Acessibilidade / Reportar erro

Atendimento psicológico e a secretaria de políticas para as mulheres

Psychological and secretariat of policies for women

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar as propostas da Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM - para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência apresentadas nos manuais, termos de referência e normas técnicas. Para tal, foi realizada uma análise de discurso nos documentos publicados pela SPM que servem para orientar a intervenção em psicologia. Foi observado que as propostas têm como base principal a compreensão das relações hierarquizadas entre os sexos e que as orientações específicas para a atuação do/a psicólogo/a ainda são pouco definidas, generalistas e confusas, de forma a não ficar claro qual o papel do/a psicólogo/a na política de enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, as potencialidades do atendimento psicológico nesse contexto ficam minimizadas.

atendimento psicológico; violência contra as mulheres; análise de discurso, políticas para as mulheres; gênero


The aim of this paper is to analyze the proposals of the Secretariat of Policies for Women for psychological care of women victims of violence presented in the manuals, terms of reference and technical standards. To this end we performed a discourse analysis of the documents published by the SPM which serve to guide intervention in psychology. It was observed that the proposals are based mainly on understanding the hierarchical relationships between the sexes and those specific guidelines for the performance of the psychologist are still poorly defined, general and confused, so it is unclear what the role of psychologist the politics of combating violence against women. Thus, the potential of psychological care in this context are minimized.

psychological practices; violence against women; discourse analysis; policies on women; gender


ARTIGOS

Atendimento psicológico e a secretaria de políticas para as mulheres

Psychological and secretariat of policies for women

Madge PortoI; Júlia S. N. F Bucher-MaluschkeII

IUniversidade Federal do Acre, Rio Branco, Brasil

IIUniversidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as propostas da Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM - para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência apresentadas nos manuais, termos de referência e normas técnicas. Para tal, foi realizada uma análise de discurso nos documentos publicados pela SPM que servem para orientar a intervenção em psicologia. Foi observado que as propostas têm como base principal a compreensão das relações hierarquizadas entre os sexos e que as orientações específicas para a atuação do/a psicólogo/a ainda são pouco definidas, generalistas e confusas, de forma a não ficar claro qual o papel do/a psicólogo/a na política de enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, as potencialidades do atendimento psicológico nesse contexto ficam minimizadas.

Palavras-chave: atendimento psicológico; violência contra as mulheres; análise de discurso, políticas para as mulheres; gênero.

ABSTRACTS

The aim of this paper is to analyze the proposals of the Secretariat of Policies for Women for psychological care of women victims of violence presented in the manuals, terms of reference and technical standards. To this end we performed a discourse analysis of the documents published by the SPM which serve to guide intervention in psychology. It was observed that the proposals are based mainly on understanding the hierarchical relationships between the sexes and those specific guidelines for the performance of the psychologist are still poorly defined, general and confused, so it is unclear what the role of psychologist the politics of combating violence against women. Thus, the potential of psychological care in this context are minimized.

Keywords: psychological practices; violence against women; discourse analysis; policies on women; gender.

O movimento feminista promoveu a construção de políticas de inclusão sociopolítica e de valorização das mulheres ao longo do Século XX. Houve uma trajetória desse movimento em que numa perspectiva histórica, para os objetivos da discussão ora apresentada, pode-se destacar: na década de 1970 começaram a se formar os primeiros grupos feministas, que se encontravam para discutir as questões que lhes afligiam, em especial o corpo, a sexualidade e o prazer. Eram grupos informais que se autoconduziam até mesmo quando o objetivo era terapêutico (Pinto, 2003). As mulheres que atuavam nessas atividades e atendimentos, ainda de natureza experimental e incipiente, eram as próprias militantes feministas. Elas eram mulheres conscientes de sua opressão e precisavam trazer essa consciência para as outras mulheres (Pinto, 2003). Para essas mulheres militantes, por muito tempo, "A vítima era, isso sim, a outra, aquela que não era feminista, aquela que não tinha cultura, aquela que não tinha condições econômicas" (Pinto, 2003, p. 81).

Na década de 1980, novos temas passaram a despertar a atenção dos grupos de mulheres, agora mais organizados e autônomos: a violência e a saúde (Pinto, 2003). Nesse momento, as feministas obtiveram conquistas importantes na Constituição de 1988 e a efetivação das primeiras políticas públicas para as mulheres – as delegacias especializadas de atendimento à mulher (DEAM) e o programa de atenção integral à saúde da mulher (PAISM), por exemplo (Pinto, 2003). Na década de 1990 vieram as casas-abrigo, os serviços de interrupção da gravidez previstos em lei e, mais recentemente, os centros de referência para mulheres em situação de violência.

No início do Século XXI, no Brasil, houve a criação da Secretaria de Política para as Mulheres – SPM - da Presidência da República, em 2003; a realização da I e II Conferência Nacional de Política para as Mulheres, respectivamente em 2004 e 2007, e, por fim, o I e II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM (Presidência da República, 2004, 2008). Ambos, fruto das conferências e que servem de documento básico para a implantação das políticas específicas para as mulheres.

As demandas do movimento feminista, nesse contexto, ocuparam um importante espaço na estrutura do governo federal, passando da condição de propostas de orientações e referências do movimento social para as ações e políticas públicas definidas como políticas de governo e de Estado para as mulheres. Dentre essas políticas, existem as orientações para o atendimento às mulheres em situação de violência.

Dessa forma, o estudo sobre os documentos oficiais, como pretende este artigo, apresenta-se como importante porque a SPM, sendo uma instância do governo federal, tem como objetivo financiar, orientar, conscientizar e sensibilizar, para que as decisões políticas de governo, e em última instância de Estado, efetivem-se.

