, 95 mulheres que foram entrevistadas (12,4%) não fizeram exames preventivos desde a pesquisa conduzida pelo INCA.

Três mulheres apresentaram o último exame preventivo alterado. Destas, duas apresentaram os exames confirmatórios (histopatológico ou colposcópico) negativos, e uma, com lesão de baixo grau, ainda não havia repetido o exame após sete meses. Apenas duas mulheres ainda não haviam recebido o resultado do exame realizado na ESF nos últimos dois meses, uma das quais apresentou exame anterior com lesão de baixo grau.

A Tabela 2 apresenta o intervalo de tempo em anos entre os exames realizados com resultado negativo, por local de realização. Entre as mulheres submetidas a exames preventivos no período (669), 409 (61,1%) fizeram o último exame preventivo na unidade de referência da Estratégia da Saúde da Família; 152 mulheres (22,7%) usaram plano de saúde ou particular em razão de maior facilidade de agendamento. Cento e oito (108) mulheres (16,1%) utilizaram outras unidades da rede SUS em decorrência da dificuldade de marcação e não disponibilidade do exame na unidade de referência. Mais de dois terços das mulheres também tiveram o antepenúltimo (68,2%) e o penúltimo (71,5%) exames coletados na ESF. Foi observado, contudo, que a maioria das mulheres repetiu o exame com intervalo menor que três anos, independentemente do local de coleta. O percentual foi menor na ESF entre os dois últimos exames (75,8%), embora a diferença não seja significativa (p=0,6). Em contrapartida, intervalo maior do que o preconizado (≥4 anos) foi proporcionalmente maior entre os dois últimos exames do que entre o penúltimo e o antepenúltimo exame, em todos os locais (p<0,05).

Tabela 2
Local de coleta do exame preventivo e intervalo de tempo entre dois exames normais nas mulheres entrevistadas da Estratégia Saúde da Família, dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu

Entre as 224 mulheres com exames preventivos atrasados: 100 referiram não percepção de risco (44,6%), 59 barreiras sociais (26,3%), 50 barreiras percebidas à ação (22,3%) e 48 barreiras institucionais (21,4%). Quanto à não percepção de risco, a principal causa foi considerar desnecessária a realização do exame (38,0%), seguida de descuido (30,0%). Em relação às barreiras sociais, o trabalho foi o principal impeditivo (33,9%). Já a vergonha (48,0%) foi a principal barreira percebida para realização do exame. Quanto às barreiras institucionais, destaca-se a dificuldade para marcar o exame (52,1%). Estas barreiras foram proporcionalmente mais frequentes entre as residentes do município de Nova Iguaçu do que de Duque de Caxias (p<0,01), exceto quanto às barreiras institucionais (p=0,19). Não houve diferença estatisticamente significante entre as demais variáveis avaliadas (p>0,05) (Tabela 3).

Tabela 3
Relação entre as causas referidas de não realização do exame preventivo para câncer do colo do útero e as características das 224 mulheres entrevistadas da Estratégia Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu

Discussão

Nove anos após a participação em um estudo transversal, o cumprimento às recomendações do Ministério da Saúde sobre rastreamento para o câncer do colo do útero foi registrado em 70,7% das mulheres atendidas pela ESF em 13 comunidades carentes da Baixada Fluminense. Percentual semelhante foi descrito entre usuárias de uma unidade básica de saúde no Ceará1111. Vasconcelos CTM, Pinheiro AKB, Castelo ARP, Costa LQ, Oliveira RG. Conhecimento, atitude e prática relacionada ao exame colpocitológico entre usuárias de uma unidade básica de saúde. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011;19(1):97-105. : em 72,8% das mulheres entrevistadas o último exame foi realizado em intervalo não superior a 3 anos, o que foi classificado pelos autores como prática adequada. No Brasil, em 2011, o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL) mostrou um percentual que variou entre 67,9 (Maceió) e 90,4 (São Paulo) de mulheres de 25 a 59 anos de idade residentes nas capitais que informaram ter realizado exame de citologia oncótica para câncer de colo do útero nos últimos 3 anos1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde . Vigitel Brasil 2011: Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Embora realizado em área periférica à capital do estado do Rio de Janeiro e exclusivamente em usuárias da ESF, os valores de adesão obtidos nos municípios de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu estão compreendidos na faixa de valores observados recentemente nas capitais do restante do país e ligeiramente abaixo dos valores observados na capital do estado do Rio de Janeiro (77,8%). Já em inquérito realizado na ESF na região de Comendador Soares, município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, em 2009, apenas 5% das mulheres de 20 a 59 anos não tinham realizado exame preventivo nos últimos 3 anos1313. Rafael RMR, Moura ATMS. Barreiras na realização da colpocitologia oncótica: um inquérito domiciliar na área de abrangência da Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2010;26(5):1045-50. , sinalizando a importância da Saúde da Família na prevenção dessa enfermidade. No presente estudo, no entanto, a população avaliada compreendia um grupo de mulheres que nove anos atrás estava com exames atrasados, das quais quase 30% ainda mantiveram-se nesta condição.

