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Ética e prática profissional em saúde

La ética y la práctica profesional en la salud

Ethics and health professional practice

Resumos

Há várias teorias éticas e modelos de análise teórica que podem orientar a nossa forma de ser e agir profissionalmente. Mesmo levando em consideração que referências filosóficas e teóricas nos ajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter em mente que a aplicação rotineira de métodos nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Porém, não é nada simples responder as questões: como devem ser os enfermeiros e enfermeiras na sua prática profissional? Como devem agir os enfermeiros e enfermeiras em relação aos outros e a si mesmo? Neste sentido, o propósito deste texto é contribuir com fundamentos éticos que possibilitem a reflexão sobre a forma como temos agido e como temos sido enquanto profissionais de saúde. O objetivo é problematizar a relação cliente - profissional de saúde, uma vez que é nessa prática cotidiana que se integram os elementos próprios da conduta moral profissional.

Ética; Prática profissional; Saúde


Existen varias teorías éticas y modelos de análisis teórico que pueden orientar nuestra forma de ser y actuar. Mismo considerándose que las referencias filosóficas y teóricas ayudan a raciocinar críticamente, siempre es importante tener en cuenta que la aplicación rutinaria de los métodos nunca es un substituto satisfactorio para la inteligencia crítica. Sin embargo, no es nada simple contestar las siguientes cuestiones: ¿Cómo deben ser los enfermeros(as) en su práctica profesional? ¿Cómo deben actuar los enfermeros(as) en relación con los otros y a si mismo? En este sentido, el propósito es contribuir con fundamentos éticos que posibiliten la reflexión sobre la forma como hemos actuado y como hemos sido en cuanto profesionales de la salud. El propósito es problematizar la relación cliente-profesional de la salud, dado que en esta práctica cotidiana se integran los elementos propios de la conducta moral profesional.

Ética; Práctica profesional; Salud


There are many ethical theories and theoretical analysis models that can guide our professional behavior and existence. Even considering that philosophical and theoretical references can help us to critically think, it is always good to keep in mind that the usual application of a methodical reference is never a satisfactory substitute for critical intelligence. However, it is never simple to answer the questions: how should the nursing professionals be in their professional practice? How should nursing professionals act towards others and towards themselves? With this in mind, the proposal is to contribute with ethical foundations that make it possible to reflect about the way we have been acting and being as health professionals. The intention is to discuss the client - health professional relationship since it is in this daily practice that the moral elements of conduct are integrated.

Ethics; Professional practice; Health


REFLEXÃO

Ética e prática profissional em saúde

Ethics and health professional practice

La ética y la práctica profesional en la salud

Maria Bettina Camargo Bub

Enfermeira. Doutora. Professora do Departamento e Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Ética

Endereço Endereço: Maria Bettina Camargo Bub Rua Caminho dos Açores, 390 88050-300 - Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis, SC E-mail: vito@unetsul.com.br

RESUMO

Há várias teorias éticas e modelos de análise teórica que podem orientar a nossa forma de ser e agir profissionalmente. Mesmo levando em consideração que referências filosóficas e teóricas nos ajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter em mente que a aplicação rotineira de métodos nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Porém, não é nada simples responder as questões: como devem ser os enfermeiros e enfermeiras na sua prática profissional? Como devem agir os enfermeiros e enfermeiras em relação aos outros e a si mesmo? Neste sentido, o propósito deste texto é contribuir com fundamentos éticos que possibilitem a reflexão sobre a forma como temos agido e como temos sido enquanto profissionais de saúde. O objetivo é problematizar a relação cliente - profissional de saúde, uma vez que é nessa prática cotidiana que se integram os elementos próprios da conduta moral profissional.

Palavras-chave: Ética. Prática profissional. Saúde.

ABSTRACT

There are many ethical theories and theoretical analysis models that can guide our professional behavior and existence. Even considering that philosophical and theoretical references can help us to critically think, it is always good to keep in mind that the usual application of a methodical reference is never a satisfactory substitute for critical intelligence. However, it is never simple to answer the questions: how should the nursing professionals be in their professional practice? How should nursing professionals act towards others and towards themselves? With this in mind, the proposal is to contribute with ethical foundations that make it possible to reflect about the way we have been acting and being as health professionals. The intention is to discuss the client - health professional relationship since it is in this daily practice that the moral elements of conduct are integrated.

Keywords: Ethics. Professional practice. Health.

RESUMEN

Existen varias teorías éticas y modelos de análisis teórico que pueden orientar nuestra forma de ser y actuar. Mismo considerándose que las referencias filosóficas y teóricas ayudan a raciocinar críticamente, siempre es importante tener en cuenta que la aplicación rutinaria de los métodos nunca es un substituto satisfactorio para la inteligencia crítica. Sin embargo, no es nada simple contestar las siguientes cuestiones: ¿Cómo deben ser los enfermeros(as) en su práctica profesional? ¿Cómo deben actuar los enfermeros(as) en relación con los otros y a si mismo? En este sentido, el propósito es contribuir con fundamentos éticos que posibiliten la reflexión sobre la forma como hemos actuado y como hemos sido en cuanto profesionales de la salud. El propósito es problematizar la relación cliente-profesional de la salud, dado que en esta práctica cotidiana se integran los elementos propios de la conducta moral profesional.

Palabras clave: Ética. Práctica profesional. Salud.

INTRODUÇÃO

A tolerância é a conseqüência necessária do reconhecimento

de que somos falíveis; errar é humano, e todos nós

cometemos erros permanentemente. Então, perdoemo-nos uns

aos outros as nossas loucuras. Este é o fundamento do direito

natural (Voltaire).