As publicações da SPM que, de alguma forma, referem-se aos atendimentos psicológicos para mulheres em situação de violência (Taquette, 2007a, 2007b; Presidência da República, 2003, 2004, 2005a, 2005b, 2006a, 2006b, 2006c), descrevem e orientam as ações de referência de forma implícita ou explícita. Assim, faz-se necessário identificar as funções dos textos produzidos pela SPM para orientar o atendimento psicológico às mulheres em situação de violência, como eles são organizados para se tornarem persuasivos, o que defendem e qual é o objetivo que se tem com a orientação proposta. Vale destacar que este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre o atendimento psicológico às mulheres em situação de violência.

A Análise de Discurso – AD: Um instrumento para entender o que pretende a SPM

A Análise do Discurso é uma ferramenta importante no contexto deste estudo, pois entende o discurso para além de seus aspectos linguísticos, considerando as questões sociais, ideológicas e políticas das palavras utilizadas para ser pronunciado.

Para os autores dessa disciplina/teoria, o discurso revela sentidos a partir do lugar social do sujeito (Fernandes, 2008; Foucault, 2010/1969). O sujeito é definido não como um indivíduo, e sim como um efeito se intercruzando com a perspectiva psicanalítica e as várias contradições, como define Foucault (2010/1969):

é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada: só tem seu lugar na defasagem existente entre consciência e o inconsciente, o pensamento e o texto, a idealidade e o corpo contingente da expressão ... O discurso é o caminho de uma contradição a outra: se dá lugar às que vemos, é que obedece à que oculta. Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia aparência. (pp.170-171)

É a partir dessa compreensão do discurso que a análise proposta se apresenta, identificar os sentidos dos enunciados no contexto histórico e político de sua produção, portanto a AD se faz importante no estudo das políticas públicas, pois tem referências e faz interfaces com algumas áreas e teorias que dão suporte a discussão apresenta:

A AD não é uma metodologia, é uma disciplina de interpretação fundada pela intersecção de epistemologias distintas, pertencentes a áreas da linguística, do materialismo histórico e da psicanálise. Essa contribuição ocorreu da seguinte forma: da linguística deslocou-se a noção de fala para discurso; do materialismo histórico emergiu a teoria da ideologia; e finalmente da psicanálise veio a noção de inconsciente que a AD trabalha com o de-centramento do sujeito. O processo de análise discursiva tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais, bastando que sua materialidade produza sentidos para interpretação; podem ser entrecruzadas com séries textuais (orais ou escritas) ou imagens (fotografias) ... portanto, quem segue este princípio pode afirmar uma filiação com a AD da linha francesa. (Caregnato & Mutti, 2006, p. 680)

Diante dessa reflexão, a linha de análise que será tomada para este estudo é a linha francesa, que tem como principais referências Pêcheux e Foucault. Embora sejam consideradas as divergências teóricas entre esses autores, elas não inviabilizam a análise a partir da interfase linguística, materialismo histórico e psicanálise. Quanto à referência ao materialismo histórico, é importante destacar a alusão feita aos autores da história social inglesa, que discutem o materialismo histórico considerando também questões como representações, valores, crenças, atitudes emocionais, além de observar o destaque que Willians (1989, p.14) dá aos "inúmeros sentimentos" presentes em suas reflexões, em sua construção intelectual. Experiências humanas – sentimentos e pensamentos - podem ser pensadas do ponto de vista histórico, econômico e psicológico, pois não são excludentes, necessariamente.

Burke (1995) apresenta as determinações de sentido e significado a partir da força, de imposições e que essas são feitas de múltiplas formas como a partir do campo da linguagem. Essa discussão também remete à psicanálise, à junção linguagem e corpo, e dá condições de pensar essas ideias articulando linguagem tanto da perspectiva da psicanálise quanto da história social que se encontram nesse ponto, não fazendo a mesma análise, mas se atendo ao mesmo foco, ao mesmo fenômeno.

Segundo Fernandes (2008), o sujeito discursivo é composto de várias "vozes sociais" (p. 35), marcado por discursos diferentes, presenças de outras vozes de forma explícita ou implícita. Vozes essas constituídas a partir dos espaços sociais diversos. Assim, a AD não objetiva entender o discurso como um caminho para entender outra realidade existente por detrás do discurso, e sim os textos em si mesmos, não em seu conteúdo, mas no efeito de seu sentido. Assim, pretende-se identificar, com base nos textos já citados, a função do discurso expresso pela SPM com relação ao atendimento psicológico às mulheres em situação de violência, pois o discurso não ocorre em um vácuo social; todo discurso é circunstancial. E, para tal, faz-se necessário analisar o discurso e o contexto interpretativo (onde, quando, com quem, o que), identificar as funções das falas e dos textos e explorar como eles são realizados e como o discurso se organiza a fim de se tornar persuasivo (Gill, 2008), apresentando, é importante destacar, uma versão diante das outras possíveis.

Foucault (2010/1969) questiona: "como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?" (p. 30). Os enunciados apresentam um sentido e revelam conflitos consequentes "dos lugares sociais assumidos por diferentes sujeitos socialmente organizados" (Fernandes, 2008, p. 38).

Também é preciso, para a realização de uma AD, identificar: as formações discursivas e como são empregadas; como é feito o uso dos verbos (como são conjugados); quais os tipos de palavras usadas (advérbios, adjetivos); qual o tipo de linguagem (direta, indireta) (Lemmertz, 2004). Assim, é com base nessa perspectiva de análise que os documentos oficiais da SPM para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência serão examinados.

Os documentos da SPM: uma Análise de Discurso das normas e orientações

Para realizar a análise proposta, foram extraídas e transcritas partes das publicações, documentos oficiais da Secretaria de Políticas para as Mulheres – manuais, portarias, relatórios e termos de referência - que se referem de alguma forma ao atendimento psicológico. O critério para a escolha dos trechos que foram analisados foi: de alguma forma se relacionar com a Psicologia, com o atendimento psicológico/psicoterapia ou com o/a psicólogo/a, ou seja, indicações/propostas que explícita ou implicitamente se referem ao atendimento psicológico para as mulheres em situação de violência ou à equipe que compõe os serviços especializados de enfrentamento à violência contra as mulheres, já que os/as psicólogos/as fazem parte dessa equipe.