No que diz respeito ao intervalo de tempo entre os 2 últimos exames, o tempo foi de 3 anos ou menos em 86,9% dos casos. Resultados semelhantes foram descritos em estudo envolvendo usuárias do SUS de Amparo, município do interior do Estado de São Paulo, entre 2001 e 2007, o qual mostrou que o percentual de mulheres cujo intervalo de tempo desde o último controle foi de três anos ou mais variou entre 5,0 e 7,1%; tempo menor que três anos foi observado entre 84,1 e 89,2%, conforme o ano investigado1414. Vale DBAP, Morais SS, Pimenta AL, Zeferino LC. Avaliação do rastreamento do câncer do colo do útero na Estratégia Saúde da Família no Município de Amparo, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2010;26(2):383-90. . De maneira semelhante, inquérito domiciliar representativo da população feminina de 10 a 49 anos residente no município de São Luís, realizado em 1998, mostrou que o tempo entre a realização dos exames foi menor que três anos em 82,0% dos casos; para somente 3,7% das mulheres esse tempo foi menor que três anos1515. Oliveira MMHN, Silva AAM, Brito LMO, Coimbra LC. Cobertura e fatores associados à não realização do exame preventivo de Papanicolaou em São Luís, Maranhão. Rev Bras Epidemiol. 2006;9(3):325-34. . Historicamente, tem sido observada no país tendência para periodicidade do exame preventivo do câncer do colo do útero inferior à recomendada pelos órgãos oficiais. Em estudo pioneiro1616. Lopes ER, Rebelo MS, Abreu E, Silva VLC, Eisenberg ALA, Lavor MF. Comportamento da população brasileira feminina em relação ao câncer cérvico-uterino. J Bras Ginecol. 1995;105(11/12):505-15., realizado nos anos 90, somente 1% de uma amostra representativa de mulheres das cinco macrorregiões do país referia que o teste de Papanicolaou deveria ser de três em três anos; 35% das entrevistadas julgavam, equivocadamente, que o exame deveria ser anual. É possível que mesmo entre profissionais de saúde o intervalo entre os exames seja entendido de forma equivocada, o que influenciaria as mulheres a repetirem o exame desnecessariamente.

Em relação às razões apresentadas no atual estudo para não adesão ao exame preventivo para câncer do colo do útero, observou-se que as categorias mais importantes foram a não percepção de risco (considerar-se não suscetível ao câncer do colo do útero), seguida pelas barreiras sociais (aspectos impeditivos para a realização do exame). No primeiro grupo, destacam-se não achar que o exame era necessário, descuido e comodidade. Já no segundo grupo, o principal impeditivo foi a indisponibilidade em razão do trabalho. Entre as barreiras institucionais, a dificuldade para marcar exame foi o principal entrave. Também em estudo realizado em uma Unidade de Saúde da Família de Porto Alegre, Rio Grande do Sul1717. Peretto M, Drehmer LBR, Bello HMR. O não comparecimento ao exame preventivo do câncer de colo uterino: razões declaradas e sentimentos envolvidos. Cogitare Enferm. 2012;17(1):29-36. , o descuido consigo mesma e a dificuldade para marcar a consulta em decorrência do horário de trabalho foram relatados como os principais obstáculos. Já em outro estudo1818. Diógenes MAR, Jorge RJB, Sampaio LRL, Mendonça FAC, Sampaio LL. Barreiras a realização periódica do Papanicolaou: estudo com mulheres de uma cidade do nordeste do Brasil. Rev APS. 2011;14(1):12-8. envolvendo mulheres atendidas pela ESF de Caio Prado, município de Itapiúna, Ceará, em 2008, as dificuldades relatadas pelas entrevistadas para a realização do Papanicolaou foram decorrentes de falta de motivação e de interesse em realizar o exame, muitas vezes pela sobrecarga do cotidiano, dificuldades na relação entre profissional e usuária, precarização histórica da educação em saúde e barreiras organizacionais existentes no serviço de saúde. Em inquérito realizado no município de Campinas, São Paulo1919. Amorim VMSL, Barros MBA, César CLG, Carandina L, Goldbaum M. Fatores associados à não realização do exame de Papanicolaou: um estudo de base populacional no Município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2006;22(11):2329-38. , as mulheres também referiram achar o exame preventivo desnecessário (43,5%) e embaraçoso (28,1%).

