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Adolescência, saúde e contexto social: esclarecendo práticas

Adolescence, health and social context: clarifying pratices

Resumos

A partir de uma visão unidimensional da saúde, a tendência das instituições sociais tem sido garantir a sobrevivência de crianças e adolescentes, cuidando dos denominados problemas orgânicos, desconsiderando os aspectos psicológicos e sócio-ambientais. O trabalho de pesquisa-intervenção num bairro da periferia de Natal, RN, possibilitou a identificação de um contexto de vida perpassado pela precariedade de serviços de infra-estrutura, altos índices de evasão escolar, relações de gênero opressivas e, ausência para ambos os sexos, de perspectivas e oportunidades acadêmicas e profissionais. Tal situação limita a consolidação de projetos de vida que transcendam a inserção no mercado informal de trabalho e o desempenho dos tradicionais papéis sexuais, gerando um ciclo de reprodução da pobreza que tende a se perpetuar. Almeja-se, portanto, a revisão crítica das idéias e valores que estão permeando a vivência da adolescência entre a população alvo e suas famílias, bem como entre os profissionais de educação e saúde que trabalham no bairro, inclusive a equipe da Universidade. No presente texto, objetiva-se esclarecer os alicerces teóricos-conceituais dos quais partimos, viabilizando o debate e a reflexão não apenas sobre a problemática em si, mas sobre as práticas profissionais daqueles que trabalham cotidianamente nesses contextos sociais.

adolescência; saúde; contexto social


From an unidimensional perspective, the tendency of social institutions has been to ensure the survival of children and adolescents, just taking care of organic problems, but neglecting psychological, social and environmental aspects. Our research-intervention work in a deprived neighbourhood of Natal, RN, allowed the identification of a life context permeated by the precariousness of infrastructure services, high rates of school drop-out, oppressive gender relationships and lack, for both sexes, of academic and professional perspectives and opportunities. Such situation limits the consolidation of life projects that transcend the insertion in the informal market and the performance of traditional sexual roles, generating a poverty reproduction cycle that tend to perpetuate itself. In this context, our work focus on ideas and values pervading the adolescent experience, among the target population and their families, as well as among the educational and health professionals working in this neighbourhood, including ourselves. This paper aims to elucidate the theoretical-conceptual framework, enabling the debate and the reflection not only about the problem itself, but also in regard to the professional practices of those working in this context.

adolescence; health; social context


Adolescência, saúde e contexto social: esclarecendo práticas

Adolescence, health and social context: clarifying pratices

Martha A. Traverso-Yépez; Verônica de Souza Pinheiro

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

A partir de uma visão unidimensional da saúde, a tendência das instituições sociais tem sido garantir a sobrevivência de crianças e adolescentes, cuidando dos denominados problemas orgânicos, desconsiderando os aspectos psicológicos e sócio-ambientais. O trabalho de pesquisa-intervenção num bairro da periferia de Natal, RN, possibilitou a identificação de um contexto de vida perpassado pela precariedade de serviços de infra-estrutura, altos índices de evasão escolar, relações de gênero opressivas e, ausência para ambos os sexos, de perspectivas e oportunidades acadêmicas e profissionais. Tal situação limita a consolidação de projetos de vida que transcendam a inserção no mercado informal de trabalho e o desempenho dos tradicionais papéis sexuais, gerando um ciclo de reprodução da pobreza que tende a se perpetuar. Almeja-se, portanto, a revisão crítica das idéias e valores que estão permeando a vivência da adolescência entre a população alvo e suas famílias, bem como entre os profissionais de educação e saúde que trabalham no bairro, inclusive a equipe da Universidade. No presente texto, objetiva-se esclarecer os alicerces teóricos-conceituais dos quais partimos, viabilizando o debate e a reflexão não apenas sobre a problemática em si, mas sobre as práticas profissionais daqueles que trabalham cotidianamente nesses contextos sociais.

