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Relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e do desenvolvimento: uma revisão

Resumos

CONTEXTO: A violência sexual é um grave problema de saúde pública que preocupa e confronta nossa sociedade. A prevalência, a magnitude e as consequências desse problema têm merecido atenção crescente por parte de estudiosos e pesquisadores da saúde e dos direitos humanos. OBJETIVO: Realizar uma revisão bibliográfica sobre a relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e do desenvolvimento. MÉTODOS: Foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados do PubMed, Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Lilacs, utilizando os descritores "sexual crime", "sexual offense", "mental disorder", "mental retardation", "developmental disability" e suas combinações. RESULTADOS: Os transtornos mentais e do desenvolvimento mais frequentemente relacionados à perpetração de crimes sexuais foram esquizofrenia, transtorno bipolar e retardo mental. CONCLUSÃO: São importantes a detecção e o tratamento da morbidade psiquiátrica entre ofensores sexuais nos sistemas de saúde e de justiça criminal, o que pode contribuir para menor risco de reincidência desse comportamento sexual.

Crime sexual; ofensa sexual; transtorno mental; retardo mental; transtorno do desenvolvimento


BACKGROUND: Sexual violence is a serious public health problem that concerns and faces our society. The prevalence, magnitude and consequences of this problem have merited growing attention by health researchers and human rights scholars. OBJECTIVE: To conduct a review of the literature regarding the relationship between mental disorders, sexual offences and those of development. METHODS: A bibliographic research was performed in PubMed, Scientific Electronic Library Online (SciELO) and Lilacs, employing the terms "sexual crime", "sexual offence", "mental disorder", "mental retardation", "developmental disability" and its combinations. RESULTS: The mental disorders and developmental disorders more frequently related to the perpetration of sexual offences were schizophrenia, bipolar disorder and mental retardation. DISCUSSION: The detection and treatment of psychiatric morbidity among sexual offenders in health and criminal justice systems, which may contribute to a lower risk of recidivism of this sexual behaviour, is important.

Sexual crime; sexual offence; mental disorder; mental retardation; developmental disability


REVISÃO DA LITERATURA

Relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e do desenvolvimento: uma revisão

Alexandre Martins ValençaI,II; Isabella NascimentoII; Antonio Egidio NardiII

ICentro de Ciências Médicas, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil

IIInstituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

CONTEXTO: A violência sexual é um grave problema de saúde pública que preocupa e confronta nossa sociedade. A prevalência, a magnitude e as consequências desse problema têm merecido atenção crescente por parte de estudiosos e pesquisadores da saúde e dos direitos humanos.

OBJETIVO: Realizar uma revisão bibliográfica sobre a relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e do desenvolvimento.

MÉTODOS: Foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados do PubMed, Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Lilacs, utilizando os descritores "sexual crime", "sexual offense", "mental disorder", "mental retardation", "developmental disability" e suas combinações.

RESULTADOS: Os transtornos mentais e do desenvolvimento mais frequentemente relacionados à perpetração de crimes sexuais foram esquizofrenia, transtorno bipolar e retardo mental.

CONCLUSÃO: São importantes a detecção e o tratamento da morbidade psiquiátrica entre ofensores sexuais nos sistemas de saúde e de justiça criminal, o que pode contribuir para menor risco de reincidência desse comportamento sexual.

Palavras-chave: Crime sexual, ofensa sexual, transtorno mental, retardo mental, transtorno do desenvolvimento.

Introdução

O crime sexual é um sério problema que continuamente confronta a nossa sociedade, incluindo um comportamento em que há ou não contato físico, envolvendo vítimas de ambos os sexos e de todas as idades e sendo considerado um tipo de comportamento violento. Considera-se violência sexual o contato sexual efetivo, tentativa ou ameaça, sem que haja consentimento da pessoa, ou esta esteja impossibilitada de dar esse consentimento1. Na verdade, crimes sexuais são todos aqueles definidos como tal pela lei vigente em determinado país e cultura. De fato, não se trata de construto médico ou psicológico; é tão somente um construto jurídico social, com possibilidades de variações conceituais ao longo da história e localização geográfica.

Constitui-se a violência sexual um grave problema de saúde pública a ser enfrentado por nossa sociedade. No estado de São Paulo, cerca de 4% dos presos homens estão cumprindo sentença em virtude de crime sexual2. Estima-se que os registros das delegacias correspondam a cerca de 10% a 20% dos casos que realmente acontecem, atribuindo-se a condição de subnotificação como possível causa para a ausência de dados3. A decisão da vítima em não registrar o crime, a ausência de traumas físicos em exames periciais, o fato de o agressor ser parente próximo da vítima ou a vítima ser menor de idade ou portadora de deficiência mental ou doença mental grave, o medo da reação do agressor e de sofrer constrangimento e humilhação, além de registros periciais incompletos, também podem contribuir para essa ausência de dados.

Existem estimativas de que entre 10% e 16% dos homens e entre 20% e 27% das mulheres foram vítimas de abuso sexual na infância4. A Pesquisa de Criminalidade da Inglaterra (The British Crime Survey), por exemplo, fez uma estimativa de que uma em cada dez mulheres já foi sexualmente vitimizada até a idade de 16 anos e que menos de um em cada cinco incidentes de vitimização sexual de mulheres resulta em atenção policial (Siegel, 2000, apud Baltieri e Andrade5). Estupro e tentativa de estupro são os dois crimes sexuais violentos mais comuns.

Essa violência também é evidente em settings institucionais com crianças ou adultos vulneráveis, como prisões, instituições para menores e hospitais forenses. Alguns estudos de revisão têm mostrado que muitos agressores sexuais podem apresentar problemas psiquiátricos, tais como psicoses, transtornos do humor e retardo mental6. Esses aspectos serão destacados ao longo da apresentação dos estudos da literatura científica, nacional e internacional.