Embora existam várias teorias éticas e modelos de análise teórica, não pretendo fazer uma revisão sobre os diversos modelos existentes, nem tampouco entrar em definições, caracterizações e comparações entre os diversos termos utilizados na ética aplicada à saúde - bioética; ética biomédica; ética da saúde e outros. Minha proposta é oferecer fundamentos para a reflexão sobre a forma como temos agido e como temos sido enquanto profissionais de saúde, independente do tipo de prática exercida - assistência, pesquisa, educação.

Meu ponto de partida é a compreensão da ética como um ramo da filosofia prática que tem como propósito refletir sobre o agir humano e suas finalidades; o estudo dos conflitos entre aquilo que podemos considerar como moralmente justificável e aquilo que não pode ser assim considerado. Neste sentido, inicio apresentando um conceito mínimo de moralidade, após, destaco alguns aspectos históricos da ética vinculada a saúde e, a seguir, apresento uma noção da ética principialista. Finalmente, apresento três modos gerais de relação cliente/profissional de saúde, detendo-me no modo de abertura para o outro.

Embora a abordagem dos problemas de saúde implique em intervenções em fatores sociais e políticos, comportamento humano e institucional, tradições e tecnologias, é no dia-a-dia da prática em saúde que exercemos nossa moralidade e nos deparamos com a finalidade e o sentido da vida humana, obrigações e deveres, e nos posicionamos acerca do bem e do mal. É nessa prática que, cotidianamente, nos é imposto decidir como devemos viver nossa vida, em relação a nós mesmos e em relação aos outros; e, como devemos ser enquanto profissionais de saúde.

UM CONCEITO MÍNIMO DE MORALIDADE E A CONSTITUIÇÃO DO AGENTE MORAL

É difícil definir o que é moralidade. A ética é uma tentativa de compreender sistematicamente a natureza da moralidade e o que ela exige de nós. A moralidade é, antes de tudo, uma questão de consulta à razão. Uma atitude moralmente aceitável é determinada pelas melhores razões para realizá-la.1

Portanto, não é tão simples compreender o que significa viver moralmente. Por este motivo, existem várias teorias fornecendo-nos fundamentos para encontrar as melhores razões para tomar uma ou outra atitude. De qualquer maneira, mesmo levando em consideração que referências filosóficas e teóricas nos ajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter em mente que a aplicação rotineira de métodos nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Neste sentido, o conceito mínimo de moralidade proposto no livro The Elements of Moral Philosophy é uma dessas referências1.

Neste livro seu autor fez uma análise descritiva da situação de três crianças1 1 O autordescreve e analisa três casos distintos. O primeiro é o caso de Baby Thereza, uma menina nascida em 1992, com anencefalia. 1 Como não havia mais esperanças para Thereza, seus pais resolveram, voluntariamente, doar seus órgãos para transplante. No entanto, foram impedidos porque a lei da Flórida não permitia a doação até que a pessoa fosse considerada em morte cerebral. Mas como declarar morte cerebral em um bebê sem cérebro? O segundo é o caso de Baby Jane Doe. Uma menina nascida no estado de Nova Iorque, com múltiplos defeitos, incluindo espinha bífida, motivo pelo qual seu prognóstico era bastante incerto. O terceiro, é o caso de Tracy Latimer, uma garota de 12 anos de idade, com paralisia cerebral, que foi morta por seu pai em 1993. Na época de sua morte ela pesava menos do que 40 libras e tinha a idade mental de um bebê de três meses. , na qual expôs os possíveis aspectos benéficos de cada situação e discutiu argumentos, como por exemplo o uso das pessoas como meio para atingir um determinado fim; a sacralidade da vida humana; e, a discriminação contra as pessoas em desvantagem - deficientes e incapacitados. Após tal análise, ele conceituou moralidade como "[...] um esforço para guiar a conduta das pessoas pela razão, isto é, fazer aquilo para o qual existe a melhor razão para fazê-lo pesando, ao mesmo tempo, os interesses de cada indivíduo que será afetado pela conduta tomada"1:19. "Um agente moral consciencioso é alguém que considera imparcialmente os interesses de todos afetados por aquilo que ele ou ela faz; aquele que analisa cuidadosamente os fatos e examina suas implicações; aquele que aceita princípios de conduta somente depois de ter certeza de que eles são sólidos; aquele que está disposto para `escutar as razões' mesmo quando suas convicções prévias podem ser revisadas; e, aquele que, finalmente, está disposto a agir de acordo com os resultados desta deliberação".1:19

A partir do conceito de moralidade, podemos então questionar: quando sabemos que estamos diante de um dilema moral?1 Um dilema moral ocorre de duas maneiras.2 Na primeira, diante de um fato, algumas evidências indicam que uma atitude é moralmente aceitável, enquanto outras indicam que tal atitude é inaceitável. Porém, afirmam os autores, nenhuma das duas é conclusiva. Na segunda, uma pessoa acredita que, de acordo com determinado fundamento ela ou ele pode agir de uma forma e, de acordo com outro, pode agir de maneira distinta; o fato é que ela ou ele não pode agir das duas maneiras, pois nenhuma das duas é suficientemente dominante. Independente da atitude escolhida, a pessoa vai estar sempre contrariando um fundamento ou outro. No entanto, é bom lembrar que conflitos entre exigências morais e interesses pessoais não são morais e, sim, conflitos práticos; julgamentos morais são diferentes de preferências pessoais.

Os conceitos de moralidade e de agente moral que foram apresentados podem fundamentar nossa compreensão tanto dos conflitos cotidianos em saúde como a análise de fatos ocorridos na recente história da humanidade, mais particularmente da pesquisa médica.

