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As perspectivas de donas de casa brasileiras sobre a sua experiência com diabetes mellitus tipo 2

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência de donas de casa brasileiras com diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Foi utilizada abordagem descritiva exploratória, e entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 25 donas de casa, abordando sua experiência com o DM2. As entrevistas foram gravadas, transcritas e o texto resultante foi analisado usando-se o método de etapas sequenciais. Os dados convergiram para um tema dominante construindo sua identidade no contexto da família, composto por três subtemas: diferenças de gênero, preocupações do dia a dia e incongruência, entre conhecimento e comportamento, relacionada ao DM2. Esses achados sugerem que as participantes constroem sua identidade no contexto da família e que a experiência de viver com DM2 é parte integrante de sua identificação como esposa e mãe. Esses resultados têm implicações para o planejamento e a implementação de programas que contribuam para que as mulheres gerenciem seu DM2 de forma eficaz.

Diabetes Mellitus; Saúde da Mulher; Enfermagem; Família


The purpose of this study is to present an understanding of the experience of Brazilian homemakers with type 2 diabetes mellitus (DM2). A descriptive exploratory design was used and semi-structured interviews were conducted with 25 Brazilian homemakers concerning their experience. The interviews were recorded, transcribed, and the resulting text was analyzed using the sequential step method. Data converged to one dominant category, "constructing one's identity in the family context", which is comprised of three categories: gender differences; day-to-day concerns; and incongruity between knowledge and behavior related to DM2. These findings suggest that participants construct their identities within the family context and that their experience of living with DM2 is integral to their self-identification as wives and mothers. This, in turn, has implications for the design and implementation of programs to assist women in managing DM2 effectively.

Diabetes Mellitus; Women's Health; Nursing; Families


El propósito de este estudio es comprender la experiencia de las amas de casa brasileñas con la diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Se empleo un abordaje exploratorio descriptivo, donde participaron de las entrevistas 25 amas de casa de Brasil acerca de su experiencia con el DM. Las entrevistas fueron grabadas, transcritas y el texto resultante se analizó mediante el método secuencial de cuatro etapas: aprensión, síntesis, teorización y transferencia. Los datos se reunieron en un tema dominante: "construyendo su identidad en el contexto familiar", que se compone de tres sub-temas: las diferencias de género, las preocupaciones del cotidiano y la incongruencia entre el conocimiento y el comportamiento relacionado con DM2. Estos hallazgos sugieren que los participantes construyen su propia identidad dentro del contexto familiar y que su experiencia de vivir con DM2 es parte integral de su identificación como esposas y madres. Esto, a su vez, tiene implicaciones para el planeamiento e implementación de programas para ayudar a las mujeres para administrar con eficacia la DM2.

Diabetes Mellitus; Salud de la Mujer; Enfermería; Familia


ARTIGO ORIGINAL

IPhD, Professor Associado, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

IIPhD, Professor Titular, Faculty of Nursing, University of Alberta, Canadá

IIIPhD, Professor Assistente, Faculty of Nursing, University of Alberta, Canadá

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência de donas de casa brasileiras com diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Foi utilizada abordagem descritiva exploratória, e entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 25 donas de casa, abordando sua experiência com o DM2. As entrevistas foram gravadas, transcritas e o texto resultante foi analisado usando-se o método de etapas sequenciais. Os dados convergiram para um tema dominante construindo sua identidade no contexto da família, composto por três subtemas: diferenças de gênero, preocupações do dia a dia e incongruência, entre conhecimento e comportamento, relacionada ao DM2. Esses achados sugerem que as participantes constroem sua identidade no contexto da família e que a experiência de viver com DM2 é parte integrante de sua identificação como esposa e mãe. Esses resultados têm implicações para o planejamento e a implementação de programas que contribuam para que as mulheres gerenciem seu DM2 de forma eficaz.

Descritores: Diabetes Mellitus; Saúde da Mulher; Enfermagem; Família.

