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Impactos do desemprego e da precarização sobre famílias metropolitanas

Families under pressure: impacts of unemployment and substandard living conditions in three Brazilian cities

Resumos

Este texto discute as conseqüências da crise no mercado de trabalho sobre as famílias das Regiões Metropolitanas de Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Com base nos dados da PNAD, para o período 1995-2004, é feito um breve diagnóstico das estruturas familiares dessas regiões e dos respectivos mercados de trabalho, analisando o comportamento do desemprego e do processo de precarização. Em seguida, identificam-se os tipos de família que vêm sendo mais afetados por esses processos e os principais riscos do mercado de trabalho, segundo a posição do indivíduo na família, observando as diferenças entre as três regiões selecionadas. Finalmente, discute-se em que medida o patamar alcançado pelo desemprego e pela precarização, em cada região, pode ser explicado pelas particularidades da sua estrutura familiar ou se, pelo contrário, as características da sua economia e os impactos nela provocados pela reestruturação produtiva são os fatores determinantes da precarização e das próprias mudanças nas famílias.

Família; Mercado de trabalho; Precarização; Desemprego


This article addresses the consequences of the crisis in the labor market for families living in the greater metropolitan areas of Salvador, Belo Horizonte and Porto Alegre, Brazil. Based on data from the PNAD for the period between 1995 and 2004, it presents a brief diagnosis of the family structures in these regions and their respective labor markets and analyzes the behavior of unemployment and the process of growing instability. It then identifies the types of families that have been affected by these processes and the distribution of the main risks related to the labor market in terms of persons' positions in the family, separating the differences among the three regions studied. Finally, the article discusses the extent to which the stage reached by unemployment and instability in each region can be explained by the particularities of a family structure, or if, on the contrary, the characteristics of its economy and the resulting impacts imposed by the productive restructuring are determining factors for growing in stability and changes in family structures.

Family; Labor market; Labor instability; Unemployment


ARTIGO

Impactos do desemprego e da precarização sobre famílias metropolitanas* * A primeira versão deste texto foi apresentada no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Abep, realizado em Caxambu, MG, Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006.

Families under pressure: impacts of unemployment and substandard living conditions in three Brazilian cities

Ângela Borges

Doutora em Ciências Sociais, professora e coordenadora do Programa de Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da UCSAL e pesquisadora associada do CRH/UFBA

RESUMO

Este texto discute as conseqüências da crise no mercado de trabalho sobre as famílias das Regiões Metropolitanas de Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Com base nos dados da PNAD, para o período 1995-2004, é feito um breve diagnóstico das estruturas familiares dessas regiões e dos respectivos mercados de trabalho, analisando o comportamento do desemprego e do processo de precarização. Em seguida, identificam-se os tipos de família que vêm sendo mais afetados por esses processos e os principais riscos do mercado de trabalho, segundo a posição do indivíduo na família, observando as diferenças entre as três regiões selecionadas. Finalmente, discute-se em que medida o patamar alcançado pelo desemprego e pela precarização, em cada região, pode ser explicado pelas particularidades da sua estrutura familiar ou se, pelo contrário, as características da sua economia e os impactos nela provocados pela reestruturação produtiva são os fatores determinantes da precarização e das próprias mudanças nas famílias.

Palavras-chave: Família. Mercado de trabalho. Precarização. Desemprego.

ABSTRACT

This article addresses the consequences of the crisis in the labor market for families living in the greater metropolitan areas of Salvador, Belo Horizonte and Porto Alegre, Brazil. Based on data from the PNAD for the period between 1995 and 2004, it presents a brief diagnosis of the family structures in these regions and their respective labor markets and analyzes the behavior of unemployment and the process of growing instability. It then identifies the types of families that have been affected by these processes and the distribution of the main risks related to the labor market in terms of persons' positions in the family, separating the differences among the three regions studied. Finally, the article discusses the extent to which the stage reached by unemployment and instability in each region can be explained by the particularities of a family structure, or if, on the contrary, the characteristics of its economy and the resulting impacts imposed by the productive restructuring are determining factors for growing in stability and changes in family structures.

Key words: Family. Labor market. Labor instability. Unemployment.

Introdução

Desde o início dos anos 90, quando os primeiros impactos da reestruturação produtiva e da gestão neoliberal da economia brasileira se fizeram sentir – com o desemprego, a precarização e as acentuadas perdas salariais e de benefícios vitimando milhões de trabalhadores brasileiros –, os estudos e pesquisas sobre as várias dimensões do processo de desestruturação dos mercados de trabalho assumiram um lugar relevante na produção das Ciências Sociais.

Assim, na contramão das teses que apontavam para a perda da centralidade do trabalho na sociedade contemporânea, os resultados desses estudos e pesquisas ressaltaram exatamente o contrário: a absoluta relevância – e centralidade – das transformações em curso no mundo do trabalho sobre as demais esferas da vida social, entre as quais a família, pólo de reprodução intimamente articulado com o pólo da produção (GOLDANI, 1998, 2002; MONTALI, 2003, 2004; OLIVEIRA, 2005).

Por essas razões, a análise do processo de desestruturação do mercado de trabalho, baseada na observação dos impactos das mudanças sobre os indivíduos, ao mesmo tempo em que trouxe contribuições extremamente valiosas para o entendimento das transformações em curso (POCHMANN, 1997; BORGES, 2003), também indicou a necessidade de agregar a perspectiva das famílias nessa análise do mercado de trabalho, no sentido de melhor compreender as implicações mais profundas dessas transformações.

