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Adesão ao tratamento: vivências de adolescentes com HIV/AIDS

Resumos

Viver com uma condição crônica é algo difícil em qualquer fase da vida, ainda mais quando se fala de HIV/AIDS, condição que traz estigma e discriminação, e quando ocorre na adolescência mostra-se como agravante. O objetivo deste estudo é compreender a experiência de adolescentes portadores de HIV/AIDS, no que diz respeito à adesão medicamentosa. Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa dos dados. Participaram nove adolescentes com idade entre 12 e 18 anos e seis cuidadores. Os dados foram organizados ao redor das facilidades e dificuldades relacionadas à adesão. Os resultados evidenciaram que os adolescentes têm dificuldades na adesão ao medicamento, colocando tais dificuldades principalmente nos efeitos colaterais dos mesmos; procuram viver o processo de normalização, de tal forma que o estigma e discriminação não comprometam a sua qualidade de vida e a adesão à terapêutica. São apresentadas recomendações para estimular a adesão ao tratamento.

HIV; síndrome de imunodeficiência adquirida; adolescente; terapia anti-retroviral de alta atividade


Living with a chronic condition is difficult at any stage of life, especially when considering HIV/AIDS, a stigmatized condition that elicits so much discrimination and which may become an aggravating factor when it occurs during adolescence. This study aimed to understand the experience of adolescents with HIV/AIDS concerning medication adherence. This is a descriptive study with a qualitative approach. Nine adolescents aged between 12 and 18 years and six caregivers participated in the study. The organization of data focused on positive and negative aspects related to adherence. The results showed that adolescents have difficulties in medication adherence especially due to their side effects; they try to normalize their lives in such a way that stigma and discrimination do not compromise their quality of life and treatment adherence. Recommendations to encourage treatment adherence are presented.

HIV; acquired immunodeficiency syndrome; adolescent; antiretroviral therapy, highly active


Vivir con una condición crónica es algo difícil en cualquier fase de la vida, sobre todo cuando se habla de HIV/SIDA, condición que trae estigma y discriminación, y cuando ocurre en la adolescencia se muestra como un agravante. El objetivo de este estudio es comprender la experiencia de adolescentes portadores de HIV/SIDA, en lo que se refiere a la adhesión medicamentosa. Se trata de estudio descriptivo, con abordaje cualitativo de los datos. Participaron nueve adolescentes con edad entre 12 y 18 años y seis cuidadores. Los datos fueron organizados alrededor de las facilidades y dificultades relacionadas a la adhesión. Los resultados evidenciaron que los adolescentes tienen dificultades en la adhesión al medicamento, colocando esas dificultades principalmente en los efectos colaterales de los mismos; buscan vivir el proceso de normalización, de tal forma que el estigma y discriminación no comprometan su calidad de vida y la adhesión a la terapéutica. Son presentadas recomendaciones para estimular la adhesión al tratamiento.

VIH; síndrome de inmunodeficiencia adquirida; adolescente; terapia antirretroviral altamente activa


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ARTIGO ORIGINAL

Adesão ao tratamento: vivências de adolescentes com HIV/AIDS

Maria Fernanda Cabral KourrouskiI; Regina Aparecida Garcia de LimaII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: mfck@yahoo.com

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: limare@eerp.usp.br

RESUMO

Viver com uma condição crônica é algo difícil em qualquer fase da vida, ainda mais quando se fala de HIV/AIDS, condição que traz estigma e discriminação, e quando ocorre na adolescência mostra-se como agravante. O objetivo deste estudo é compreender a experiência de adolescentes portadores de HIV/AIDS, no que diz respeito à adesão medicamentosa. Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa dos dados. Participaram nove adolescentes com idade entre 12 e 18 anos e seis cuidadores. Os dados foram organizados ao redor das facilidades e dificuldades relacionadas à adesão. Os resultados evidenciaram que os adolescentes têm dificuldades na adesão ao medicamento, colocando tais dificuldades principalmente nos efeitos colaterais dos mesmos; procuram viver o processo de normalização, de tal forma que o estigma e discriminação não comprometam a sua qualidade de vida e a adesão à terapêutica. São apresentadas recomendações para estimular a adesão ao tratamento.