Introdução

O desafio de promover autocuidado entre indivíduos com diabetes mellitus tipo 2 (DM2) tem mobilizado profissionais da área da saúde em todo o mundo. Mesmo com recomendações clínicas já estabelecidas e importantes avanços no conhecimento de tratamentos, para promover melhor controle da doença, muitos dos que vivem com DM2 não conseguem alcançar controle glicêmico efetivo e continuam expostos ao risco de complicações em longo prazo. Estudos comparando homens e mulheres com DM2 reportam que mulheres apresentam pior controle glicêmico, assim como autocuidado e qualidade de vida(1-2). Os fatores associados a esses resultados refletem crescente reconhecimento de que existem padrões diferentes de saúde e adoecimento para homens e mulheres, que vão além de fatores biológicos e incluem também questões psicológicas, culturais, políticas, econômicas e históricas(3-5).

A experiência clínica da autoria desta pesquisa e a evidência de estudos anteriores levam a se concluir que mulheres lidam com DM2 de forma diferente dos homens(6-8). Mulheres brasileiras, especialmente donas de casa, apresentam significante estresse interpessoal familiar, associado ao seu papel em que atuam como "para-raios" nos conflitos familiares, incluindo desde responsabilidades do cotidiano, referentes ao cuidado dos membros da família, até a mediação de conflitos familiares. Outros estudos envolvendo mulheres com DM2 focam as questões culturais de vários grupos étnicos e raciais(9-11). Ainda, outros estudos examinam os fatores de risco associados ao desenvolvimento da DM2(12-13), impacto psicológico(14-15), apoio da família(9,16), qualidade de vida(17), aderência ao tratamento(18) e controle metabólico da DM2(19). No entanto, existe pouca informação como as mulheres integram ou negociam demandas da DM2, relacionadas à saúde com as necessidades da própria família. As mulheres, não importando se trabalham em casa ou fora de casa, normalmente assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças; gerenciamento da casa e, também, cuidando das necessidades de saúde dos membros da família(16).

A DM2 é uma condição bastante séria, com consequências imediatas e em longo prazo, para a vida do indivíduo. A Organização Mundial da Saúde (OMS)(20) reconhece o diabetes como um problema sério de saúde global. O principal problema associado à experiência de viver com uma doença crônica, como o DM2, é sua manutenção contínua, pois apenas 20% das pessoas aderem ao regime de tratamento prescrito. A OMS atribui essa baixa taxa de aderência à falta de serviços de atenção à saúde que abordem o amplo impacto associado à experiência de viver com uma doença crônica. A OMS exorta nações e sistemas de saúde a introduzirem inúmeras medidas para limitar as consequências de doenças crônicas em longo prazo e enfatiza a importância de se criarem planos de tratamento que abordem as necessidades próprias de indivíduos que vivem em certos ambientes sociais e geográficos(20), considerando, ainda, que gênero é um poderoso determinante de saúde, sendo fundamental para a proposição de qualquer medida visando atenuar o risco de complicações relacionadas a problemas de saúde crônicos.

O objetivo deste estudo qualitativo foi apresentar o entendimento da experiência de donas de casa brasileiras relacionado àsua vivência com o DM2 e, particularmente, como elas equilibram suas próprias necessidades de saúde em face das necessidades de suas famílias. Do ponto de vista de gênero(21), foram realizadas entrevistas semiestruturadas com mulheres, abordando-se suas experiências relacionadas à vivência com DM2.

Método

Uma amostra intencional de mulheres com DM2 foi selecionada tanto de um serviço ambulatorial de um hospital urbano como de uma unidade de atenção básica, do Sul do Brasil. Os critérios de inclusão foram: autoidentificação como dona de casa, não estar empregada, ter filhos e ter recebido diagnóstico de DM2 há mais de dois anos. As participantes tinham idade entre 38 e 82 anos (idade média=61 anos). A maioria das mulheres era casada ou viúva (76%), tinha menos de oito anos de educação formal (68%) e de um a oito filhos. As participantes foram diagnosticadas com DM2 entre dois e 38 anos, antes de participarem do estudo, com média de 14,5 anos.

