Acessibilidade / Reportar erro

Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde

Resumos

Discute a influência de dois modelos assistencias utilizados na atenção básica, nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Pesquisa qualitativa realizada com equipes da Saúde da Família e do modelo tradicional que atuam no sul do Brasil. Para obtenção e tratamento dos dados usaram-se entrevistas, grupos focais e estudo documental, analisados combinando a Análise Temática de Conteúdo com os recursos do software AtlasTi. Evidenciou-se que, nos dois modelos, os problemas na organização e gestão da assistência, o excesso de demanda e a baixa resolutividade são as principais fontes de aumento das cargas e como fontes de redução, a afinidade com o modelo de atenção e o trabalho em equipe. Conclui que o aumento das cargas, na Saúde da Família, foi influenciado pelas lacunas entre o prescrito e o realizado, enquanto no modelo tradicional deveu-se ao próprio modelo assistencial baseado na biomedicina.

Atenção primária à saúde; Saúde do trabalhador; Carga de trabalho; Pessoal de saúde


This study discusses the influence of two health care models on the workloads of health professionals. This qualitative study was conducted with Family Health teams and traditional teams working in southern Brazil. Focus groups, interviews, and documentary study were used to obtain data, which were analyzed combining Thematic Content Analysis with the features of the AtlasTi software. In both models, it was evident that the problems in the organization and management of health care, excessive demand and innefective problem-solving are the main sources of increased workloads while affinity with the health care model and teamwork were mentioned as sources of workloads reduction. We conclude that the increase in workloads in Family Health model was affected by gaps between what was prescribed and performed, while in the traditional model this was due to fact that the health care model is based on biomedicine.

Primary health care; Occupational health; Workload; Health personnel


Analiza la influencia de dos modelos asistenciales, que se utilizan en la atención primaria, en las cargas de trabajo de los profesionales de la salud. Investigación cualitativa realizada con los equipos de Salud de la Familia y el modelo tradicional de trabajar en Atención Primaria de Salud en el sur de Brasil. Para la obtención y procesamiento de los datos se utilizaron entrevistas, grupos focales y estudios documentales, analizados mediante la combinación de un análisis de contenido con el software AtlasTi. Los resultados mostraran que en ambos modelos, los problemas de organización y gestión de la asistencia, el exceso de demanda y la baja resolución son las principales fuentes de aumento de las cargas de trabajo, por lo contrario como fuente de reducción de la carga laboral se presentaron la afinidad con el modelo de atención y el trabajo en equipo. Llegamos a la conclusión de que el aumento de la carga laboral en salud de la familia se vio afectada por la distancia entre lo prescrito y lo realizado, y en cuanto al modelo tradicional se debió a que este está basado en el modelo biomédico.

Atención primaria de salud; Salud laboral; Carga de trabajo; Personal de salud


ARTIGO ORIGINAL

Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde

Implicaciones de los modelos asistenciales de la atención primaria en las cargas de trabajo de los profesionales de salud

Letícia de Lima TrindadeI; Denise Elvira Pires de PiresII

IDoutora em Enfermagem. Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina. Santa Catarina, Brasil. E-mail: letrindade@hotmail.com

IIDoutora em Ciências Sociais. Professora Associado da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora CNPq. Santa Catarina, Brasil. E-mail: piresdp@yahoo.com

Endereço para correspondência

RESUMO

Discute a influência de dois modelos assistencias utilizados na atenção básica, nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Pesquisa qualitativa realizada com equipes da Saúde da Família e do modelo tradicional que atuam no sul do Brasil. Para obtenção e tratamento dos dados usaram-se entrevistas, grupos focais e estudo documental, analisados combinando a Análise Temática de Conteúdo com os recursos do software AtlasTi. Evidenciou-se que, nos dois modelos, os problemas na organização e gestão da assistência, o excesso de demanda e a baixa resolutividade são as principais fontes de aumento das cargas e como fontes de redução, a afinidade com o modelo de atenção e o trabalho em equipe. Conclui que o aumento das cargas, na Saúde da Família, foi influenciado pelas lacunas entre o prescrito e o realizado, enquanto no modelo tradicional deveu-se ao próprio modelo assistencial baseado na biomedicina.

Descritores: Atenção primária à saúde. Saúde do trabalhador. Carga de trabalho. Pessoal de saúde.