Palavras chave: adolescência, saúde, contexto social

ABSTRACT

From an unidimensional perspective, the tendency of social institutions has been to ensure the survival of children and adolescents, just taking care of organic problems, but neglecting psychological, social and environmental aspects. Our research-intervention work in a deprived neighbourhood of Natal, RN, allowed the identification of a life context permeated by the precariousness of infrastructure services, high rates of school drop-out, oppressive gender relationships and lack, for both sexes, of academic and professional perspectives and opportunities. Such situation limits the consolidation of life projects that transcend the insertion in the informal market and the performance of traditional sexual roles, generating a poverty reproduction cycle that tend to perpetuate itself. In this context, our work focus on ideas and values pervading the adolescent experience, among the target population and their families, as well as among the educational and health professionals working in this neighbourhood, including ourselves. This paper aims to elucidate the theoretical-conceptual framework, enabling the debate and the reflection not only about the problem itself, but also in regard to the professional practices of those working in this context.

Key words: adolescence, health, social context

INTRODUÇÃO

A partir de uma visão unidimensional da saúde, a tendência das instituições sociais tem sido garantir a sobrevivência de crianças e adolescentes, cuidando dos denominados problemas orgânicos. Tendem a ser desconsideradas as outras dimensões da saúde, tanto psicológica quanto sócio-ambiental (Traverso, 2001). A aproximação à realidade do bairro de Felipe Camarão em Natal, RN, através de um projeto de pesquisa desenvolvido dentro do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN, evidenciou a existência de um vasto campo de intervenção e pesquisa dentro dos critérios de preocupação com a saúde integral dos adolescentes. Essa preocupação tornou-se, portanto, ponto de partida do projeto de extensão "Adolescentes Cuidando da Vida", desenvolvido no bairro desde julho de 200111 O projeto de extensão está vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 2002, o trabalho teve apoio também do Programa Gênero, Reprodução, Ação e Liderança – GRAL – desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas com recursos da Fundação Mc Arthur. Paralelamente, neste mesmo ano foi implementado o projeto de pesquisa "Vivências e sentidos relacionados com a saúde integral na adolescência em um bairro da periferia de Natal". . Foi se consolidando, assim, um espaço de ações, reflexão e construção de conhecimento, voltado ao atendimento das necessidades da clientela adolescente daquele bairro.

Neste artigo, objetiva-se mostrar os alicerces teórico-conceituais dos quais está se partindo para o desenvolvimento desse trabalho, de forma a manter uma permanente reflexão crítica das idéias e valores que permeiam a vivência da adolescência entre a população alvo e suas famílias, bem como as práticas dos profissionais de educação e saúde com atuação no bairro. Nesse sentido, há uma preocupação não apenas com a problemática em si, comum nos contextos de dependência econômica e desigualdade estrutural em toda América Latina, mas com as práticas e intervenções dos profissionais que laboram quotidianamente nesse contexto, inclusive a equipe da Universidade, que participa desse trabalho.

O CONTEXTO SÓCIO-ECONÔMICO

Felipe Camarão é um típico bairro de periferia, como há em qualquer cidade de tamanho médio no Brasil. Em 1991, quase 50% dos chefes de família ganhavam até um salário mínimo, apenas (Mineiro e Passos, 1998). Segundo o Censo Demográfico 2000, este percentual chegava a cerca de 42%, sendo que pouco mais de 12% dos responsáveis por domicílios no bairro declaravam-se sem rendimentos (IBGE). Através de trabalhos prévios, observou-se o alto nível de vulnerabilidade dos adolescentes do bairro, expostos a um contexto social perpassado pela precariedade de serviços de infra-estrutura, alto índice de evasão escolar, relações familiares fortemente marcadas pela hierarquia de gênero e de geração, e pela ausência, para ambos os sexos, de perspectivas e oportunidades acadêmicas e profissionais (Pinheiro, 2001). Esta situação, caracterizada pela violação dos direitos legalmente assegurados a crianças e adolescentes brasileiros há mais de dez anos, limita a consolidação de projetos de vida que transcendam os tradicionais papéis sexuais e a inserção no mercado informal de trabalho, gerando um ciclo de reprodução da pobreza e a potencialização dos riscos aos quais esse segmento populacional encontra-se exposto, particularmente os decorrentes das diferentes formas de violência e exclusão social, com restrito acesso aos recursos materiais ou simbólicos necessários ao seu pleno desenvolvimento.