Descritores: HIV; síndrome de imunodeficiência adquirida; adolescente; terapia anti-retroviral de alta atividade

INTRODUÇÃO

A adolescência é a etapa do processo de crescimento e desenvolvimento, cuja marca primordial são as modificações de natureza física e psicoemocional, as quais se interligam à cultura, às relações sociais, à religião e às questões de gênero(1). É vista como fase de turbulências, descobertas, tomadas de decisões e conflitos internos em busca de identidade e de amadurecimento para a vida adulta, e esses tendem a aumentar quando, a essa fase, se associa uma doença com características de condição crônica.

Para os adolescentes, é difícil aceitar a doença, pois, além das mudanças e conflitos da própria idade, ser portador de uma condição crônica potencializa tais conflitos com repercussões no seu ambiente social, nas suas atividades diárias, na sexualidade e no relacionamento com outras pessoas, gerando limitações físicas e psicológicas(2). Essas limitações se agravam quando se trata de doença infecciosa, incurável, muitas vezes transmitida pela mãe, e que, no cotidiano, é vista como estigma, com discriminação e preconceito, nesse caso a AIDS.

O número de casos de adolescentes (de treze a dezenove anos) com AIDS, notificados ao Ministério da Saúde, no Brasil, até 2007, foi de 10.337, sendo 5.384 do sexo feminino e 4.953 do masculino; desses, apenas 180 adquiriram a doença por transmissão vertical(3). Não há registros do número de crianças contaminadas, via transmissão vertical, que já chegaram à adolescência ou à fase adulta.

Os adolescentes portadores de HIV/AIDS vivenciam desafios relacionados à doença, tais como regime terapêutico complexo, visitas médicas periódicas, grande número de medicamentos com sabor desagradável e efeitos colaterais, além de hospitalizações em momentos de intercorrências. Ainda, muitos deles não compreendem tais medidas já que o diagnóstico não lhes é revelado(4).

A cronicidade de tal enfermidade implica na adesão ao tratamento, pois é ele que possibilita o controle da doença, com supressão da replicação viral e consequente melhora da qualidade de vida. Estudo(5) de revisão identificou ampla variação nas taxas de adesão à terapia antirretroviral entre crianças e adolescentes americanos, com índices de 50 a 75%, considerados não adequados.

Estudo sobre adesão, realizado com adolescentes norte-americanos soropositivos para o HIV, com idades entre 12 e 19 anos, os quais contraíram o vírus por relação sexual ou por drogas, identificou, como causas da não adesão, o esquecimento, as mudanças na rotina diária, o número excessivo de comprimidos e os efeitos colaterais causados pelos antirretrovirais. Foram relatadas também¸ ainda como causas de não adesão, o fato de a medicação trazer a lembrança do HIV e de terem que tomar as medicações por um longo período, até mesmo por toda a vida, a ausência de sintomas físicos da doença e depressão(6).

O objetivo do presente estudo é compreender as vivências de adolescentes que adquiriram o HIV/AIDS por transmissão vertical no que diz respeito à adesão medicamentosa.

A relevância do estudo justifica-se em face da necessidade de identificar aspectos que facilitem, ao adolescente, a adesão medicamentosa de tal forma que tais aspectos sejam incorporados aos modelos de intervenção em saúde, visando atenção integral e interdisciplinar em HIV/AIDS.

PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de estudo caracterizado como descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa dos dados devido à natureza do objeto do estudo e o objetivo proposto.

A pesquisa foi realizada em uma unidade especializada em doenças infecciosas de um hospital escola do interior do Estado de São Paulo. Foram selecionados nove adolescentes com idade entre 12 e 18 anos que tinham diagnóstico de HIV/AIDS desde a infância, e que faziam uso de terapia antirretroviral e seus respectivos cuidadores, entre eles mães, avós, avôs e tia. Esse número foi determinado durante o próprio processo de coleta de dados e não a priori, uma vez que¸ com ele, identificou-se subsídios que possibilitaram compreender o fenômeno estudado.

Os adolescentes foram selecionados durante as reuniões dos grupos de apoio realizadas semanalmente. Em relação aos cuidadores, participaram apenas seis deles, pois, dois não concordaram em participar da entrevista e, em um outro caso, uma adolescente solicitou que não se entrevistasse seu responsável. Os dados foram coletados mediante entrevista semiestruturada com os adolescentes, e essa constava de duas partes, a primeira com dados de identificação (nome, idade, sexo, escolaridade e atividade profissional) e a segunda com as questões norteadoras com foco nas vivências com a doença, aspectos do tratamento, particularmente aqueles relacionados à terapia medicamentosa, rotina diária e auxilio da família no gerenciamento do cuidado. Para complementar, buscou-se nos prontuários informações sobre o protocolo terapêutico, carga viral e CD4+.