DAS BARBÁRIES NA PESQUISA AO NASCIMENTO DA BIOÉTICA

A crescente preocupação com os conflitos morais vinculados a prática e a pesquisa na área da saúde tem seu marco fundamental no Julgamento de Nüremberg - agosto de 1945 a outubro de 1946 - no qual foram condenados junto com oficiais nazistas, médicos que tinham desrespeitado cruelmente os direitos humanos de prisioneiros nos campos de concentração nazistas. A partir do julgamento das atrocidades cometidas durante a II Guerra, muitas delas em nome da pesquisa científica, foi promulgado o Código de Nüremberg em 20 de agosto de1947. Nesse Código foram apresentados dez itens que regulam a pesquisa em seres humanos. Foi o primeiro documento a apresentar o consentimento informado como expressão da autonomia das pessoas e a considerá-lo como "[...] absolutamente essencial". 3:265

Um professor de anestesiologia da Harvard Medical School, em 1966 - suspeitava que a enorme quantidade de fundos destinados à pesquisa, associada a grande pressão sobre os médicos professores para produzir conhecimento a fim de serem promovidos, poderia levar a dissociação entre os interesses dos cientistas e das pessoas.4 Movido por sua suspeita, o autor4 compilou 50 artigos originais, publicados entre 1948 e 1965 em jornais de grande prestígio internacional, como por exemplo New England Journal of Medicine; Circulation; Journal of American Medical Association - e escreveu o artigo Ethics in Clinical Research, no qual ele apresentou 22 relatos de pesquisas realizadas com recursos governamentais e de empresas de farmacêuticas, nas quais os sujeitos da investigação - considerados "cidadãos de segunda classe" ou "sub-humanos" - eram "[...] internos em hospitais de caridade, adultos com deficiências mentais, crianças com retardos mentais, idosos, pacientes psiquiátricos, recém-nascidos, presidiários, enfim pessoas incapazes de assumir uma postura moralmente ativa diante do pesquisador e do experimento".5:15

Nessas pesquisas ele encontrou vários casos de maus tratos e violações éticas. Foi por meio deste artigo que o autor "[...] trouxe o horror da imoralidade da ciência, dos confins dos campos de concentração para o meio científico, acadêmico e hegemônico", demonstrando que "[...] a imoralidade não era exclusiva dos médicos nazistas".6:60

No livro Bioethics: bridge to the future., escrito em 1971, foi utlizado pela primeira vez, o termo bioética O autor propunha uma democratização contínua do conhecimento científico como forma de difundir o "olhar zeloso da ética".6 Na opinião do autor,nós não podemos deixar nosso destino nas mãos daqueles que "[...] esqueceram ou nunca souberam essas verdades elementares. Em nosso mundo moderno, nós temos botânicos que estudam plantas ou zoólogos que estudam animais, no entanto a maioria deles é especialista que não lida com as ramificações de seu conhecimento limitado [...]".6:58-59

Apesar dos horrores da segunda grande guerra, da promulgação do Código de Nüremberg e do impacto do artigo citado acima,6 as barbaridades na pesquisa com seres humanos continuaram ocorrendo. Foi preciso a mobilização da opinião pública norte-americana contra estes escândalos2 2 O primeiro, aconteceu em 1963, no Hospital Israelita de doenças crônicas em Nova Iorque, onde foram injetadas células cancerosas vivas em pessoas idosas doentes. O segundo, ocorreu entre 1950 a 1970, no hospital estatal de Willowbrook (NY), onde injetaram o vírus da hepatite em crianças com retardamento mental. E, finalmente, o terceiro, divulgado apenas em 1972, embora viesse ocorrendo desde 1930, foi o caso do Tuskegee study, no Alabama. Neste caso, 400 negros com sífilis foram deixados sem tratamento para uma pesquisa sobre a história natural da sífilis, e, embora durante este período a penicilina houvesse sido descoberta, a pesquisa prosseguiu e os negros não foram tratados. Somente em 1996, o governo americano pediu desculpas públicas à comunidade negra. 7 , para que o governo constituísse a Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, com o propósito principal de identificar os princípios éticos básicos que deveriam orientar a experimentação em seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina.

Em 1978 esta Comissão publicou o Relatório Belmont, a partir do qual se originaram as primeiras noções sobre o que viria a ser a ética principialista7. Os três princípios básicos publicados no Relatório Belmont foram autonomia, beneficência e justiça3 3 De acordo o Relatório, um indivíduo autônomo é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação desta deliberação. A autonomia é entendida como a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa. Deste princípio derivam dois procedimentos práticos: um é a exigência do consentimento informado e, o outro é o de como tomar decisões de substituição, quando uma pessoa é incompetente ou incapaz de decidir. No princípio da beneficência, o Relatório rechaça claramente a idéia clássica da beneficência como caridade. Consideraram a beneficência como a obrigação profissional de não causar dano; maximizar os benefícios; e, minimizar os possíveis riscos. No princípio de justiça foi entendido como imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios. 7:83-4 . Após a publicação do Relatório a abordagem dos problemas envolvidos na pesquisa em seres humanos deixou de ser analisada a partir dos códigos, mas de acordo com estes três princípios.

A ÉTICA PRINCIPIALISTA DE BEAU-CHAMP E CHILDRESS

Apenas um ano após a publicação do Relatório Belmont4 4 Tom Beauchamp foi um dos membros da Comissão que elaborou o Relatório Belmont. , em 1979, foi publicado o livro Principles of Biomedical Ethics.2 Ao contrário do Relatório Belmont, que foi escrito com a preocupação voltada para as questões vinculadas ao desenvolvimento da pesquisa biomédica, os autores têm como seu foco a preocupação com a prática médica, ao mesmo tempo em que procuram separá-la do enfoque próprio dos códigos e juramentos.