Observa-se que a violência, em todas as suas manifestações, vitimiza particularmente os grupos mais fragilizados dessas camadas sociais, como mulheres, crianças e adolescentes. Apesar da constante insistência na necessidade de reformas institucionais voltadas para questões como o trabalho escravo, a violência contra crianças e adolescentes, o aumento no número de meninos e meninas em situação de rua, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, a discriminação racial e de gênero, ou a ampliação do mercado de drogas (Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima & Martinelli, 2002), percebe-se que a estrutura de desigualdades e injustiças vigente ainda é mais forte, resultando na permanente reprodução dos mecanismos da violência.

Parte-se de uma concepção sócio-histórica do ser humano, na qual este é produto e produtor de sua história, sempre segundo as possibilidades e limitações do contexto sócio-cultural do qual faz parte. Contudo, nossa experiência de trabalho aponta para o fato de que, como atores sociais, com freqüência somos reprodutores irreflexivos dos condicionantes dessas situações. Daí a necessidade de um permanente trabalho de debate e, especialmente, auto-reflexão crítica, que possibilite mudanças efetivas nos processos de interação social dos quais participamos na permanente dinâmica das relações sociais.

É de destacar, por exemplo, que as instituições sociais, governamentais ou não, presentes no bairro em questão, tendem a, inadvertidamente, reforçar modelos de interação reprodutores da violência simbólica (Bourdieu, 2000), cuja existência parece passar desapercebida aos atores sociais implicados. Os denominados programas de prevenção e promoção da saúde funcionam, geralmente, através de intervenções assistemáticas e verticalizadas. As propostas, formuladas à margem de uma reflexão sobre o contexto econômico e sócio-cultural específico do bairro, não viabilizam o diálogo e/ou contribuem no condicionamento dos tradicionais papéis de submissão e conformismo presentes nesse contexto. Dessa forma, perdem sua possível eficácia na melhoria das condições de vida das pessoas às quais são dirigidas, acontecendo, inclusive, responsabilizá-las por sua situação existencial de precariedade.

Assim, abertos ao questionamento e ao confronto, os jovens muitas vezes tornam-se depositários de problemas e conflitos, aos quais não têm possibilidades de responder adequadamente. Desinformados a respeito de sua condição de cidadãos, são facilmente desrespeitados em seus direitos, mesmo os mais elementares, tornando-se, também eles, reprodutores da violência de que são vítimas.

DE QUE ADOLESCENTES FALAMOS?

Segundo Mussen, Conger, Kagan & Huston, etimologicamente o termo adolescência vem do verbo latino "adolescere" (ad = para e olescere = crescer), estando implícito neste a condição ou processo de crescimento, apontando para as mudanças que começariam com o início da puberdade e terminariam quando as responsabilidades adultas fossem assumidas. Estes autores destacam o fato evidenciado por alguns filósofos de que a adolescência "começa na biologia e termina na cultura" (Mussen, Conger, Kagan & Huston, 1995, p.515), tanto assim que nas sociedades mais simples essa fase pode ser breve, em oposição às sociedades tecnologicamente mais desenvolvidas, nas quais tende a se prolongar. Entretanto, é evidente na literatura psicológica e sociológica, a tendência a falarem de adolescência como uma categoria descontextualizada, seja como uma fase do desenvolvimento – etapa da vida – que, portanto, remete à biologia e a estados do corpo, ou bem como categoria sócio-demográfica que remete a parâmetros etários.