Os enfermeiros, que trabalhavam no ambulatório do hospital e na unidade básica de saúde, fizeram o contato inicial com as potenciais participantes para explicar o objetivo do estudo, responder dúvidas e obter consentimento por escrito. Uma só entrevista não estruturada foi agendada com cada uma das 25 mulheres que concordaram em participar. Entrevistas de seguimento foram conduzidas com três das mulheres para esclarecer questões da entrevista ou dúvidas que foram levantadas nos estágios preliminares da análise de dados. Dados demográficos foram coletados por meio de um questionário que as mulheres completaram após a entrevista.

As entrevistas semiestruturadas foram conduzidas em local de escolha das participantes. As questões iniciais focaram as experiências cotidianas das mulheres com DM2, o contexto dessas experiências e o que elas valorizavam dentro desses contextos. As entrevistas foram conduzidas pela primeira autora ou assistentes de pesquisa previamente treinadas (alunas de enfermagem da graduação) e variaram de 20 a 90 minutos. As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente.

A análise de dados seguiu um método que envolveu quatro processos sequenciais: apreensão, síntese, teorização e transferência(22). Na fase de apreensão, todas as entrevistas foram lidas várias vezes para obtenção do entendimento global do conteúdo. Durante a fase de síntese, os dados foram codificados em dois estágios: estágio 1 que se refere a uma sumarização livre e fluida (codificação do tópico) do conteúdo verbal e no estágio 2, os códigos mais significativos foram selecionados e organizados para formar as principais categorias. Essas quatro categorias expressam o conteúdo essencial das entrevistas e convergem para o tema central. No processo de categorização, e, além do texto escrito e os códigos sumarizados, adicionou-se uma interpretação para esses códigos. Partiu-se, então, para a teorização e transferência, elaborando possíveis significados para cada uma das categorias e procurando apoio ou contraponto na literatura relacionada. Resultados significativos foram elaborados com trechos retirados diretamente das transcrições.

Um diário foi utilizado para registrar as observações da primeira autora e suas reflexões preliminares, durante o processo de coleta e análise preliminar dos dados. O mesmo foi utilizado para a criação e a validação das categorias e tema central. As notações nesse diário permitiram identificar as situações que precisavam ser estudadas com mais profundidade e/ou esclarecidas, direcionando a continuidade da coleta de dados. Uma das situações consideradas nesse processo foi a inclusão de mulheres com diferentes tempos de experiência nos diferentes estágios de vida, por exemplo, com filhos pequenos ou adultos. A primeira autora codificou manualmente todas as entrevistas transcritas e elaborou a primeira categorização. O processo foi então revisado e refinado pelos outros autores, através de discussões e reflexões que expressaram a percepção das mulheres entrevistadas sobre a vivência como mulher e dona de casa com diabetes mellitus.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (nº005/2008), em 10 março de 2008. Todos as participantes assinaram consentimento informado e ficaram cientes de seus direitos em desistir da pesquisa a qualquer tempo e tiveram garantido seu direito ao anonimato.

Resultados

A análise dos dados convergiu para o tema central construindo sua identidade no contexto da família. O mesmo representa a maneira como as mulheres perceberam e interpretaram a própria vida e como o diabetes é parte dela. Esse tema é composto por três categorias: diferenças de gênero, preocupações do dia a dia e a incongruência, entre conhecimento e comportamento, relacionada ao cuidado com o diabetes. Essas categorias estão interconectadas ao redor de um tema central, ou seja, evidência relacionada à experiência de donas de casa brasileiras com a vivência do DM2 não pode ser entendida de forma independente do contexto familiar, pois o mesmo molda a existência dessas mulheres.