O objetivo geral desse estudo é realizar uma revisão bibliográfica sobre a relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e do desenvolvimento (retardo mental). O objetivo específico é observar quais são os principais transtornos mentais e do desenvolvimento em perpetradores de crimes sexuais, quais são crimes sexuais mais frequentemente cometidos e quais os fatores associados e os motivos relacionados à prática desses crimes. Não faz parte do objetivo deste estudo avaliar a relação entre crimes sexuais e transtornos relacionados ao uso de álcool e/ou substâncias, porém esses transtornos serão mencionados quando estiverem inseridos em estudos sobre crimes sexuais associados a transtornos mentais e do desenvolvimento, inclusive quando em comorbidade com esses últimos.

Métodos

Foi realizada uma revisão da literatura, nas bases de dados PubMed, Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Lilacs, entre os anos 2000 e 2012. Foram aplicadas as seguintes palavras-chave: "sexual crime", "sexual offense", "mental disorder", "mental retardation", "developmental disability" e suas combinações. No sistema MedLine também foi pesquisada a seção de artigos relacionados. Com finalidade de ampliar a nossa pesquisa, consultamos também as referências dos artigos encontrados e livros-textos relacionados a esse tema. Foram considerados estudos com amostras de indivíduos e estudos de revisão. Não foram considerados estudos de relatos de casos.

Resultados

Foram encontrados 39 artigos que preencheram critérios para este estudo, publicados entre os anos de 1987 e 2011. Desses, 23 foram estudos com amostras de indivíduos que perpetraram crimes sexuais (Tabela 1).

A partir de agora serão descritos os estudos sobre a referida associação.

Crimes sexuais e esquizofrenia e outros transtornos psicóticos

Embora existam evidências robustas de diferentes países indicando que os transtornos psicóticos aumentam o risco de comportamento violento, a visão de especialistas é que os transtornos mentais graves têm pequeno papel no crime sexual7. A doença mental não está incluída entre os fatores de risco para o cometimento de estupro, de acordo com estudos epidemiológicos8, ou abuso sexual, em estudos de revisão9. Entretanto, ainda não há consenso na literatura sobre a importância dessa associação. Estudando esse tema, Fazel et al.10 afirmaram que fatores de risco para a perpetração de crimes se–xuais incluem associação de aspectos do desenvolvimento (tais como abuso sexual na infância) e vulnerabilidade pessoal (especialmente fantasias sexuais desviantes e eventos acionadores, como abuso de substâncias).

Um estudo de Craissati e Hodes11 investigou um subgrupo de 11 homens com esquizofrenia que tinham cometido crimes sexuais ou tinham apresentado comportamento sexual antissocial, tendo sido internados compulsoriamente em unidade de segurança na Inglaterra. De acordo com esses autores, a motivação relatada para o crime foi predominantemente relacionada a impulsos sexuais e agressivos, com quatro pacientes admitindo ter fantasias masturbatórias perversas, relacionadas ao período anterior a ele. Foi levantado que o estado mental de seis indivíduos que tinham interrompido uso de medicação tinha deteriorado (apresentando irritabilidade, isolamento, descuido da aparência pessoal, explosões comportamentais, desinibição sexual) algumas semanas antes do delito. Nas entrevistas realizadas no momento do estudo, dois indivíduos confirmaram que estavam apresentando alucinações no momento do crime sexual. Nesse estudo, o comportamento sexual agressivo foi associado predominantemente com a recaída da doença. Certamente se deve considerar que a amostra foi altamente selecionada, sendo constituída por indivíduos com transtornos mentais graves que foram internados compulsoriamente em unidade de segurança.

Phillips et al.12, em um estudo de série de casos, avaliaram um grupo de 15 homens com diagnóstico de esquizofrenia, internados em hospital de segurança na Inglaterra, por causa da perpetração de crimes sexuais. Sete deles praticaram 14 estupros e oito praticaram atentado ao pudor. A maioria dos pacientes estava sintomática no momento do crime sexual. Embora 14 tenham relatado contatos com serviços de saúde mental, esses contatos foram irregulares, sendo comum haver faltas às consultas médicas. Apenas quatro pacientes estavam recebendo medicamentos à época do delito. O crime sexual foi considerado como tendo ocorrido no contexto de sintomas psicóticos positivos em 11 casos, enquanto desinibição comportamental foi considerada importante em 13 casos. Dez pacientes apresentavam delírios persecutórios e 11, alucinações auditivas. Foram 37 as vítimas desses pacientes, todas do gênero feminino, sendo um terço de delas adolescentes. Na maioria dos casos, a violência sexual aconteceu após o início da doença, com um período médio de cinco anos, e apenas três praticaram as ofensas antes do início da doença.

Smith13 investigou a relação entre esquizofrenia e crime sexual, estudando documentos e prontuários de 80 pacientes esquizofrênicos internados em hospitais de segurança na Inglaterra, acusados de crimes sexuais (estupro, tentativa de estupro e atentado violento ao pudor) contra mulheres, cometidos na fase aguda da psicose. Os 80 pacientes apresentavam sintomas como delírios, alucinações, distúrbios formais do pensamento e incongruência do afeto. No que diz respeito à relação com as vítimas, 49 (61%) eram desconhecidas e 31 (39%) eram conhecidas dos agressores sexuais. Um total de 30 (38%) deles relatou consumo de álcool ou substância psicoativa antes da ofensa sexual. Comportamento bizarro ou marcadamente estranho foi observado e descrito em 16 (20%) dos homens. Esse comportamento foi relacionado à fenomenologia da psicose, tais como gritar para trás em resposta a alucinações auditivas, discurso delirante, movimentos robóticos ou outros movimentos estranhos.

