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Infecção sistêmica por Mycobacterium avium em cão: relato de caso

Systemic Mycobacterium avium infection in a dog: case report

Resumos

Infecções sistêmicas causadas pelo complexo Mycobacterium avium em cães são consideradas raras. Em cães e gatos, a infecção resulta da ingestão de carne ou do contato com solo ou fômites contaminados. As manifestações clínicas de cães infectados por M. avium tendem a ser vagas ou ausentes, logo o diagnóstico in vivo torna-se difícil. A suspeita de infecção sistêmica por micobacteriose ocorreu, neste relato, após a identificação de bacilos álcool-ácido resistentes na amostra de medula óssea, os quais foram identificados como Mycobacterium avium pelo método molecular de reação em cadeia da polimerase com análise de restrição (PCR-PRA). Este animal apresentava uma aplasia de medula óssea em decorrência de Erhlichia canis, corroborando a maioria dos relatos na literatura em que se associa essa infecção a pacientes imunossuprimidos.

Mycobacterium avium; infecção; cão


Systemic infections caused by Mycobacterium avium complex are considered rare in dogs. In dogs and cats, the infection comes from eating meat or being in contact with contaminated soil or fomites. Clinical manifestations of dogs infected with M. avium tend to be vague or absent, so the diagnosis "in vivo" becomes difficult. Systemic mycobacterial infection was suspected in this report, after the identification of acid-alcohol resistant bacilli in a bone marrow sample which was identified as Mycobacterium avium by the molecular method Polymerase Chain Reaction - PCR Restriction Analysis (PCR-PRA). This animal had a bone marrow aplasia due to Erhlichia canis corroborating with most reports in the literature that associate this infection with immunosuppressed patients.

Mycobacterium avium; infection; dog


MEDICINA VETERINÁRIA VETERINARY MEDICINE

Infecção sistêmica por Mycobacterium avium em cão: relato de caso

Systemic Mycobacterium avium infection in a dog: case report

S. GonçalvesI; K. GarciaII; P. S. AmaralII; K.A. D'EliaII; A.I. Magalhães III; V.C.F. RochaIV

IHemovet - Unisa – São Paulo, SP

IIHemovet – São Paulo, SP

IIIHemovet, IVI e Hospital Veterinário Pompeia – São Paulo, SP

IVFaculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia – Universidade de São Paulo - São Paulo, SP

RESUMO

Infecções sistêmicas causadas pelo complexo Mycobacterium avium em cães são consideradas raras. Em cães e gatos, a infecção resulta da ingestão de carne ou do contato com solo ou fômites contaminados. As manifestações clínicas de cães infectados por M. avium tendem a ser vagas ou ausentes, logo o diagnóstico in vivo torna-se difícil. A suspeita de infecção sistêmica por micobacteriose ocorreu, neste relato, após a identificação de bacilos álcool-ácido resistentes na amostra de medula óssea, os quais foram identificados como Mycobacterium avium pelo método molecular de reação em cadeia da polimerase com análise de restrição (PCR-PRA). Este animal apresentava uma aplasia de medula óssea em decorrência de Erhlichia canis, corroborando a maioria dos relatos na literatura em que se associa essa infecção a pacientes imunossuprimidos.

Palavras-chave:Mycobacterium avium, infecção, cão

ABSTRACT

Systemic infections caused by Mycobacterium avium complex are considered rare in dogs. In dogs and cats, the infection comes from eating meat or being in contact with contaminated soil or fomites. Clinical manifestations of dogs infected with M. avium tend to be vague or absent, so the diagnosis "in vivo" becomes difficult. Systemic mycobacterial infection was suspected in this report, after the identification of acid-alcohol resistant bacilli in a bone marrow sample which was identified as Mycobacterium avium by the molecular method Polymerase Chain Reaction - PCR Restriction Analysis (PCR-PRA). This animal had a bone marrow aplasia due to Erhlichia canis corroborating with most reports in the literature that associate this infection with immunosuppressed patients.

Keywords:Mycobacterium avium, infection, dog

INTRODUÇÃO

A micobacteriose é causada por uma bactéria que pertence ao gênero Mycobacterium, família Mycobacteriaceae, ordem Actinomycetales. A importância dessa enfermidade em cães e gatos vem aumentando, particularmente pelo aumento da infecção por micobactéria em humanos e pelo avanço dos métodos diagnósticos, sendo sua incidência na medicina veterinária provavelmente subestimada (Lappin, 2005).