A justificativa para a realização desse estudo está na constatação que os/as psicólogos/as são apresentados como profissionais que compõem a estrutura mínima de recursos humanos para o desenvolvimento das ações pretendidas pela SPM, figurando, dessa forma, a intervenção em psicologia como uma atividade relevante dentro da política pública proposta.

A apresentação da análise de discurso dos documentos será feita a partir de um recorte temporal, ou seja, seguindo a ordem cronológica das publicações, a partir do primeiro documento publicado em 2003. Esse manual, que trata sobre a prevenção da violência contra as mulheres, apresenta:

7. Resgatar o desejo da mulher em direção a seu reconhecimento como sujeito. ... O deslocamento do lugar da queixa para o lugar de sujeito desejante passa pela quebra da equação fechada "vítima x algoz". Esta é uma intervenção que pode vir a dar-se fora dos limites do programa, inclusive através de encaminhamentos a serviços adequados, na área de saúde, e que compreendam suporte psicológico à mulher (Presidência da República, 2003, p. 58; grifos nossos).

Nesse trecho há o uso de conceitos como sujeito e desejo – utilizados na psicanálise. Existe, dessa forma, a defesa de um atendimento que possa dar conta desse desejo, mas que pode ser enviado para fora dos limites da política pública específica. Há um deslocamento para os serviços de saúde, que em geral realizam os atendimentos clínico-individuais e, pode-se supor a partir do texto, que podem atuar a partir da psicanálise para trabalhar qual seria o desejo desse sujeito desejante. O/A psicólogo/a, nesse momento, é considerado um profissional da área de saúde. E o documento continua:

reconhecendo os aspectos relacionais da violência e, portanto, incluindo a fala masculina, seja ampliando os relatos de vivências de violência, através de grupos focais. 6. A violência deve ser compreendida como relacional. Corresponde a um padrão de interação do casal, como uma dança orientada pela adesão de homens e mulheres aos papéis de gênero. Promover o questionamento do lugar, das interações e códigos e das expectativas que reproduzem a dependência emocional. (Presidência da República, 2003, pp.57-58; grifos nossos)

O manual, nessa passagem, orienta para a utilização de uma técnica: grupos focais, com a inclusão dos homens nas intervenções para o desenvolvimento da consciência da violência em seus aspectos relacionais. Isso a partir do entendimento do conceito de gênero/papéis de gênero.

Identifica-se, assim, uma mistura ou mesmo uma confusão no uso de diferentes escolas dentro da psicologia; escolas ou teorias que em alguns aspectos são contraditórias. Termos como lugar remetem à psicanálise, mas dependência emocional, não. Já a expressão padrão de interação é usada pela psicologia comportamental. Nesse contexto, ficam as questões: o que seria essa dependência emocional e de quem seria a dependência? A partir de qual dessas referências teóricas da psicologia poder-se-ia ou dever-se-ia trabalhar?

O texto segue e, quando se refere às Estratégias de Ação, apresenta:

Capacitação da equipe – ... educação continuada e supervisão da equipe interdisciplinar dentro da ótica da violência de gênero. Promoção de oficinas, onde as mulheres possam trabalhar coletivamente a situação de violência vivida e reconstruir sua auto-estima. ... repensar as relações de gênero, ... e o poder dos homens sobre as mulheres, revisando valores e promovendo o diálogo e a negociação nas relações. (Presidência da República, 2003, p.60; grifos nossos)

Nesse fragmento, a preparação da equipe deve ser a partir do conceito de gênero. Assim, uma posição teórica e política é assumida explicitamente, como Hanada, D'Oliveira e Schraiber (2008) também avaliam que deve ser. Para tal ação, há a orientação para as atividades em grupo e o uso de técnicas como as oficinas – termo muito utilizado nas ações dos movimentos políticos das décadas de 1960, 1970 e 1980 para educação popular objetivando conscientização política. Termo comum também entre as feministas.

A questão da autoestima, também um termo recorrente entre as/os profissionais da rede de atendimento às mulheres e nos próprios textos sobre violência contra as mulheres, aparece explicitamente em quase todos os documentos e, apesar de ser um elemento da subjetividade, é referido como construído e reconstruído no social, sendo algo influenciado por questões macro, e não como da ordem emocional, pessoal, subjetiva, sendo subjetividade entendida aqui como: "instâncias psicológicas que compõem este sujeito: o psiquismo, a cognição, a 'mente', a consciência, a identidade, o self; mas também, as percepções, as interpretações, e uma certa dimensão 'intrapsíquica', das emoções, do desejo, do inconsciente" (Prado Filho & Martins, 2007, p. 14). Vale destacar que, segundo os autores, "sujeito nos domínios da psicologia implica falar da sua colocação como objeto para um discurso científico socialmente autorizado a enunciar verdades" (Prado Filho & Martins, 2007, p. 14).

Posição essa apresentada em forma de defesa de uma perspectiva política no estudo de Hanada et al. (2008), quando destacam qual a concepção de resgate ou fortalecimento da autoestima para o contexto da violência contra as mulheres: "fortalecimento das mulheres no sentido da redistribuição de poder em favor delas, sendo necessárias mudanças na ideologia patriarcal, nas estruturas das instituições sociais ... que reforçariam e perpetuariam a discriminação de gênero e iniquidades sociais" (Hanada et al., 2008, p. 6).

Observa-se, no trecho do texto analisado, que não aparecem as expressões sujeito desejante nem dependência emocional, e isso fomenta algumas questões. Seria porque são questões separadas? E o que as separariam? Repensar, reconstruir, revisitar, refazer com as bases que agora são apresentadas como o que poderá mudar a situação de violência vivida. Assim, a mulher tendo uma autoestima elevada não se submeteria à violência, isso parece ser o pressuposto. E a mulher elevaria essa autoestima com as discussões dos valores a partir dos conceitos de gênero e papéis/relações de gênero. Segundo Hanada et al. (2008), o resgate da autoestima precisa ser mais amplo que a dimensão individual, entendida pelas autoras como a dimensão que está sendo trabalhada do ponto de vista da psicologia e que é compreendida como limitadora.