Num estudo caso-controle, Fazel et al.10 investigaram todos os agressores sexuais condenados por um período de 13 anos (1988 a 2000), na Suécia. Foram identificados 8.495 homens condenados por crimes sexuais (estupro, coação sexual e molestação sexual de adultos e crianças). O grupo controle foi composto por 19.935 homens da população geral. Foi encontrada maior prevalência de hospitalização psiquiátrica e de transtornos mentais graves nos agressores sexuais, comparados aos controles. A prevalência combinada de transtornos mentais graves (esquizofrenia e outras psicoses, transtorno bipolar e transtornos mentais orgânicos) foi de 4,8% em agressores sexuais, comparada a 1,3% em controles. Os achados desse estudo sugerem um papel importante dos transtornos mentais graves no crime sexual. Fatores de risco estabelecidos incluem crime sexual prévio, idade jovem, problemas de relacionamento interpessoal e preferências sexuais desviantes.

Um estudo de Alden et al.14 examinou dados de indivíduos nascidos na Dinamarca, entre os anos de 1944 e 1947, por meio de registros oficiais, acompanhados até o ano de 1991. A amostra final incluiu 173.559 homens. Foi encontrado que os homens que tinham sido hospitalizados por causa de transtorno psicótico, comparados àqueles que nunca tinham sido hospitalizados, tiveram risco quatro vezes maior de terem sido presos por qualquer crime sexual. Nos homens com transtornos psicóticos sem comorbidade com transtornos de personalidade ou abuso de substâncias, esse risco foi apenas duas vezes maior. De outra forma, transtornos psicóticos não acompanhados de transtornos de personalidade ou transtornos relacionados ao uso de substâncias foram menos associados com aumento do risco de prisão envolvendo qualquer crime sexual ou crime sexual agressivo.

O papel da esquizofrenia em ofensas sexuais também constituiu tema de pesquisa de Alish et al.15. Esses autores estudaram três grupos de indivíduos: 36 agressores sexuais com esquizofrenia, 80 homens com esquizofrenia sem história de crime sexual que cometeram outros delitos (roubo) e 57 agressores sexuais sem esquizofrenia (grupo controle, proveniente de prisões de Israel). Desses 57, 29 receberam diagnóstico de parafilia: pedofilia (n = 22), exibicionismo (n = 4) e sadismo (n = 2). Dentre os agressores sexuais com esquizofrenia, 12 receberam diagnóstico de parafilia: pedofilia (n = 8), exibicionismo (n = 4). Todos os pacientes com esquizofrenia estavam internados em uma unidade forense de hospital de Israel. Curiosamente, foi encontrado que entre os indivíduos com esquizofrenia que se engajaram em crimes sexuais, houve percentual menor de transtorno de personalidade antissocial (36%), comparados ao grupo com esquizofrenia sem história de crime sexual (65%). Os crimes sexuais consistiram em estupro (50,5%) e violações sexuais sem penetração (49,5%). Também foi encontrado que entre os indivíduos com esquizofrenia houve uma tendência de agressão sexual contra mulheres (83,3%), enquanto os agressores sexuais sem esquizofrenia agrediram sexualmente mais homens (58%). Ainda de acordo com esses autores, a frequência elevada de parafilias (33%) no grupo de ofensores sexuais com esquizofrenia pode ter exercido importante influência nesse comportamento.

Ainda não há uma conclusão inequívoca sobre os parâmetros clínicos que levam a um comportamento sexual desviante na esquizofrenia. Esse comportamento pode não necessariamente emanar da própria esquizofrenia, mas ser o resultado de um desvio sexual não relacionado à doença, ou de características sugestivas da presença de transtorno de personalidade.

Crimes sexuais e transtornos do humor e outros

Os crimes perpetrados por indivíduos com transtorno bipolar acontecem mais comumente na fase maníaca. Nessa fase o estado de humor está elevado, podendo haver alegria contagiante ou irritabilidade acompanhada de hostilidade. Outros sintomas como elevação da autoestima, sentimentos de grandiosidade, ideias delirantes de grandeza, em que a pessoa se considera especial, dotada de poderes e inteligência elevada, frequentemente estão presentes. Além disso, há aumento da atividade motora, com grande vigor físico, e, apesar disso, diminuição da necessidade de sono. O paciente apresenta forte pressão para falar ininterruptamente, as ideias correm rapidamente a ponto de ele não concluir o que começou e ficar sempre emendando uma ideia não concluída em outra sucessivamente (fuga de ideias)16.

Um estudo17 de base populacional, utilizando registros hospitalares e registros criminais, na Suécia, investigou indivíduos que receberam alta de hospitais psiquiátricos e foram acompanhados em relação à perpetração de crimes violentos, em período compreendido de 1973 a 2004. Foram comparados indivíduos com duas ou mais altas hospitalares relacionadas a diagnóstico de transtorno bipolar (n = 3.743) com a população geral (n = 37.429). Foram considerados delitos violentos: homicídio, roubo, incêndio culposo, qualquer crime sexual, ameaças ou intimidação. Durante o período de seguimento, foi encontrado que os indivíduos bipolares cometeram mais significativamente algum crime violento (8,4%) comparados àqueles controles da população geral (3,5%). Foi observado que esse risco foi especialmente maior naqueles pacientes que apresentavam comorbidade com abuso de substâncias.