Essa ambigüidade não deixa de gerar problemas operacionais, dificultando a conceituação e até a definição de limites etários aceitáveis pelos diferentes atores sociais. Assim, a Organização Mundial de Saúde define adolescência como a fase do desenvolvimento compreendida entre os 10 e os 19 anos, critério adotado, no Brasil, pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, essa visão naturalizante está em oposição ao caráter sócio-construído do termo e à complexidade com a qual nos deparamos quando nos aprofundamos nessa temática. Mostra-se, de fato, como uma condição perpassada pela situação de gênero, classe social e contextos sócio-culturais, de forma que é impossível defini-la como algo acabado, pronto para ser estudado. A exemplo disso, citamos a utilização, nas últimas décadas, por parte da OMS inclusive, do termo juventude para evocar a faixa etária entre 15 e 24 anos, em função do alongamento dessa fase na qual não são assumidas as responsabilidades ditas adultas (Burak, 2001). É também significativo o que aconteceu no Chile a partir de 1990, quando se passou a considerar os 29 anos como margem superior desta fase (Duarte-Kuaper, 2001).

Deve-se, portanto, situar sempre a adolescência e/ou juventude, no contexto das condições sócio-históricas que definem sua especificidade enquanto objeto de estudo (Margulis, 2001; Dadoorian, 2000; Aguiar, Bock & Ozella, 2001). Castro (1998) desenvolve algumas considerações sobre a relação entre o projeto de modernidade e as concepções de universalidade, previsibilidade, normalidade, progresso, aperfeiçoamento e evolução, tão recorrentes na teorização da Psicologia do Desenvolvimento. Não se pode esquecer que foi sob o enfoque da intervenção e do controle, da valorização da norma e segregação do desvio que emergiu a Psicologia do Desenvolvimento ao final do século XIX e foi neste contexto que, posteriormente, consolidou-se a concepção corrente de adolescência. Deste modo, é a partir dos condicionantes de finais do século XIX e inícios do XX, que se passa a identificar essa fase como um período de transição entre a infância e a idade adulta, sendo constituída como um período específico, com uma psicologia e uma sociologia próprias.

Por outro lado, como categoria identitária, adolescência alude apenas a formas particulares de subjetivação que estão em permanente mudança, de modo que é impossível defini-la como entidade estática e acabada. Concordando com Margulis, acredita-se que estas formas particulares de subjetivação fazem "parte do sistema de significações com que, em cada marco institucional, se definem as identidades" (Margulis, 2001, p. 42). Assim, o autor, fazendo referência à juventude, afirma que esta alude à identidade social dos sujeitos envolvidos e como tal, não apenas identifica, mas considerando que toda identidade é relacional, refere sempre a sistemas de relações articuladas nos diferentes marcos institucionais e práticas sociais (família, fábrica, escola, partido político, etc). Essa posição coincide com Hall, quando fala de identidade como "formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam" (Hall, 1997, p. 13).

Estas considerações indicam que devemos falar de adolescências (no plural), sendo que a caracterização de cada uma em particular, como já foi colocado, depende de variáveis sócio-demográficas tais como gênero, classe social e contexto histórico-cultural. Além das diferenças de classe, de lugar de moradia e da geração a que pertencem, segundo o autor citado, a diversidade e o pluralismo cultural dos últimos anos, que chega através da mídia a todos os contextos sociais, oferece um panorama variado e mutante que compreende comportamentos, referências identitárias, linguagens e formas de socialização diversas, que inviabilizam uma concepção unívoca de adolescência.

VISÃO UNIDIMENSIONAL DE SAÚDE X SAÚDE MULTIDIMENSIONAL

Embora se fale de saúde integral, de modelo biopsicossocial e de prevenção e promoção, na prática continua-se com um atendimento centrado na doença e, portanto, na proposta curativa (Traverso-Yépez, 2001). Mais que em qualquer outra faixa etária, no caso das adolescências, fica evidente a fraqueza do sistema de saúde vigente, que, ao partir de uma visão unidimensional de saúde, desconsidera a diversidade de patologias "não orgânicas" que ameaçam a vida de crianças e adolescentes.

