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Reflexividade, conhecimento e consciência ecológica: premissas para uma ação responsável no contexto do trabalho hospitalar

Resumos

O artigo propõe analisar a interface reflexividade, conhecimento e consciência ecológica no contexto do trabalho hospitalar, a partir de dados de pesquisa qualitativa, tipo Estudo de Caso, em instituição hospitalar pública. Os dados de observação de campo e entrevista são discutidos à luz de referenciais sociológicos e filosóficos. Os trabalhadores expressaram a interface entre conhecimento e ação, em que se retroalimentam a falta de conhecimentos, o automatismo no desenvolvimento de ações e a falta de consciência ambiental, impondo limites à consciência individual e à responsabilidade com a preservação ambiental. A ampliação do debate e a educação voltada para a temática ambiental se colocam como necessidade no contexto do trabalho hospitalar. Embora o trabalhador hospitalar seja reflexivamente afetado pela problemática ambiental, isso não garante a reorientação de suas práticas e o agir responsável com o meio ambiente.

ética; meio ambiente; saúde ambiental; pesquisa qualitativa


The article aims to analyze the interface of reflexivity, knowledge and ecologic awareness in the context of hospital work, based on data collected in a qualitative case study carried out at a public hospital. Field observation data and interviews are discussed in the light of sociologic and philosophic references. Workers expressed the interface between knowledge and action, in which there is a cycle of lack of knowledge, automatism in the actions and lack of environmental awareness, posing limits to individual awareness and to responsibility towards environmental preservation. Increased debate and education, including the environmental issue, are needed in the context of hospital work. Although hospital work is reflexively affected by the environmental problem, that does not guarantee the reorientation of practices and responsible action towards the environment.

ethics; environment; environmental health; qualitative research


El artículo propone analizar la interfaz reflexiva, el conocimiento y la conciencia ecológica en el contexto del trabajo hospitalario, a partir de datos de investigación cualitativa, tipo Estudio de Caso, en institución hospitalaria pública. Los datos de observaciones de campo y las entrevista son discutidas bajo la luz de marcos sociológicos y filosóficos. Los trabajadores expresaron la interfaz entre conocimiento y acción, en que se retroalimentan la falta de conocimientos, el automatismo en el desarrollo de acciones y la falta de conciencia ambiental, imponiendo límites a la conciencia individual y a la responsabilidad con la preservación ambiental. La ampliación del debate y la educación dirigida para la temática ambiental se colocan como necesidad en el contexto del trabajo hospitalario. A pesar de que el trabajador hospitalario sea reflexivamente afectado por la problemática ambiental, eso no garantiza la reorientación de sus prácticas y el actuar responsable con el medio ambiente.

ética; ambiente; salud ambiental; investigación cualitativa


pt_16

ARTIGO ORIGINAL

Reflexividade, conhecimento e consciência ecológica: premissas para uma ação responsável no contexto do trabalho hospitalar

Silviamar CamponogaraI; Flávia Regina Sousa RamosII; Ana Lucia Cardoso KirchhofIII

IEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. Membro do grupo de pesquisa Práxis, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. e-mail: silviaufsm@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Pós-Doutor em Educação, Professor, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Coordenador, grupo de pesquisa Práxis, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e-mail: flaviar@ccs.ufsc.br

IIIEnfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor aposentado, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Membro do grupo de pesquisa Práxis, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: kirchhof@terra.com.br

RESUMO

O artigo propõe analisar a interface reflexividade, conhecimento e consciência ecológica no contexto do trabalho hospitalar, a partir de dados de pesquisa qualitativa, tipo Estudo de Caso, em instituição hospitalar pública. Os dados de observação de campo e entrevista são discutidos à luz de referenciais sociológicos e filosóficos. Os trabalhadores expressaram a interface entre conhecimento e ação, em que se retroalimentam a falta de conhecimentos, o automatismo no desenvolvimento de ações e a falta de consciência ambiental, impondo limites à consciência individual e à responsabilidade com a preservação ambiental. A ampliação do debate e a educação voltada para a temática ambiental se colocam como necessidade no contexto do trabalho hospitalar. Embora o trabalhador hospitalar seja reflexivamente afetado pela problemática ambiental, isso não garante a reorientação de suas práticas e o agir responsável com o meio ambiente.