Diferenças de gênero

Ser mãe e esposa é o foco central da vida dessas mulheres. Esse papel molda a identidade e delineia o contexto de suas vivências: onde elas vivem, com quem vivem e suas razões de viver. As mulheres falaram de como ser mãe e esposa envolve os múltiplos papéis que desempenham e que, frequentemente, exigem submissão, autocontrole, dedicação e sofrimento. O diabetes não mudou esses papéis, mas reforçou alguns de seus aspectos porque elas sempre colocaram as necessidades da família em primeiro lugar, mesmo que em detrimento de suas próprias necessidades de saúde.

As mulheres deste estudo perceberam a vida como mais complexa e difícil do que a vida dos homens. Sua autoimagem foi, na maioria dos casos, negativa. Elas falaram do sentimento de tristeza e de se sentirem velhas e sem motivação. Duas das mulheres deste estudo, que pareciam ter autoimagem mais positiva, aceitavam melhor a doença e tinham vida mais ativa e independente de suas famílias. Em geral, as participantes acreditavam que as mulheres eram mais estressadas e preocupadas que os homens. Uma fonte de estresse entre as mulheres se referiu às inúmeras tarefas associadas à manutenção da casa, do cuidado com as crianças, marido e família estendida. Esse estresse é, ainda, agravado pela expectativa de ter tudo sob controle e em harmonia. Os homens, no entanto, são vistos como tendo apenas uma obrigação - o trabalho fora de casa. Os homens não têm o trabalho que nós temos em casa... nós ficamos aborrecidas com qualquer coisinha, com trabalhos domésticos... E os homens não precisam, sabe? Eles não precisam se preocupar com comida, passar roupa, limpar a casa... Quando eu vejo todo o trabalho que precisa ser feito, eu já fico irritada. Eu já começo a tremer... Ai meu Deus, eu ainda não fiz isso, eu não fiz aquilo... e é assim que eu me preocupo com as coisas (E18).

Outras diferenças entre homens e mulheres incluem envolvimento e expressão emocional. Enquanto as mulheres são mais sensíveis em relação aos outros e percebem o sofrimento dos outros, as participantes descrevem os homens, aqueles que fazem parte da vida delas, como autocentrados. Quando as coisas dão errado, as mulheres se preocupam e os homens colocam suas energias para fora, normalmente ficando agressivos.

As mulheres também falaram do fato de ter que limitar severamente o que comem para evitar ganhar peso e aumentar os níveis de glicose no sangue, e acreditam que os homens com diabetes podem comer qualquer coisa que quiserem sem alterar os níveis de glicose. Maridos e irmãos com diabetes eram mais capazes de controlar a doença e pareciam precisar de menos esforço do que as mulheres. Mulheres são mais estressadas. Porque a mulher tem que cuidar da casa, tem filhos, tem emprego, e tem que fazer pagamentos... muitas outras coisas que uma mulher tem que fazer também. Eu compro tudo para a casa. Então, chegando em casa, os filhos e netos têm que estudar, lavar as roupas, cuidar da comida e cuidar do marido. Ele sai para o trabalho de manhã e só volta já bem de noite. Então, na hora que ele chega, tudo tem que estar lavado e passado. Então as mulheres se estressam mais do que os homens. (...) Meu marido comia e comia e ainda tinha diabetes. E tinha diabetes e ainda comia. Se eu fizesse arroz doce, ele diria que era o melhor (E6).

Embora essas diferenças de gênero percebidas pelas mulheres fossem vistas como injustas, colocando as mulheres em desvantagem em relação aos homens, elas aceitavam passivamente a situação como parte de seu papel social.

Preocupações do dia a dia

As preocupações, neste estudo, se referem a situações, eventos, ou indivíduos que exigem atenção especial das mulheres. As mulheres se desgastam emocionalmente com essas preocupações como se o fato de ruminar tais questões pudesse prevenir quealguma coisa desse errado. Preocupações nem sempre envolvem ações, elas parecem envolver a antecipação de sofrimento futuro ou ameaça potencial à segurança e bem-estar. Se a preocupação persiste ou se a mulher não tem recursos internos ou apoio social para administrar esse sofrimento, o mesmo acaba interferindo no controle do diabetes. As preocupações das mulheres se concentraram em torno de duas questões principais: a segurança e a saúde de sua família estendida. Pensar e se preocupar com o que pode ou poderia acontecer foi uma questão tão dominante que tomava os seus dias inteiramente.