Continuando a análise das publicações, em 2005 foram apresentados os Termos de Referência para a implantação das políticas das casas-abrigo e dos centros de referência, com orientações semelhantes e pequenas diferenças por conta da natureza dos serviços oferecidos (Presidência da República, 2005a, 2005b):

1. O Centro de Referência é espaço de atendimento psicológico, social e jurídico ... fortalecimento da mulher, resgatando a sua auto-estima e propiciando as condições pessoais para a conquista da sua cidadania. ... Dar atendimento e acompanhamento psicológico, social, jurídico, orientação e informação às mulheres em situação de violência, resguardando e fortalecendo sua auto-estima e possibilitando que se tornem protagonistas de seus próprios direitos, ampliando seu nível de entendimento sobre as relações de gênero. ... Promover o atendimento especializado e continuado às mulheres em situação de violência, até que estas possam tornar-se independentes dos serviços prestados; ... Os acompanhamentos psicológicos, individuais ou em grupo, constituem procedimento fundamental para o fortalecimento da auto-estima da mulher; (Presidência da República, 2005a, pp. 4-7; grifos nossos)

Nesse trecho há a explicitação da necessidade do atendimento psicológico às mulheres em situação de violência. Aqui aparece ainda a conscientização política como a que determinaria a elevação da autoestima e o protagonismo. Essa conscientização viria da apropriação do conceito de gênero, como Hanada et al. (2008) entendem que deveria ser a intervenção.

Existe ainda nessa passagem o objetivo de tornar as mulheres independentes dos homens e dos serviços. Diante de tal proposta, uma pergunta surge: por que ficariam dependentes dos serviços? A dependência das mulheres tem uma explicação nas relações desiguais de poder entre os sexos, mas e a dependência dos serviços, como se explicaria? Ressurge a questão: qual e de quem seria a dependência? Seria a dependência emocional também do serviço? Do que se fala quando se refere à dependência? Questão que remete a uma percepção infantilizada das mulheres, como se tivessem uma dificuldade de ser independente, que é o que se espera de uma pessoa adulta.

No ano de 2006, as orientações na norma técnica destacam que o "atendimento psicossocial tem o objetivo de promover o resgate da auto-estima da mulher em situação de violência e sua autonomia, auxiliar a mulher a buscar e implantar mecanismos de proteção e/ou auxiliar a mulher superar o impacto da violência sofrida" (Presidência da República, 2006b, p. 11; grifos nossos).

Aqui apresenta um resgate da autoestima como questão psicossocial e não psicológica, que poderá determinar a autonomia, e não mais "que se tornem protagonistas" (Presidência da República, 2005a, p. 5), para autoproteção e para superação da situação vivida. Assim, tanto psicólogas como assistentes sociais ou outras profissionais poderiam realizar essa atividade do resgate da autoestima da mulher, porque este resgate seria, deduz-se, consequência de uma conscientização política do fenômeno da violência.

Em outra parte da norma técnica aparece: "que a interação e as relações entre os(as) profissionais sejam baseadas na solidariedade, igualdade, responsabilidade e no compromisso pessoal, afastando o risco do exercício do poder centralizado e autoritário". (Presidência da República, 2006b, p.29; grifos nossos). Essas são orientações de atitudes que têm como pressupostos, princípios e visões de mundo específicas e a postura ética tanto pessoal quanto profissional. Diante disso, questiona-se: O compromisso pessoal seria com o quê? Relaciona-se com a perspectiva política do feminismo? Com as mulheres atendidas? Ou seria com a instituição empregadora?

Ainda, nessa norma técnica para os centros de referência, de 2006, há questões que entram em conflito com o que estava posto nos documentos de anos anteriores:

realizado por profissional de Psicologia, com o objetivo de promover o resgate da auto-estima da mulher e a resiliência da mulher atendida, de forma a tratar possíveis sintomas de depressão e ansiedade crônica; promover paradigmas que possibilitem à mulher em situação de violência internalizar o conceito de que a violência é inaceitável e insustentável ...; facilitar à mulher atendida a aquisição de técnicas de contra-controle que lhe forneça instrumentos para assumir o controle da situação, saindo do papel de vítima passiva da violência doméstica e no trabalho, e de técnicas e estratégias de proteção e segurança pessoal. Técnicas de relaxamento e controle do estresse, de resolução de conflitos e de assertividade devem integrar o atendimento psicológico. É importante ressaltar, no entanto, que o atendimento não deve promover sessões de mediação entre a mulher atendida e o(a) agressor(a) em situações de violência doméstica. A mediação familiar é inadequada na situação de violência doméstica, uma vez que a mulher agredida e o agressor estão em papéis desiguais no que se refere ao exercício de poder pessoal. O(A) técnico(a) responsável pelo atendimento psicológico poderá, após a elaboração do diagnóstico aprofundado, encaminhar a mulher em situação de violência ao atendimento de arte-terapia, caso julgue adequado, indicando ainda se o atendimento deverá ser individualizado ou em grupo. (Presidência da República, 2006b, p.37; grifos nossos)

Nesse texto existe a explicitação de que o/a psicólogo/a é o responsável para promover a elevação da autoestima, além da introdução de um novo objetivo, a promoção da resiliência, termo da chamada psicologia positiva. Apresenta, também, os sintomas de transtorno/sofrimento psíquico como depressão e ansiedade, admite que esses possam ser tratados juntamente com o resgate da autoestima e a promoção da resiliência. Pela primeira vez, alguns dos transtornos psicológicos possíveis nesse contexto foram explicitados como algo a ser trabalhado por psicólogos/as. Mesmo quando existe a possibilidade de sintomas de sofrimentos psíquicos e/ou psicopatologias ou mesmo sintomas reativos a experiências específicas, a proposta parece ser trabalhar com as questões referentes a ganhar o controle da situação, de forma a não piorar as possíveis consequências de um momento de tensão. Ao mesmo tempo, a mediação desse conflito não é adequada, talvez para ser promovida pela/o profissional da psicologia, e não pela mulher. Há, ainda, a apresentação de uma perspectiva que precisará ser internalizada pelas mulheres – a compreensão das relações de gênero é estabelecida de forma que o exercício do poder entre os sexos é desigual e que a violência é inaceitável e insustentável. Contudo, não se propõe compreender o que faz alguém não entendê-la dessa forma?