Descritores: ética; meio ambiente; saúde ambiental; pesquisa qualitativa

CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEMÁTICA

Em meio à intensa divulgação de dados relacionados à atual problemática ecológica, torna-se questão crucial ampliar o debate sobre o desenvolvimento de ações de minimização da destruição ambiental por parte de toda a sociedade. No entanto, embora haja grande circulação de conhecimentos sobre o tema, parece não haver o esperado comportamento de preservação ambiental por parte de significativa parcela da população, resultando em dificuldades para efetivar ações nesse sentido.

De forma geral, parece haver incongruência entre conhecimento e ação. Esse fato tem relação com o momento contemporaneamente vivenciado, em que se sofre o impacto do avanço tecnocientífico, inclusive de suas repercussões negativas sobre o viver, levando à configuração da denominada Modernidade Reflexiva(1-2), marcada por intensas transformações no que tange à formação de classes, camadas sociais, família, instituições em geral. Essa modernização reflexiva implica em silenciosa radicalização da modernidade, resultante das certezas da sociedade industrial, ancoradas no consenso de pessoas e instituições sobre progresso e abstração de seus efeitos. O conceito de reflexividade é central na atual discussão sociológica, sendo parte fundamental do viver humano, demarcando-se, contudo, que essa reflexividade não necessariamente está relacionada ao exame mais aprofundado sobre determinado tema, o que é fundamental para o reordenamento de práticas sociais.

Em alguns cenários, essa situação pode ter contornos especiais, como no caso da área da saúde que ainda não aprofundou o debate sobre a sua interface com a atual problemática ecológica. Estudo recente(3) aponta que o trabalhador hospitalar, embora reflexivamente afetado pela problemática ecológica, entremeado a circunstâncias típicas do contexto hospitalar, encontra dificuldades para o desenvolvimento de ações de preservação ambiental em seu trabalho. Uma visão de distanciamento em relação ao ambiente natural e a inexistência de discussão sobre problemas ambientais no contexto de trabalho, processo de trabalho prescritivo, permeado por normas e rotinas, o estilo gerencial burocratizado e verticalizado, adotado por grande parte das instituições hospitalares, dentre outros, são fatores que limitam o exercício reflexivo sobre o tema, bem como a adoção de atitudes mais responsáveis em relação ao meio ambiente.

De forma semelhante, pesquisa realizada com enfermeiras, atuantes em vigilância sanitária, revela que a questão ambiental não é prioritária para essas profissionais, tendo em vista outras questões de ordem estrutural e organizacional dos serviços de saúde bem como a falta de qualificação sobre o tema(4). As autoras consideram essa uma lacuna a ser preenchida, no sentido de possibilitar que a profissão contribua para a sustentabilidade do planeta.

Outros estudos, desenvolvidos por profissionais da saúde, em geral apontam para a necessidade de aprofundar reflexões sobre o assunto, a partir do entendimento que saúde e meio ambiente estão intimamente associados, devendo essa interface ser definitivamente incorporada à discussão sobre o processo saúde/doença, tendo como base uma abordagem política e ética, e não meramente tecnicista(5). Dessa forma, há necessidade de se construir estratégias de articulação dos campos da saúde e meio ambiente, uma vez que são categorias intrínsecas à sobrevivência dos seres humanos, e se encontram relacionadas aos espaços concretos das ações humanas, inclusive no trabalho em saúde(6).

Com base nisso, cabe salientar que, para além da obtenção de conhecimentos, a configuração de consciência ecológica e adoção de ações responsáveis é imperativo ético(7), exigindo reflexões aprofundadas. Este artigo pretendeu tecer uma análise sobre a interface reflexividade, conhecimento e consciência ecológica no contexto do trabalho hospitalar, esperando obter subsídios que possibilitem a adoção de ações responsáveis com o meio ambiente, por parte de trabalhadores hospitalares, contribuindo para a ampliação do debate sobre esse assunto na área da saúde. O estudo é parte de tese de doutorado sobre o tema(3).