RESUMEN

Analiza la influencia de dos modelos asistenciales, que se utilizan en la atención primaria, en las cargas de trabajo de los profesionales de la salud. Investigación cualitativa realizada con los equipos de Salud de la Familia y el modelo tradicional de trabajar en Atención Primaria de Salud en el sur de Brasil. Para la obtención y procesamiento de los datos se utilizaron entrevistas, grupos focales y estudios documentales, analizados mediante la combinación de un análisis de contenido con el software AtlasTi. Los resultados mostraran que en ambos modelos, los problemas de organización y gestión de la asistencia, el exceso de demanda y la baja resolución son las principales fuentes de aumento de las cargas de trabajo, por lo contrario como fuente de reducción de la carga laboral se presentaron la afinidad con el modelo de atención y el trabajo en equipo. Llegamos a la conclusión de que el aumento de la carga laboral en salud de la familia se vio afectada por la distancia entre lo prescrito y lo realizado, y en cuanto al modelo tradicional se debió a que este está basado en el modelo biomédico.

Descriptores: Atención primaria de salud. Salud laboral. Carga de trabajo. Personal de salud.

INTRODUÇÃO

Este estudo aborda os modelos assistenciais em vigência na atenção básica, no Brasil, entendendo-os como tecnologias não materiais de organização do trabalho em saúde, e estuda a implicação de trabalhar nestes modelos nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde.

A literatura registra que tecnologia pode ser associada a produtos, "coisas" materiais e não materiais – processos de trabalho, certos saberes constituídos para a geração de produtos e para organizar as ações humanas, incluindo tecnologias de relações de trabalho.1 Já a expressão inovação tecnológica refere-se a mudanças de maior ou menor magnitude, podendo representar uma ruptura estrutural ou introduzir melhorias em um determinado padrão tecnológico e pode ocorrer nos diversos setores da produção.2 Neste contexto, modelo assistencial é entendido como uma tecnologia utilizada para resolver problemas e atender necessidades de saúde de indivíduos e coletividades, articulando recursos físicos, tecnológicos e humanos.3 Um modelo assistencial se constitui por diálogos entre o técnico e o político, tem diretrizes políticas e sanitárias, princípios éticos, jurídicos, organizacionais, clínicos e socioculturais que refletem uma determinada conjuntura epidemiológica e certas aspirações sobre o viver saudável.4 Alguns modelos assistências em saúde são orientados para o desenvolvimento de intervenções de natureza médico-curativa com foco no indivíduo e nas doenças, e outros buscam incorporar ações de promoção e prevenção com foco no sujeito em suas relações familiares e sociais, sob o olhar da integralidade e interdisciplinaridade.5-6 Diferentes modelos assistenciais implicam em dinâmicas organizacionais diversas, impactando nas cargas de trabalho. Cargas de trabalho aqui entendidas como elementos presentes no trabalho que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, podendo desencadear desgaste e adoecimento dos profissionais, e classificadas como físicas, químicas, biológicas ou orgânicas, mecânicas, fisiológicas e psíquicas.7

Na atenção básica, no Brasil, denominação brasileira para a atenção primária de saúde, identifica-se a presença dos dois modelos assistenciais mencionados: a Atenção Básica Tradicional (ABT), voltada, principamente, para a assistência à doença em seus aspectos individuais e biológicos, centrada nas especialidades médicas e orientada pela biomedicina; e a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que se propõe reestruturar o modelo de atenção à saúde das pessoas e coletividade, orientada pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).6 O primeiro modelo foi entendido como uma tecnologia tradicional, e o segundo, como inovação tecnológica.

Essas tecnologias de organização do trabalho em saúde têm diferentes perspectivas e originam diversificas demandas com implicações no trabalho dos profissionais de saúde, gerando aumento ou diminução das cargas de trabalho das equipes.

Nesse sentido, a presente pesquisa teve como objetivo discutir a influência dessas duas tecnologias do tipo não material, utilizadas na atenção básica, nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde que integram as equipes.

MÉTODO

Trata-se de estudo qualitativo, sustentado na teorização sobre o Processo de Trabalho e Saúde do Trabalhador, realizado em três municípios de uma Regional de Saúde (RS) localizada no sul do Brasil, com equipes de ESF e da ABT.

Utilizou-se uma amostragem intencional, incluindo: três equipes da ESF e três da ABT referenciadas pela coordenação da RS, como equipes que desempenham um trabalho de qualidade, para tipificarem o modelo assistencial da ESF e o modelo tradicional baseado na biomedicina; somente profissionais de saúde em número igual nos dois modelos e profissionais com no mínimo um ano de atuação nas equipes. Foram excluídas as unidades com presença dos dois modelos assistenciais.