Em Principles of Biomedical Ethics,2 desdobram os três princípios do Relatório Belmont em quatro - autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça. Esses princípios não são absolutos e não obedecem a qualquer disposição hierárquica, mas são válidos prima facie. Em caso de conflito entre si, a situação em questão e as suas circunstâncias indicarão aquele que deve ganhar precedência sobre os demais7. Um exemplo: como enfermeiros e enfermeiras nós sabemos que precisamos mudar o decúbito de pessoas acamadas que estão impossibilitadas de fazê-lo por si mesmas, pelo menos a cada duas horas, para evitar úlceras de pressão - o princípio que rege este tipo de conduta profissional é o de beneficência. No entanto, em uma pessoa com dificuldade de obter uma boa saturação de oxigênio no sangue, a mudança de decúbito pode ser ainda pior se a saturação cair para níveis críticos. Nesta circunstância o princípio de não maleficência ganharia precedência sobre o de beneficência.

Princípio de respeito à autonomia assegura o direito das pessoas de terem pontos de vista próprios, fazer escolhas e tomar atitudes baseadas em valores e crenças pessoais. Tal respeito envolve uma ação respeitosa, e não somente uma atitude de respeito. Isto inclui a obrigação de manter a capacidade para a escolha autônoma do outro, afastar medo e outras condições freqüentes no cotidiano da saúde, que impedem as ações autônomas.2

No entanto, há situações que justificam algumas intervenções, porque outros princípios ganham precedência em relação ao respeito à autonomia, como por exemplo no caso de incapacidade para expressar ou comunicar preferências e escolhas pessoais; para compreender a situação pessoal e suas conseqüências; para compreender informação relevante; para argumentar; para calcular riscos e benefícios; e, para tomar decisões razoáveis em tempo hábil. Esta última situação, geralmente, é o caso do atendimento de emergência, durante o qual manter a precedência do princípio de respeito à autonomia, pode significar a morte desnecessária ou a incapacidade temporária ou permanente da pessoa que está necessitando esta modalidade de cuidado. Nesta situação os princípios de não maleficência e beneficência ganhariam precedência sobre o de respeito à autonomia. De qualquer maneira, não sendo este o caso, o consentimento livre e esclarecido é exigido ao exercício do respeito à autonomia.

Respeitar a autonomia significa prover toda a informação necessária para que a pessoa possa tomar a melhor decisão de acordo com seu interesse. Durante o diálogo, as pessoas tentam influenciar o comportamento umas das outras. Clientes, profissionais e familiares tentam influenciar uns aos outros, exercendo seu poder. Poder este entendido comoum fenômeno social, sem o qual não se poderia conversar quase nada.8 Todas as pessoas têm um certo poder e é na multiplicidade das relações de poder que se evita as relações unilaterais de dominação.

A persuasão é uma das formas mais aceitáveis de influenciar, pois uns convencem aos outros pelo uso da razão; como um jogo de poder. No entanto, existem formas menos aceitáveis como a manipulação e a coerção. Estas formas de influência se aproximam mais de formas de dominação, pois se expressam em relações unilaterais, fixas e difíceis de reverter.8 A manipulação implica em prover a informação de tal maneira que motive a pessoa a fazer o que EU QUERO que seja feito, independente desta ser a melhor maneira de fazê-lo, enquanto a coerção é uso intencional de uma ameaça crível e severa de dano ou mesmo a FORÇA para controlar alguém.

O princípio de não-maleficência assegura a obrigação de não causar dano intencionalmente. Está estreitamente vinculado com a máxima hipocrática5 5 Embora considerado como um princípio fundamental da tradição da medicina hipocrática, esta máxima não foi encontrada no "corpus" hipocrático. "Primum non nocere". Embora muitos autores não façam distinção entre o princípio de beneficência e o de não-maleficência, a obrigação de não causar dano, como por exemplo incapacitar ou lesar, é claramente distinta da obrigação de ajudar os outros, seja promovendo bem-estar ou protegendo interesses2.

O princípio de beneficência implica em agir para o bem do cliente, em todos os níveis da assistência de saúde. Um profissional de saúde tem o compromisso público de agir sempre para o bem do cliente. Neste sentido, ele ou ela agem eticamente se o bem estar do cliente for a finalidade da sua ação.9 Em termos gerais, este princípio pode ser formulado da seguinte maneira: "aja de tal maneira que as conseqüências da suas intervenções serão para o bem do cliente".9:289 Agir para o bem de alguém é prevenir mal ou dano; remover mal ou dano, e fazer ou promover o bem2. Este princípio é um exercício contínuo de maximizar benefícios e minimizar riscos, e vincula-se com a solidariedade e com a responsabilidade.

O princípio de justiça refere-se à distribuição adequada do ônus e dos benefícios sociais; é o princípio que representa e articula as necessidades da sociedade. No âmbito da saúde, é o direito de todos a receber assistência de saúde. Uma vez que os profissionais da saúde não podem simplesmente desconsiderar a importância dos aspectos econômicos na assistência à saúde, elas ou eles devem fazê-lo sem violar sua integridade moral e sem comprometer as finalidades constitutivas da prática profissional.9 Este princípio pode ser formulado nos seguintes termos: "na alocação de recursos de saúde aja de tal maneira que privilégios e encargos sejam distribuídos sem discriminação no tratamento das pessoas, a menos que isto seja necessário e justificado em favor dos mais necessitados".9:290 A contribuição específica da ética para o problema da alocação é assegurar uma efetiva administração dos recursos comunitários.9 Este princípio desafia os profissionais de saúde na renovação de seu contrato com a sociedade, além de vincular-se com as exigências de eqüidade. Ou seja, a adoção de medidas desiguais para compensar as diferenças injustas - iniqüidades.