METODOLOGIA

Para a realização do estudo, de abordagem qualitativa, foi utilizada a estratégia de Estudo de Caso, a qual permite a realização da pesquisa de fenômenos dentro do seu contexto real, analisando-se intensamente uma unidade social(8) bem como a triangulação de técnicas de coleta de dados (análise documental, observação e entrevista), possibilitando encadeamento de evidências e confiabilidade às informações e interpretações.

O local eleito para o estudo foi um hospital universitário, localizado num município no interior do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, considerado de grande porte e com caráter público. Tem como visão de futuro "ser um referencial público de excelência em assistência à saúde, ensino e pesquisa, com preservação do meio ambiente". Desde o ano 2003, conta com Comissão de Gestão Ambiental, que objetiva discutir questões ambientais e implementar estratégias de ação que minimizem impactos ambientais.

Os sujeitos desta pesquisa foram os trabalhadores da instituição, informalmente abordados, por ocasião do processo de observação de campo, e formalmente inqueridos por meio de entrevista semiestruturada, utilizando roteiro com questões norteadoras. Foram realizadas entrevistas individuais com 26 trabalhadores da instituição. Para tanto, foi desenvolvido estudo de representatividade de categorias profissionais atuantes no hospital, sendo eleitos para a amostra: 3 enfermeiros, 6 técnicos de enfermagem, 3 médicos, 1 fisioterapeuta, 2 auxiliares administrativos, 3 serventes de limpeza, 1 técnico de laboratório, 2 trabalhadores de serviços de apoio e 5 estudantes de cursos de graduação da área da saúde. Também fizeram parte da amostra 7 integrantes da Comissão de Gestão Ambiental, abordados por meio de entrevista coletiva.

A coleta de dados foi realizada no período de março a maio de 2007. Inicialmente, foi realizada pesquisa documental, procurando registros que revelassem dados sobre a relação entre a instituição e possíveis ações relacionadas ao tema ambiental e, também, observação de campo em todos os setores da instituição, perscrutando questões de interesse relacionadas ao fênomeno em estudo. Finalmente, foram realizadas as entrevistas individuais, com a intenção de aprofundar a busca de dados sobre o objeto de estudo e uma entrevista coletiva que visou a discussão, no âmbito da Comissão de Gestão Ambiental, da relação entre o trabalhador hospitalar e a atual problemática ecológica.

Os dados foram reunidos para análise, constando de: cópia dos documentos oriundos da análise documental, diário de campo da pesquisadora, utilizado no processo de observação, e transcrição das entrevistas (gravadas e transcritas pela própria pesquisadora). Esse material passou por processo de análise de conteúdo, segundo Bardin, com as seguintes etapas: pré-análise, recomposição dos dados em categorias/subcategorias de análise e análise aprofundada com interpretação das categorias à luz do referencial teórico.

O estudo atendeu os preceitos éticos contidos na Resolução CNS nº 196/96, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. A pesquisa teve início após aprovação da instituição, e as entrevistas somente foram realizadas mediante leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos sujeitos. Para preservar o anonimato dos participantes, os mesmos foram identificados pelo código 'E', seguido do número correspondente à ordem de entrevista realizada e pela categoria profissional.

REFLEXIVIDADE, CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA

Os dados revelam que o trabalhador, embora reflexivamente afetado pela problemática ecológica, não tem conhecimento suficiente sobre a questão ambiental e sua interface com o trabalho desenvolvido no contexto hospitalar. A interface conhecimento e ação é significativa, já que o trabalhador assume que, ao ter maior conhecimento, pode agir com maior coerência. São coisas que a própria educação traz... A sensação de fazer a minha parte, quando eu tenho ciência do que é certo. Muitas vezes tu não faz porque tu não tem orientação, tu é ignorante na área (E17 - médica).

Nesse sentido, a falta de conhecimentos sobre questões ambientais é aspecto que merece ser ressaltado. Eu não me lembro de me pegar pensando sobre isso. Então é difícil de responder. Eu, realmente, eu nunca parei para pensar muito sobre isso (E8 - enfermeira). Em alguns casos, isso foi revelado com um tom de angústia, em outros, o trabalhador assume que isso nunca foi objeto de reflexão, resultando em dificuldade para abordá-lo, durante as entrevistas.