Este texto dá continuidade a um estudo sobre a desestruturação do mercado de trabalho nos anos 90 e apresenta alguns resultados de uma pesquisa que buscou observar como as transformações ocorridas no mercado de trabalho repercutiram sobre as famílias, no período 1995-2004. Tomam-se, como exemplos, os casos das Regiões Metropolitanas de Salvador – RMS, Belo Horizonte – RMBH e Porto Alegre – RMPOA, procurando discutir a importância das estruturas econômicas e da inserção na divisão inter-regional do trabalho, bem como das estruturas familiares na determinação do perfil e da gravidade desses impactos em cada região.

O trabalho baseou-se nos dados das PNADs e está subdividido nesta introdução, em três itens –, em que são discutidos as mudanças nas estruturas familiares e nos mercados de trabalho, os impactos da crise sobre as famílias das três regiões e a distribuição dos riscos do mercado de trabalho segundo a posição dos indivíduos na família – e nas considerações finais.

Mudanças nas estruturas familiares

Nas três regiões selecionadas, as famílias vêm passando por mudanças importantes, sintetizando processos sociodemográficos (queda na fecundidade, mudanças nos modelos de família, envelhecimento, etc.) e transformações na estrutura produtiva que alteraram, profundamente, as condições de reprodução da população que vive do trabalho.

As famílias numerosas perdem rapidamente espaço para aquelas com, no máximo, quatro componentes, que, em 2004, já representavam 89% do total na RMPOA e em torno de 84% nas outras duas regiões. Em conseqüência, diminuiu o número médio de componentes das famílias, correspondendo a cerca de três pessoas, em 2004, nas três regiões, o que aponta para o estreitamento das possibilidades de arranjos familiares para o enfrentamento da crise do mercado de trabalho, particularmente nas famílias com crianças, adolescentes e idosos, além de estar associado, sobretudo, à redução do número médio de filhos por família, indicador que é mais baixo na RMPOA do que nas outras duas regiões selecionadas.

Além da redução no seu tamanho médio, mudam os arranjos familiares. O modelo tradicional formado pelo casal com filhos ainda é majoritário nas três regiões, mas diminuiu acentuadamente sua importância entre 1995 e 2004, em decorrência da expansão do número de famílias compostas por "mãe e filhos" e dos "outros tipos de família", entre os quais predominam aqueles em que a pessoa de referência convive com filhos e outros parentes. Embora as três regiões compartilhem essa tendência, verificam-se diferenças importantes no perfil das famílias: a RMS tem o percentual mais elevado de famílias compostas por "mãe e filhos", bem como a maior expansão deste tipo de arranjo, ultrapassando ¼ das famílias metropolitanas em 2004; nas duas outras regiões esse incremento foi menos expressivo e o peso relativo destas famílias manteve-se bem abaixo do encontrado na região metropolitana baiana, em especial na RMPOA, onde apenas 17% das famílias correspondiam a este tipo de arranjo.

Essa diferença entre as três regiões estudadas ressalta a maior vulnerabilidade dos trabalhadores da RMS diante das transformações em curso, pois, como destacado na literatura, é exatamente neste tipo de arranjo familiar que são encontradas as proporções médias mais elevadas de pobres e de indigentes, particularmente no caso das famílias formadas por mulheres com baixa escolaridade e com filhos pequenos ou em idades de difícil inserção no mercado de trabalho, como a adolescência.

O elevado percentual de famílias monoparentais chefiadas por mulheres na RMS, somado a uma proporção – igualmente mais elevada do que nas demais regiões – da chefia feminina dos "outros tipos de família", faz com que esta região apresente a maior proporção de famílias que têm uma mulher como a pessoa de referência – nada menos do que 41,8% em 2004.

Observe-se, no entanto, que, embora bem mais expressivo na RMS, este é um fenômeno muito forte também nas outras duas regiões, corroborando os resultados de diversos trabalhos que destacam a expansão deste tipo de arranjo familiar como uma das mudanças mais importantes ocorridas nas últimas décadas (GOLDANI, 1998, 2002; MONTALI, 2002, 2003, 2004). Trata-se de um fenômeno que está associado a mudanças culturais relativas ao papel da mulher na sociedade, mas que, neste período, está sendo fortemente influenciado também pelos impactos negativos da reestruturação produtiva sobre as oportunidades de trabalho e renda dos homens chefes de família. Isto porque a elevação do desemprego e as perdas salariais de homens adultos vêm contribuindo para acelerar a desconstrução do papel do homem provedor, processo que, não raro, resulta em conflitos intrafamiliares, inclusive na violência contra mulher e filhos, na dissolução do vínculo conjugal ou, simplesmente, na fuga das responsabilidades da paternidade.

Nesse rápido perfil das famílias das três regiões estudadas, sobressaem ainda as diferenças quanto ao rendimento médio familiar per capita. Também neste indicador a RMS encontra-se bem abaixo das outras duas (73% do rendimento médio da RMBH e 63% daquele verificado na RMPOA), além de registrar, no período, perdas reais mais acentuadas. Finalmente, traduzindo mudanças na família (a já referida perda de posição do homem provedor e o aumento do número de famílias chefiadas por mulheres) e no mercado de trabalho (desemprego dos chefes e redução dos rendimentos), observa-se uma queda na contribuição do chefe ou pessoa de referência para a formação da renda familiar, a qual passou de cerca de 70% para aproximadamente 66%, entre 1995 e 2004, com pequenas diferenças entre as regiões consideradas.

Perfil e mudanças nos mercados de trabalho

Os mercados de trabalho aqui estudados têm tamanhos semelhantes (entre 1,8 milhão e 2,5 milhões de pessoas na PEA, em 2004) – o maior referente à RM de Belo Horizonte e o menor à de Salvador –, sendo que todos foram fortemente afetados pelas mudanças que acompanharam a reestruturação produtiva dos anos 90, já amplamente conhecidas.