Participaram da pesquisa 22 sujeitos, sendo 11 profissionais da ESF (três médicos/as, três enfermeiras, três técnicas de enfermagem, uma dentista e um auxiliar de consultório odontológico/ACD) e 11 profissionais da ABT (mesmo número e categoria profissional).

Os dados foram coletados de dezembro de 2010 a março de 2012, através de estudo documental, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. O estudo documental incluiu relatórios, boletim de produtividade, registros das reuniões de equipe, dados epidemiológicos e documentos de avaliação e de acompanhamento das equipes, acessíveis pela internet, nos locais de trabalho ou disponibilizados pela RS. A análise documental auxiliou na compreensão dos modelos assistenciais e do processo de trabalho.

As entrevistas tiveram como temas norteadores: o cenário político-social e institucional onde o trabalho das equipes era realizado, a composição das mesmas, a caracterização das práticas assistenciais, da organização e divisão do trabalho nas equipes, além da identificação da influência dos dois modelos assistenciais nas cargas de trabalho.

Para aprofundar o entendimento do tema foram realizados grupos focais em duas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), as quais foram escolhidas por tipificarem os modelos assistenciais em estudo. Em cada grupo focal realizaram-se três sessões, totalizado cerca de quatro horas por sessão. O roteiro dos grupos focais foi construído após a análise das entrevistas e abordou os seguintes temas: fontes de satisfação e redução das cargas de trabalho dos profissionais de saúde e fontes de insatisfação e aumento das cargas de trabalho.

O número de entrevistas e de sessões dos grupos focais foi considerado satisfatório, conforme saturação dos dados.

Para análise dos dados utilizou-se, de modo combinado, a Análise Temática de Conteúdo8 e os recursos do software Atlas Ti 5.0. As falas dos sujeitos foram identificadas pela denominação da categoria profissional, da sigla ESF ou ABT, acrescido do número de ordem.

No que diz respeito à participação das autoras na pesquisa, ambas participaram da concepção do estudo, uma realizou a coleta de dados e ambas realizaram a análise e a redação do manuscrito. Foram respeitados todos os aspectos éticos requeridos para pesquisas com seres humanos e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob número 971/2010.

RESULTADOS

O estudo foi realizado no sul do Brasil, em uma área que inclui 15 municípios, com 53 equipes da ESF e 47 equipes da ABT. Os profissionais da ESF tinham, em média, 32 anos de idade (mínima de 24 anos e máxima de 39 anos) e os da ABT, média de 46 anos (mínima de 33 anos e máxima de 59 anos). A maioria dos sujeitos em ambos os modelos é do sexo feminino, confirmando a presença majoritária das mulheres nos serviços de saúde.

Na ESF, a média de anos de experiência na profissão foi de oito anos. Destes, em média, três anos e meio nessa modalidade assistencial. Na ABT, a média foi de 18,5 anos no exercício da profissão. Destes, 14 anos na ABT.

Quanto à escolaridade na ESF, três profissionais possuíam ensino médio completo, um ensino superior incompleto e sete o nível superior. Em relação à formação na pós-graduação, dois profissionais possuíam especialização em saúde da família e dois na área clínico-cirúrgica. Já na ABT, quatro profissionais possuíam o ensino médio completo, um ensino superior e os demais ensino superior seguido de especialização em áreas diversas, sendo a maioria na área clínica e alguns com mais de uma especialização. Entre os cursos lato sensu, foram encontrados: especializações na área clínica, na área administrativa, em práticas alternativas (acupuntura, homeopatia) e apenas um profissional na área de saúde coletiva.

Na ESF, a totalidade dos profissionais tinha contrato de 40 horas semanais e 54,54% tinham outro emprego. Na ABT 54,54% tinham contrato de 40 horas (36,36% trabalhavam 30 horas semanais e nove 20 horas). Entre os que atuam na ABT, 36,36% possuem outro vínculo laboral. Nos dois modelos, o duplo vínculo foi justificado pela insatisfação com o salário, necessidade de complementar a renda familiar e pela busca de melhor status social.

Em relação ao vínculo empregatício, na ESF todos são concursados, enquanto na ABT nove são concursados e dois têm contrato temporário. Na ABT, mesmo os concursados encontram-se em situação instável, uma vez que o concurso público prestado estava sendo questionado na justiça.