As principais preocupações das mulheres se relacionavam à família, enquanto que a preocupação sobre sua própria saúde era secundária. A preocupação com a segurança e bem-estar da família era tão intensa que, muitas vezes, se tornava uma vigilância exagerada. Por exemplo, um filho atrasar uns minutos para chegar a casa, vindo do trabalho, já era razão para preocupação. Eu sou muito ligada aos meus filhos... minha família. (...) Porque a gente se preocupa com nossas crianças, não é que eles vão se envolver em algo ou..., mas meu pai morreu atropelado por causa da bebida, sabe? Então, te vem aquele pensamento... e C já se envolveu em dois acidentes por causa da bebida e eu tenho outros três mais novos que eu criei... não só criei, ele é meu neto, meu sangue... Então, o C tem 33 anos e ele é solteiro e é com ele que me preocupo... sempre me preocupo (E1).

As preocupações das mulheres em relação à sua saúde, particularmente aquelas preocupações relacionadas ao diabetes, estão sempre em segundo plano. Elas pensam e se preocupam com complicações potenciais, o monitoramento da glicose, da dieta e o uso de medicação, como a insulina. A principal preocupação sobre complicações é a possibilidade da cegueira. Histórias de pessoas com diabetes que acabaram ficando cegas e a crescente perda da acuidade visual de uma mulher evocou emoção tão forte que transformou a preocupação em pavor.

O monitoramento da glicose foi uma preocupação em particular, especialmente para aquelas que dependem do sistema de saúde brasileiro. Nesses casos, a preocupação das mulheres não era voltada para o resultado do teste em si, mas para questões operacionais de ter que ir a uma unidade de saúde para fazer o teste, a fila de espera e a necessidade de fazer jejum, o que normalmente induz a hipoglicemia.

Enquanto a alimentação e nutrição da família é papel central das mulheres brasileiras, essaas atividades constituem preocupação especial na vida de mulheres com diabetes. Muitas ficam indecisas como lidar com as restrições do diabetes e falam de fome exagerada e ter que lutar constantemente com o desejo de comer comidas proibidas. Algumas estavam muito preocupadas com a extensão em que suas restrições dietéticas interferiam com a nutrição e alimentação de sua família. Essas mulheres eram inflexíveisem relação ao fato de que a família não deveria ser privada de nada por sua causa.

Algumas das mulheres interpretavam a necessidade de injeções diárias de insulina como um sinal da gravidade da doença. Elas ficavam muito preocupadas quando o controle da glicose ficava difícil e o médico anunciava a possibilidade de usar insulina. Era como se, nesse ponto, não tivesse volta para a doença. Outras mulheres insistiam que o diabetes não era uma preocupação para elas, explicando que era algo com que elas já haviam se acostumado, assim como várias pessoas em sua família. Para esse último grupo, o diabetes tinha se tornado parte da vida, como consequência do processo de envelhecimento. No entanto, o fato de já terem se acostumado à doença não se traduzia em melhor manejo da mesma, em termos de melhor autocuidado e melhor aderência ao tratamento. Em muitos casos, essa aceitação tinha, na verdade, efeito negativo e muitas mulheres minimizavam esse efeito. Eu não estou preocupada se o médico disser que sim, eu tenho este problema, e eu não estou preocupada! Entre uma coisa e outra, nós vamos todos morrer, certo? Pode ser por causa disso ou alguma outra coisa, né, a gente nunca sabe. Então, eu não preocupo (...) o que mais me preocupa? Ah, quando a gente sabe, quando a gente descobre que alguém está doente, alguém da família sabe, da família, ou algo assim. Então eu me preocupo. (...) Eu só fico pensando na diabetes alterada, então se eu como algum doce, hoje eu já comi um doce... Eu acho é que por isso que está mais alta... e esses exames me dão agonia! (E3).