Do lado da oferta,1 1 Sempre tendo em mente que, no mercado de trabalho, oferta e demanda não são grandezas independentes, pois a demanda – as empresas e instituições – age simultaneamente dos dois lados, isto é, a gestão do capital é, simultaneamente, gestão dos trabalhadores e das suas famílias (MARX, 1971; BORGES, 2003). ocorreu elevação da taxa de atividade, resultado tanto de mudanças na estrutura demográfica da população – aumento do peso relativo da população em idade de trabalhar –, como de uma maior pressão sobre o mercado de trabalho exercida pelas famílias cujos arranjos de inserção passaram a incluir, com maior freqüência, segmentos da população que historicamente apresentavam maior propensão a permanecerem inativos, particularmente as mulheres e os jovens. Este aumento da participação feminina e juvenil no mercado de trabalho obviamente é tributário de transformações culturais e políticas importantes, como a saída maciça das mulheres do espaço privado e a afirmação da independência e identidade juvenis – esta última fortemente associada ao consumo em nossa sociedade. Somam-se a essas transformações, que já vinham se processando ao longo de décadas, mudanças mais recentes nas estratégias familiares – referidas à divisão do trabalho intrafamiliar e ao uso do tempo dos componentes da família – em resposta a transformações que estão se processando na estrutura produtiva, como já mostraram diversas autoras que se debruçaram sobre o tema, analisando, particularmente, o caso da Região Metropolitana de São Paulo (MONTALI, 2000, 2002, 2003, 2004; GOLDANI, 1998; KON, 2005).

O crescimento da taxa de atividade global – puxado pela elevação da participação feminina, uma vez que as taxas médias masculinas cresceram pouco ou sofreram pequenas reduções – ocorreu nas três regiões e refere-se à entrada, no mercado de trabalho, de uma população cada vez mais escolarizada, pois, nessas regiões, mais de 60% do incremento da População Economicamente Ativa correspondeu a pessoas com, pelo menos, o ensino médio completo.

O incremento nas taxas de participação foi maior nas Regiões Metropolitanas de Salvador e Belo Horizonte, o que talvez se explique porque o mercado de trabalho da RM de Porto Alegre já apresentava taxas médias bem mais elevadas no início do período considerado.

A análise das taxas de atividade específicas por idade mostra o fenômeno da retirada das crianças e adolescentes do mercado de trabalho nas Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e Porto Alegre e o aumento da participação deste segmento da população apenas na mais pobre das três regiões (Salvador), revelando as dificuldades encontradas pelas famílias mais carentes desta área para dispensar a contribuição dos adolescentes na formação da renda familiar.

Na idade adulta, a expressiva elevação das taxas específicas de atividade traduz o crescimento na participação feminina, inclusive nas idades mais avançadas. Esse aumento, um fenômeno generalizado no capitalismo globalizado, remete a mudanças tecnológicas e organizacionais e a uma reestruturação empresarial que tem levado a uma drástica redução dos contingentes de trabalhadores nas atividades produtoras de bens – espaços com maior presença masculina – e ao crescimento do contingente de trabalhadores necessários nas atividades do terciário, em que são crescentes as possibilidades de incorporação do trabalho feminino. As três regiões registraram essa expansão da participação feminina, mas o fenômeno foi bem mais expressivo em Belo Horizonte e, especialmente, em Salvador, o que é coerente com a elevada proporção de famílias chefiadas por mulheres nessa última região. Já em Porto Alegre, o incremento da participação feminina foi relativamente baixo (de 51,4% para 54,7%), sugerindo a existência de importantes diferenças entre as estratégias de inserção adotadas pelas famílias das três áreas estudadas.

Em síntese, as alterações no perfil da oferta de trabalho, por si só, já revelam que, seja pelas mudanças na sua estrutura, seja pelos constrangimentos colocados pela esfera produtiva, seja, ainda, por ambas as razões, no período analisado as famílias das três regiões metropolitanas alteraram significativamente suas estratégias diante do mercado de trabalho.

Essas estratégias familiares de inserção são informadas, em cada região, pela estrutura da sua economia, sua capacidade de incorporação de trabalhadores e as condições desta incorporação. Quanto a este ponto, existem diferenças importantes entre as três economias metropolitanas selecionadas, em relação tanto à estrutura setorial da atividade econômica, quanto à posição de cada uma dessas regiões na divisão inter-regional do trabalho no país, diferenças que são fundamentais para a determinação e explicação dos impactos da reestruturação produtiva sobre os respectivos mercados de trabalho.

Quanto a esse último ponto, as três regiões selecionadas estão fora do eixo Rio/São Paulo – núcleo dinâmico originário da economia nacional –, sendo que suas estruturas econômicas foram conformadas em processos históricos muito particulares e, no contexto da atual reestruturação produtiva, estão sofrendo rápida redefinição da sua posição no processo de acumulação em âmbitos nacional e global.

A RM de Belo Horizonte, por exemplo, estreitou suas articulações com o eixo dinâmico da economia brasileira e passou a integrá-lo, no bojo do processo de "desconcentração concentrada", que deslocou atividades da metrópole paulista para concentrá-las num perímetro relativamente estreito, que inclui a capital mineira. A Região Metropolitana de Porto Alegre, área periférica que historicamente apresenta os melhores indicadores sociais do país, vivenciou um processo de reestruturação que incorporou os efeitos do Mercosul, passando a integrar um novo espaço de dinamismo industrial da economia brasileira (ARAÚJO, 1997; 2000; GUIMARÃES NETO, 1995; TAVARES, 2000; SABÓIA, 2001).