O exercício de cidadania ativa, individual ou coletiva, está alicerçado à qualidade e à quantidade de conhecimento disponível, o que tem relação direta com a participação ativa dos sujeitos, com sua autonomia e poder de decisão em suas práticas sociais, as quais envolvem não só conhecimento, mas também reflexão(9). Os sujeitos exercem monitoramento reflexivo de suas ações, para isso, precisam "fazer contato" com as bases de seu comportamento, perscrutando as razões para determinado comportamento. Entretanto, muitos comportamentos não são diretamente motivados, são, simplesmente, realizados como elementos da vida cotidiana(10). Dessa forma, o conhecimento sobre determinado assunto e a reflexão sobre isso pode se constituir em estímulo fomentador da motivação para a ação, para a reordenação de determinada prática social, caso contrário pode resultar em automatismo.

Quando são oportunizadas estratégias de obtenção de conhecimento sobre a problemática ambiental ou minimização de impactos ambientais, os sujeitos têm maiores subsídios para reflexão sobre seus próprios comportamentos, motivando-os para a construção de ações responsáveis com o meio ambiente. A evidência de que muitas ações são realizadas mecanicamente é bastante presente entre os entrevistados, algo relacionado com o pouco conhecimento disponível sobre a problemática ambiental e com a característica da atividade laboral no contexto hospitalar, marcada pela normatização e rotinização. Com isso, o automatismo no desenvolvimento de ações de preservação ambiental foi amplamente verificado. Eu acredito que falta conhecimento. Falta, falta para mim, falta para as demais pessoas. Porque tu faz aquilo automático sabe. Eu largo minha seringa lá, largo meu vidrinho lá, largo meu lixo lá. Mas o porquê de tudo isso? Porque eu não devo fazer tal coisa (E3 - enfermeira).

A rotina, psicologicamente ligada à minimização de fontes inconscientes de ansiedade, é a forma predominante de atividade social cotidiana. A maioria de nossas práticas diárias não são diretamente motivadas, mas sim rotinizadas, proporcionando um meio estruturador para a vida(11). Quando os sujeitos estão condicionados a apenas cumprir regras, sendo colocados à margem das esferas participativas e reflexivas sobre suas práticas, conformam-se com a realidade, sem buscar olhar diferente sobre novas perspectivas de ação.

Tratar o ser humano apenas como um sistema que processa informações traz implicações sobre a sua subjetividade, uma vez que é "poupado" de reflexões éticas e responsabilidades morais(12). Esse é um panorama típico da Modernidade em que questões morais e existenciais foram excluídas do pensamento e da ação dos sujeitos, ficando os mesmos mais facilmente moldáveis aos interesses das instituições modernas. As ideias sobre a natureza são exemplares dessa segregação da experiência, que favorece a rotinização e a criação de circunstâncias de aparente tranquilidade no ambiente de trabalho(10).

O retorno da discussão sobre dilemas e questões morais é estratégia para dar vazão a inúmeros conflitos vivenciados pelo sujeito na Modernidade e possibilitar o surgimento de novos contextos de ação, bem como de práticas sociais reordenadas à luz, não só da reflexividade, mas de profunda reflexão(10). A responsabilidade com as gerações futuras(7), a autonomia e a ética na construção de um novo projeto civilizatório são apontadas como fundamentais para a construção de novos significados e práticas sociais, no sentido de mobilizar os sujeitos para a construção de nova racionalidade ambiental(13).

No contexto do trabalho hospitalar - diante dos processos de subjetivação de que participam os trabalhadores, da falta de conhecimento sobre o assunto e do automatismo com que são desenvolvidas as ações de preservação ambiental existentes - os entrevistados referem que a falta de consciência ambiental interfere no desenvolvimento de ações mais efetivas. Eu acho que as pessoas não têm consciência. Tem pessoas que estão trabalhando eu acho que na verdade só estão pensando em quando vão receber. (...) não pensam na natureza... (E1 - servente de limpeza).