A orientação é para que se ofereça às mulheres a oportunidade de aquisição de técnicas de controle, perspectiva da psicologia comportamental, como também a aquisição de técnicas de relaxamento e controle do estresse que podem ser trabalhadas a partir da perspectiva da psicologia comportamental e da psicologia positiva, com também podem ser desenvolvidas por outros profissionais, assim como técnicas de resolução de conflitos e de assertividade. Dessa forma, as orientações para a realização da intervenção em psicologia se apresentam confusas. Nesse contexto, uma questão é colocada: o trabalho do psicólogo/a seria o de repasse de técnicas para as mulheres aprenderem e utilizarem nos momento de conflito e/ou para desenvolver junto com as mulheres, no momento do atendimento psicológico? E o que se está tratando quando há a atenção para esse tipo de intervenção? Aqui também seria possível a atuação dos outros profissionais da equipe?

Nessa orientação não há a inclusão do homem na atividade proposta, apesar de utilizar o mesmo argumento - a violência como relacional e fundada nos conceito de gênero - que foi usado na publicação de 2003, em que a orientação era a de que o trabalho incluísse os homens. Já em 2006, a orientação foi para que se excluíssem os homens das atividades conjuntas.

Essa norma técnica traz pela primeira vez a previsão de um diagnóstico psicológico aprofundado para realizar um encaminhamento de tratamento. Todavia, foi indicada a arteterapia e, nesse encaminhamento, a decisão da profissional da psicologia seria também indicar se o tratamento em arteterapia seria individual ou em grupo. Agora o atendimento individual é destacado como pertinente. Parece que aqui há uma maior proximidade com as questões da subjetividade, em termos classicamente relacionados com a intervenção privativa da psicologia quando há a introdução de questões como diagnóstico psicológico, encaminhamento e atendimentos individuais. O encaminhamento sugerido é para arteterapia, que não é psicologia, embora o documento apresente-a como "extensão do atendimento psicológico" (Presidência da República, 2006b, p.38), mas, ao mesmo tempo, refere que ser psicólogo apenas não capacita o profissional para tal intervenção. Isso parece apontar para o reforço de uma ideia de que nesse contexto não há espaço para a intervenção tradicional da psicologia, pois, mesmo diante de quadros e sintomas psíquicos clássicos, o tratamento não deve ser psicoterapia, e sim arteterapia. O psicólogo/a não se dedicaria a cuidar dessas questões, e sim identificá-las e encaminhá-las, no manual de 2003 (Presidência da República, 2003) para os serviços de saúde e na norma técnica de 2006 (Presidência da República, 2006b) para uma intervenção que não mais se daria fora do serviço, mas que não seria da psicologia.

A norma técnica para os centros de referência (Presidência da República, 2006b) destaca ainda: "O desligamento do serviço de atendimento especializado somente se dará quando for verificada a superação da situação de violência, o fortalecimento de mecanismos psicológicos e sociais que tornem viáveis a autodeterminação da mulher." (Presidência da República, 2006b, p.39; grifos nossos). Nesse momento, a superação da violência é que determina o desligamento do serviço, e essa superação será determinada não mais explicitamente pela consciência política das diferenças de poder entre os sexos que foram construídas social e culturalmente, mas pelo fortalecimento de mecanismos psicológicos e sociais. Agora, a autodeterminação está no lugar do protagonismo e da autonomia, e a perspectiva psicológica precisará ser trabalhada para que as mulheres fortaleçam sua autodeterminação. Mas como seria esse trabalho?

Ainda no ano de 2006, houve a publicação de mais uma norma técnica, dessa vez específica para a intervenção nas delegacias da mulher. A norma destaca:

Prevenção ... Criação de espaços de atendimento psicológico para as(os) profissionais das Redes de Atendimento, especialmente para aquelas(es) que atuam nas Delegacias, dada as características da profissão policial, expostos a constantes situações de pressão e estresse. É necessário empreender uma política de saúde que contemple, de forma qualificada, o suporte psicológico e social às(aos) servidoras(es). Implementação de política de valorização profissional destinada às mulheres policiais, levantando junto a essa categoria quais as suas prioridades, necessidades e demandas. (Presidência da República, 2006c, p.42; grifos nossos).

Os espaços de atendimento psicológico agora são apontados para as profissionais; o suporte psicológico, explicitado e classificado como da área da saúde, mas, ainda, relacionado como questão social, sem especificar a quem caberia o suporte social, se ao/à psicólogo/a ou ao/à assistente social. Com isso, destacam-se também as consequências do trabalho realizado na saúde dos profissionais e na organização do serviço. Há também a valorização profissional daquelas que trabalham com mulheres em situação de violência.

Ainda, na norma técnica para as delegacias especializadas, a questão de gênero se apresenta como relevante. Entretanto, as condições da estrutura do trabalho também são importantes para a realização dos atendimentos:

A capacitação profissional deve estar pautada por uma metodologia participativa, ... e deve assegurar conteúdos programáticos que reafirmem a condição de sujeito de direitos da mulher em situação de violência. Deve essa qualificação produzir sistemas de comando e supervisão de equipe que estimulem: a cooperação, a visão complementar das diferentes funções, a importância e o fortalecimento das parcerias com outras Instituições, e um funcionamento interno mais bem estruturado. (Presidência da República, 2006c, pp.35-36; grifos nossos)

As mulheres passam de sujeitos desejantes para sujeitos de direito. Nessa passagem há o destaque para a capacitação e a supervisão da equipe. Isso seria porque houve uma avaliação dos serviços, revisão da proposta inicial? Porque foi constatada, por exemplo, a "Falta de adesão ao tratamento psicológico proposto" (Taquette, 2007a, p.47) e, por isso, passa a ser uma questão relevante e que é reafirmada nos documentos?