Continuando a estudar o mesmo tema, Curtin e Niveau18 realizaram um estudo retrospectivo de documentos periciais de todos os agressores sexuais que não cometeram homicídio sexual e para quem uma avaliação psiquiátrica foi solicitada por autoridades policiais, em Genebra, na Suíça, de 1982 a 1995. O objetivo desse estudo foi avaliar a responsabilidade penal desses indivíduos, de acordo com o código penal suíço. Os crimes sexuais incluíram estupro, tentativa de estupro ou outros atos análogos contra a vontade da vítima (coação sexual). Os 67 agressores foram separados em três grupos: agressores sexuais contra menores de 18 anos que não eram seus parentes; agressores sexuais contra menores de 18 anos que eram parentes seus (crime sexual incestuoso) e agressores sexuais contra adultos maiores de 18 anos. Foi encontrado que cerca de dois terços dos agressores não tinham antecedentes psiquiátricos e apenas entre 9% e 15% contavam com internações psiquiátricas. A dependência de álcool existiu entre 12% e 14% dos agressores incestuosos e agressores contra adultos, respectivamente. Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos foram relativamente raros (5%), enquanto transtornos afetivos foram diagnosticados em 12% a 14% de todos os agressores.

Ainda nesse estudo18, foi encontrado que história de abuso sexual na infância foi um preditor significativo de crime sexual, indicando um risco cinco vezes maior de o indivíduo cometer crime sexual contra criança do que contra adulto. Isso está de acordo com outros estudos que mostram que uma história de abuso sexual entre molestadores de crianças é duas vezes maior do que entre estupradores de adultos. A presença de trauma sexual durante a infância representa sério fator de risco de desvio sexual durante a vida adulta9,19.

Dunsieth et al.20 avaliaram 113 homens condenados por crimes sexuais, que foram encaminhados a programas de tratamento, em Ohio, nos Estados Unidos. Foi encontrado que 84 homens (74%) preencheram critérios diagnósticos para ao menos um transtorno mental. Os diagnósticos psiquiátricos mais encontrados foram: transtornos relacionados ao uso de substâncias (n = 84, 74%); parafilias (n = 84, 74%); transtornos do humor (n = 66, 58%), com n = 40 (35%) para transtorno bipolar; transtorno do controle de impulsos (n = 43, 38%); transtornos de ansiedade (n = 26, 23%) e transtorno alimentar (n = 10, 9%).

Nessa mesma linha de pesquisa, Leue et al.21 avaliaram agressores sexuais de um hospital forense na Alemanha. Foram excluídos indivíduos com psicose (n = 12), analfabetismo (n = 2) ou incapacidade intelectual (n = 36) ou neurológica (n = 11). A amostra foi constituída por 55 indivíduos. Os transtornos de ansiedade foram comuns nessa amostra, sendo os mais frequentes fobia simples (n = 22, 40%), fobia social (n = 21, 38%) e transtorno de estresse pós-traumático (n = 15, 27%). Os transtornos do humor também foram altamente prevalentes na amostra, sendo encontrados 29 (53%) casos de depressão maior.

É interessante destacar que, no sentido inverso, estudos têm encontrado maior prevalência de transtornos mentais, ao longo da vida, em indivíduos vítimas de violência sexual. Em uma revisão sistemática, Chen et al.22 encontraram que uma história de abuso de sexual é fator de risco para desenvolvimento de transtornos de ansiedade, depressão, transtornos alimentares, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos do sono e tentativas de suicídio. Essa associação foi independente do sexo da vítima ou da idade em que o abuso ocorreu. Por outro lado, não houve associação entre abuso sexual e esquizofrenia e transtornos somatoformes.

Crimes sexuais e retardo mental

A deficiência mental inclui um prejuízo significativo da capacidade intelectual e do comportamento adaptativo presentes desde a infância. A prevalência de retardo mental na população geral é de 1,5% a 2,5%. Pessoas com retardo mental são mais vulneráveis ao sistema de justiça criminal por causa de sua falta de cautela ao falar, capacidade crítica limitada em relação às consequências de seu comportamento e suscetibilidade à influência de outros23.

Estudos de amostra de pacientes sob custódia23,24 encontraram prevalência de quase 20% de indivíduos com QI abaixo de 70, havendo comorbidade com abuso de substâncias em torno de 60%. Esses ofensores com baixo QI tinham mais condenações prévias do que aqueles sem deficiência mental e raramente tinham sido diagnosticados como tendo deficiência mental. Outros estudos encontraram prevalências menores, em torno de 7% de indivíduos com QI abaixo de 70 em sistemas prisionais (Hayes et al., 2007 apud Sondenaa et al.25 – estudo de revisão). Parece haver ampla variação na identificação de taxas de prevalências de deficiência mental nessas populações prisionais, dependendo dos métodos de avaliação e locais e culturas em que esses estudos são realizados.

Murrey et al.26 avaliaram prontuários de 106 pacientes agressores sexuais do sexo masculino de um hospital de segurança em Washington, Estados Unidos. Desses, 39 apresentavam "transtorno psicopático", 39, doenças mentais e 35, retardo mental, caracterizados pela aplicação da escala de inteligência de WAIS. Foi encontrado que 88% das vítimas daqueles com "transtorno psicopático", 98% das vítimas daqueles com doença mental e 56% das vítimas daqueles com retardo mental eram mulheres. O grupo com retardo mental teve mais vítimas homens menores de 16 anos, comparado aos outros grupos. No que diz respeito à prática de violência durante o crime sexual, foi encontrado que 69% daqueles com "transtorno psicopático", 66% dos doentes mentais e 51% daqueles com retardo mental foram violentos em pelo menos um crime sexual. Dessa forma, quando houve aumento do QI, essa característica aumentou a probabilidade de violência durante o crime sexual. Outro achado foi que um quarto daqueles com "transtorno psicopático" e doença mental cometeu pelo menos um crime com penetração peniana de vagina, enquanto a proporção de indivíduos com retardo mental que cometeram tal delito foi mínima. Um problema desse estudo é que os autores não definiram o significado de "transtorno psicopático" nem quais os transtornos mentais dos indivíduos da amostra.