Fatores que contribuem para o aumento das cargas de trabalho na ABT e na ESF

No que se refere ao aumento das cargas de trabalho dos profissionais de saúde, nos dois modelos assistenciais constataram-se problemas semelhantes, e o excesso de demanda foi o mais citado.

O excesso de demanda compromete a qualidade da assistência, traz insatisfação para a gente, assim como há falta de preparo da equipe (Médica ESF 2).

A demanda é muito grande, aumenta muito a carga de trabalho. Às vezes parece que tu não vai dar conta (Grupo Focal ABT).

A busca por assistência de saúde é incompatível com o número de profissionais, estrutura, equipamentos e recursos disponíveis nas UBS. Além disso, nos dois modelos assistenciais evidenciaram-se problemas gerenciais, predomínio do paradigma da biomedicina, déficits no acolhimento, na organização e distribuição das atividades, assim como foco na consulta médica, baixa resolutividade dos serviços e excesso de burocracia.

No que diz respeito às questões gerenciais os seguintes fatores resultaram em aumento das cargas de trabalho: forte influência político-partidária de cunho clientelista; insuficientes recursos financeiros e materiais, além da má administração destes recursos; falta de profissionais qualificados; ausência de educação continuada e de incentivos para qualificação profissional; problemas no serviço de referência e ausência de contrarreferência.

A gente percebe que nem o gestor sabe realmente o que é [a ESF], às vezes pede umas coisas, que vão contra [o preconizado na ESF]. A gente percebe a influência política (Grupo Focal ESF).

Um outro problema é a questão da contrarreferência, que é difícil. A gente vê que de um serviço para outro as informações se perdem (Grupo Focal ABT).

Nos dois modelos assistenciais evidenciou-se o predomínio das ações orientadas pela biomedicina. Os profissionais relataram, ainda, problemas no relacionamento interpessoal na equipe, com os usuários e famílias, incluindo agressões verbais contra os profissionais.

A gente tem que encaminhar para o médico, porque é por ele que o usuário quer ser atendido (Enfermeira ABT 2).

[...] não é fácil porque a lógica da população ainda é voltada para a consulta médica, eles querem passar pelo médico, sair com o remedinho e a receita embaixo do braço, essa é a parte difícil de romper (Grupo Focal ESF).

[...] o usuário já chega na nossa unidade de saúde agredindo [verbalmente] o trabalhador de saúde. Ele não quer esperar, ele [o usuário] acha que o problema dele é o maior de todos (Enfermeiro ABT 3).

Destacaram-se, ainda, no que diz respeito às condições de trabalho, os baixos salários e a falta de reconhecimento pelos usuários e chefias.

O salário também é muito baixo, por isso mesmo que eu tenho que trabalhar em dois empregos (Técnica de enfermagem ABT 2).

O salário é ruim, o que aumenta muito a carga, a gente sai daqui muito cansado, porque são muitas pessoas, muito contato, muita demanda e pouco reconhecimento (ACD ESF 1).

Fatores que contribuem para o aumento das cargas de trabalho na ABT

Na ABT, a falta de trabalho em equipe, a distância da realidade dos usuários e famílias e a ausência do Agente Comunitário de Saúde (ACS) emergiram como fontes de aumento das cargas de trabalho. A assistência focada na demanda espontânea, sem investimento na prevenção, resulta, por vezes, em diagnósticos tardios, o que eleva as cargas.

Eu vejo que [...] ele [ACS] traria aquilo que a gente não alcança, porque o nosso trabalho é quase todo dentro da unidade de saúde (Grupo Focal ABT).

Também não adianta quando a coisa está muito avançada e o diagnóstico muito tardio (Grupo Focal ABT).

Na ABT, foram fortemente evidenciadas as cargas biológicas, e essas, associadas às cargas fisiológicas, decorrentes de procedimentos técnicos, como a realização de técnicas de enfermagem e odontológicas, as quais expõem os profissionais a riscos de acidentes e adoecimento por exposição sistemática aos agentes biológicos.

Eu trabalho com pacientes especiais, soropositivos [...] você está de cara com o perigo o tempo todo (Dentista ABT 1).

Fatores que contribuem para aumento das cargas de trabalho na ESF

Na ESF, a falta de entendimento dos gestores e usuários quanto à especificidade deste modelo assistencial eleva as cargas.