No ano de 2007, um dos manuais para as ações relativas a adolescentes e jovens em situação de violência apresenta: "Profissionais e provedores de saúde têm de estar adequadamente capacitados para o manejo clínico e psicológico das vítimas de violência sexual" (Taquette, 2007a, p.88; grifos nossos). Aqui, os manejos clínico e psicológico não são ações para os/as psicólogos/as, e sim para os profissionais de saúde e os provedores, que o manual não explica quem seriam. Na sequência, refere-se a "capacitação e sensibilização dos operadores de direito (juízes, advogados, defensores e promotores públicos) e dos profissionais de saúde (médicos, psicólogos e assistentes sociais)" (Taquette, 2007a, p. 171; grifos nossos). As/Os psicólogas/os mais uma vez entre os profissionais de saúde, assim como os assistentes sociais, que antes eram profissionais da assistência psicossocial, aqui estão na saúde.

A preparação dos profissionais, expressa na publicação como uma capacitação emocional, passa a ser destacada como forma de melhorar o atendimento às mulheres: "capacitação técnica e emocional dos profissionais e um trabalho desenvolvido em rede com as demais instituições e a sociedade certamente promoverão uma atenção mais digna e eficiente às pessoas." (Taquette, 2007b, p. 33; grifos nossos).

Poder-se-ia questionar: quem realizaria essa capacitação emocional, o/a psicólogo/a ou qualquer profissional da equipe que discuta as questões da violência contra as mulheres a partir das questões de gênero? E, caso seja uma tarefa da psicologia, ela deve ser realizada pelo profissional que faz parte da equipe ou por outro/a psicólogo/a?

Por fim, o último documento analisado ressalta que ser profissional da área e/ou ser capacitado política e teoricamente a partir do conceito de gênero para o desenvolvimento do trabalho não é mais suficiente; é necessário, agora, um perfil específico e a adaptação ao trabalho dentro do projeto político proposto: "política de recursos humanos que avalie o perfil profissional e sua possibilidade de adequação às necessidades de trabalho e que valorize os profissionais, promovendo canais de comunicação; capacitação continuada para os profissionais" (Taquette, 2007b, p.131; grifos nossos).

Discussão

Nessa trajetória temporal, a discussão inicia-se com o argumento das questões da violência contra as mulheres exclusivamente como fruto das relações de gênero fundadas na sociedade patriarcal (Scott, 1990), em que psicólogo/a, assistente social e advogado/a atuariam de forma semelhante e em que, após o resgate de uma autoestima, avaliada como baixa, mudanças no comportamento das mulheres dar-se-iam no rumo da redefinição da relação afetiva, culminando com um possível rompimento. Isso porque a baixa autoestima seria derivada da construção social, cultural e histórica dos papéis de gênero e promoveria a permanência das mulheres em situação de violência. Embora, nesse primeiro documento, apareçam conceitos como: sujeito desejante e desejo, o foco não é a subjetividade, nos termos já definidos, ou a influência do inconsciente.

Com a análise dos documentos pode-se perceber a defesa da ideia de que apenas a partir de uma conscientização política/militante da construção social dos papéis de gênero uma mudança aconteceria na relação mediada pela violência. No entanto, caso as questões da subjetividade – emoções e desejos - precisassem de algum tipo de intervenção, deveriam ser trabalhadas nos serviços de saúde. Nesse momento, as mulheres que sofrem violência são o público dos serviços e o ponto principal das orientações, ou seja, as ações propostas têm como objetivo bem atendê-las.

Posteriormente, aparece uma tentativa de diferenciação da intervenção psicológica, mas, ainda, como uma forma de trazer o psicológico para uma intervenção mais política e militante, e não como um trabalho com foco nas questões da subjetividade, do sofrimento psíquico, numa forma que não explicita uma especificação da intervenção em psicologia diferenciada das demais. Isso porque as ações são pulverizadas entre os/as profissionais da equipe. Todo/as, em tese, poderiam desenvolver o trabalho, que, assim, não é específico de nenhuma profissão, ficando também sem especificação qual seria o papel dos/as psicólogos/as. Contudo, nessa fase, aparece a questão do diagnóstico clínico e da intervenção embasados em diferentes correntes da psicologia, apesar da forma confusa e incipiente que é apresentada. Talvez o resultado das várias "vozes sociais" (Fernandes, 2008, p. 35) que compõem o sujeito discursivo ou a definição por um determinado enunciado em detrimento de outro (Foucault, 2010/1969), ou seja, a defesa de uma ação militante que entende que um tipo de intervenção em psicologia não é adequado. Dessa forma, quando há a indicação de referências dentro da psicologia de forma explícita, são destacadas intervenções que têm como base teorias do comportamento e/ou fenomenológicas. Mesmo quando a possibilidade de encaminhamento para dentro do serviço é levantada, depois de um diagnostico psicológico, esse não é para uma intervenção psicológica, pois, como já foi destacado, arte-terapia é uma intervenção não privativa de psicólogos/as, podendo ser realizada por qualquer profissional capacitado para tal, como o próprio documento sobressai. Assim, continua a ideia de que se precisa de um psicólogo que não seja/aja como psicólogo, já que diz que um não psicólogo tratará os sintomas de sofrimento psíquico identificados.

Por fim, os textos passam do foco da capacitação das mulheres para a capacitação dos/as profissionais nas questões de gênero e para a necessidade de um perfil específico para a realização do atendimento. As mulheres passam de sujeitos desejantes para sujeitos de direito, e psicólogos/as passam de integrantes da equipe de suporte social para integrante da equipe de saúde. Os atendimentos individuais passam a ser oferecidos juntamente com os grupais. Mas, mesmo dessa forma, ainda há a necessidade de argumentar que mesmo assim o fenômeno da violência contra as mulheres é determinado por questões de ordem social, histórica e cultural, e não pessoal ou da ordem da subjetividade, demarcação irrelevante quando se entende que não há como existir um sujeito apartado do social (Freud, 1930/2010, 1938/2000). Assim, diante dessa preocupação de marcar que a questão não é psicológica, não é apresentado o que a psicologia poderia oferecer para a compreensão do assujeitamento à violência, que apenas a conscientização das relações assimétricas entre os sexos não consegue promover o rompimento das situações de violência, em algumas mulheres.