Em um estudo com todos os criminosos na Dinamarca, Hodgins27 descreveu que todos aqueles com deficiência intelectual e "transtornos mentais maiores" tiveram risco maior de comportamento violento. Infelizmente as agressões violentas não foram diferenciadas, incluindo assalto, estupro, roubo e agressão sexual. Foram encontrados indivíduos com deficiência mental (n = 192), "transtornos mentais maiores" (n = 161), incluindo aqueles com esquizofrenia, transtornos afetivos maiores, estados paranoides e outras psicoses; transtornos mentais e comportamentais relacionados ao uso de álcool e/ou substâncias (n = 254); outros transtornos mentais (n = 188). Já Sundram (1989 apud Lindsay28 – estudo de revisão) também descreveu uma elevada frequência de crimes graves, incluindo agressões sexuais, com 38% de internos com QI abaixo de 70 em prisões de Nova York que cometeram ou tentaram cometer homicídio e crimes sexuais.

Day29, estudando o mesmo tema, realizou um estudo retrospectivo sobre o comportamento de indivíduos com deficiência mental referenciados a um hospital para tratamento de comportamento sexual antissocial, na Inglaterra, quer isso tenha ou não resultado em prisão, no período de 1970 a 1988. Foi encontrado que 47 pacientes cometeram um total de 191 incidentes sexuais, envolvendo 202 vítimas. Mais da metade (55,5%) foi de incidentes heterossexuais. Outros crimes foram atentado ao pudor (24,6%), ofensas homossexuais (12%), e apenas 3,6% envolveram agressão física. Nesse estudo foi encontrado que a maioria dos incidentes foi relativamente trivial, 60% envolvendo atentados menores ao pudor. Outro achado nessa amostra foi alta prevalência de transtornos mentais, incapacidades físicas menores, precária habilidade social e reincidência sexual. Ainda de acordo com esse autor29, é pouco frequente que indivíduos com deficiência mental cometam agressões envolvendo lesão corporal grave, violência ou morte.

Outro achado do estudo de Day29 foi uma baixa especificidade de idade e sexo das vítimas, sugerindo que circunstâncias e oportunidade, mais do que preferência ou orientação sexual, são mais importantes na escolha da vítima e tipo de crime sexual cometido pela vasta maioria dos casos. Também foi encontrado que nenhuma das ofensas heterossexuais aconteceu no contexto de um relacionamento estabelecido ou em desenvolvimento. Isso pode refletir a precária habilidade nas relações e a falta de oportunidade para os relacionamentos amorosos e sexuais nos indivíduos com deficiência mental.

Outro estudo30 comparou duas amostras de ofensores com deficiência intelectual. Aqueles que perpetraram crimes sexuais e incidentes de abuso sexual foram comparados a outros ofensores não sexuais. A amostra foi composta por 106 agressores sexuais e 78 ofensores não sexuais, todos encaminhados para serviços de tratamento comunitário na Escócia. Foi encontrado que uma proporção significativamente maior de agressores sexuais apresentava estilo de vida caótico (32% x 16%) e problemas de relacionamento (52% e 24%), comparados a ofensores não sexuais. No que diz respeito aos tipos de crimes sexuais, 33% cometeram atos lascivos e libidinosos (ofensas sem penetração contra menores); 26%, agressão sexual; 21%, atentado ao pudor; 11%, molestação sexual; 10%, estupro; 6%, tentativa de estupro; 6%, prostituição; incesto e intercurso sexual ilegal (2% para cada). Alguns indivíduos cometeram mais de um tipo de crime sexual. Já em relação à reincidência criminal, isso aconteceu mais significativamente com o grupo de ofensores não sexuais (51%) do que com o grupo de agressores sexuais (19%).

Esse tema também foi estudado por Barron et al.31. Em um estudo prospectivo, esses autores realizaram seguimento de dois anos de indivíduos com deficiência mental (QI abaixo de 80), em Londres, na Inglaterra. Todos os ofensores tinham perpetrado algum crime nos últimos cinco anos antes do estudo. O grupo foi constituído por 61 indivíduos. Os tipos mais comuns de crimes iniciais foram violência (37,7%), crimes sexuais (21%) e relacionadas à propriedade (15%). A violência (57,4%) também foi o crime mais comum, quando toda a história criminal foi analisada, seguida de crimes contra a propriedade (52,5%), sexuais (47,5%) e de atear fogo (21,3%). Foi encontrada elevada frequência de psicopatologia (52%), especialmente transtornos psicóticos (43%). A metade da amostra total apresentou recidiva criminal, porém o estudo não descreveu quais foram esses crimes. Salientamos que nesse estudo os autores não especificaram o que foi considerado como violência.

O comportamento agressivo pode representar um obstáculo importante para a integração à sociedade de indivíduos com retardo mental. Um estudo de Crocker et al.32 avaliou a prevalência e a gravidade de cinco tipos de comportamento agressivo em 3.165 homens e mulheres adultos com retardo mental que recebiam atendimento em três serviços de reabilitação em Quebec-Canadá. A prevalência anual de comportamento agressivo encontrada foi de 51,8%: 24% cometeram danos à propriedade, 37,6%, agressão verbal, 24,4%, automutilação, 24,4%, agressão física e 9,8% apresentaram comportamento sexual agressivo. Apenas 4,9% desses indivíduos apresentaram comportamento agressivo que levou à lesão da vítima.