Com os responsáveis cuidadores, realizou-se entrevista aberta, com uma pergunta inicial, solicitando que contassem sobre a vida do adolescente¸ desde seu nascimento até os dias atuais, destacando aspectos relacionados ao cuidado com a terapia antirretroviral.

Todas as entrevistas foram gravadas após autorização dos participantes. Em todos os casos tanto os adolescentes quanto os responsáveis optaram para que a entrevista fosse realizada no próprio serviço de saúde.

A análise dos dados percorreu as etapas preconizadas pela técnica de análise temática de conteúdo, ou seja, pré-analise, análise dos sentidos expressos e latentes, elaboração das temáticas e análise final(7).

Em observância à legislação(8) que regulamenta a pesquisa em seres humanos, o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde o estudo foi realizado, o qual foi aprovado. Como parte da documentação elaborou-se o termo de consentimento livre e esclarecido, no qual, em linguagem simples, os responsáveis pelos adolescentes e os adolescentes em tratamento com antirretrovirais foram informados sobre os objetivos da pesquisa, os procedimentos, riscos, desconfortos e benefícios. Tiveram a garantia do anonimato e respeito ao desejo de participarem ou não. Após a discussão do termo, daqueles que concordaram em participar, foi solicitada anuência, mediante assinatura no mesmo. Ainda, em observância às questões éticas, os nomes dos participantes do estudo são fictícios, e, no caso dos cuidadores, são seguidos do grau de parentesco.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como já mencionado, buscou-se compreender as vivências dos adolescentes com HIV/AIDS a partir de seus depoimentos e dos seus responsáveis cuidadores.

Os adolescentes participantes deste estudo mencionaram se sentir normais, como os demais adolescentes.

Viver com HIV é normal. É a mesma coisa de uma pessoa que não tem problema nenhum; eu vivo que nem minhas irmãs (Elisa, 15 anos).

Viver com HIV é normal. É a mesma coisa que não ter nada. Porque posso sair, posso brincar, ninguém discrimina, ninguém fala nada (Daniel, 13 anos).

Essa situação foi justificada com o desempenho das atividades de vida cotidiana como brincar, jogar bola e ir à escola, tendo assim uma vida normal como a de outros adolescentes, como os amigos ou irmãos. Compararam também a própria vida com a vida de outros adolescentes portadores de outros tipos de condições crônicas, as quais, segundo suas perspectivas e as de seus familiares, podem ser ainda piores por necessitarem de regimes terapêuticos mais restritivos.

Nós já falamos para ela, que se ela acha o tratamento ruim, tem de outras doenças que é até pior. Quem tem diabetes, além do remédio, tem a comida que precisa balancear, não é tudo que pode comer. Não existe adolescente com diabetes que gosta de comer um chocolate e não pode? Não é difícil também? Ela tem que começar a encarar que, da mesma forma que é difícil para nós adultos, não é fácil você ser obrigada a fazer uma coisa, ninguém gosta de ser obrigada a fazer uma coisa, de ser obrigada a tomar o remédio (D.Camila, mãe de Carolina).

Essa comparação com outras condições crônicas pode ser explicada pelo fato de quererem acreditar que viver com o HIV/AIDS não é algo tão anormal como possa parecer e, assim, buscam a aceitação da doença. Mas, esse sentimento de normalidade pode ser perdido quando vivenciam o estigma e a discriminação decorrentes da doença.

Adolescentes com HIV/AIDS podem se sentir diferentes devido aos cuidados especiais como acompanhamento médico frequente, uso de medicações, limitações de seus movimentos, além de sua aparência física. Porém, não lhes agrada serem vistos como pessoas que têm um problema de saúde, carregando o estigma de doente, desejam ser vistos como pessoas normais(9).

A percepção de normalidade pode influenciar na adesão medicamentosa, uma vez que não se sentem doentes. A ausência de sintomas pode interferir na percepção e gravidade da doença e, consequentemente, ser um fator para a não adesão(10).