A micobactéria mais comumente associada com infecções disseminadas em animais inclui organismos do complexo M. tuberculosis (M. tuberculosis, M. bovis, M. africanum, M. microti) e do complexo Mycobacterium avium (M. avium, M. intracellulare). Os organismos do complexo M. tuberculosis são geralmente considerados parasitas obrigatórios. Já os do complexo M. avium estão presentes no solo e na água e são patógenos oportunistas. Dependendo da espécie da micobactéria, as infecções em animais e humanos são classicamente associadas com as formas clínicas, que incluem: a forma pulmonar pela M. tuberculosis, a forma cutânea pela M. leprae, a forma subcutânea em consequência de uma infecção de uma lesão por uma variedade de micobactérias saprófitas e a doença disseminada, que pode envolver múltiplos órgãos e constitui a manifestação mais comum de infecções humanas e em animais por M. avium (Thorel et al., 2001).

A infecção por M. avium é descrita em muitos mamíferos, incluindo cães (Shackelford e Reed, 1989; Miller et al., 1995; Thorel et al., 2001; Naughton et al., 2005; Glanemann et al., 2008) , gatos (Jordan e Cohn, 1993), primatas, suínos, bovinos, ovinos e equinos (Thorel et al., 2001). Essa infecção é considerada rara em cães e gatos devido às suas resistências natas a esse microrganismo (Shackelford e Reed, 1989); em contrapartida, vem aumentando o número de casos relatados, especialmente em felinos, nos últimos anos (Lappin, 2005). Em cães e gatos, a infecção resulta da ingestão de carne ou do contato com solo ou fômites contaminados (Shackelford e Reed, 1989). A M. avium está presente em condições ácidas (pH 5,0 a 5,5) e em solos ricos em matéria orgânica, e o patógeno se mantém viável no ambiente por até dois anos. As fezes de pássaros infectados contêm grande número de M. avium. Não há evidências de propagação de M. avium entre animais e humanos, uma vez que a infecção se dá geralmente por exposição ao solo contaminado por carcaças ou fezes (Lappin, 2005).

Após a entrada da M. avium no organismo pela via respiratória ou pelo trato alimentar, ela é englobada por células fagocitárias e continua crescendo e se multiplicando. A micobactéria se dissemina pelos tecidos adjacentes por via linfática ou hematógena. Na maioria dos animais expostos ao M. avium, a resposta imune inicial limita-se à multiplicação e propagação da bactéria (Shackelford e Reed, 1989). Os granulomas frequentemente se formam como tentativa de conter o microrganismo (Lappin, 2005).

As manifestações clínicas associadas à infecção por M. avium tendem a ser vagas (Shackelford e Reed, 1989). Os cães e gatos são geralmente assintomáticos (Lappin, 2005); em razão disso, o diagnóstico in vivo é difícil. Tal infecção pode se caracterizar por lesões cutâneas primárias ou progredir para infecção disseminada iniciando-se pelo trato respiratório ou pelo trato gastroentérico (Shackelford e Reed, 1989). As alterações laboratoriais são normalmente inespecíficas (Lappin, 2005). A avaliação citológica ou a histopatológica dos tecidos afetados podem demonstrar o bacilo álcool-ácido resistente (coloração de Ziehl-Neelsen), entretanto não diferenciam as espécies de Mycobacterium. Neste caso, para a definição do diagnóstico, o indicado é a realização da cultura para Mycobacterium com diferenciação das espécies (Lappin, 2005) e/ou técnicas moleculares disponíveis para as principais micobactérias (Miller et al., 1995; Glanemann et al., 2008; Shin et al., 2010). Este relato tem como objetivo documentar o caso de um cão com infecção sistêmica por Mycobacterium avium associada à aplasia de medula óssea secundária à erliquiose.

RELATO DE CASO

Um cão de 10 anos, Poodle, macho, foi atendido com histórico de hematúria, hiporexia alternando com anorexia, anemia, trombocitopenia e leucopenia há um mês. Nesse período, foram realizadas duas transfusões de concentrado de plaquetas e tratamento com oxitetraciclina, pois o animal apresentou êmese com a doxiciclina. Ao exame físico, observaram-se mucosas normocoradas, hidratação adequada, linfonodos normais à palpação, sopro grau III/IV em foco de mitral e sem sensibilidade dolorosa à palpação abdominal. O proprietário relatou ixodidiose e tosse. O hemograma revelou anemia, trombocitopenia, leucopenia e hiperproteinemia. Foi realizada sorologia (ELISA) para Erlichia canis com resultado positivo (título 1:320). Não foram observadas alterações em ultrassonografia abdominal. O eletrocardiograma identificou uma arritmia sinusal com marcapasso migratório e parada sinusal e/ou bloqueio sinoatrial. O ecocardiograma revelou degeneração valvar mitral discreta e insuficiência valvar mitral moderada. Foi prescrito maleato de enalapril (0,5mg/kg /BID) e doxiciclina (5mg/kg/BID/ 30 dias).

Realizou-se a citologia de medula óssea, e foi sugerida uma hipoplasia com presença de estruturas arredondadas, com núcleo redondo (em seu citoplasma, foram observadas estruturas delicadas, alongadas), indicando micobactérias. Coletou-se uma nova amostra de medula óssea, que foi submetida à coloração de Ziehl-Neelsen revelando-se positiva para bacilos álcool-ácido resistentes (Fig. 1).