Incongruência, entre conhecimento e comportamento, relacionada ao diabetes

Existem poucas evidências de que as mulheres tenham feito mudanças significativas em seu estilo de vida para controlar o diabetes, mesmo quando aceitam a doença como algo que requer cuidado e tratamento contínuo. Elas ficaram preocupadas, aborrecidas ou irritadas no momento em que receberam o diagnóstico, mas fizeram pouco esforço para mudar hábitos ou rotinas. Era como se o impacto emocional inicial fosse atenuado pela falta de sintomas óbvios de que havia uma ameaça à vida e pela crença de que o dia a dia ficaria relativamente inalterado. As mulheres que, de fato, alteraram seu consumo alimentar não mantiveram as mudanças e logo voltaram aos padrões anteriores. Essas mulheres minimizaram a possibilidade de problemas sérios de saúde ao longo do tempo ou aceitaram a situação como inevitável.

Com o passar dos anos (entre dois e 10 anos) os problemas relacionados ao DM2 começaram a aparecer (por exemplo: infeções, poliúria, comprometimento da visão, e mesmo problemas circulatórios periféricos que resultaram em amputações) e as mulheres foram forçadas a repensar questões relacionadas ao autocuidado e aderência ao tratamento. Nesses casos, o diabetes se tornou um estímulo para mudanças quando complicações sérias se desenvolveram e as mulheres já não podiam mais ignorá-las. Mesmo as mulheres cujos familiares tinham complicações devido ao diabetes, por exemplo: amputações, cegueira, morte, mantinham a crença de que seu diabetes era diferente. Essas mulheres procuravam e enfatizavam diferenças entre suas próprias experiências e as dos outros. Elas trabalhavam com a noção de que o curso longitudinal da doença, resposta ao tratamento e potencial para problemas de saúde eram únicos para cada indivíduo. Essa crença fez com que elas ignorassem ou minimizassem os conselhos e as experiências de outros, incluindo aqueles de familiares com diabetes ou profissionais de saúde.

Aceitar restrições alimentares foi um dos maiores desafios para essas mulheres, porque a comida e o ato de cozinhar eram fontes de grande prazer, assim como evidência de seu sucesso como donas de casa. Os sentimentos das mulheres variavam entre irritação, raiva ou ansiedade quando se sentiam privadas de algo, ou quando um familiar interferia em suas escolhas alimentares ou proibiam certos alimentos. Mas as mulheres falavam principalmente de uma tristeza constante. Viver com o diabetes foi percebido principalmente com o estar relacionado a restrições alimentares impostas e uma doença que não tem cura. O que me aborrece mais é quando eu vou ao supermercado (risos). Tem tudo que você não pode comer: aqueles bolos, tortas que você faz com açúcar caramelizado... ah, essa é minha favorita, como se fala? Mais... frustrante. É dia e noite - algumas vezes eu levanto e digo "Ai... cara... Eu tenho que tomar uma injeção" e uma pílula e fazer aquelas comidas que não tem gosto nenhum! (E24).

Ir a festas e outros eventos sociais foram fontes crônicas de conflito para essas mulheres. Se participavam desses eventos sociais, elas comiam bolos e outros alimentos restritos, para mais tarde observarem as repercussões desses alimentos no seu nível glicêmico. Embora não participar de eventos sociais fosse uma opção, as mulheres achavam que não ir a esses eventos iria excluí-las de partilhar momentos de felicidade e participar de eventos familiares importantes. Algumas vezes, as mulheres comiam escondido, longe de seus familiares. Os hábitos alimentares evocaram ambivalência em muitas delas. Algumas reportaram orgulho quando se mostravam capazes de manter certo controle sobre si mesmas, pois considevam delas a decisão de comer ou não. Outras se sentiam mais felizes quando os membros da família controlavam seu consumo alimentar - era uma forma de receber atenção.