A falta de entendimento dos gestores sobre a ESF é outro fator que dificulta (Médica ESF 2).

Outros problemas identificados na ESF foram: exposição das equipes à violência urbana e a jornada de 40 horas semanais, considerada excessiva e desgastante pela maioria dos sujeitos.

Assim, 40 horas é uma carga exaustiva né, para ESF?! Poderia ser 30 horas (Grupo Focal ESF).

Fatores que contribuem para a redução das cargas de trabalho na ESF e ABT

A satisfação no trabalho contribui para a redução das cargas nos dois modelos assistenciais, destacando-se: a afinidade com o modelo assistencial e o trabalho em equipe.

A satisfação está na assistência como ela deve ser, na forma como a gente organiza o trabalho [...] no trabalho em equipe (Grupo Focal ESF).

Eu tenho afinidade com o trabalho aqui e todo mundo se entende muito bem, um ajuda o outro, a gente se ajuda (Dentista ABT 1).

Também foi mencionado que o agendamento das atividades contribui para reduzir as cargas de trabalho e aumentar a resolutividade das ações em saúde.

Fatores que contribuem para a redução das cargas de trabalho na ABT

Neste modelo assistencial contribuem para a redução das cargas de trabalho: a rotatividade dos profissionais para o desenvolvimento das diferentes atividades técnicas, pela redução da exposição às cargas biológicas e fisiológicas; e a flexibilidade da jornada contratual.

Eu vejo que a [jornada de] 30 horas é boa para o trabalhador e para o serviço (Técnica de Enfermagem ABT 1).

Eu primo por essa liberdade na minha jornada, essa é uma condição para eu ficar aqui [ABT](Médico ESF 1).

Fatores que contribuem para a redução das cargas de trabalho na ESF

Já na ESF, as fontes que contribuíram para a redução das cargas de trabalho mencionadas pelos sujeitos foram: proximidade com a realidade das famílias, o trabalho dos ACS e a liberdade para a organização e a distribuição das atividades.

Os princípios preconizados pela ESF foram mencionados como positivos e, se implantados, contribuiriam para a redução das cargas e para qualificar a assistência, entre eles o acolhimento.

É importante quando a gente consegue ouvir, acolher o usuário. Sente-se que a assistência é humanizada (Técnica de Enfermagem ESF 1).

A satisfação está em ver o trabalho dos meus ACS, que são os melhores do município. É ver que as famílias confiam na minha equipe (Enfermeira ESF 3).

DISCUSSÃO

Quanto ao perfil dos sujeitos do estudo os profissionais da ABT têm maior experiência nesse modelo assistencial, o que, como mencionado em outro estudo, parece ser protetor em relação às cargas de trabalho.9

As especialidades dos profissionais que participaram do estudo mostram distanciamento da formação requerida para atuar na atenção básica, ficando mais evidente na ESF. A pouca formação específica para este modelo pode ser explicada porque apenas recentemente tem havido investimento público na formação para a ESF e para o SUS.10 Na ABT, a especialização pode ser explicada pelo mercado de trabalho em saúde, majoritariamente orientado pela biomedicina e pela busca de melhor remuneração, o que também está registrado na literatura.11

Em relação ao vínculo empregatício, observa-se a insatisfação dos profissionais na ESF com os salários e a ausência de planos de cargos e salários que sinalizassem uma carreira e valorização profissional.

Muito se tem debatido sobre a importância da jornada de 30 horas semanais para a segurança de profissionais de saúde e de usuário, o que tem sido buscado por diferentes categorias, no momento, em especial, pela enfermagem. 12 Contudo, há resistências políticas para a concretização dessa reivindicação, a qual, associada à dedicação exclusiva, capacitação permanente e salários adequados, contribuiria para reduzir o desgaste dos profissionais e qualificar a assistência.12

A questão financeira também é significativa, tanto no que se refere a investimentos na infraestrutura física e de materiais quanto na força de trabalho, necessitando investimentos em melhores salários, na seleção dos profissionais e incentivos à capacitação e planos de carreira, o que favoreceria um trabalho mais comprometido e o fortalecimento do vínculo profissional-usuário.13

Os problemas no acesso e resolutividade dos serviços, na demanda incompatível com o quantitativo e qualificação dos profissionais, assim como na estrutura física e equipamentos disponíveis, mostraram a fragilidade na universalização e integralidade das ações na atenção básica no Brasil. Outro aspecto de destaque nos dois modelos estudados foi a forte influência da biomedicina, mesmo quando há intenção de mudança, como é o caso da ESF.