Embora muitas críticas tenham sido feitas à ética principialista,6,7,9 esses princípios auxiliam a construção e a compreensão do que é um agente moral. Eles podem ser tomados como um ponto de partida para iniciar o questionamento dos próprios preconceitos ou convicções prévias, sejam elas religiosas, culturais ou de outra natureza qualquer. Neste sentido, os princípios podem se constituir numa das estratégias válidas para aproximação e descoberta individual de um conceito mínimo de moralidade, modificando o modus operandi predominante da biomedicina o qual, na ânsia de corrigir desvios do normal, freqüentemente desconsidera os direitos do outro.

Ademais, quando o assunto é a normatização da pesquisa em seres humanos, os autores da Resolução nº. 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde10 recorreram ao principialismo para fundamentar os itens III e V, os quais tratam dos aspectos éticos na pesquisa envolvendo seres humanos e dos riscos e benefícios, respectivamente. No item III são destacados explicitamente os princípios de respeito à autonomia, não maleficência e justiça entendida como equidade. Já, no item V - sobre riscos e benefícios - são enfatizados implicitamente os princípios de não maleficência e beneficência. A influência da ética principialista na Resolução nº.196/96 contribuiu, no mínimo, para a noção de responsabilidade moral dos pesquisadores brasileiros.

PARA ALÉM DO PRINCIPIALISMO

Outras perspectivas éticas podem e devem ser exploradas quando o assunto é a prática cotidiana em saúde, pois a saúde e a doença são um campo universal de experiência, de reflexão, e de escolhas morais.11

A saúde como experiência humana reflexiva tende a servir como base para as decisões acerca da alocação dos escassos recursos disponíveis para assistência à saúde ou para as situações extremas, como o início e término da vida - nascimentos artificiais e destino dos embriões, aborto, transplantes de órgãos, condições de sobrevivência terminal, entre tantos outros. Ao invés de pensar em alternativas para melhorar e estender a assistência à saúde das pessoas e focalizar a relação entre cliente e profissional, nós somos conduzidos a justificar escolhas de políticas restritivas de exclusão na assistência de saúde.11

Uma prática reflexiva implica em problematizar situações cotidianas com as quais nos deparamos quando assistimos pessoas, seja promovendo a saúde; prevenindo má-saúde; ou, cuidando de pessoas em má-saúde. Significa tomar em consideração as dúvidas do nosso dia-a-dia, as quais nos forçam a refletir constantemente sobre qual a melhor forma de aplicar uma injeção, contar a uma pessoa que a cirurgia não teve o êxito esperado, banhar alguém mesmo sem ter o material necessário, a melhor maneira de desenvolver ações educativas em saúde, e assim por diante.

Nenhum modelo esgota a problemática da ética da saúde. Existem outros conceitos-chave que devem ser considerados numa situação de conflito. Dentre eles, destaco os conceitos de tolerância, eqüidade, solidariedade e responsabilidade, como imprescindíveis para avaliar questões relativas aos conflitos morais do cotidiano da saúde.

Ser tolerante, é ser complacente, compreensivo, condescendente, flexível e não o contrário intolerante, duro, implacável, incompreensivo ou inflexível. A tolerância está vinculada ao nosso modo de ser profissional e, por este motivo, pode ser considerada uma virtude. Ao final do texto intitulado "Tolerância e Responsabilidade Intelectual",12 são apresentadas algumas proposições que apontam para uma "nova ética profissional". Destas proposições, extraí alguns fragmentos que me pareceram muito úteis para a reflexão cotidiana.

De acordo com esse autor12:181-182 "[...] é preciso tolerar, mas não tolerar a violência e a crueldade. É impossível evitar todos os erros, embora seja nossa tarefa continuar a evitá-los e aprender precisamente com eles. A autocrítica é a melhor crítica, mas a crítica através dos outros é uma necessidade. [...] Há, pois, que modificar a nossa atitude face aos nossos erros. É aqui que deve começar a nossa reforma ético - prática. Pois que a antiga atitude ético-profissional leva a que se dissimulem, a que se encubram os erros e a esquecê-los tão rapidamente quanto possível". A virtude da tolerância deve permear nosso exercício profissional e nossas relações com os outros, desde que o limite com a violência e da crueldade não seja ultrapassado. Isto implica em assumir uma atitude de abertura e de aprendizado em relação aos nossos próprios erros e aos erros dos outros pois, freqüentemente, a intolerância com os outros esconde uma tolerância demasiada para consigo mesmo. Assim que nossa intolerância com os outros pode ser um alerta para refletirmos sobre nossos agir e ser como pessoa e profissional de saúde.

A eqüidade não é o mesmo que igualdade, particularmente no campo da saúde. Neste caso, a sociedade deveria intervir, não para as pessoas serem iguais, mas para adotar medidas desiguais para compensar as diferenças injustas.11 Todavia, na saúde, nem todas as desigualdades são iníquas. Por exemplo, não são desigualdades iníquas aquelas que têm uma base genética. Porém, elas podem tornar-se como tais, em casos em que há meios preventivos ou terapêuticos e estes não forem distribuídos igualmente.11 Não seriam também desigualdades iníquas aquelas que resultam de estilos de vida escolhidos livremente, como por exemplo, o caso de um corredor de F1 que sofre traumatismo cranioencefálico num acidente durante uma prova.