Em outro estudo33, interesse sexual determinado por falometria, reincidência e escolhas de vítimas de 69 agressores sexuais com retardo mental foram examinados e comparados com os dados de 69 agressores com QI mais alto (controle). Foi encontrado que os agressores sexuais com retardo mental apresentaram preferências sexuais mais desviantes por meninos e crianças mais jovens do que o grupo controle. Comparados ao grupo controle, esses agressores sexuais não apresentaram risco maior de preferências por atividades sexuais coercivas contra crianças nem tiveram risco maior de recidiva violenta. Por sua vez, um estudo brasileiro34 com indivíduos que cumpriam medida de segurança comparou criminosos sexuais e não sexuais, encontrando prevalência significativamente maior de retardo mental e transtornos de personalidade em indivíduos que perpetraram crimes sexuais.

Continuando a estudar esse tema, Lindsay et al.35 compararam 48 agressores sexuais e 50 criminosos não sexuais com deficiência intelectual, encontrando frequência significativamente mais alta de história de abuso sexual no grupo que cometeu ofensa sexual (38% x 12,7%) e frequência significativamente mais alta de abuso físico no grupo que perpetrou outras ofensas (14% x 36%). De acordo com esses autores, esse achado reforça a hipótese de que o tipo de abuso sofrido na infância pode estar relacionado ao tipo de crime cometido na vida adulta.

Em relação às vítimas atingidas, não parece haver consenso entre diferentes autores. Day29 relatou que indivíduos com deficiência intelectual cometem mais frequentemente ofensas heterossexuais contra vítimas adultas; já Hayes36, em estudo de revisão, descreveu que esses indivíduos atingiram mais homens do que mulheres. Em um estudo com 950 ofensores sexuais, Blanchard et al.37 encontraram que agressores sexuais com deficiência mental apresentam maior probabilidade de cometer ofensas contra crianças mais jovens e meninos. Entretanto, de acordo com Lindsay et al.38, esses agressores provavelmente cometem crimes sexuais em todas as categorias e discriminam menos as suas vítimas.

Para Barron et al.31, as intervenções terapêuticas para indivíduos com deficiência mental parecem ser relativamente inespecíficas e não focais. Talvez haja dificuldades de ordem prática para fornecimento dessas intervenções a esse grupo de indivíduos, incluindo escassez de equipes treinadas em intervenções psicossociais específicas e capacitadas a diagnosticar e tratar adequadamente transtornos mentais e transtornos relacionados ao uso de álcool e substâncias comórbidos, quando presentes nesses indivíduos. Isso aponta para a necessidade de mais estudos sobre essa população e treinamento de equipes, de forma a oferecer tratamentos adequados a esses indivíduos. Abordagens voltadas para a sexualidade de indivíduos com deficiência mental poderiam reduzir esse tipo de ofensa nesses indivíduos. Medidas de tratamento deveriam focalizar educação sexual, aconselhamento, treinamento de habilidades sociais, melhora da autoimagem, autoconfiança e consciência social.

Considerando a sua relevância, agressores sexuais com deficiência mental têm sido negligenciados na literatura científica. Certamente, estudos sobre esse tema implicarão a prevenção de ofensas, avaliação e tratamento adequados desses ofensores, bem como desenvolvimento de serviços de assistência específicos para essa população.

Na tabela 1 consta resumo dos estudos que avaliaram amostras de indivíduos que perpetraram crimes sexuais.

Discussão

Nesse estudo de revisão, algumas pesquisas com amostras de indivíduos relacionaram a esquizofrenia, o transtorno bipolar e o retardo mental com a perpetração de crimes sexuais. Porém, é necessário levar em conta que alguns desses estudos avaliaram amostras selecionadas de pacientes de hospitais psiquiátricos ou de segurança11-13,15,18,20,24,26,29,33,34 e que foram referenciados para esses locais em virtude da perpetração de crimes sexuais, daí esses transtornos estarem presentes nesses estudos. Outro aspecto é que diversas pesquisas com amostras maiores de indivíduos têm apontado uma frequência elevada de transtornos relacionados ao álcool e substâncias27 e transtornos de personalidade10, entre perpetradores de crimes sexuais. Embora esses últimos transtornos citados não tenham sido objeto específico de investigação dessa revisão, é possível que a contribuição deles para a perpetração de crimes sexuais seja importante. Certamente, o objetivo de pesquisas sobre a relação entre crimes sexuais e transtornos mentais e retardo mental não é estigmatizar, e sim compreender melhor os fatores que contribuem para a perpetração desses delitos por esses indivíduos, bem como propor intervenções terapêuticas para eles.

Para McElroy et al.39, o conhecimento dos tipos e prevalência de transtornos mentais em agressores sexuais é importante por várias razões. Primeiro, um melhor entendimento da relação entre transtorno mental e violência sexual pode tornar possível o desenvolvimento de mais políticas efetivas legais, correcionais e de saúde pública, direcionadas a indivíduos que cometeram crimes sexuais. Segundo, o tratamento psicofarmacológico apropriado dos transtornos mentais desses indivíduos, administrado em conjunção com programas de tratamento psicossociais e correcionais, pode aumentar as chances de reabilitação bem-sucedida, dessa forma reduzindo a reincidência criminal, a vitimização pública e o uso de serviços correcionais de alto custo. Terceiro, fatores de risco e estratégias de prevenção contra a violência sexual podem ser identificados e desenvolvidos.

Caparulo40, em artigo de revisão, apontou variáveis que são importantes na avaliação de risco de agressores sexuais. Eles incluem cooperação com a avaliação, história de crime sexual prévio, história criminal e de violência, manejo da raiva, desejo de discutir a ofensa, aceitação de responsabilidade, expressão de remorso, interesse sexual desviante, perversões, tipos de vítimas, abuso de substâncias, empatia pela vítima, transtorno mental, história de abuso sofrido e motivação para tratamento.