Observa-se que em decorrência especialmente das vacinas e das melhores condições de vida, a morbidade e mortalidade infantis têm diminuído significativamente nos últimos anos. Mas a existência da saúde não é apenas uma questão orgânica, dependendo da interação permanente das dimensões biológicas, psicológicas e sócio-ambientais numa dinâmica de extrema complexidade. Garantindo apenas a sobrevivência, não se atende às múltiplas dimensões humanas e o grande problema é que crianças e adolescentes ficam órfãos do atendimento abrangente de que precisam, estando expostos a outro tipo de mazelas. Assim, a vida na rua, acidentes, homicídios, suicídios, DSTs, alcoolismo, dependência química, delinqüência, constituem patologias que, na atualidade, afetam e até matam milhares de adolescentes e jovens todos os dias. É significativo que estudos da UNESCO apontem que nas principais capitais do Brasil, em 1998, cerca de 60% das mortes entre 15 e 25 anos ocorreu por violência conjunta (homicídios, suicídios e acidentes de transporte) enquanto na população em geral só 8,7% dos óbitos deve-se a essas causas (Castro, Abramovay, Rua & Andrade, 2001)

Se, a isso, se soma a falta de oportunidades de educação, trabalho, lazer e cultura, decorrente das grandes desigualdades estruturais vigentes, está se falando de situações de vulnerabilidade extrema, definida como "o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade" (Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima & Martinelli, 2002, p. 29). Segundo esses autores, este fato traduz-se em profundas desvantagens para os atores sociais envolvidos e vai se expressar "no plano estrutural, por uma elevada propensão à mobilidade descendente (...) e, no plano mais subjetivo, pelo desenvolvimento dos sentimentos de incerteza e insegurança entre eles" (p.30). Estamos apontando, portanto, que nos casos de sobrevivência, a única coisa garantida é a reprodução, em maior ou menor grau, do círculo vicioso de pobreza na qual essas crianças e adolescentes sobrevivem.

Questiona-se, pois, a limitação das ações que objetivam apenas garantir a sobrevivência das crianças, sem a preocupação de garantir-lhes possibilidades de uma vida digna. Nas etapas iniciais da vida, talvez mais que em qualquer outra, faz-se evidente a necessidade de se considerar a saúde integral e não apenas os aspectos orgânicos. No caso da adolescência, os programas de intervenção destinados a essa faixa etária tendem a focalizar sua atenção apenas para a saúde reprodutiva, negligenciando a preocupação com o caráter multifacetado da saúde humana.

Essa forma de abordagem desconsidera, de fato, o cerne da reforma sanitária firmado nos princípios norteadores do SUS, de integralidade, intersetorialidade e participação comunitária, que levam autores como Campos (1997) a identificar o SUS muito mais como um desafio ou possibilidade, considerando a falta de sintonia entre os preceitos legais e a efetividade e qualidade do atendimento à saúde nas práticas cotidianas.

RISCO X VULNERABILIDADE

Segundo o dicionário Aurélio, o termo risco tem diversas conotações. O termo refere-se a possibilidades de perigo, a probabilidades mais ou menos previsíveis de perda ou ganho, a evento que acarreta o pagamento da indenização, bem como a possibilidade de perda ou de responsabilidade pelo dano. Spink (2000) aponta os múltiplos usos do termo risco em diferentes setores da vida social. No campo da saúde é um conceito chave da Epidemiologia, mas problemático pela tendência a migrar do nível macro do contexto sócio-demográfico para o nível micro dos comportamentos.

Como a autora destaca, cada sociedade define o que vem a ser risco, fazendo referência a aspectos objetivos, mas sempre perpassado pela subjetividade. Interessa, desse modo, saber como a sociedade "vê quem corre risco: como vítima de uma fatalidade; como sujeito de uma vulnerabilidade orgânica ou socialmente definida; ou como portador de racionalidade e capaz, portanto, de analisar o que é risco e definir possibilidades de ação" (Spink, 2000, p.159). Esta última perspectiva evidencia-se nas propostas de caráter prevencionista, comuns na área da saúde: os indivíduos, devidamente informados sobre os agravos e riscos, tornar-se-iam os gerenciadores de seus comportamentos em busca de uma saúde plena, pela qual seriam integralmente responsáveis. Portanto, caberia a cada um, individualmente, o mérito ou a pena por suas condições de sobrevivência. Desta forma, desvia-se o foco para o indivíduo negligenciando-se a complexidade da situação.