Os gestores mostram-se pouco preparados para reorganizar os serviços com vistas à consolidação do SUS, e alguns revelam-se mais preocupados com campanhas eleitorais do que com a saúde dos seus cidadãos, despreocupando-se dos grupos com maior vulnerabilidade.14

Estudos ressaltam que inovações tecnológicas implicam em mudanças estruturais de maior ou menor porte2 e que na fase inicial de implantação de uma inovação, geralmente ocorre aumento das cargas de trabalho, pois os trabalhadores precisam ser capacitados para trabalhar com essa tecnologia, em especial as tecnologias não-materiais, como a ESF.15-17 Na maioria das vezes, o processo de inovação não substitui de pronto o antigo modo de fazer. Após a fase de adaptação, alguns autores afirmam que a adoção da inovação racionalizou os processos e diminuiu as cargas de trabalho e, ainda, trouxe benefícios para os usuários.16-17

No que se refere ao funcionamento do sistema de referência e contrarreferência, percebem-se fragilidades na ABT e na ESF, nas quais o foco nas ações curativas e com pouca resolutividade têm impacto negativo nas cargas de trabalho e dificultam a integralidade da assistência.5,18 A literatura também registra a importância da integralidade como princípio do SUS para maior resolutividade da assistência.18

É urgente que ocorra uma série de atividades para qualificação dos profissionais de saúde, com fortalecimento da capacidade para o trabalho coletivo, envolvimento com o modelo assistencial e potencialização das ferramentas cognitivas como o acolhimento. Acredita-se que essas estratégias possam amenizar a insatisfação de profissionais e usuários e fortalecer a empatia entre ambos.19

A presença das cargas biológicas na ABT revelou-se marcante, assim como os efeitos negativos da violência urbana no contexto da ESF. Esses problemas têm origem na organização dos serviços e na estrutura macropolítica do país, gerando aumento das cargas biológicas, fisiológicas e psíquicas e desgaste dos profissionais. A negação do direito profissional de exercer o seu trabalho em ambiente e condições seguras, constatado nesta pesquisa, também foi encontrado em outros estudos.9,20

As características do trabalho na ABT apontam para a necessidade de ruptura com este modelo assistencial que impossibilita a efetivação dos princípios do SUS, uma vez que supervaloriza as práticas médicas curativistas e fragmentadas em especialidades, com excesso de procedimentos técnicos e medicalizante. No entanto, a ESF também apresenta problemas que colocam em risco a capacidade das equipes de realizar um novo modo de fazer, como preconizado pela Reforma Sanitária brasileira e pelo SUS.5,21

O fortalecimento de políticas como a Política Nacional de Humanização e a efetivação do definido na XIV Conferência Nacional de Saúde, com fortalecimento do controle social, representam estratégias capazes de auxiliar na superação dos problemas evidenciados nas duas realidades pesquisadas.13,22

Para garantir o movimento de mudanças que permita o avanço do SUS é necessário estimular um multifacetado movimento social, em defesa das políticas de proteção social, melhor uso dos recursos e pactuação de gestão, com definição de responsabilidades e metas. Além disso, é necessário definir responsabilidades microssanitárias a partir da reorganização do trabalho em saúde, da ampliação da cobertura da ESF, com incorporação de tecnologia e inovações tecnológicas nos serviços de saúde.22

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa mostrou a complexidade da relação entre cargas, contexto no qual o trabalho se realiza e as expectativas dos sujeitos. Na ESF o aumento das cargas ocorreu, principalmente, pelas lacunas entre o prescrito e o realizado, enquanto na ABT foi causado por características inerentes ao próprio modelo assistencial baseado na biomedicina.

Os achados revelaram importantes fragilidades na atenção básica de ordem estrutural, política e cultural, os quais dificultam a implantação do SUS prescrito, impactando negativamente nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde.

O estudo evidenciou a necessidade de mudança do modelo utilizado pela ABT, e de correção dos problemas vigentes na ESF.