Os adolescentes mencionam situações nas quais o estigma e a discriminação são evidenciados no cotidiano e, por isso, optaram por esconder o status sorológico.

Lá na escola, quando os meninos querem ofender alguém chamam de aidético, ou quando alguém está muito magro, também ficam chamando assim, falando que nojo, que é para não chegar perto. Umas brincadeiras desse jeito. Nunca ninguém falou isso ainda para mim, até porque ninguém sabe, mas mesmo assim é ruim. (Beatriz, 18 anos).

Minha mãe é chata. Às vezes eu vou atrás de algum serviço e ela fala que nunca vou arrumar, porque eu tenho mancha na pele, porque sou muito doente, aí eu não vou atrás. Fico triste e aí eu paro de tomar remédio. Ela fala também que eu não posso arrumar namorado, que se eu tiver que arrumar um namorado ele tem que ter HIV, porque se não eu posso apanhar na rua e não sei o que tem (Beatriz, 18 anos).

Observa-se pelos relatos que a discriminação e o preconceito podem ter início, muitas vezes, no próprio núcleo familiar, local esse que deveria oferecer suporte e apoio emocional a esses adolescentes.

Para uma avó, sua neta parou de tomar as medicações por causa da discriminação que, inicialmente, sofreu por parte do irmão e também porque acreditava que na escola seus amigos sabiam do diagnóstico.

Minha neta tomou o remédio até um ano e meio atrás, até então ela não me dava trabalho para tomar, tomava todo dia. Depois disso começou a dar trabalho, não tomava, brigava. Eu acho que ela começou a se revoltar por causa da escola, alguém deve ter comentado isto, por conta do irmão dela, porque ele brigava com ela e gritava para todo mundo ouvir (D.Isadora, avó de Isabela).

Esse mesmo sentimento discriminatório e estigmatizante foi apontado em um outro estudo com adolescentes portadoras de HIV/AIDS e suas cuidadoras familiares(11). Esse fato pode levar ao isolamento, correndo o risco de ser um fator a mais para dificultar a adesão medicamentosa(12).

O medo do preconceito e da discriminação tende a levar os portadores de HIV/AIDS a adiarem a revelação do diagnóstico, sendo que essa decisão afeta o acesso aos cuidados de saúde e a vida sexual, afetiva, social e educacional(13).

Percebe-se, também, que, a partir do momento em que vivenciam situações de estigma e discriminação, os adolescentes passam a buscar um culpado para seus problemas, uma vez que não tiveram a intenção de adquirir o HIV.

Eu sei como peguei, que foi mais ou menos na hora do parto, aí eu peguei da minha mãe. Eu não culpo ninguém, mas a culpa também não foi minha. É complicado você ter que se tratar por algo que ninguém teve culpa. É frustrante. Acho que com o meu pai é a mesma coisa do que com minha mãe, até porque foi por ele que ela pegou e falar para ele seria pedir a morte. Ele se culpa até hoje por causa disso. Falar com ele sobre isso é pedir para que ele queira morrer (Carolina, 15 anos).

É comum, entre os adolescentes que adquiriram o HIV por transmissão vertical, o fato de pararem de tomar as medicações, por mais que saibam da sua importância e das consequências decorrentes de tal ato. Entretanto, têm necessidade de romper com o tratamento e, em decorrência, com a doença, na intenção de manter o controle de suas vidas.

Os pais, frequentemente, relatam que os adolescentes já têm idade e maturidade para compreenderem a importância e a necessidade da medicação(14). Mesmo assim, dado que a medicação antirretroviral se apresenta como fundamental, sendo reconhecida como mantenedora da vida(15), as mães também tomam para si a corresponsabilidade pelo gerenciamento da terapia medicamentosa.

Outra situação observada pelos relatos dos adolescentes é que, já que a AIDS não tem cura, não precisariam tomar medicações.

Eu não vou mais ficar com essa doença, aí eu morro e não terei mais problema (Beatriz, 18 anos).

Tenho preguiça de tomar remédio. Se eu vou morrer, deixa eu morrer, minha mãe que fica enchendo o saco, aí falo para ela me esquecer, me deixar em paz (Adriana, 15 anos).