São iníquas as desigualdades que resultam de fatores como por exemplo: moradia sem higiene, nutrição e educação insuficientes, condições de trabalho inseguras e aquelas que dependem da dificuldade de acesso aos serviços de saúde, qualidade ou atenção inadequada. Resumindo, eqüidade é o resultado de justiça aliada a igualdade. Sua finalidade é evitar desigualdades injustas.

A solidariedade, como virtude, permite que o profissional estabeleça deliberadamente e desapaixonadamente uma comunidade de interesses, não só com os clientes necessitados e sofredores e suas famílias, mas também com aqueles que não estão em necessidade - clientes em boa saúde e colegas de trabalho. O compromisso da pessoa solidária é com as idéias e com a dignidade humana.13 Embora muitos reclamem a compaixão como virtude, afirma-se que "a pessoa sujeita a uma necessidade não reclama ser protegida. Não quer nem o olhar piedoso, nem o isolamento: ela exige poder inserir-se em uma rede de vínculos em que seja reconhecida como um igual em orgulho e dignidade".14:95

A responsabilidade, como exigência moral, implica em assumir, reconhecer e responder pelas conseqüências dos próprios atos. A noção de responsabilidade é vinculada a liberdade. Alguém só pode ser responsável por seus atos se é livre e tem consciência deles. Ser responsável é estar constantemente restabelecendo uma relação equilibrada entre direitos e deveres. Se enfocarmos a responsabilidade como um dos componentes da relação interpessoal entre cliente e profissional, o grande desafio passa a ser compatibilizar direitos e deveres de ambas as partes, para que clientes, familiares e profissionais possam reconhecer-se como iguais em dignidade e criar vínculos apoiados na solidariedade.15-16

Embora este tipo de atitude seja explicitamente defendido como moralmente desejável, somos traídos por nossa condição humana, e o nosso agir e ser profissional nos denuncia. Nosso comportamento profissional demonstra que implicitamente tendemos muito mais para o cancelamento "benevolente" da liberdade dos cidadãos, caracterizando o paternalismo - o imperium paternale criticado por Kant17, ou para uma atitude de respeito incondicional pela "autonomia" das pessoas, do que para uma atitude que tenha como foco o relacionamento entre dois parceiros. Assim, paternalismo e respeito incondicional a autonomia padecem de um mal similar - a transferência de responsabilidade. O fato é que tendendo para uma ou para outra atitude, a relação entre clientes e profissionais parece desequilibrar-se, quebrando condições fundamentais para a relação dialógica e para responsabilidade - a simetria e a liberdade.

A RELAÇÃO ENTRE CLIENTE E PROFISSIONAL

Como já havia mencionado no início desse artigo, é na prática cotidiana em saúde que se integram os elementos próprios da conduta moral profissional; é onde nos deparamos com a finalidade e o sentido da vida humana, obrigações e deveres; e nos posicionamos acerca do bem e do mal. E mais, é nessa prática que, cotidianamente, nos é imposto decidir como devemos viver nossa vida, em relação a nós mesmos e em relação aos outros; e como devemos ser enquanto profissionais de saúde. Por este motivo, não posso finalizar este artigo sem descrever alguns elementos acerca dessa relação.

Numa situação ideal, a relação cliente/profissional deve ser compreendida já como um modo de intervenção ou tratamento e não como um mero instrumento de coleta de informações necessárias a um diagnóstico X. Enquanto conversam, cliente, familiares e profissional, expõem suas perspectivas acerca de uma situação, concordam, discordam, enfrentam conflitos e aliviam tensões, num esforço para a fusão de horizontes, a compreensão mútua e a decisão compartilhada. No entanto, entre o real e o ideal o caminho é no mínimo longo, senão infinito.

Uma caracterização de três modos de relação profissional em saúde, denominado de "experiência hermenêutica", foi encontrada por um dos autores18 ao estudar a obra "Verdade e Método".19 São eles: objetificação do outro; compreensão precipitada do outro e abertura para o outro.

Objetificação do outro

Neste modo de relação profissional, o outro - Thou - é compreendido de maneira semelhante a eventos ou objetos, às custas da fé ingênua no método - como recurso neutro; e, na objetividade - verdade objetiva - que pode ser adquirida.19 O fato é que, independente do quão sofisticado possa ser um método, ele sempre trará um determinado tema à luz de sua limitada perspectiva, não importando se este método é ou não científico. No entanto, uma característica geral da compreensão humana é depender das pressuposições que trazemos conosco quando tentamos compreender qualquer coisa. Estas pressuposições culturais, pessoais - moldadas pela história individual de cada um; e, teóricas - alimentadas pela comunidade científica, constituem o horizonte no qual nossa compreensão é adquirida e sem o qual não poderíamos compreender coisa alguma. Em outras palavras, nossas limitadas perspectivas são as condições para nossa compreensão.19

São estas pressuposições que carregamos conosco que nos fazem ter certas antecipações e pré- julgamentos sobre diferentes aspectos da realidade. Se não estivermos conscientes disto e agirmos irrefletidamente, nós estaremos sendo preconceituosos, no exato sentido do termo. O perigo das pressuposições teóricas ou metodológicas,18 quando comparadas às culturais e pessoais, é que elas não são tão prontamente reconhecidas como tendenciosas ou limitantes. Pelo contrário, há a crença de que um método verdadeiramente científico não é afetado por preconceitos. Isto é agravado no caso das ciências humanas, onde a exclusão dos aspectos subjetivos distorce a experiência hermenêutica, não havendo compreensão dialógica e fusão de horizontes.