REFERÊNCIAS

  • 1. Gonçalves RBM. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo (SP): Hucitec; Rio de Janeiro (RJ): Abrasco; 1994.
  • 2. Lorenzetti J, Trindade LL, Pires DEP, Ramos FRS. Tecnologia, inovação tecnológica e saúde: uma reflexão necessária. Texto Contexto Enferm. 2012 Apr-Jun; 21(2):432-9.
  • 3. Paim JS. Modelos assistenciais: reformulando o pensamento e incorporando a proteção e a promoção da saúde. In: Paim JS. Saúde: política e reforma sanitária. Salvador (BA): Ed. Cooptec/ISC; 2002. p. 367-81.
  • 4. Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: Merhy E; Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo (SP): Hucitec; 1997. p. 386-96.
  • 5. Fertonani HP, Pires EP. Concepção de saúde de usuários da Estratégia Saúde da Família e novo modelo assistencial. Enferm Foco. 2010 Jan; 1(2):51-4.
  • 6
    Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF): Ministry of Health (MS), 2011.
  • 7. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo (SP): Hucitec; 1989.
  • 8. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edition 70; 1979.
  • 9. Trindade LL, Lautert L, Beck CLC. Coping mechanisms used by non-burned out and burned out workers in the family health strategy. Rev Latino-am Enfermagem. 2009 Sep-Oct; 17(5):607-12.
  • 10
    Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Projeto-Piloto da VER-SUS Brasil: vivências e estágios na realidade do Sistema Único de Saúde do Brasil. Brasília (DF): MS; 2004. p.149-78.
  • 11. Fernandes JS, Miranzi SSC, Iwamoto HH, Tavares DMS, Santos CB. Qualidade de vida dos enfermeiros das equipes de saúde da família: a relação das variáveis sociodemográficas. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Sep; 19(3):434-2.
  • 12. Pires DEP, Lopes MGD, Silva MCN, Lorenzetti J, Peruzzo SA, Bresciani HR. Jornada de 30 horas semanais: condição necessária para assistência de enfermagem segura e de qualidade. Enferm Foco. 2010 Nov; 1(1):114-8.
  • 13. Souza GA, Costa ICC. O SUS nos seus 20 anos: reflexões num contexto de mudanças. Saude Soc. 2010 Jul; 19(3):509-7.
  • 14. Fernandes LCL, Bertoldi AD, Barros AJD. Utilização dos serviços de saúde pela população coberta pela Estratégia de Saúde da Família. Rev Saud Pub 2009 Jun; 43(4): 595-603.
  • 15. Pires DEP, Trindade LL, Matos E, Azambuja EP, Borges AMF, Forte ECN. Inovações tecnológicas no setor saúde e aumento das cargas de trabalho. Tempus. 2012; 6(2):45-59.
  • 16. Cubas MR. Instrumentos de inovação tecnológica e política no trabalho em saúde e em enfermagem - a experiência da CIPE/CIPESC. Rev Bras Enferm. 2009 Dec; 62(4):745-7.
  • 17. MacGregor DL, Tallett S, MacMillana S, Gerber R, O'Brodovich H. Clinical and education workload measurements using personal digital assistant-based software. Pediatrics. 2006 Oct; 118(4):985-91.
  • 18. Mitre SM, Andrade ELG, Cotta RMM. Avanços e desafios do acolhimento na operacionalização e qualificação do Sistema Único de Saúde na Atenção Primária: um resgate da produção bibliográfica do Brasil. Ciênc Sau Colet. 2012 Aug; 17(8) 2071-85.
  • 19. Murofuse NT, Rizzotto MLF, Muzzolon ABF, Nicola AL. Diagnóstico da situação dos trabalhadores em saúde e o processo de formação no pólo regional de educação permanente em saúde. Rev Latino-am Enfermagem. 2009 Jun; 17(3)314-20.
  • 20. Chiodi MB, Marziale MHP, Robazzi MLCC. Occupational accidents involving biological material among public health workers. Rev Latino-am Enfermagem. 2007 Sep; 15(4):632-8.
  • 21. Bertoncini JH, Pires DEP, Scherer MDA. Condições de trabalho e renormatização das atividades das enfermeiras na Saúde da Família. Trab Edu Saude. 2011 Aug; 9(supl1):157-73.
  • 22. Campos GWS. Reforma política e sanitária: a sustentabilidade do SUS em questão? Ciênc Saude Coletiva. 2007 Jan; 12(2):301-6.
  • Correspondence:

    Letícia de Lima Trindade
    Av Porto Alegre, 828 D, ap. 502
    89802-131 – Centro, Chapecó, Santa Catarina, Brasil.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Mar 2012
    • Aceito
      17 Set 2012
    Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: textoecontexto@contato.ufsc.br