Nos últimos anos, o termo vulnerabilidade vem sendo cada vez mais usado nas reflexões sobre a pobreza na América Latina, e sobre os limitados resultados das políticas públicas para combater o problema e seus nefastos efeitos colaterais. Como fora já apontado no item anterior, o conceito deixa em evidência a preocupação com o contexto "macro", apontando os efeitos das desigualdades estruturais e as "configurações" de "debilidades ou desvantagens para o desempenho ou mobilidade social dos atores" (Abramovay et al., 2001, p. 13), nem sempre restritas àqueles situados abaixo da linha de pobreza, mas que termina implicando de uma ou outra forma a toda a sociedade. Defende-se a vulnerabilidade como sendo, além de dinâmica e mutante, uma categoria operativa que considera não apenas a posse limitada de bens materiais (que influenciam de fato o grau de vulnerabilidade), mas antes, tenta fazer uma avaliação mais abrangente dos aspectos negativos, bem como dos positivos, incluindo características, recursos, habilidades e estratégias, individuais, grupais e sociais, para lidar com o sistema de oportunidades oferecido pela sociedade. Assim, a conformação de situações de vulnerabilidade implica, necessariamente, a interação dinâmica entre objetividade e subjetividades, entre o contexto e as pessoas nele inseridas.

Segundo Abramovay et al (2001), o caso do Brasil é significativo e paradoxal, considerando que apesar de ser a décima maior economia industrial mundial, em função do PIB, tem a segunda pior distribuição de renda do mundo. Apontando dados de CEPAL de 1997, os autores destacam que 29% dos domicílios encontram-se abaixo da linha de pobreza, mais 11% adicionais situados abaixo da linha de indigência. Estreitamente relacionada com as condições de vida estão a educação, as possibilidades de emprego/trabalho, as atividades de lazer, as atividades culturais e a qualidade do atendimento à saúde, centrado especialmente no que diz respeito à saúde reprodutiva.

Embora se fale que a adolescência inicia a partir da puberdade, por volta dos 10 anos de vida, tanto o desenvolvimento biológico, quanto o psicológico e social vão depender do contexto sócio-cultural no qual se insere a família desse adolescente, delineando possibilidades e limitações mesmo antes do momento da sua fecundação. A qualidade do desenvolvimento nos primeiros anos de vida vai também influenciar a qualidade de vida da adolescência, portanto, segundo Burak,

A promoção do desenvolvimento humano, da saúde e dos fatores protetores do crescimento e desenvolvimento, bem como a prevenção, durante a etapa fetal e a infância, contribuem para uma adolescência mais sadia e essas mesmas ações durante a adolescência contribuiriam para uma maturidade mais saudável (Burak, 2001, p.470-1).

Destaca-se, assim, o quanto o aspecto do desenvolvimento psicossocial mostra-se de máxima importância, se falamos de prevenção e promoção da saúde. Lamentavelmente, são estes aspectos, junto com as condições sócio-ambientais que estão em estreita interdependência, os que são permanentemente negligenciados no modelo de saúde vigente. De fato, para seu desenvolvimento psicossocial e sua formação intelectual, moral e espiritual, o adolescente precisa definir suas relações e processos de identidade, sua sexualidade, precisa de certa autonomia e, especialmente, de espaços apropriados para desenvolver a auto-estima, a criatividade e seu projeto de vida.

