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Epistemologia genética e educação física: algumas implicações pedagógicas

Genetic epistemology and physical education: some pedagogical applications

Epistemología genética y educación física: algunas repercusiones pedagógicas

Resumos

Este estudo tem por objetivo traçar algumas contribuições da epistemologia genética de Piaget à Educação Física Escolar. Busca-se sinalizar alguns elementos que contribuam para a reflexão sobre a ação pedagógica do professor de Educação Física, considerando-a como área de conhecimento pertinente ao desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e social dos sujeitos. Lança-se um olhar reflexivo à Educação Física, que é compreendida como prática de experiência corporal e como uma experiência de pensamento lógico que envolve a formação e transformação das estruturas da ação e do pensamento. Pergunta-se quais as contribuições da epistemologia genética de Piaget para a ação pedagógica do professor de Educação Física. O estudo mostra que a epistemologia genética de Piaget pode ser compreendida pelos professores de Educação Física não apenas como uma teoria do conhecimento, mas também como uma perspectiva pedagógica capaz de direcionar ações de ensino-aprendizagem que valorizem as ações motoras com expressão de sentir e pensar. Desse modo, torna-se possível correlacionar o desenvolvimento motor e o desenvolvimento cognitivo, considerando o movimento humano dotado de sentidos e significados e de expressão cognitiva e social.

Epistemologia Genética; educação física; escolas


Physical activity contributes with motor, cognitive, affective and social development of individuals. This study aims to contribute with Physical Education at School using Piaget's Genetic Epistemology, pointing out some contributions over pedagogical action of Physical Education Professor. We view reflexively to Physical Education, understanding it both like a corporal practice and a logical thinking experience, hence involving formation and transformation of action and thinking structures. We try to answer what are the contributions of Piaget's Genetic Epistemology to teacher's activity. Study shows that Piaget's Genetic Epistemology can be understood by Professors not only as a knowledge theory, but also as a pedagogical perspective, able to lead teaching-learning actions towards valorize motor activities with feel and thinking expression. Hence, becomes possible correlate motor to cognitive development, considering the human moving as full of senses and meanings and of cognitive and social experiences.

Genetic epistemology; physical education; schools


Este estudio tiene como objetivo delinear algunas contribuciones de la epistemología genética de Piaget a la Educación Física Escolar. Se busca señalar algunos elementos que contribuyan para la reflexión de la acción pedagógica del profesor de Educación Física por considerársela como área de conocimiento pertinente al desarrollo motor, cognitivo, afectivo y social de los sujetos. Se lanza una mirada reflexiva a la Educación Física comprendiéndola como práctica de experiencia corporal, así como de experiencia de pensamiento lógico, que envuelve la formación y transformación das estructuras de acción y del pensamiento. En consecuencia surge la pregunta: ¿cuáles las contribuciones de la epistemología genética de Piaget para la acción pedagógica del profesor de Educación Física? El estudio muestra que la epistemología genética de Piaget puede ser comprendida por los profesores de Educación Física no sólo como teoría del conocimiento, sino también como perspectiva pedagógica capaz de guiar acciones de enseñanza-aprendizaje que den valor a las acciones motoras con expresión de sentir y pensar. Así, es posible correlacionar el desarrollo motor al desarrollo cognitivo, llevando en consideración el movimiento humano dotado de sentidos y significados y de expresión cognitiva y social.

Epistemología Genética; educación física; escuelas


ARTIGOS

Epistemologia genética e educação física: algumas implicações pedagógicas

Genetic epistemology and physical education: some pedagogical applications

Epistemología genética y educación física: algunas repercusiones pedagógicas

Glycia Melo de OliveiraI; Iraquitan de Oliveira CaminhaII

IUniversidade Federal da Paraíba - PB

IIUniversidade Federal da Paraíba - PB

RESUMO

Este estudo tem por objetivo traçar algumas contribuições da epistemologia genética de Piaget à Educação Física Escolar. Busca-se sinalizar alguns elementos que contribuam para a reflexão sobre a ação pedagógica do professor de Educação Física, considerando-a como área de conhecimento pertinente ao desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e social dos sujeitos. Lança-se um olhar reflexivo à Educação Física, que é compreendida como prática de experiência corporal e como uma experiência de pensamento lógico que envolve a formação e transformação das estruturas da ação e do pensamento. Pergunta-se quais as contribuições da epistemologia genética de Piaget para a ação pedagógica do professor de Educação Física. O estudo mostra que a epistemologia genética de Piaget pode ser compreendida pelos professores de Educação Física não apenas como uma teoria do conhecimento, mas também como uma perspectiva pedagógica capaz de direcionar ações de ensino-aprendizagem que valorizem as ações motoras com expressão de sentir e pensar. Desse modo, torna-se possível correlacionar o desenvolvimento motor e o desenvolvimento cognitivo, considerando o movimento humano dotado de sentidos e significados e de expressão cognitiva e social.