Já a RMS, situada na região mais pobre do Brasil e beneficiária do processo de desconcentração industrial na etapa anterior do desenvolvimento brasileiro, recebeu, nos anos 90, alguns investimentos industriais de porte, que reforçaram seu padrão de industrialização baseado em grandes investimentos com baixa capacidade de geração de empregos e de distribuição da renda na região, mas perdeu muito com o processo de reconcentração, no Sudeste/Sul, das atividades de gestão empresarial e dos serviços produtivos mais modernos.

Conseqüentemente, os três mercados de trabalho metropolitanos vão apresentar diferenças significativas na estrutura setorial da ocupação e nas formas de inserção, como mostram os dados da Tabela 2. Nos mercados de trabalho das RMs de Belo Horizonte e Porto Alegre, os percentuais de ocupados em atividades produtoras de bens e, particularmente, na Indústria de Transformação – cujos postos de trabalho geralmente são mais bem remunerados – são mais elevados do que na RM de Salvador, que registra um dos percentuais mais altos de terciarização no contexto metropolitano brasileiro (78%, em 2004). Ademais, na RMS, a parcela de ocupados que se encontram em atividades de baixa produtividade (como o pequeno comércio, ambulantes, serviços de reparação, serviços domésticos, etc.) é mais elevada do que nas outras duas regiões metropolitanas estudadas.

Em conseqüência, no início do período analisado (1995), este mercado já registrava a menor proporção (43,4%) de empregos protegidos – com carteira assinada e funcionários públicos –, a taxa de desemprego aberto mais elevada (9,6%) entre todos os mercados de trabalho metropolitanos e o rendimento médio mais baixo, indicadores que revelam seu grau de precariedade, superior ao das outras duas regiões, ainda que a precariedade, com intensidade variada, seja um traço comum (e estrutural) a todos os mercados de trabalho do país.

Como sabido, a reestruturação produtiva que se acelerou a partir de 1990 e o conjunto de mudanças provocadas pela gestão neoliberal da economia promoveram transformações de fundo nas possibilidades de incorporação dos trabalhadores ao processo produtivo e nas condições dessa incorporação, forçando e condicionando os arranjos familiares de inserção no mercado de trabalho (MONTALI, 2000). Resumidamente, essas transformações incluíram a terceirização do emprego e da ocupação, a redução da proporção de postos de trabalho socialmente protegidos, a ampliação dos contingentes de ocupados em empregos/ocupações precárias e o decréscimo dos salários reais para a maioria dos trabalhadores, sobretudo, para aqueles situados nas faixas de rendimento um pouco mais elevadas do que o salário mínimo (BORGES, 2003).

Os mercados de trabalho estudados foram fortemente atingidos por esses processos, registrando uma piora em todos os indicadores, mas o ponto de partida e a intensidade das perdas não foram os mesmos em todos eles.

Com relação ao desemprego, como visto, a RMS registra a maior taxa no início e no fim do período, atingindo quase 20% da PEA em 2004, enquanto a de Belo Horizonte, que apresentava a menor taxa de desemprego em 1995, passou a ocupar o segundo lugar em 2004, com um incremento relativo de 51% neste indicador. A Região Metropolitana de Porto Alegre, pelo contrário, embora também tenha registrado elevação do desemprego, obteve o menor incremento relativo, alcançando, em 2004, uma taxa inferior àquela verificada na RMS em 1995. Ou seja, tanto no início como no fim do período, o mercado de trabalho da RM de Porto Alegre apresentou os indicadores mais positivos (ou menos graves)comparativamente às duas outras metrópoles.

O desemprego cresceu em praticamente todas as idades nas regiões estudadas, mas continuou concentrado nos segmentos mais jovens e nas mulheres. Com efeito, apesar da elevação das taxas de desemprego dos adultos com mais de 30 anos, entre 1995 e 2004 são os jovens, de ambos os sexos, que arcaram com os maiores incrementos nas taxas de desemprego, notadamente na RMS e na RMBH, cujas taxas do grupo de 15 a 29 anos alcançaram, em 2004, nada menos do que 29,3% e 20,4%, respectivamente. Entre os de 15 a 19 anos, o quadro é ainda mais grave: neste último ano, a taxa de desemprego deste segmento ficou em torno de 43%, na RMS, e 34% (18 e 19 anos), na RMBH.

Estas taxas indicam as dificuldades encontradas pelas famílias dessas regiões com filhos adultos jovens para recompor a renda familiar, em caso de desemprego ou de perdas salariais do chefe e/ou do cônjuge, confirmando uma das principais mudanças da atual crise do emprego. Como já apontado por Montali (2000, 2003), nos seus estudos para a RMSP, também nas regiões aqui consideradas as estratégias do passado, baseadas na inclusão dos filhos jovens na força de trabalho familiar, tornam-se cada vez mais inaplicáveis (ou melhor, pouco eficazes), aumentando a importância do trabalho da mulher cônjuge (GOLDANI, 2002; ARRIAGADA, 2001). Obviamente, essa exclusão em larga escala de jovens do mercado de trabalho – eles representavam, em 2004, 61% dos desempregados na Região Metropolitana de Porto Alegre, 66% na de Belo Horizonte e 62% na de Salvador (BORGES, 2001; 2003) – também obriga a extensão do período de vida ativa dos pais ou responsáveis e introduz mudanças não desprezíveis na composição dos grupos domésticos: permanência por maior tempo dos jovens adultos na família de origem; retardamento da constituição de novas famílias e reagrupamento familiar, com o retorno à família de origem de filhos casados/separados e desempregados/subempregados, podendo ocorrer ou não a presença de netos.