As conversas das mulheres refletiam tensão contínua entre seguir a dieta prescrita e rejeitá-la. Muitas vezes, elas indicavam que aderiam ao plano alimentar apenas para reconhecer uns minutos depois, de que, na verdade, não aderiam. Enquanto as mulheres pareciam entender a necessidade de seguir tal plano e os vários componentes da sua dieta, elas não se sentiam compelidas a seguir o regime de forma consistente. Na realidade, a dieta era mais parte de seu discurso sobre aceitar limites, expressar insatisfação e se mostrarem como pessoas que têm problemas. Parece que a própria ideia de ter restrições alimentares era suficiente para fazê-las se sentirem "torturadas". Enquanto elas, de fato, não aderiam à dieta, a mesma existia como um limite pessoal que elas tinham que lutar e se rebelar contra. Dessa forma, estavam sempre ponderando os riscos e benefícios, em relação às mudanças de peso corporal. Entretanto, quando as complicações por causa do diabetes se tornavam mais aparentes e imediatas, elas aceitavam mais prontamente a dieta prescrita. No entanto, se a imposição das restrições alimentares "falava mais alto", elas procuravam outras estratégias para racionalizar suas escolhas alimentares ruins. O problema é que o diabetes me faz ficar muito ansiosa, me dá vontade de comer alguma coisa; é como uma mulher grávida! E enquanto não come, não sossega. Então, o diabetes faz isso comigo, me dá muita fome e eu não posso comer... Eu sofro com isso.

Exercício físico não era parte da vida dessas mulheres. Fazer o serviço da casa já era considerado atividade suficiente. Quando elas tentavam fazer os exercícios recomendados, reclamavam de se sentirem muito cansadas e expressavam que fazer exercício físico era para aquelas que não tinham que cuidar da casa.

Discussão

Este estudo revela como donas de casa brasileiras vivenciam o DM2 e como a identidade como mulhere a experiência da doença são moldadas pelo papel que têm na família. Os resultados mostram que, ao mesmo tempo em as mulheres reconhecem que o DM2 é uma doença crônica, que proíbe certos prazeres e resulta em preocupações com a saúde em longo prazo, suas próprias necessidades ficam subordinadas àquelas da família.

O tema central construindo sua identidade no contexto da família sugere que essas donas de casa se reconhecem primeiro como mães/esposas e a autoexpressão está limitada ao que elas percebem como aceitável dentro do contexto familiar. O principal compromisso é manter a família unida e saudável, manter-se vigilante em relação às ameaças que podem surgir para desafiar seus esforços, nesse sentido. No esforço por salvaguardar a saúde e o bem-estar da família, as mulheres procuram manter todos por perto, e se manterem alertas, preocupadas e envolvidas com todos os aspectos da família, particularmente os filhos. Na construção da identidade, elas reconhecem que existem múltiplas atividades e aceitam (algumas relutam mais que as outras) que sua condição de vida está submissa às necessidades de seus filhos e maridos, algo que elas veem como relacionado ao papel feminino. Isso fica evidente quando suas filhas assumem suas responsabilidades e obrigações, quando elas mesmas não podem mais assumir tais responsabilidades(17). Apesar das mudanças sociais ocorridas no Brasil, o modelo de família tradicional continua forte, especialmente entre mulheres que não trabalham fora.

Preocupações em relação ao controle do diabetes e à dissonância entre o que as mulheres sabem ser necessário para controlar a doença e o que elas fazem de fato são fatores importantes relacionados ao fato de como a doença é integrada ao estilo de vida diário(13-14). Decisões referentes à aderência a restrições alimentares e outros componentes do cuidado são altamente variáveis e dependem da situação imediata e de como as mulheres racionalizam suas decisões(23). Apesar de reconhecerem que têm uma doença crônica e incurável, muitas acreditam que sempre haverá tempo no futuro para aderir ao tratamento prescrito, especialmente em relação à dieta alimentar. Adiamento foi uma estratégia frequente de enfrentamento. Assegurar que o tratamento não alterasse a rotina diária da família era mais prioritário do que as próprias necessidades de saúde delas. As preocupações em relação ao curso longitudinal da doença e os múltiplos modelos de tratamento eram substituídos por questões mais imediatas como a de que a aderência estrita ao tratamento iria causar impacto negativo na rotina da família, fazendo com que fosse muito difícil manter abordagem consistente e saudável em relação ao cuidado com o diabetes(10).