A preocupação em satisfazer essas necessidades deve ser o objetivo dos programas denominados de saúde integral do adolescente. Contudo, o que se observa na prática é a tendência a ver os problemas isolados do seu contexto social, seja a gravidez na adolescência, as doenças sexualmente transmissíveis (DST), a violência ou a dependência química, resultando na implementação de programas verticais e isolados para cada um dos problemas. Como aponta Burak, "as ações desenvolvidas nos serviços de saúde são dirigidas para atacar problemas específicos e não se constituem em programas integrais dirigidos a promover o desenvolvimento humano e a atender a saúde integral dos adolescentes" (Burak, 2001, p.477).

As demandas mostram-se especialmente significativas em contextos de precariedade psicossocial nos quais as privações materiais, aliadas a um estado de anomia social, resultam em relações interpessoais marcadas pela violência, da qual cada um torna-se vítima e reprodutor. Nesse contexto, as condições de sobrevivência e convívio tendem a ser particularmente desfavoráveis, resultando em constantes e variadas formas de violação de direitos dos quais, via de regra, os sujeitos não têm sequer conhecimento. Assim, conceitos como cidadania, ética ou reciprocidade mostram-se excessivamente abstratos para pautar as relações entre esses agentes sociais.

NECESSIDADE DE ESPAÇOS E CONTEXTOS DE RESSIGNIFICAÇÃO

Considerada a complexidade dos problemas acima citados, acredita-se que reformas radicais que impliquem em mudanças estruturais fazem parte de um processo que não é fácil, por demandar vontade política e participação cidadã em grande escala. Contudo, é possível trabalhar para desenvolver o alicerce humano que possibilite essas mudanças e para isso precisamos esclarecer a concepção de sujeito da qual partimos.

Para Spink & Medrado, pessoa implica relação. "O homem – ou, mais precisamente, a pessoa – está em um mundo e não apenas em um ambiente, como os animais" (Spink & Medrado, 1999, p. 55). E é neste mundo, em permanente construção através das ações humanas, que se constróem também as pessoas na dinâmica interacional dos processos de socialização.

Nesta perspectiva, é na interação com outros (e o mundo a sua volta), mediada pela linguagem, que cada pessoa cria e recria sua subjetividade, pela internalização da objetividade, do mundo compartilhado ao qual cada um atribuiria sentidos pessoais. Assim, constituída a partir de uma construção pessoal sobre a objetividade internalizada, a subjetividade de cada um expressa-se e recria-se cotidianamente nas práticas sociais, incluídas as discursivas, perpassadas pelas diversas linguagens ou símbolos, verbais e não verbais, que sintetizam e dão sentidos a essas práticas. Isto, obviamente, sempre dentro dos limites das vivências de cada um em seus processos de socialização, dos repertórios discursivos com que conta e das possibilidades de enunciados, refletindo o contexto de vida de cada pessoa e os diversos interlocutores com os quais tenha se deparado.

Pinheiro (2001), concordando com Spink e Medrado (1999) e agregando a proposta de Rossetti-Ferreira, Amorim & Silva (2000), defende que seria na interface de quatro tempos que dar-se-ia a configuração desse contexto discursivo/simbólico. Assim, um tempo longo, marcado pelos conteúdos culturais oriundos da história social; um tempo vivido, definido pelo processo de socialização de cada indivíduo; um tempo curto, próprio dos processos dialógicos, do contexto mesmo da interação; e um tempo prospectivo, baseado nos outros três tempos, e marcado por antecipações, projetos, motivações e desejos; imbricar-se-íam na configuração dos repertórios discursivos próprios a cada pessoa, delimitando os enunciados possíveis a cada uma.

Ressaltando-se o caráter dinâmico, em constante recriação, destes repertórios discursivos, destaca-se o possível alcance da inclusão de novos interlocutores e portanto de novos enunciados, possibilitando novos contextos de ressignificação.