O estudo observacional de agressores sexuais com esquizofrenia contribui para o entendimento desse delito nesses indivíduos e avaliação das condições comórbidas à esquizofrenia, além da elucidação da responsabilidade penal e definição de estratégias terapêuticas. Nesse aspecto, Smith13 sugere que os fatores que levam ao comportamento sexual criminoso na esquizofrenia são características antissociais de personalidade e uso de álcool e substâncias psicoativas. Entretanto, como já mencionado, não há conclusão inequívoca sobre quais os parâmetros clínicos que levam a um comportamento sexual desviante: se a própria doença, características de personalidade, ou preocupações sexuais que levam o paciente a cometer o delito sexual. Certamente os transtornos mentais graves podem estar associados a hostilidade, distorções cognitivas, fantasias sexuais desviantes, obsessões sexuais e precária habilidade social, os quais são considerados fatores de risco para os crimes sexuais. Também não se pode deixar de considerar que os transtornos mentais podem agir como fatores desinibidores sociais, interagindo com outros fatores de risco, como abuso de álcool e drogas.

Alguns autores têm tentado explicar a associação entre deficiência mental e ofensas sexuais. Para Duque41, os crimes sexuais estão super-representados entre os deficientes intelectuais por causa da redução do autocontrole, da dificuldade de adaptação às normas ou da inadequada compreensão dos fatos. Faulk7 considera que indivíduos com retardo mental frequentemente fazem abordagens sexuais inadequadas, que podem levar à agressão sexual. Outros podem dar vazão às agressões sexuais de diversos graus, como expressão de raiva ou sexualidade frustrada. Day29 observou nesses indivíduos ingenuidade sexual, incapacidade para entender relações sexuais normais, falta de habilidade nas relações sociais, dificuldade em se unir ao sexo oposto, precário controle de impulsos e suscetibilidade à influência de outras pessoas. Hayes36 apontou que esses indivíduos apresentam autoconceito confuso, relações sociais pobres, falta de conhecimento social e sexual e experiências precoces negativas (incluindo abuso físico e sexual).

Há evidências de precária identificação de ofensores com deficiência intelectual pelo sistema de justiça criminal e respostas inconsistentes e inadequadas dos serviços sociais e de saúde para responder ao desafio apresentado por esses indivíduos. Lindsay et al.38, estudando uma amostra de agressores sexuais com deficiência mental, entre os anos de 1990 e 1997, descreveram que 32% desses indivíduos apresentavam um transtorno mental significativo, incluindo transtornos psicóticos, transtorno bipolar e depressão maior. É fundamental que indivíduos com deficiência mental recebam intervenções psiquiátricas e psicossociais, de forma a prevenir novos crimes sexuais e não sexuais.

Por outro lado, Lindsay et al.42 afirmam que pessoas com deficiência intelectual podem levar desvantagem no processo de justiça criminal, em virtude de sua falta de entendimento da gravidade da situação, falta de suporte e falta de representação apropriada em estágios precoces do processo. Gudjonsson e MacKeith43 conduziram uma série de estudos mostrando que indivíduos com deficiência intelectual são mais vulneráveis à falsa confissão durante a entrevista interrogatória, por sua maior propensão à concordância e sugestionabilidade.

Na pesquisa relacionada a crimes sexuais, uma questão importante é a avaliação do risco. De acordo com Monahan e Steadman (1994) (apud Gonçalves e Vieira1), a avaliação de risco de violência supõe um procedimento sistemático e organizado, para caracterizar o grau de risco de certos indivíduos cometerem um ato violento, bem como o desenvolvimento de um plano de intervenção para reduzir esse risco de violência. A avaliação de risco inclui informações sobre os seguintes aspectos: local do delito, probabilidade de o delito acontecer novamente, frequência e consequências do delito.

Para Craig et al.44, qualquer avaliação sobre a probabilidade de ocorrência de crimes sexuais deve ser ampla e envolver mais do que uma documentação sobre o grau de risco. De acordo com esses autores, os tipos de fatores de risco identificados na literatura estão incluídos em quatro categorias: fatores disposicionais, tais como características psicopáticas ou antissociais de personalidade; fatores históricos, tais como eventos adversos no desenvolvimento (por exemplo, precária ligação com os pais, problemas de comportamento na escola), história prévia de crime e violência, hospitalização psiquiá–trica prévia e precária colaboração com o tratamento; antecedentes de violência, redes sociais desviantes e ausência de suportes sociais positivos; fatores clínicos, tais como diagnóstico psiquiátrico, nível precário de funcionamento e abuso de substâncias.

Em outro estudo, Hanson e Harris (2000, apud Craig et al.44) descreveram que, no mês prévio ao crime sexual, houve marcante alteração em diversos fatores dinâmicos agudos. A aparência e a colaboração com os supervisores deterioraram-se; também houve com frequência humor negativo, raiva e sintomas psicóticos. A partir disso, esses fatores parecem sinalizar uma escalada progressiva, no risco desses agressores. Os transtornos mentais como os transtornos psicóticos e do humor são incluídos como fatores dinâmicos de risco. A consideração de fatores dinâmicos ao lado da atual classificação estática de risco pode fornecer uma avaliação mais global e válida do risco de reincidência sexual desses agressores. Destacaremos alguns instrumentos de avaliação de risco de violência sexual nos parágrafos seguintes.

O risco de reincidência de crimes sexuais pode ser avaliado mediante o uso do STATIC 9945. Esse instrumento utiliza fatores estáticos (imutáveis) que têm sido considerados na literatura como tendo correlação com reincidência de crimes sexuais em homens adultos. O instrumento é composto por 10 itens: 1) ter crime sexual atual; 2) crimes sexuais prévios; 3) condenação atual por violência não sexual; 4) condenação prévia por crime não sexual; 5) ter quatro ou mais sentenças em registros criminais; 6) ser solteiro; 7) possuir história de crimes sexuais sem contato físico; 8) ter vítimas desconhecidas; 9) ter vítimas homens; 10) ter idade entre 18 e 25 anos. Esse instrumento fornece uma estimativa explícita de probabilidade de nova condenação por crimes sexuais, é facilmente aplicado e tem demonstrado elevada capacidade preditiva em diferentes settings e em amostras variadas.