O termo "consciência" significa estar o sujeito apto a fazer um relato coerente, não só de suas atividades, como também das razões que as motivaram, sendo também capaz de expressar isso em palavras (consciência discursiva) e de exercer o monitoramento reflexivo de sua conduta (reordenando práticas sociais, se considerar necessário). Todos os seres humanos são agentes cognoscitivos, ou seja, possuem considerável conhecimento das condições e consequências do que fazem em suas vidas cotidianas, entretanto, em sua maior parte, essas faculdades estão engrenadas no fluxo da conduta cotidiana, convertendo-se em racionalização(11). O conceito de consciência não é algo tão simples e linear, mas pressupõe a elaboração discursiva e de argumentação plausível sobre suas razões e a capacidade de monitorar práticas sociais, a partir da reflexividade e da reflexão sobre essas mesmas práticas.

A complexidade da questão ambiental abre amplo debate para a sociedade contemporânea, no sentido de valorizar a construção da ética ambiental, entendida como conscientização. Os efeitos da tecnologia e da ciência colocam em pauta a necessidade de reapropriação subjetiva do conhecimento, constante reflexão, para que o ser humano possa, criticamente, promover escolhas ativas no sentido da construção de relação mais equânime entre sociedade e natureza, destituída de domínio e passividade(14).

Diante disso, as falas dos trabalhadores remetem para a ideia de que ampla maioria ainda não tem consciência sobre os efeitos dos problemas ambientais e a necessidade de adotar medidas de preservação, o que, segundo os respondentes, somente acontecerá quando as pessoas se sentirem afetadas por tais problemas. Desse modo, ao olhar para si, os entrevistados revelam o que pensam sobre sua consciência individual em relação à preservação ambiental e a interface dessa com outras esferas de ação. A gente não se responsabiliza pelos efeitos da questão ambiental. A gente pensa que isso faz parte só de grandes indústrias, ou grandes nações. Mas a nossa parte a gente não faz. E não adianta a gente aguardar que as coisas venham de cima pra baixo (E10 - acadêmica/enfermagem).

Apesar da exigência de grande mobilização coletiva, é no sujeito individual que começa a construção de nova perspectiva de pensamento e ação. Essa é a base da individualização, tão presente neste contexto contemporâneo, e que traz para o sujeito uma série de responsabilidades que, antes, estavam na alçada das tradicionais instituições da Modernidade. Ao se constituir como indivíduo, ao assumir plenamente a responsabilidade por seu jeito de ser e agir, os sujeitos são impulsionados para nova forma de politização. Assim, compelidos a agir, individualizadamente, mas sem base que os sustente, os indivíduos se veem envoltos em ansiedades e incertezas - a eles é cobrada postura, uma consciência individual sobre dilemas existenciais. Paradoxalmente, o sujeito individualizado, atualmente, está, permanentemente, em processo de deixar de ser um para fundir-se no anonimato coletivo. As identidades (significações simbólicas, relacionadas às práticas sociais que arraigam num ser coletivo) afirmam-se como um sujeito sem ser, sem raízes, sem referências, sem território e sem história - dessubstanciado, flutuante e indeterminado(13).

A formação de verdadeira consciência ambiental por parte dos trabalhadores tem relação estreita com esse paradoxo. Por um lado, assumindo-se como sujeitos contemporâneos, vítimas do processo de individualização e, por outro, em busca de individualidade autêntica, que, com base na ética de respeito ao meio ambiente, expresse ações coerentes no que diz respeito à preservação ambiental. A consciência da necessidade de preservar o meio ambiente está atrelada a dois momentos distintos: primeiramente, num nível internalizado, inscrito na forma de pensar e de agir, na qual o indivíduo sente-se ativo para efetivar ações de preservação ambiental. Mas, num segundo momento, o que ocorre com a maioria das pessoas é que, uma vez sabedoras da existência de problemas ambientais, não se sentem responsáveis por danos causados ao meio ambiente, achando que suas pequenas ações diárias não têm potencial para interferir na instabilidade ecológica global(15).