Como dito, além de juvenil, o desemprego também é, largamente, um fenômeno feminino. Entre 1995 e 2004, as taxas de desemprego das mulheres, sempre as mais elevadas, distanciaram-se ainda mais das masculinas e, majoritariamente jovens, elas responderam, em 2004, por muito mais da metade do estoque de desempregados: 59% na RMS; 55% na RMBH e 60% na RM de Porto Alegre.

Isso significa que, embora as mulheres venham assumindo um papel cada vez mais relevante no provimento das famílias – inclusive na presença do chefe homem – e venham também sendo beneficiadas pela expansão de alguns dos seus "nichos ocupacionais", as condições extremamente adversas do mercado de trabalho têm reduzido bastante a eficácia dos arranjos de inserção centrados na força de trabalho feminina. Como será mostrado, além do desemprego, conspiram contra o sucesso destes arranjos a precariedade da ocupação e os salários das mulheres que conseguem se inserir no mercado de trabalho, na maior parte dos casos inferiores aos dos homens.

Além da sustentação da taxa de desemprego num patamar elevado, a precarização dos postos de trabalho é um dos principais componentes do processo de desestruturação dos mercados de trabalho que resultou da atual reestruturação produtiva, sob a égide da gestão neoliberal da economia e do Estado. Medida pelo nível dos rendimentos e pela evolução da proporção de postos de trabalho socialmente protegidos – empregos com vínculo empregatício regulamentado e que asseguram, em graus variados, proteções contra eventos como demissão imotivada, desemprego, doença, acidentes de trabalho e direitos como a aposentadoria e a pensão para os dependentes –, a precarização atingiu tanto os mercados de trabalho mais estruturados (RMBH e RMPOA) como o da RMS, historicamente marcado por elevados níveis de precariedade.

De fato, como mostram os dados da Tabela 2, entre os três mercados de trabalho analisados, o da RMS é o que mantém a mais baixa proporção de postos de trabalho protegidos (cerca de 42% em 2004). Já as outras duas regiões, cujos mercados de trabalho eram mais estruturados antes da atual crise, também registraram queda nas respectivas proporções de empregos protegidos – mais acentuada em Belo Horizonte do que em Porto Alegre – mas, ainda assim, preservaram estoques de postos de trabalho socialmente protegidos proporcionalmente maiores do que o encontrado na RMS. Além disso, a queda dos rendimentos médios reais dos ocupados ocorrida nessas duas regiões foi menor do que a sofrida na RMS e, o que é mais relevante, incidiu sobre níveis médios de remuneração bem superiores aos vigentes no mercado de trabalho da região metropolitana baiana.

Finalmente, os últimos indicadores utilizados para medir a precarização dos postos de trabalho nas áreas selecionadas – os percentuais de ocupados nas faixas de rendimento de até um salário mínimo e de até dois salários mínimos – confirmam as condições mais favoráveis experimentadas pelos trabalhadores mineiros e gaúchos vis à vis os baianos: o mercado de trabalho da RMS registrou a maior perda no rendimento médio real dos ocupados entre 1995 e 2004 (24%) e, ainda, apresentava, nos dois anos, elevadíssimas proporções de ocupados nas classes mais baixas de remuneração (em 2004, 37% dos ocupados da RMS ganhavam até um salário mínimo e nada menos do que 68,3% recebiam menos de dois salários mínimos). Essas diferenças revelam que os três mercados de trabalho analisados, apesar de expostos às mesmas mudanças que acompanham a reestruturação das empresas, a reforma do Estado e a flexibilização generalizada das relações de trabalho, apresentam níveis de precarização muito distintos, o que implica alternativas (e recursos) diferentes de enfrentamento da crise por parte das famílias dessas regiões.

Exposição das famílias aos riscos do mercado de trabalho

Esses rápidos comentários sobre as transformações sofridas pelos mercados de trabalho regionais consideraram, para análise, os indivíduos isolados das suas famílias. Agora, essas últimas são tomadas como objeto, para avaliar como as perdas contabilizadas pelos trabalhadores das três regiões se propagaram para as famílias, amplificando os efeitos negativos da crise.

A leitura dos indicadores relativos às famílias é indispensável para a compreensão da magnitude da crise que atingiu o mercado de trabalho, porque os ônus do desemprego e da ocupação precária não são suportados exclusivamente pelos indivíduos que os vivenciam. Pelo contrário, esses processos afetam um número bem maior de pessoas do que as vítimas normalmente contabilizadas nas estatísticas, pois os desempregados e os trabalhadores precarizados integram famílias que serão mais ou menos afetadas pelas experiências vivenciadas por seus membros no mercado de trabalho, em função da sua composição, da posição que o trabalhador atingido ocupa na família e dos recursos que essas dispõem para enfrentar as desventuras de um ou mais dos seus membros (BARRÈRE-MAURISSON, 2000).

Para proceder a essa análise, os dados da PNAD foram primeiramente tabulados de modo a identificar as famílias – classificadas por tipo – que tinham ao menos um dos seus membros na condição de desempregado (Tabela 4). Já a Tabela 5 fornece elementos para discutir o impacto da expansão da ocupação precária2 2 A ocupação precária aqui considerada inclui os ocupados nas seguintes categorias da PNAD: outros empregados sem carteira; empregados sem declaração de carteira; trabalhador doméstico com carteira; trabalhador doméstico sem carteira; trabalhador doméstico sem declaração de carteira; trabalhador na produção para o próprio consumo; trabalhador na construção para o próprio uso. nas três regiões metropolitanas. Seus dados mostram a proporção e o número absoluto de famílias com um ou mais dos seus membros em ocupações precárias e o número médio de trabalhadores nessa situação por família atingida.