Os relatos acima retratam a dificuldade de viver com uma doença crônica, incurável, com forte associação com a morte e aos comportamentos irresponsáveis, permanecendo não aceita pela sociedade que estigmatiza, discrimina e julga os portadores do HIV/AIDS. Esses fatos podem influenciar na adesão medicamentosa, pois os adolescentes nem sempre estão preparados para enfrentar tais situações, e mencionam que a morte pode ser o caminho mais rápido para a resolução dos seus problemas.

Como já mencionado, a adesão ao tratamento é importante quando se fala de HIV/AIDS, uma vez que a não adesão traz não só problemas de cunho individual como aumento de carga viral e resistência viral, queda de linfócitos TCD4+ e, consequentemente, aumenta os riscos de infecções oportunistas, mas traz também problemas principalmente no âmbito da saúde pública, uma vez que existe o risco de disseminação de cepas resistentes(16).

Os participantes do estudo trouxeram fatos que dificultam a adesão medicamentosa como a rigidez dos horários, número de comprimidos, alterações nas rotinas diárias e efeitos indesejáveis da medicação.

Parece que ela não quer se preocupar com o remédio. Eu acho que ela queria não ter que tomar, não ter que carregar o remédio junto quando tivesse que sair, sabe porque tem vezes que vamos ao culto e eu pergunto, filha, você não vai levar o remédio?, aí ela fala, não, não vou. Mas de tanto eu pegar no pé dela, eu falo, se a gente ficar até mais tarde no culto, então leve o remédio. Ela tem que andar com celular, o celular tem que estar o tempo todo com alarme, para o alarme tocar na hora certa de tomar o remédio. Então eu falo que a minha vida e a dela é uma vida cronometrada, sabe, desde quando a gente descobriu (D.Gisela, mãe de Gabriele).

Às vezes falhou porque eu esqueci de colocar o remédio dentro da bolsa quando vinha para cá (retorno médico), porque dá seis horas e a gente ainda não chegou em casa. Agora ele não esquece mais (D.Fabiana, avó de Fábio).

O mais difícil é tomar remédio. O gosto que tem, a dor no estômago, muitos remédios (Beatriz, 18 anos).

Mencionam também como motivo para não a adesão terapêutica o fato de a medicação trazer a lembrança da doença.

Tem vezes que é frustrante, ter que pensar que tenho que ir lá de novo e fazer a mesma coisa sempre. Tomar remédio para curar uma coisa que não tem cura e da qual você não teve culpa de pegar. É frustrante (Carolina, 15 anos).

É ruim tomar remédio, porque quando tomo, fico lembrando do HIV. Não adianta falar que a nossa vida é normal, igual a dos outros porque não é (Adriana, 15 anos).

Muitas vezes eu não aceito a doença, então eu não quero tomar. Pelo fato de querer esquecer a doença e não aceitar (Carolina, 15 anos).

A lembrança do HIV, o fato de tomar uma medicação para algo que não tem cura e a não aceitação da doença constituem fatores que influenciam, diretamente, na adesão medicamentosa. A ausência de sintomas também dificulta a aceitação da doença e, consequentemente, o tratamento.

Embora de maneira menos frequente, os adolescentes citaram a importância da medicação para a manutenção da vida, qualidade da mesma e até para a cura.

É difícil, porque querer esquecer da doença você está pedindo para morrer, você não tomando o remédio, está pedindo para ficar mal e morrer logo (Carolina, 15 anos).

O que me ajuda a tomar o remédio é vontade de viver. Não sei se muitas pessoas pensam como eu, mas eu penso assim, minha mãe não me trouxe ao mundo à toa e como ela tem esperança de me ver, eu também tenho a esperança de me ver com meus filhos um dia (Gabriele, 14 anos).

Tomo remédio para curar a doença (Humberto, 13 anos).

Um fator facilitador da adesão ao tratamento é crer em seu benefício para a saúde e sobrevivência, ter consciência de que a não ingestão de medicações pode agravar a enfermidade, a vontade de viver e de ter um futuro. Além disso, um bom aconselhamento pode auxiliar na adesão, por meio de melhor compreensão da doença e das medicações necessárias(17).

A adesão deve ser vista como um processo de superação de dificuldades, relacionado aos esquemas medicamentosos, à doença, à vivência do estigma e discriminação e às mudanças no estilo de vida(18).