Além disso, esse modo de experiência conduz mais facilmente à manipulação das pessoas.19 Isto significa que o comportamento dos clientes pode ser facilmente considerado apenas um meio como qualquer outro para atingir determinados fins. O conhecimento objetivo é mais uma forma de observação do que interação e comunicação.16 Um dos autores afirma que é provável que seja este o motivo pelo qual os clientes comumente se queixam: "o médico não me escuta". 18:18 E complementa, "o médico está tão preocupado em fazer predições sobre a pessoa e sua condição de saúde - mais doença do que saúde - que o cliente como pessoa não é levado a sério".

A compreensão precipitada do outro

A diferença desse modo de experiência em relação ao anterior é que o outro - thou - é compreendido como uma pessoa. Neste modo eu reconheço o outro como um semelhante, e a importância de compreendê-lo como um sujeito com necessidades e preferências que podem ser levadas em consideração e serem respeitadas.18

O problema como este modo de experiência é que eu procuro absorver o outro de uma forma aparentemente empática, a tal ponto, que eu imagino expressar pelo outro melhor que ele mesmo. Esta sobreposição e envolvimento com outro com o propósito de defender os interesses dele ou dela, não é uma forma adequada de conseguir uma compreensão mútua. Muito pelo contrário, ao invés de conduzir à decisão pode constituir-se em uma forma de dominação, denominada de paternalismo benevolente.

Esta atitude é considerada mais perigosa do que a indiferença.18 A manipulação do observador científico pode ser facilmente evitada porque ele ou ela não tem interesse nenhum na subjetividade do outro. Ao contrário, o profissional que seduz e tenta prematuramente compreender, procura estabelecer uma forma diferente de autoridade que pode fazer com que o outro se torne mais dependente do relacionamento. Isto implica numa interpretação das necessidades e interesses que "são para o bem"; naturalmente conforme a compreensão do profissional. Do ponto de vista hermenêutico, tanto a compreensão profissional metodológica quanto a precipitada sofrem de limitações semelhantes, pois em ambas o profissional imagina que está livre de preconceitos. Nos dois modos de experiência, os profissionais são inconscientemente dominados por seus preconceitos, o que os impede de se abrir para si e para a outra pessoa. Não há uma reflexão que conduza a compreensão de que todos nós pertencemos a tradições culturais que moldam e alimentam nossas percepções e a compreensão do outro, de tal forma que sua subjetividade é ocultada. A única solução é estar consciente do papel que estes fatores têm sobre nossos julgamentos e percepções.18

Abertura para o outro

A experiência hermenêutica de abertura para o outro é a chave para o bom relacionamento19 e se desdobra em quatro aspectos de abertura: abertura para si mesmo; abertura para o outro; abertura para a questão-problema; e abertura para a tradição.

Abertura para si mesmo

Esse modo é pré-condição para todos os outros tipos de abertura. É preciso que a pessoa afrouxe os vínculos com seus preconceitos a fim de estar livre para a experiência, caso contrário, a pessoa percebe somente aquilo que confirma suas expectativas e preconceitos. Quando uma pessoa reconhece sua finitude e o fato de que ele ou ela é dominado por preconceitos, então é alguém que, pelas muitas experiências que já teve e o conhecimento que adquiriu delas, está bem preparado para ter novas experiências e aprender com elas.19 A experiência é um processo dialético de construção e desconstrução de expectativas. Quando nossas expectativas são frustradas provavelmente nós adquirimos mais experiência, do que quando elas são confirmadas, pois, neste caso nossas experiências nos remetem às nossas limitações. O diálogo confronta-nos com nossos preconceitos e nos dá uma chance de escapar das concessões dogmáticas. E, mais, somente aqueles que são abertos para si mesmos podem genuinamente "escutar outras pessoas".

Aqui o desafio é conseguir uma abertura suficiente para aceitar coisas que são contra as próprias crenças e convicções. Não é possível ter uma aceitável compreensão do outro desconsiderando o próprio emaranhado de crenças, nem transcender o próprio horizonte e, muito menos se projetar por inteiro no horizonte do outro. Só é possível escutar genuinamente o outro quando conseguimos reconhece-lo na sua diferença.

Esta experiência pode ser conseguida por meio do diálogo aberto com o outro e pode, na melhor das hipóteses, favorecer um novo exame das próprias crenças e horizonte particular. É impossível compreender totalmente o outro, porque a compreensão é sempre um processo em movimento. Compreender o outro é reconhecer a irredutibilidade de sua individualidade, e isto é mais um requerimento moral do que uma questão de conhecimento. Numa relação cliente, familiares e profissional de saúde, o que deve ser compreendido com o outro é a questão ou o problema que temos nas mãos, como por exemplo: decidir se uma determinada cirurgia terá mais benefícios do que malefícios; decidir com o cliente se é melhor manter uma veia puncionada ou se deveríamos realizar duas punções ao dia para administrar um certo medicamento, e assim por diante. O que realmente conta não é o que o profissional tenta projetar na mente do cliente, mas o que profissional e cliente focalizam juntos sobre a questão-problema.

Abertura para a questão-problema

A chave da experiência desse modo de abertura é deixar-se conduzir, por meio da conversação, pela questão-problema para a qual cliente e profissional estão empenhados em obter uma decisão compartilhada.. Este fenômeno combina e dá a direção concreta para a abertura para si e para o outro. Se cliente e profissional estiverem genuinamente voltados para a questão-problema, ambos se renderão ao diálogo, num movimento dialético de perguntas e respostas, com a intenção de definir o que é mesmo que incomoda o cliente, quais as conseqüências para a saúde e para a vida dele ou dela e quais as decisões que podem ser compartilhadas. O sucesso de tal diálogo é atingir um julgamento comum ou um consenso sobre a questão-problema.