Considerações finais

A função do discurso apresentado nesses documentos parece ser a de trazer as mulheres para uma conscientização de um lugar político a partir do conceito de gênero, que é o padrão que se repete nos documentos analisados. Como se, só a partir da incorporação desse conceito, o entendimento dessas relações de poder determinasse a resolução da vivência de situações de violência doméstica. Dessa forma, essa resolução seria o desenvolvimento de outra posição, a não aceitação da violência. Nesse contexto, o atendimento psicológico dentro da política pública aparece confuso, como precisando ser mais político e militante e menos subjetivo e pessoal, ou seja, precisando ter uma base teórica num construto político, e não nas teorias que embasam a intervenção clínica em psicologia, independentes da escola teórica. A intervenção clínica parece ser entendida como não promotora dessa conscientização, o que é reforçado pela análise de Hanada et al. (2008). O que, dessa forma, torna como não atingido o objetivo de orientar às atividades a serem desenvolvidas. As possibilidades de atuação da psicologia clínica enquanto ação que "dê ouvidos" ao sofrimento psíquico fica prejudicada diante de sugestões de técnicas que se referem a diferentes teorias e que não serão utilizadas por aqueles/as que têm outra abordagem teórica, ou mesmo ações que não são exclusivas ou privativas dos psicólogos/as e que aparecem como sendo, e isso parecendo ser uma forma de "ampliar" o trabalho do/a psicólogo/a para além das questões individuais.

Percebe-se que há uma contradição porque psicólogos/as estão relacionados/as como profissionais da equipe mínima (Presidência da República, 2003, 2006a, 2006b) desses serviços, todavia sem poder/dever fazer o trabalho de psicologia, ou seja, como as orientações a todo tempo apontam para questões que remetam à subjetividade e à individualidade, devem ser trabalhadas como questões sociais e culturais e como se fossem necessariamente contraditórias às questões do empoderamento (empowerment) defendido pelo feminismo, segundo Hanada et al. (2008). Essas autoras consideram que alguns desses documentos aqui analisados (Presidência da República, 2003, 2006b, 2006c) restringem o "resgate" ou "fortalecimento" da autoestima a uma dimensão exclusivamente individual. Entendendo, dessa forma, que apenas o empoderamento político poderia promover a conscientização desejada. No entanto, da forma como as orientações são apresentadas, qualquer profissional de nível superior, com formação nas Ciências Humanas, Sociais Aplicadas ou mesmo da área das artes conseguiria realizar as atividades promovidas por esses serviços. Dessa forma, a equipe poderia, em tese, ser apenas composta por profissionais de um só tipo de formação, não necessitando de uma equipe multiprofissional. Por outro lado, como mostraram os documentos analisados, há uma demanda por um trabalho específico de psicologia, mesmo que ainda não se identifique exatamente qual seria o trabalho a ser realizado e apesar das limitações dos serviços oferecidos, como aponta o estudo de Hanada et al. (2010) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008). Nesse contexto, percebe-se que o discurso do Estado apropria-se do discurso e da forma de realizar o trabalho da psicologia sem deixar de forma objetiva um espaço para que as mulheres que procuram os serviços possam dizer o que desejam nessas/dessas relações "intermediadas pela violência".

Essa análise, parcial e em construção, aponta para a necessidade de aprofundar o estudo, de entender o fenômeno da violência contra as mulheres e desenvolver orientações mais apropriadas para as/os psicólogas/os. A formação da graduação em psicologia oferece ferramentas para o desenvolvimento de um trabalho, a partir de diferentes escolas e teorias, com a subjetividade ou o comportamento. Essa formação, na maioria dos casos, não exclui as questões sociais, culturais e históricas, pelo contrário, há o entendimento de uma via de mão dupla entre o individual/eu e a sociedade/o outro (Freud, 1930/2010, 1938/2000) e que, quando se trabalha a psicologia no foco das questões da subjetividade, não se nega e não se podem negar os aspectos sociais ou culturais e que um não se reduz ao outro e justamente nesse ponto é que as questões das relações de gênero poderiam ser trabalhadas, pois esse tema já começa a integrar a formação em psicologia no Brasil. Todavia, o foco de uma intervenção em psicologia clínica deveria ser para atuar com a subjetividade, com o que se passa no desejo e na emoção de cada um/a, e isso precisa ser considerado também no contexto da violência, sob pena de não se oferecer, de fato, as possibilidades que poderiam ser apresentadas pela psicologia. Assim, é importante que se promovam intervenções em psicologia apoiadas nas escolas teóricas psicológicas, no compromisso com a transdisciplinaridade e no conceito de gênero, que precisa também fazer parte da formação.

Dessa forma, é preciso discutir: qual é o papel da psicologia no contexto do atendimento às mulheres em situação de violência? Pois o entendimento de que a intervenção da psicologia é limitadora e não contribui para favorecer uma efetiva emancipação dessas mulheres parece ser fruto de uma compreensão preconceituosa, que não considera os avanços dessa ciência e as possibilidades do trabalho com a subjetividade nesse contexto. Talvez o reducionismo não esteja na atuação que psicologiza um problema social e, sim, devido a uma não possibilidade de construção de qual seria o trabalho da psicologia nesse contexto. E isso, certamente, foi produzido por esse fantasma da psicologização, mas, ao mesmo tempo, há a indicação de que algo do subjetivo precisa ser trabalhado, pois, se não fosse assim, só educadoras ou sociólogas seriam suficientes na composição do quadro mínimo para esses serviços. Por fim, uma última questão: não seria conveniente que os/as profissionais da psicologia fossem ouvidos no processo de elaboração dessas políticas públicas de combate à violência contra as mulheres? Essa indagação se tornou o tema de um estudo a ser apresentado em outra oportunidade.