Em primeiro lugar, observe-se que, entre 1995 e 2004, ocorreu, nas três regiões, um expressivo incremento do número de famílias com pelo menos um dos seus membros nas fileiras dos desempregados e/ou dos ocupados em postos de trabalho precários, aumento que foi mais expressivo na RMS e na RMBH.

Esses indicadores mostram claramente como o impacto do desemprego e da ocupação precária é mais bem visualizado quando observado do ponto de vista das famílias (SOUZA, 1999). Na Tabela 4, tomando como referência o ano de 2004, com uma taxa de desemprego de 19,4% foram afetadas 27,5% das famílias da RMS. A taxa de 12%, na RMBH, repercutiu sobre 18,1% das famílias da região e, na RMPOA, esses números foram de, respectivamente, 8,9% e 12,6%. No período considerado, o incremento relativo do número de famílias com desempregados alcançou impressionantes 182% na RMS, 184% na RMBH e bem menos na RMPOA (59%), reafirmando o melhor desempenho do seu mercado de trabalho neste período. No entanto, mesmo nessa região, a precariedade se expandiu sob outras formas, mais do que dobrando o número de famílias com ocupados por conta própria ganhando menos de um salário mínimo.

Já o tipo de inserção precária que mais atinge as famílias das três regiões – o trabalho assalariado informal ou precário, com ou sem remuneração – apresentou incrementos menores, mas, ainda assim, em 2004, a proporção de famílias metropolitanas com pelo menos um dos seus integrantes nesse tipo de ocupação situava-se entre cerca de 30% do total de famílias na RM de Porto Alegre e 35,4% na de Belo Horizonte.

Esses percentuais de famílias com desempregados, com ocupados em postos precários e com conta própria com menos de um salário mínimo, embora não possam ser somados, porque uma mesma família pode ter os seus membros distribuídos em mais de uma dessas situações (um desempregado e um contra própria, por exemplo), permitem vislumbrar a magnitude do impacto da atual crise do mercado de trabalho sobre as famílias das três regiões estudadas.

De um lado, esses dados sugerem que bem mais da metade das famílias metropolitanas estudadas convivem com o desemprego e/ou com o trabalho precário de um ou mais dos seus membros, sendo a RMS aquela onde as famílias estão mais expostas a esses riscos, seguida da RMBH, encontrando-se a RMPOA numa situação menos grave. Esses números são coerentes com os resultados encontrados pelas pesquisas mais recentes sobre o mercado de trabalho brasileiro, que mostram como a atual reestruturação produtiva vem atingindo as oportunidades de trabalho de segmentos até então protegidos dos riscos do mercado de trabalho: os trabalhadores mais escolarizados; os ocupantes de cargos de chefia e gerência, fortemente atingidos pela reestruturação das empresas; e, sobretudo, os jovens – inclusive os que portam os diplomas mais elevados –, os quais têm encontrado crescentes dificuldades de inserção no mercado de trabalho e, quando logram consegui-la, são elevadas as chances de ficarem aprisionados em postos de trabalho precários, mal remunerados e sem futuro (BORGES, 2003).

Mas, de outro lado, esses indicadores sobre os impactos do desemprego e da precarização sobre as famílias também mostram que, mesmo num contexto de ampliação do número de segmentos sociais vulneráveis – além dos novos pobres pode-se falar em novos vulneráveis –, os riscos do mercado de trabalho ainda atingem mais intensamente algumas famílias do que outras. O número médio de desempregados e de precarizados por família sinaliza para a persistência dessa distribuição desigual dos riscos. Sempre superior a 1, ele indica que muitas famílias ainda estão sendo poupadas e que outras estão sendo penalizadas pelo desemprego e pela ocupação precária de mais de um dos seus membros, fenômeno que se revela mais freqüente na RMS e na RMBH.

A leitura dos dados sobre a incidência do desemprego e da precariedade por tipo de família fornece uma primeira aproximação dessa distribuição desigual dos riscos entre as famílias metropolitanas. Essa desigualdade é, em grande medida, determinada pela forma como estão hoje distribuídos esses riscos entre os trabalhadores em função das variáveis idade, sexo, escolaridade, cor e posição na família. Neste estudo, destaca-se apenas a relevância da variável idade, hoje uma das mais determinantes na definição das famílias mais expostas aos riscos aqui considerados.

Com efeito, a elevadíssima participação dos jovens de ambos os sexos no estoque de desempregados e de trabalhadores precarizados faz com que, entre as famílias mais atingidas na atual crise, estejam aquelas com a presença de filhos jovens em idade de trabalhar. Como pode ser observado na Tabela 6, em todas as regiões metropolitanas estudadas, os tipos de família que apresentam maiores proporções de membros nas situações anteriormente referidas são aquelas "com filhos de 14 anos ou mais" e as "com filhos em idades variadas", independente de serem famílias do tipo "casal" ou do tipo "mãe com filhos". Ou seja, à primeira vista, a presença dos dois pais (ou equivalentes) parece não reduzir muito as chances de a família escapar dos riscos do desemprego e da inserção precária no mercado de trabalho, quando estão presentes filhos adolescentes e jovens, cujas chances de inserção tornaram-se, como visto, muito limitadas.