Abertura à tradição

"A tradição é essencialmente conservação [...]",19:18 pois dada a limitação das nossas perspectivas, nós só conseguimos realizar bons julgamentos escutando a voz da tradição cultural. A tradição preserva a sabedoria das gerações. Abrir-se à tradição implica na modulação da questão-problema pelos significados culturais e históricos, e, nesse sentido, nós somos radicalmente dependentes da nossa cultura, uma vez que é ela que nos permite decifrar nossas raízes.

Mesmo quando há mudanças radicais na vida de uma pessoa, como por exemplo aquelas conseqüentes a um acidente grave ou uma doença como o Infarto Agudo do Miocárdio, as pessoas conservam muito mais do seu modo de vida anterior ao problema de saúde do que o profissional pode imaginar. Portanto, abrir-se à tradição é fundamental para que o profissional de saúde compreenda o comportamento dos clientes numa situação de má-saúde à luz da história e da cultura de cada um, e considere isto como ponto de partida na abordagem da questão-problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre nosso modo de agir e ser profissional de saúde requer, por um lado, conhecimento do que precisa ser feito como técnica e como arte, e, por outro, conhecer as perspectivas éticas que podem fundamentar a moralidade profissional.

Neste sentido, a compreensão da moralidade como uma questão de consulta a razão, pesando os interesses de cada um que será afetado pela conduta tomada é fundamental. Porém, é preciso evitar cair na ingenuidade acerca do papel da percepção, dos sentimentos e da tradição na modulação da conduta moral.

Também, é preciso considerar a importante função exercida pela ética principialista na história recente da pesquisa envolvendo seres humanos e da prática assistencial de saúde, sem esquecer que ela não é abrangente o suficiente para dar conta da complexidade da moralidade do cotidiano profissional em saúde, nem mesmo quando agregamos outros conceitos como tolerância, equidade, solidariedade e responsabilidade, pois sabemos que um aparato conceitual nos ajuda a agir de acordo com o pensamento crítico, mas também temos consciência de que ele por si só não substitui a inteligência crítica e a ação virtuosa.

Finalmente, gostaria de reforçar a valiosa contribuição da experiência hermenêutica de abertura para o outro como possibilidade de melhoramento da conduta moral nos relacionamentos profissionais, considerando igualmente todos os modos de abertura. Porém, não posso deixar de destacar a abertura para si mesmo como um imperativo para o autoconhecimento e a inclusão do profissional como um igual - ao outro - em dignidade, assegurando simetria a conversação e ao diálogo que uma relação de interação exige.

Artigo original: Reflexão

Recebido em: 15 de agosto de 2004

Aprovação final: 06 de dezembro de 2004

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  • 1
    O autordescreve e analisa três casos distintos. O primeiro é o caso de Baby Thereza, uma menina nascida em 1992, com anencefalia.
    1 Como não havia mais esperanças para Thereza, seus pais resolveram, voluntariamente, doar seus órgãos para transplante. No entanto, foram impedidos porque a lei da Flórida não permitia a doação até que a pessoa fosse considerada em morte cerebral. Mas como declarar morte cerebral em um bebê sem cérebro? O segundo é o caso de Baby Jane Doe. Uma menina nascida no estado de Nova Iorque, com múltiplos defeitos, incluindo espinha bífida, motivo pelo qual seu prognóstico era bastante incerto. O terceiro, é o caso de Tracy Latimer, uma garota de 12 anos de idade, com paralisia cerebral, que foi morta por seu pai em 1993. Na época de sua morte ela pesava menos do que 40 libras e tinha a idade mental de um bebê de três meses.
  • 2
    O primeiro, aconteceu em 1963, no Hospital Israelita de doenças crônicas em Nova Iorque, onde foram injetadas células cancerosas vivas em pessoas idosas doentes. O segundo, ocorreu entre 1950 a 1970, no hospital estatal de Willowbrook (NY), onde injetaram o vírus da hepatite em crianças com retardamento mental. E, finalmente, o terceiro, divulgado apenas em 1972, embora viesse ocorrendo desde 1930, foi o caso do Tuskegee study, no Alabama. Neste caso, 400 negros com sífilis foram deixados sem tratamento para uma pesquisa sobre a história natural da sífilis, e, embora durante este período a penicilina houvesse sido descoberta, a pesquisa prosseguiu e os negros não foram tratados. Somente em 1996, o governo americano pediu desculpas públicas à comunidade negra.
    7
  • 3
    De acordo o Relatório, um indivíduo autônomo é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação desta deliberação. A autonomia é entendida como a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa. Deste princípio derivam dois procedimentos práticos: um é a exigência do consentimento informado e, o outro é o de como tomar decisões de substituição, quando uma pessoa é incompetente ou incapaz de decidir. No princípio da beneficência, o Relatório rechaça claramente a idéia clássica da beneficência como caridade. Consideraram a beneficência como a obrigação profissional de não causar dano; maximizar os benefícios; e, minimizar os possíveis riscos. No princípio de justiça foi entendido como imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios.
    7:83-4
  • 4
    Tom Beauchamp foi um dos membros da Comissão que elaborou o Relatório Belmont.
  • 5
    Embora considerado como um princípio fundamental da tradição da medicina hipocrática, esta máxima não foi encontrada no "corpus" hipocrático.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2005

    Histórico

    • Aceito
      06 Dez 2004
    • Recebido
      15 Ago 2004
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