Agradecimento

Ao Prof. Me. Francisco Pereira (UFAC).

Referências

Burke, P. (1995). A arte da conversação. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.

Caregnato, R. C. A. & Mutti, R. (2006). Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto contexto - Enfermagem, Florianópolis, 15(4), 679-684.

Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2008). Atuação de psicólogos em programas de atenção à mulher em situação de violência. Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP. Acesso em 25 de maio, 2012, em

http://crepop.pol.org.br/novo/316_resultados-da-pesquisa-sobre-atuacao-profissional-de-psicologosas-em-programas-de-atencao-a-mulher-em-situacao-de-violencia.

Fernandes, C. A. (2008). Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Editora Claraluz.

Foucault, M. (2010). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1969).

Freud, S. (2000). Esboço de Psicanálise. Cap. VIII e IX. In Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXIII). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1938).

Freud, S. (2010). O mal-estar na cultura (R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Original publicado em 1930)

Gill, R. (2008). Análise do discurso. In M. Bauer & G. Gaskell, Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático (7ª ed., pp. 244-270). Petrópolis, RJ: Vozes.

Hanada, H., D'Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, 18(1), 33-60.

Hanada, H., D'Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2008). Os psicólogos e a assistência a mulheres em situação de violência. Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008. Acesso em 18 de novembro, 2010, em http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST33/Hanada-Oliveira-Schiraiber_33.pdf

Lemmertz, D. (2004). O corpo como representação da mulher: uma análise das propagandas de produtos para emagrecimento. Acesso em 25 de maio, 2010, em http://www.discurso.ufrgs.br/article.php3?id_article=16

Pinto, C. R. J. (2003). Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

Prado Filho, K. & Martins, S. (2007). A subjetividade como objeto da(s) psicologia(s). Psicologia &. Sociedade, 19(3), 14-19.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2003). Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas. Brasília: Autor.

Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2004). Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Autor.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2005a). Termo de Referência Casa-abrigo. Portaria nº 003, de 24 de março. Brasília: Autor.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2005b). Termo de Referência. Centro de referência e atendimento à mulher. Portaria nº 003, de 24 de março. Brasília: Autor.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2006a). Termo de Referência. Brasília: Autor.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2006b). Norma Técnica de Uniformização: Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Brasília: Autor.

Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2006c). Norma Técnica de Padronização: Delegacias Especializadas de Atendimento À Mulher – DEAMS. Brasília: Autor.

Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2008) II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Autor.

Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 16(2), 5-22.

Taquette, S. et al. (2007a). Mulher adolescente/jovem em situação de violência. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Taquette, S. (Org.). (2007b). Violência contra a mulher adolescente-jovem. Rio de Janeiro: EdUERJ.

Willians, R. (1989). O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras.

Recebido em: 30/12/2010

Revisão em: 04/05/2012

Aceite em: 18/06/2012

Madge Porto é Graduada em Psicologia (UFPE), Mestra em Saúde Coletiva (UFPE) e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, Bolsista CNPq. Pesquisadora do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Meio Ambiente/UFAC. Psicóloga Clínica da Universidade Federal do Acre. Endereço: Universidade Federal do Acre. Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoas. BR 364, km 04. Distrito Industrial, Rio Branco/AC, Brasil. CEP 69920-900. Email: madgeporto@gmail.com Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke é Professora titular da Universidade de Fortaleza e pesquisadora colaboradora sênior da Universidade de Brasília. Pós-doutora (St. Johns University e Universitat Tübingen). Professora emérita da UnB. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Email: psibucher@gmail.com

  • Burke, P. (1995). A arte da conversação. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.
  • Caregnato, R. C. A. & Mutti, R. (2006). Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto contexto - Enfermagem,  Florianópolis, 15(4), 679-684.
  • Fernandes, C. A. (2008). Análise do discurso: reflexões introdutórias São Carlos: Editora Claraluz.
  • Foucault, M. (2010). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1969).
  • Freud, S. (2000). Esboço de Psicanálise. Cap. VIII e IX. In Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXIII). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1938).
  • Freud, S. (2010). O mal-estar na cultura (R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Original publicado em 1930)
  • Hanada, H., D'Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, 18(1), 33-60.
  • Hanada, H., D'Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2008). Os psicólogos e a assistência a mulheres em situação de violência  Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008. Acesso em 18 de novembro, 2010, em http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST33/Hanada-Oliveira-Schiraiber_33.pdf
  • Lemmertz, D. (2004). O corpo como representação da mulher: uma análise das propagandas de produtos para emagrecimento. Acesso em 25 de maio, 2010, em http://www.discurso.ufrgs.br/article.php3?id_article=16
  • Pinto, C. R. J. (2003). Uma história do feminismo no Brasil São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
  • Prado Filho, K. & Martins, S. (2007). A subjetividade como objeto da(s) psicologia(s). Psicologia &. Sociedade, 19(3), 14-19.
  • Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2004). Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Autor.
  • Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2005a). Termo de Referência Casa-abrigo Portaria nº 003, de 24 de março. Brasília: Autor.
  • Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2005b). Termo de Referência. Centro de referência e atendimento à mulher Portaria nº 003, de 24 de março. Brasília: Autor.
  • Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2006a). Termo de Referência Brasília: Autor.
  • Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2006b). Norma Técnica de Uniformização: Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Brasília: Autor.
  • Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2008) II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Autor.
  • Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 16(2), 5-22.
  • Taquette, S. et al. (2007a). Mulher adolescente/jovem em situação de violência Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
  • Taquette, S. (Org.). (2007b). Violência contra a mulher adolescente-jovem Rio de Janeiro: EdUERJ.
  • Willians, R. (1989). O campo e a cidade: na história e na literatura São Paulo: Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2010
  • Aceito
    18 Jun 2012
  • Revisado
    04 Maio 2012
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com