Mesmo assim, a taxa de desemprego por tipo de família sugere que, na RMS, as taxas das famílias formadas por mãe com filhos em idade de trabalhar são mais elevadas em relação às daquelas compostas por casal com filhos igualmente em idade de trabalhar. Em termos absolutos, as famílias com "mães e filhos" respondiam por 33% do total de desempregados desta região e por apenas 23% da PEA regional, uma sobrerepresentação que aparece também em Belo Horizonte (27,6% dos desempregados e 19,2% da PEA) e em Porto Alegre (respectivamente, 24,9% e 14,9%). Além disso, as famílias formadas por mães e filhos menores de 14 anos também registram taxas de desemprego sensivelmente mais elevadas do que a dos casais com filhos nesta idade.

A explicação para essa maior exposição aos riscos do mercado de trabalho dessas famílias monoparentais parece estar na maior dependência que elas têm da força de trabalho juvenil, que, como visto, é o segmento mais exposto aos riscos acentuados pela crise do mercado de trabalho. Em outras palavras, são os jovens dessas famílias os que mais pressionam o mercado de trabalho, expondo-se mais aos seus riscos do que os jovens pertencentes a famílias formadas por "casal e filhos" – a maioria com mais de um provedor –, os quais têm mais chances de permanecer por mais tempo fora do mercado de trabalho.

Desse modo, os tipos de família sub-representados na distribuição dos riscos do mercado de trabalho são o "casal sem filhos", o "casal com filhos menores de 14 anos" e os "outros tipos de família", que são, geralmente, arranjos entre parentes.

Esses dados vêm reforçar os argumentos em defesa de políticas específicas para a juventude, tanto aquelas que visam ampliar o período de formação escolar quanto as que estão voltadas para reduzir as barreiras à inserção dos jovens no mercado de trabalho e para assegurar-lhes acesso à renda, seja através do trabalho, seja por meio de transferências públicas transitórias que lhes assegure a independência financeira mínima necessária à vivência plena da juventude, naqueles casos em que a família não é capaz de realizar essas transferências.

É importante assinalar, porém, que não se ignora que a magnitude do déficit de lugares nos mercados de trabalho do país, que tem vitimado principalmente os jovens à procura do primeiro emprego, torna impossível reduzi-lo significativamente apenas com políticas pontuais, focalizadas e compensatórias para grupos em desvantagem. Tal tarefa supõe mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento do país, capazes de redefinir sua inserção no capitalismo globalizado e de redesenhar a forma como está distribuída a renda e a propriedade no país.

Distribuição dos riscos segundo posição na família

A análise das taxas de atividade, desemprego e ocupação, bem como da distribuição dos desempregados e dos ocupados segundo posição na família, permite visualizar, de uma outra perspectiva, como vem se reestruturando a relação família versus mercado de trabalho nas três regiões estudadas.

A primeira mudança a destacar é a queda na participação do chefe na atividade econômica acompanhada do crescimento da participação dos cônjuges e dos filhos, em todas as regiões, confirmando a tendência à perda de importância do modelo do chefe provedor (GOLDANI, 2002). A expansão do desemprego atinge todos os componentes da família, inclusive os chefes, historicamente menos expostos a este risco. Neste movimento de aumento geral das taxas de desemprego, destaca-se, como visto, a Região Metropolitana de Salvador pelas elevadas taxas de desemprego dos chefes de família e dos cônjuges, que correspondem ao dobro ou quase das taxas das outras duas regiões.

O indicador ocupados/População em Idade Ativa (PIA), que oferece uma medida mais direta da inserção de cada segmento na atividade produtiva, mostra como efetivamente as condições do mercado de trabalho vêm contribuindo para a desconstrução do modelo do chefe provedor. Nas três regiões, a participação dos chefes na atividade econômica recuou entre 1995 e 2004, oscilando nesse último ano entre 70% e 72%, enquanto a participação do cônjuge, apesar da elevação do desemprego, cresceu expressivamente nas três regiões, como pode ser visto na Tabela 8.

Como era de se esperar, a participação dos filhos vem sendo fortemente afetada pelo desemprego juvenil, pois, apesar de registrarem expressivos aumentos nas suas taxas de participação, apenas uma parte dos que buscam trabalho consegue efetivamente se inserir no mercado de trabalho. Assim, entre 1995 e 2004, a relação ocupados/PIA cresceu pouco para esta categoria, correspondendo, neste último ano, a apenas 35%, na RMS, 42% na RMBH e 39% na RMPOA. Ou seja, a pressão das famílias das três regiões estudadas sobre o mercado, expressa na elevação das taxas de participação dos outros membros da família para compensar o desemprego ou a perda de renda da pessoa de referência, não tem surtido o efeito esperado.

Na Tabela 9, é apresentada a contribuição que, em média, cada um dos componentes da família aporta para a formação da renda familiar, um indicador que sintetiza as mudanças que estão se processando no interior das famílias, sobretudo pelos constrangimentos colocados pela crise do mercado de trabalho. Verifica-se como, a partir do Plano Real, ocorreu uma expressiva redução da contribuição do chefe homem para a formação da massa de rendimentos das famílias, a qual, em 2004, já se encontrava abaixo dos 50% em todas as regiões metropolitanas estudadas.

Em contrapartida, aumentou a contribuição dos chefes mulheres e dos cônjuges de ambos os sexos, mas, em sua maioria, mulheres. Como esperado, em face do desemprego juvenil, o percentual da contribuição dos filhos para a formação da renda familiar caiu um pouco na RM de Belo Horizonte e cresceu muito pouco nas outras duas regiões. No cômputo final, as mudanças nos arranjos familiares e na divisão sexual do trabalho, refletidas nas transformações aqui assinaladas, propiciaram a elevação da contribuição feminina para a formação da renda familiar: em 2004, as mulheres foram responsáveis por 41% da massa de rendimentos em mãos das famílias da RMS e por 38,4% deste agregado nas regiões metropolitanas de BH e Porto Alegre (OLIVEIRA, 2005).