Diante deste resultado, realizaram-se coletas de diferentes materiais biológicos: pele (raspado), glote, nasal e medula óssea, que foram individualmente processados visando ao isolamento das principais espécies de micobactérias. Foi isolado o bacilo álcool- ácido resistente do material de medula óssea apenas, o qual foi identificado como Mycobacterium avium pelo método molecular de reação em cadeia da polimerase com análise de restrição (PCR-PRA).

A partir da identificação de micobactérias na medula óssea, foi investigada a possibilidade do contato do cão com humanos com tuberculose. Segundo informações do proprietário, não havia relatos de casos de tuberculose na família.

O quadro de aplasia de medula óssea evoluiu gradativamente e o animal veio a óbito após dois meses. O proprietário não permitiu a necrópsia do animal.

DISCUSSÃO

A exposição de pessoas ao M. avium é muito comum. Estima-se que mais de 70% da população humana é exposta aos microrganismos do complexo M. avium (Inderlied et al., 1993). Acredita-se que os animais sejam expostos igualmente (Glanemann et al., 2008). Entretanto, a documentação de humanos e animais doentes é extremamente rara e a enfermidade está associada à imunossupressão em ambos (Shackelford e Reed, 1989; Lappin, 2005; Naughton et al., 2005).

A infecção sistêmica por M. avium é considerada rara em cães e gatos provavelmente pela resistência nata de tais hospedeiros às infecções por esses microrganismos (Shackelford e Reed, 1989). A maioria dos relatos em cães está associada à imunossupressão (Shackelford e Reed, 1989; Haist et al., 2008; Campora et al., 2011).

No caso relatado, o animal era um paciente imunodeficiente devido à hipoplasia medular grave em decorrência de erliquiose canina evidenciada pelos hemogramas com pancitopenia acentuada e pelo mielograma, que evidenciou uma diminuição dos precursores de todas as linhagens celulares.

A M. avium pode ocasionar manifestações cutâneas ou pode evoluir para infecção sistêmica disseminada (Shackelford e Reed, 1989; Eggers et al., 1997; Naughton et al., 2005; Gow e Gow, 2008; Haist et al., 2008) por meio do trato respiratório ou do trato gastroentérico. Certas raças, como gatos Siameses (Jordan e Cohn, 1994), cães Basset Hound (Carpenter et al., 1988; Shackelford e Reed, 1989; Lappin, 2005; Campora et al., 2011) e Schnauzer miniatura (Miller et al., 1995; Eggers et al., 1997), podem ser mais suscetíveis, o que provavelmente indica um defeito genético envolvendo linfócitos T, macrófagos ou outras deficiências imunológicas (Miller et al., 1995).

Como as manifestações clínicas da infecção por M.avium são vagas e inespecíficas, o diagnóstico in vivo é muito difícil. Neste caso referido, realizou-se a citologia de medula óssea para confirmação da suspeita de aplasia, e nesta amostra foi constatada a presença de micobatérias, achadas por acaso. Relato semelhante foi realizado por O'Toole et al. (2005), os quais detectaram M. avium em medula óssea de um cão, justificando o quadro de anemia que apresentava. Não foi possível realizar a necrópsia do animal do presente relato, pois o proprietário não permitiu. Esse exame seria realizado para a constatação de uma infecção sistêmica disseminada por M. avium, evidenciada por vários autores pelos achados necroscópicos, em que comumente são encontradas as estruturas bacterianas em baço, intestinos, linfonodos, pulmões e medula óssea (Shackelford e Reed, 1989; Eggers et al., 1997; Horn et al., 2000; O'Toole et al., 2005; Naughton et al., 2005; Haist et al., 2008).

Entretanto, as manifestações clínicas inespecíficas e a limitação ao acesso às técnicas moleculares precisas são fatores que contribuem para a escassa documentação de infecção sistêmica por M. avium nesta espécie, principalmente como agente oportunista em animais debilitados ou em raças predispostas.

CONCLUSÃO

De acordo com a revisão bibliográfica consultada, este é o primeiro relato de infecção sistêmica por M. avium em cão no Brasil. Apesar de ser oportunista, o diagnóstico definitivo é necessário e ressalta a importância da PCR-PRA para diferenciação das espécies de micobactérias, a fim de se identificarem aquelas que representam um risco maior ao ser humano por se tratar de zoonose como a tuberculose. Além disso, em animais imunossuprimidos ou predispostos, algumas espécies de micobactérias, como a M. avium, podem ocasionar uma infecção sistêmica, agravando ainda mais a doença primária e a recuperação do animal, semelhante ao que ocorre em seres humanos.

Recebido em 7 de março de 2012

Aceito em 11 de março de 2013

Email: simone@hemovet.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2012
  • Aceito
    11 Mar 2013
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