Outro instrumento, o Sexual Violence Risk-20 (SVR-20)1, é considerado de extrema importância na avaliação de risco de violência sexual, na medida em que é composto por vários itens que estão referenciados na literatura como preditores de violência sexual. Ele está dividido em três domínios: Ajustamento Psicossocial (desvio sexual, vítima de abuso na infância, psicopatia, perturbação mental grave, problemas associados ao uso de substâncias, passado de ofensas violentas e não violentas etc.); Ofensas Sexuais (frequência elevada de ofensas sexuais, ofensas sexuais de múltiplos tipos, ofensas sexuais com agressões físicas ou uso de armas, atitudes de apoio ou desvalorização das ofensas sexuais) e Planos Futuros (ausência de planos realistas, atitudes negativas perante a intervenção).

O instrumento Sex Offense Risk Appraisal Guide (SORAG)45 tem 14 itens, que incluem: ter vivido com ambos os pais biológicos até a idade de 16 anos, mau ajustamento na escola, problemas com álcool, evidência de uma relação íntima duradoura, criminalidade não violenta, criminalidade violenta, prisões prévias por crimes sexuais, crimes apenas contra meninas menores de 14 anos, perda de livramento condicional prévio, idade na primeira ofensa, evidência de transtorno de personalidade, esquizofrenia, evidência de preferências sexuais desviantes e psicopatia.

Estudando esse tema, Lindsay et al. (2004 – apud Lindsay e Taylor46) conduziram um estudo para avaliar a reincidência criminal de 52 indivíduos com retardo mental que cometeram crimes sexuais, acompanhados por um período de três anos após alta hospitalar. Foi encontrado que os fatores que tiveram relação com a reincidência criminal foram atitude antissocial, relacionamento precário com a mãe, baixa autoestima, falta de assertividade, baixa resposta ao tratamento, ofensas envolvendo violência física, complacência da equipe de tratamento e atitude tolerante de crimes sexuais, baixa motivação para o tratamento, atendimento irregular, deterioração de atitudes da família e alta não programada.

Nesse estudo de revisão, os autores não encontraram descrição de instrumentos específicos de avaliação de risco de reincidência de crimes sexuais entre aqueles com retardo mental. Entretanto, as escalas citadas anteriormente, com seus diversos itens, não excluem esses indivíduos. Algumas escalas de avaliação de conhecimento sexual, atitudes sexuais e educação sexual têm sido aplicadas em indivíduos com retardo mental, contribuindo para a avaliação de risco nesses casos. De acordo com Lindsay e Taylor46, a mais empregada tem sido a Socio-Sexual Knowledge and Attitudes Test. Tem sido encontrado que indivíduos com retardo mental apresentam menor conhecimento sexual do que controles normais.

Nesse estudo de revisão foram encontrados diversos fatores associados e motivadores de crimes sexuais, também apontados como importantes para reincidência desses crimes, de acordo com esses instrumentos acima citados: presença de transtornos mentais graves como esquizofrenia10-15,18,34, transtorno bipolar10,14,17,18,20,39, existência de desvios sexuais10,13,15,20,21,33,39, presença de transtornos de personalidade14,18,24,34, problemas associados ao uso de álcool e/ou substâncias6,14,15,17,18,20,27, gravidade da agressão sexual10-15,18,20,21,26-28,37-39, história de abuso na infância18,35,39, problemas de relacionamento29,30,38, comportamento agressivo e histórico de prisão prévios32, ausência de resposta ao tratamento31. Acreditamos que em nosso meio é fundamental a observação de todos esses fatores na história clínica desses indivíduos, bem como diagnóstico e tratamento adequados dos transtornos mentais e do desenvolvimento presentes. Também é importante a psicoterapia cognitivo-comportamental para as distorções cognitivas e fantasias desviantes associadas aos crimes sexuais, bem como abordagem e orientação de seus familiares, de forma a diminuir a reincidência de crimes sexuais.

De acordo com Serafim et al.47, em estudo de revisão, a avaliação de agressores sexuais de acordo com comportamento, tipo de vítima, motivação e risco de reincidência só é possível em um contexto interdisciplinar, com participação de psiquiatra, psicólogo e assistente social. Há necessidade de essa equipe determinar aqueles que respondem a intervenções terapêuticas disponíveis, reduzindo o risco de reincidência.

A pesquisa sobre etiologia dos crimes sexuais e avaliação de agressores sexuais é a única forma de reduzir as consequências e custos desses problemas para a sociedade, bem como o imenso sofrimento trazido às vítimas. Estudos sobre crimes sexuais podem contribuir para a avaliação de risco de comportamento sexual violento. Por sua vez, essa avaliação será útil para o planejamento de intervenções terapêuticas e manejo clínico desses indivíduos, na comunidade, em prisões ou em serviços forenses de atendimento psiquiátrico.

Conclusão

São necessários mais estudos sobre a associação entre transtornos mentais e retardo mental e crimes sexuais, utilizando amostras maiores e investigando fatores de risco para agressão sexual, nesses indivíduos. É importante a detecção e o tratamento da morbidade psiquiátrica entre agressores sexuais nos sistemas de saúde e de justiça criminal, o que pode contribuir para menor risco de reincidência. A avaliação psiquiátrica sistemática de indivíduos que perpetram crimes sexuais pode contribuir para estratégias de intervenção, prevenção e avaliação de motivações específicas relacionadas à manifestação de comportamento sexual violento, bem como permitir melhor caracterização de grupos ou situações de risco.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Set 2012
    • Aceito
      20 Dez 2012
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