Quando concebidos como potencialmente sensíveis, reflexivos, dialógicos, imaginativos e ousados, os seres humanos podem modificar e recriar os direcionamentos do seu processo de viver, mesmo que tenham sido condicionados por legados sócio-histórico-culturais de determinado espaço e tempo. A conscientização e a ação transformadora estão relacionadas à inserção crítica do sujeito no mundo, graças à sua sensibilidade e capacidade de reflexão(16). Esse pensamento encontra consonância com a ideia de responsabilidade com o meio ambiente(7), que significa, antes de tudo, sentimento que deve ser cultivado entre os homens e que se antecipa a qualquer ação de preservação ambiental.

Embora os sujeitos apontem para a importância da responsabilidade em relação ao meio ambiente, no que tange à questão da responsabilidade pela preservação ambiental, surgiram algumas nuances que revelaram aspectos diferenciados. Para os trabalhadores, a responsabilidade está relacionada a ter consciência e conhecimento sobre como preservar o meio ambiente. Consideram que, embora cada indivíduo tenha a sua responsabilidade, ela é um pressuposto de todos os seres humanos, das indústrias, dos governos, enfim, de toda a sociedade. Destacam que o grau de conhecimento sobre a relação entre o seu trabalho e a problemática ambiental está relacionado ao nível de responsabilidade ambiental.

Como, porém, não há entre os trabalhadores pesquisados circularidade de conhecimento substancial sobre a temática ambiental, pode-se deduzir que qualquer concepção sobre responsabilidade ambiental estaria fragilizada já em sua origem. A noção de responsabilidade poderia se tornar esvaziada em sua essência, e se revelar como discurso banalizado. Situações indicativas disso foram presenciadas inúmeras vezes durante a coleta de dados. Ao serem questionados sobre a responsabilidade com o meio ambiente, os trabalhadores, rapidamente, respondiam: Ah! Todo mundo tem que ter. Contudo, quando inqueridos sobre qual seria, então, a sua responsabilidade, não conseguiam expressar.

A responsabilidade com o meio ambiente é um imperativo ético, que vincula moral e emoção. Para que algo seja considerado um dever, deve afetar o indivíduo motivando sua vontade, a partir da participação da emoção, que está na essência de nossa moral. Assim, o sentimento de responsabilidade está vinculado à ética que tem um lado objetivo, ligado à razão, e a um lado subjetivo, ligado ao sentimento, sendo ambos complementares(7).

Embora se viva num contexto em que a racionalidade técnico-instrumental sobrepuja qualquer compreensão moral, o ser humano, potencialmente, é um ser moral, uma vez que possui a capacidade de ser afetado, tanto por demandas externas quanto internas. O conceito de responsabilidade está relacionado com o que se vai fazer e não tanto com algo que já foi feito. Há o sentimento de responsabilidade, primeiramente, com a coisa que exige a ação, e depois pelo comportamento e suas consequências(7).

Os trabalhadores acreditam que há necessidade de se desenvolver trabalho intenso de conscientização, mostrando às pessoas a importância da preservação ambiental no contexto do trabalho hospitalar. Um processo que deve ser gradativo, vislumbrando a ampliação do debate sobre a temática ambiental como um ponto essencial, sendo a qualificação profissional um conceito chave. No caso específico da qualificação sobre questões ambientais, conotação mais atualizada é essencial. No setor da saúde, a preocupação com a educação em serviço e com as estratégias utilizadas para tal tem se acentuado nos últimos anos, especialmente a partir da implementação da Política Nacional de Educação Permanente, destinada a inter-relacionar ensino e serviços de saúde.