A crença de que as necessidades da família vêm antes de suas próprias e que o manejo do diabetes aparece como uma das menores de suas prioridades não significa que as mulheres rejeitam abertamente o fato de serem portadoras de diabetes. As mulheres vivem o dia a dia em constante estado de ambivalência - algumas vezes reconhecem a gravidade do DM2 e seguem o regime prescrito e, outras vezes, minimizam sua condição e suas possíveis consequências. Preocupações com as necessidades da família ou desespero por não participar de celebrações e eventos sociais foram questões que desviaram a atenção da própria saúde. Por outro lado, admitir a gravidade da doença, decorrente da presença de um sinal ou sintoma, levaram-nas a considerar a importância de aderir ao tratamento prescrito, mas não, necessariamente, as motivou para a ação. Ambivalência também foi observada em outro estudo abordando indivíduos com DM2(24), muitos dos quais consideraram comer "comida boa" em termos de prazer e sabor, ao invés de alimento que os ajuda a alcançar controle glicêmico. Essas diferentes orientações vão além de simples decisões sobre comer alguns alimentos específicos ou não, e estão intimamente ligados a hábitos e rotinas, prazer e relacionamentos. Os resultados deste estudo também sugerem que as escolhas alimentares das donas de casa brasileiras são influenciadas pelas suas percepções sobre o que é bom para a própria família.

Considerações finais

Este estudo confirma a importância de incluir a família na prática da atenção à saúde e ao ensino e compreensão dos papéis complexos que essas mulheres, portadoras de diabetes, exercem dentro do contexto da própria famílis, como base para uma educação individualizada do diabetes. Para estimular essas mulheres a alcançar melhor controle glicêmico do diabetes e vivência mais saudável, é necessário apoiá-las para que priorizem e discutam suas necessidades de saúde com a família, negociando prioridades e construindo novas oportunidades para incorporar suas necessidades de saúde na rotina diária de todos os membros da família. Esses resultados também enfatizam a importância da equipe de saúde em apoiar as necessidades de saúde das mulheres com DM2. Conhecimento complementar sobre endocrinologia, determinantes sociais de saúde (idade, gênero, papéis de gênero e condição socioeconômica) e o manejo de doença crônica, dentro de um modelo de autocuidado, são componentes necessários de um serviço satisfatório de gerenciamento de diabetes para mulheres.

Possível estratégia promissora é a criação de grupos de apoio que permitam a essas mulheres compartilhar suas experiências. Partilhar estratégias de negociação de necessidades de saúde no contexto da família, nesses grupos, em meio a outras pessoas em circunstâncias similares representa apoio social e é informação chave para melhor manejo da doença. Além disso, também é necessária a implementação de educação de saúde individualizada na casa dessas mulheres, juntamente como toda a família. Melhorar a capacidade dessas mulheres para autogerenciar a doença de forma satisfatória e minimizar o risco de problemas de saúde, em longo prazo, requer o estabelecimento e a manutenção de relação de confiança com a equipe de saúde que reconhece o papel fundamental da família na vida dessas mulheres. Dada a seriedade das consequências do mau controle do diabetes em longo prazo e a grande incidência de mulheres com complicações por causa do DM2, é imperativo que questões de gênero e papéis femininos sejam incorporadas no plano de cuidado e intervenções educativas.

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    Denise Maria Guerreiro Vieira da SilvaI; Kathy HegadorenII; Gerri LasiukIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      09 Set 2011
    • Aceito
      13 Abr 2012
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