Existem propostas específicas que orientam melhor esse trabalho no campo específico da saúde publica. Temos por um lado os trabalhos de Vasconcelos (1997), que alerta sobre a dimensão educativa ou deseducativa das práticas e formas de agir corriqueiras dos profissionais e Briceño-León (1996) que é mais específico, destacando critérios básicos para uma educação para a participação comunitária. Os dois coincidem em destacar a dimensão educativa não-intencional das ações cotidianas desenvolvidas nas práticas profissionais. Ou seja, encoraja especialmente a nós, como profissionais, a uma permanente avaliação crítica de nossas ações, estando atentos não apenas para a ação em si, mas também para a mensagem e o tipo de projeto educativo que dela se depreende.

A metodologia de intervenção proposta, e em desenvolvimento com os limitados recursos a nossa disposição, parte da premissa colocada no parágrafo anterior, objetivando oferecer aos diferentes agentes sociais envolvidos oportunidades de interações dialógicas, marcadas pelo respeito aos direitos da pessoa humana, bem como perpassadas por princípios como autonomia, dignidade, responsabilidade e auto-cuidado. Assim, a oferta de oficinas artístico-pedagógicas, atividades de lazer, bem como o acesso a eventos coletivos, particularmente aqueles que congregam jovens provenientes de diversos grupos e níveis sociais, configuram-se como uma alternativa de promoção da inserção social, muito restrita no caso desse grupo específico. O incentivo à participação dos familiares em festas, passeios e eventos promovidos no âmbito do projeto, além de favorecer o contato da equipe de trabalho com os mesmos, possibilita ainda uma interação prazerosa e gratificante entre os membros do grupo familiar, podendo refletir-se na qualidade do vínculo entre eles.

Aliada a uma permanente reflexão e auto-crítica em relação aos posicionamentos e atuação profissional, objetiva-se promover interações que possibilitem aos adolescentes o acesso a variadas linguagens, formas diversificadas de expressão, viabilizando um rico processo de auto-descoberta e revisão criativa do auto-conceito, de encontro com as próprias habilidades, potencialidades e limitações. Por fim, informações sobre direitos, particularmente os direitos da criança e do adolescente conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8060, de 13 de julho de 1990), bem como do sistema de garantia dos mesmos, visa a desenvolver a consciência de cidadania e a identificação, pelos próprios adolescentes, dos casos de violação de que são vítimas, passo indispensável para a defesa dos seus direitos.

Acredita-se contribuir, dessa forma, para a redução dos níveis de vulnerabilidade desses adolescentes, possibilitando-lhes instrumentalizarem-se para um desempenho social mais eficaz no enfrentamento dos diversos problemas a que encontram-se cotidianamente expostos.

Como já foi colocado, a superação efetiva dos problemas desses e de tantos outros jovens, vítimas de um sistema que, repetidamente, nega-lhes o direito a uma existência digna, supõe profundas mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, entendemos que a intervenção proposta restringe-se ao caráter de facilitação, sendo impossível garantir a ocorrência dos processos de ressignificação que supomos importantes às mudanças que buscamos promover junto a estes adolescentes. Entretanto, não podemos por isso deixar de ofertar-lhes oportunidades, furtando-nos ao compromisso de contribuir com o que nos é possível ou viável.

Recebido: 8/10/2002

1ª revisão: 16/12/2002

Aceite final: 9/1/2003

Martha Traverso-Yépez, Doutora em Psicologia Social pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha). Professora Adjunta no Departamento de Psicologia da UFRN. O endereço eletrônico da autora é: traverso@ufrnet.br

Verônica de Souza Pinheiro, Mestre em Psicologia Social da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Natal. O endereço eletrônico da autora é: vspinheiro@bol.com.br

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    O projeto de extensão está vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 2002, o trabalho teve apoio também do Programa Gênero, Reprodução, Ação e Liderança – GRAL – desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas com recursos da Fundação Mc Arthur. Paralelamente, neste mesmo ano foi implementado o projeto de pesquisa "Vivências e sentidos relacionados com a saúde integral na adolescência em um bairro da periferia de Natal".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2003
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      09 Jan 2003
    • Revisado
      16 Dez 2002
    • Recebido
      08 Out 2002
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