Alguns trabalhadores, fazendo referência à vocação da instituição, por ser hospital universitário que atende todos os níveis de complexidade, lembram que deveria também assumir o papel de educadora junto à comunidade, desenvolvendo campanhas educativas de conscientização ambiental, inclusive, como forma de ampliar a concepção sobre saúde e doença. Há o entendimento de que o trabalho deve ser concebido de forma mais ampliada, estabelecendo novos elos e sedimentando também a concepção da promoção da saúde. Assim, tem-se a educação como base para o processo de conscientização sobre o meio ambiente. Eu, para mim tudo passa pela questão da educação. E isso perpassa toda uma questão que vem desde a educação básica, do ensino fundamental, do ensino médio, e que vai se refletir na sua graduação e pós-graduação. E mesmo na vida profissional, depois que você for profissional, formado, você vai ter que ter mecanismos que garantam essa reciclagem. Essas pessoas necessitam dessa educação permanente. Em todas as coisas e eu penso que o meio ambiente não é diferente (E10 - acadêmica/enfermagem).

É cada vez mais notória a complexidade dos processos de transformação da sociedade, crescentemente ameaçada por riscos socioambientais, evidenciando que a relação entre meio ambiente e educação deve ser significativa e envolver um conjunto de atores de diversos sistemas de conhecimento, a capacitação profissional e a comunidade universitária, numa perspectiva interdisciplinar(17). Nos níveis de ensino fundamental e médio, a discussão sobre a preservação ambiental se faz mais presente, em muitos dos casos, na condição de tema transversal aos conteúdos curriculares. No que se refere ao ensino universitário, ainda não se verifica preocupação mais contundente sobre a formação de consciência ambiental. Embora, como alertaram os entrevistados, isso seja essencial à sociedade.

A problemática ambiental impõe às ciências e às universidades mais do que a criação de espaços acadêmicos para integração de disciplinas tradicionais, ou a atualização de currículos universitários, sobre a dimensão ambiental, requerendo a incorporação de novos conteúdos que se plasmem aos curriculares, às estratégias de pesquisa e métodos pedagógicos(13). Essa premissa é válida também para a inserção da discussão sobre a problemática ambiental nos espaços já institucionalizados, onde a prática profissional já está configurada e constituída, como no caso da prática de saúde no espaço hospitalar.

A educação ambiental tem que enfrentar a fragmentação do conhecimento, desenvolvendo abordagem mais integradora sobre diferentes dimensões humanas, possibilitando entrelaçamentos de múltiplos saberes, a partir da noção de que o meio ambiente é campo de conhecimento e de significados socialmente construídos. O fortalecimento de organizações sociais e comunitárias e a participação crescente da população, por meio de ações educativas sobre a preservação ambiental, são imprescindíveis, no sentido de potencializá-los para a participação ativa nesse processo(17).

Mudar comportamentos individuais não é suficiente para engendrar as transformações necessárias e reverter a grave situação em que a humanidade se encontra. A ênfase no comportamento individual ofusca a dimensão política das questões socioambientais, sendo necessário que se realizem mudanças individuais e estruturais. A consecução de qualquer meta de mobilização social, em prol da preservação ambiental, deve estar ancorada em três esferas: a da subjetividade individual (na forma de pensar e sentir), a microssocial, aderente ao relacionamento interpessoal e práticas cotidianas e a esfera da ação pública(18).

Fica evidente que o processo de conscientização do trabalhador hospitalar sobre a preservação ambiental não deve se dar de forma isolada, devendo ser amplo, sistemático, envolvendo todos os trabalhadores de forma ativa. Deve destacar a importância da realização das ações de preservação, demarcando a necessidade de postura ética e comprometida. A evidência de que a instituição está fortemente engajada nesse processo é imprescindível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o trabalhador hospitalar seja reflexivamente afetado pela problemática ambiental, isso, por si só, não garante que possa reorientar suas práticas em busca de um agir mais responsável com o meio ambiente, o que está na dependência de uma série de outras questões inerentes ao seu viver, ao seu cotidiano laboral no âmbito da instituição hospitalar.

Muitos aspectos atuam como limitadores de um agir responsável, enquanto outros se revelam como potencializadores de prática de preservação ambiental. A problematização dessas questões - ancorada em base que integre conhecimento/ética/ação - possibilita vislumbrar pontos essenciais, a serem considerados no contexto institucional em que se deu a pesquisa e pelo conjunto de atores sociais que o compõe, no sentido de buscar o efetivo engajamento com a preservação ambiental.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    04 Ago 2009
  • Recebido
    25 Mar 2009
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