No presente estudo, os motivos relatados por 22,0% das mulheres foram ter vergonha ou medo, não gostar e sentir desconforto e dor. Da mesma forma, estudo realizado em Nova Iguaçu1313. Rafael RMR, Moura ATMS. Barreiras na realização da colpocitologia oncótica: um inquérito domiciliar na área de abrangência da Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2010;26(5):1045-50. apontou o medo relacionado ao resultado do exame e a vergonha da exposição do corpo dentre as principais dificuldades. De maneira similar, estudo realizado no Ceará2020. Jorge RJB, Sampaio LRL, Diógenes MAR, Mendonça FAC, Sampaio LL. Fatores associados a não realização periódica do exame Papanicolaou. Rev Rene. 2011;12(3):606-12. mostrou que as mulheres percebem o exame como um processo agressivo fisicamente que as afeta emocionalmente. Vale ressaltar ainda que cerca de 20,0% das mulheres referiram ter realizado o exame na assistência suplementar em razão de maior facilidade de agendamento. As unidades de saúde deveriam facilitar a marcação de consultas, assim como ampliar o horário de atendimento, a fim de favorecer o acesso às mulheres trabalhadoras. Em contrapartida, muitas mulheres têm diversas consultas registradas em prontuário da ESF, mas sem informação sobre exame preventivo. Em estudo realizado no município de Juiz de Fora, Minas Gerais2121. Ribeiro L, Bastos RR, Ribeiro LC, Vieira MT, Leite ICG, Teixeira MTB. [Non adherence to cancer screening guidelines for cervical cancer among women who attended prenatal care]. Rev Bras Ginecol Obstet. 2013;35(7):323-30. Portuguese., 26,6% das mulheres com filhos menores de dois anos, que frequentaram o pré-natal, estavam com o exame preventivo para câncer do colo do útero atrasado, sinalizando a existência de oportunidades perdidas de prevenção. A maioria dessas mulheres informou desconhecer a importância e a necessidade da realização do exame, e apenas 5,7% sinalizaram dificuldade para marcar consulta.

Não houve diferença entre os municípios em relação às barreiras institucionais. As demais dificuldades relatadas, contudo, foram proporcionalmente maiores entre as residentes de Nova Iguaçu, evidenciando que os fatores impeditivos de realização do exame preventivo devem ser sempre investigados, pois variam de acordo com a cultura e as características da clientela de cada comunidade.

Entre as limitações deste estudo, deve-se destacar que, das 1.093 mulheres elegíveis, apenas das 764 (70,0%) participaram do estudo. Entretanto, dadas as características locais (comunidades de baixo status socioeconômico) e temporais (os dados da pesquisa atual foram colhidos cerca de 9 anos após a participação das mulheres no estudo original), os autores consideram a perda aceitável e o grupo analisado representativo da coorte original, visto que as mulheres entrevistadas foram similares às elegíveis quanto à faixa etária, escolaridade, município de residência e resultado dos exames anteriores realizados. Já entre os pontos fortes, deve-se destacar que há no país carência de estudos longitudinais com casuísticas robustas como a atual e com características semelhantes, cujos resultados são necessários para contribuir para nortear as políticas nacionais, sobretudo dirigidas a populações de alto risco de desenvolvimento da doença.

Conclui-se que, apesar das inúmeras dificuldades e barreiras apontadas pelas mulheres, observou-se boa adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero. Os resultados encontrados, no entanto, apontam para a necessidade de treinamento de profissionais para cumprimento das recomendações do Ministério da Saúde quanto ao rastreamento, o que inclui informar a regularidade de exames e facilitar o acesso ao exame preventivo. Importante ainda é o estímulo à realização de estudos para melhor compreensão das crenças e dificuldades emocionais ainda presentes entre as mulheres.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - processo nº 481293/2009-4).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2014

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2014
  • Aceito
    16 Abr 2014
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