Para os adolescentes participantes deste estudo, a adesão ao tratamento é uma forma de viver e sobreviver ao HIV, pois os medicamentos evitam doenças e, consequentemente, a morte, a qual traria sofrimento para as pessoas que com eles convivem.

Eu falaria para tomar o remédio certinho, porque é um meio de sobrevivência para a gente que tem HIV e é uma maneira de querer proteger as pessoas que a gente gosta, para que as pessoas que a gente gosta não sofra, não te vejam morrendo, não te vejam doente, aqui no hospital (Carolina, 15 anos).

Embora alguns adolescentes tenham utilizado termos como cura, todos eles, mesmo os que não têm adesão ao tratamento, sabem da importância do mesmo, embora, pelos motivos já citados, alguns optem por não tomar a medicação, mesmo a adesão medicamentosa devendo ser vista como adesão à vida, uma vez que são as medicações que possibilitam o controle da doença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a introdução da terapia antirretroviral, em 1996, a mortalidade e as infecções oportunistas foram reduzidas e houve aumento da sobrevida dos portadores de HIV/AIDS e melhora da qualidade de vida. Porém, embora tenham atribuído à AIDS caráter crônico, possibilitando a reinserção social, profissional e afetiva, o tratamento ainda representa grande desafio, principalmente no aspecto da adesão, uma vez que o uso dos medicamentos em níveis inferiores a 95% não é suficiente para manter a supressão da replicação viral(19).

Viver com uma condição crônica não é fácil em qualquer fase da vida, fato esse que se agrava, quando se junta a adolescência, fase de conflitos, busca de identidade e autonomia. Ainda, quando essa enfermidade é a AIDS, doença infecto-contagiosa, incurável e que ainda carrega o signo da morte e de padrões não aceitos pela sociedade, tal processo se torna mais complexo. Observa-se, nos participantes deste estudo, que embora os adolescentes procurem viver como outras pessoas da sua idade enfrentam o estigma e a discriminação, algumas vezes da própria família.

Com relação à adesão medicamentosa, os adolescentes mencionam saber dos benefícios da medicação para controle da doença e para a melhora da qualidade de vida, no entanto, muitos deles não aderem ao tratamento, sendo justificado esse comportamento pela não aceitação da doença, pela lembrança de que são portadores do HIV, por ansiedade ou mesmo pelo esquecimento.

Pelos relatos, puderam ser compreendidas as experiências dos adolescentes com HIV/AIDS relativas à adesão medicamentosa. Esse conhecimento pode auxiliar a proposição de intervenções efetivas na assistência, de forma a colaborar para o tratamento e diminuir a vulnerabilidade desses adolescentes ao adoecimento, como: 1. orientar os pais quanto à necessidade de supervisão das medicações, auxiliando-os, quando necessário, na administração correta das mesmas; 2. realizar grupos de apoio com adolescentes que não têm adesão à medicação, procurando compreender os motivos que os levam a não tomar corretamente as medicações e, assim, intervir precocemente; 3. qualificar a equipe de enfermagem para a pré e pós-consulta, lembrando que a sala de espera pode ser um local de troca de experiências e informações e que a orientação, quanto ao uso da medicação, deve ser realizada com calma, de maneira a identificar possíveis dificuldades e esclarecer dúvidas, planejando, conjuntamente com o adolescente e seu cuidador, os melhores horários para que não ocorram interferências na rotina; 4. elaborar, junto com o adolescente e seu cuidador, cartazes utilizando rótulos dos medicamentos, especificando o horário de ingestão dos mesmos; 5. orientar quanto ao uso de despertadores e/ou celulares para que não esqueçam o horário correto das medicações; 6. estabelecer parcerias com prefeituras e organizações não- governamentais, com o intuito de realizar palestras e oficinas para a comunidade e em escolas, para orientar não apenas quanto às formas de transmissão do HIV, mas, também, visando minimizar o estigma e a discriminação; 7. orientar pais e portadores do HIV quanto aos direitos humanos básicos, ressaltando que o não cumprimento dos mesmos é passível de processos judiciais; 8. elaborar um programa de medicação domiciliar supervisionado, como ocorre no tratamento da tuberculose, o qual trouxe melhor adesão dos pacientes ao tratamento, podendo, assim, também ser uma solução para o caso dos pacientes portadores de HIV/AIDS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    06 Jul 2009
  • Recebido
    05 Jan 2009
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