Obviamente, apesar do aumento registrado entre 1995 e 2004, esse patamar de contribuição das mulheres ainda deve ser considerado baixo, mormente quando comparado com a elevada presença feminina no conjunto dos ocupados. Em 2004, elas já eram 46% dos ocupados na RMS, 45,3% na RM de Belo Horizonte e 44% na de Porto Alegre.

O resultado deste conjunto de mudanças na composição da força de trabalho familiar e nas suas condições de acesso aos postos de trabalho sobre os seus rendimentos é claro: nas três regiões diminuiu o rendimento médio familiar per capita, sendo as maiores perdas encontradas exatamente na Região Metropolitana de Salvador (22,4%), o que contribuiu para aumentar, neste como em outros indicadores, a distância que separa esta região metropolitana das outras duas (18% em BH e 16% em Porto Alegre). Esta queda no rendimento médio das famílias metropolitanas, que acompanha a recomposição da força de trabalho familiar, remete à persistência das desigualdades entre homens e mulheres e à não permutabilidade dos componentes da família no mercado de trabalho (MONTALI, 2003), dois fenômenos que contribuem para a fragilidade das estratégias familiares de sustentação da renda, num mercado de trabalho extremamente adverso aos trabalhadores.

Considerações finais

A análise dos dados da PNAD mostrou a intensidade da crise que se abateu sobre os mercados de trabalho metropolitanos analisados e como os seus efeitos negativos se propagaram sobre as famílias destas regiões.

Verificou-se também que, apesar de passarem por processos de reestruturação semelhantes e de estarem submetidos aos mesmos condicionamentos macroeconômicos, os mercados de trabalho estudados apresentam diferenças marcantes e não sofreram, na mesma intensidade, os efeitos mais perversos da crise.

Ao lado disso, os dados apresentados revelaram também a existência de diferenças importantes entre as estruturas familiares das três regiões, o que permite indagar em que medida essas diferenças contribuíram para acentuar ou atenuar o impacto da crise do mercado de trabalho.

Essa indagação é tão mais pertinente quando se observa que o mercado de trabalho com os melhores indicadores, no início e no fim do período analisado, foi o de Porto Alegre, região que, como mostrado, também apresenta as maiores proporções de famílias compostas por casais, com ou sem filhos, e o menor percentual daquelas formadas apenas pela mãe com seus filhos. Por outro lado, a região que apresentou os indicadores mais negativos foi a RMS, onde é encontrada a proporção mais elevada deste último tipo de família, considerado na literatura o arranjo familiar mais vulnerável.

A resposta a essa indagação exigirá o aprofundamento deste estudo, mas outros elementos aqui apresentados parecem sugerir que, embora não se possa descartar a influência das estruturas familiares na capacidade de reação das famílias às adversidades colocadas pelo mercado, no atual contexto essa influência parece ter reduzido seu poder de explicação das desigualdades observadas entre as três regiões.

Com efeito, o caráter estrutural das transformações econômicas ocorridas no período analisado e a radicalidade dos seus impactos sobre o mercado de trabalho parecem constituir, no momento, os elementos explicativos mais relevantes para a compreensão dessas desigualdades.

Se esse raciocínio está correto, as características estruturais de cada economia regional e do seu mercado de trabalho, os recursos disponíveis no início do processo de reestruturação e a posição ocupada no processo de acumulação de capital, nos planos nacional e global, são os fatores mais importantes na determinação do impacto da crise sobre as famílias, da capacidade (recursos) que elas têm para reagir às adversidades e, especialmente, da eficácia das estratégias que elas constroem para assegurar suas condições de reprodução.

No período analisado, a ação desses fatores parece ter agido no sentido de reforçar os elementos positivos historicamente construídos na RM de Porto Alegre, permitindo que, nessa região, os efeitos da crise fossem menos devastadores. Enquanto isso, na RM de Salvador, esses mesmos fatores vêm contribuindo para aprofundar os traços de precariedade que marcam historicamente o mercado de trabalho da região metropolitana baiana, com reflexos sobre a sua estrutura familiar, também tradicionalmente formada por elevada proporção de famílias chefiadas por mulheres, em especial nos segmentos mais pobres da população, mas não apenas neles.

Finalmente, a Região Metropolitana de Belo Horizonte – cujos indicadores situam-se num patamar intermediário entre as duas outras regiões – parece sofrer, simultaneamente, os efeitos positivos (dinamismo econômico) e negativos (desemprego, precarização) da sua incorporação ao núcleo dinâmico do processo de acumulação.

Recebido para publicação em 25/08/2006.

Aceito para publicação em 06/11/2006.

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  • *
    A primeira versão deste texto foi apresentada no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Abep, realizado em Caxambu, MG, Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006.
  • 1
    Sempre tendo em mente que, no mercado de trabalho, oferta e demanda não são grandezas independentes, pois a demanda – as empresas e instituições – age simultaneamente dos dois lados, isto é, a gestão do capital é, simultaneamente, gestão dos trabalhadores e das suas famílias (MARX, 1971; BORGES, 2003).
  • 2
    A ocupação precária aqui considerada inclui os ocupados nas seguintes categorias da PNAD: outros empregados sem carteira; empregados sem declaração de carteira; trabalhador doméstico com carteira; trabalhador doméstico sem carteira; trabalhador doméstico sem declaração de carteira; trabalhador na produção para o próprio consumo; trabalhador na construção para o próprio uso.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      06 Nov 2006
    • Recebido
      25 Ago 2006
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