Palavras-chave: Epistemologia Genética, educação física, escolas.

ABSTRACT

Physical activity contributes with motor, cognitive, affective and social development of individuals. This study aims to contribute with Physical Education at School using Piaget's Genetic Epistemology, pointing out some contributions over pedagogical action of Physical Education Professor. We view reflexively to Physical Education, understanding it both like a corporal practice and a logical thinking experience, hence involving formation and transformation of action and thinking structures. We try to answer what are the contributions of Piaget's Genetic Epistemology to teacher's activity. Study shows that Piaget's Genetic Epistemology can be understood by Professors not only as a knowledge theory, but also as a pedagogical perspective, able to lead teaching-learning actions towards valorize motor activities with feel and thinking expression. Hence, becomes possible correlate motor to cognitive development, considering the human moving as full of senses and meanings and of cognitive and social experiences.

Keywords: Genetic epistemology, physical education, schools.

RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo delinear algunas contribuciones de la epistemología genética de Piaget a la Educación Física Escolar. Se busca señalar algunos elementos que contribuyan para la reflexión de la acción pedagógica del profesor de Educación Física por considerársela como área de conocimiento pertinente al desarrollo motor, cognitivo, afectivo y social de los sujetos. Se lanza una mirada reflexiva a la Educación Física comprendiéndola como práctica de experiencia corporal, así como de experiencia de pensamiento lógico, que envuelve la formación y transformación das estructuras de acción y del pensamiento. En consecuencia surge la pregunta: ¿cuáles las contribuciones de la epistemología genética de Piaget para la acción pedagógica del profesor de Educación Física? El estudio muestra que la epistemología genética de Piaget puede ser comprendida por los profesores de Educación Física no sólo como teoría del conocimiento, sino también como perspectiva pedagógica capaz de guiar acciones de enseñanza-aprendizaje que den valor a las acciones motoras con expresión de sentir y pensar. Así, es posible correlacionar el desarrollo motor al desarrollo cognitivo, llevando en consideración el movimiento humano dotado de sentidos y significados y de expresión cognitiva y social.

Palabras Clave: Epistemología Genética, educación física, escuelas.

Introdução

A história da educação, de modo geral, demonstra uma exacerbada valorização de conteúdos e objetivos que primam pelo desenvolvimento da capacidade cognitiva do aluno. Nesse sentido, identificam-se estudos (Becker, 2009, 1990; Castellar, 2005; Miranda, 2008; Moro, 1990, 2000; Pádua, 2009) que buscam compreender o desenvolvimento do ser humano com base na teoria psicogenética de Jean Piaget, ou seja, partem de suas bases biológicas para, então, relacioná-lo ao campo pedagógico, desvelando perspectivas educacionais que correlacionam ação motora e pensamento lógico. Não obstante, é possível encontrar alguns estudos (Colello, 1993; Kammi & De Vries, 1991; Knijnik, Pires, & Fressato, 2002) que exploram a interlocução de conhecimentos referentes à lógica cognitiva correlacionada com o desenvolvimento motor. Tal evidência contribui para comprovar que os professores de Educação Física não valorizam ações pedagógicas que correlacionem ação motora e pensamento lógico. É por essa razão que nos propomos examinar os possíveis entrelaçamentos entre a Educação Física e a epistemologia genética de Piaget.

A epistemologia genética concebe que o conhecimento é construído a partir das interações com o mundo e, por isso, põe-se em oposição aos moldes do empirismo, que vincula a ideia de que toda origem do conhecimento se deve exclusivamente aos efeitos da experiência, assim como ao inatismo (apriorismo), que considera que as categorias do saber são biologicamente pré-formadas a título de condições anteriores a toda experiência. A teoria psicogenética de Piaget defende, entretanto, que entre o empirismo (ambientalismo) e o inatismo (maturacionismo) subsistem interpretações à base de interações e de autorregulações. Com isso, destaca que "o seu problema central é o da formação contínua de novas estruturas, as quais não estariam pré-formadas nem no meio nem no interior do próprio sujeito, mas no transcurso dos estágios anteriores de seu desenvolvimento" (Piaget, 2007, p. 60).

Com base nessas considerações, este artigo tem a perspectiva de compreender o conhecimento do homem por meio da epistemologia genética de Piaget, buscando desvelá-la no cenário da Educação Física Escolar.

Quando afirma que na origem do conhecimento não há nem sujeito nem objeto, mas um corpo com zonas de contatos com o mundo, Piaget abre a possibilidade de se pensar o papel da educação corporal no cenário da escola para a experiência de conhecer. Compreende-se que a Educação Física detém um conhecimento que se constitui por meio da relação do corpo movimentando-se com outros corpos. Desse modo, a Educação Física pode contribuir de forma significativa nos processos de ensino e aprendizagem do conhecimento, sobretudo de crianças, por meio de ações pedagógicas de professores que correlacionam ação motora e pensamento lógico. Assim, tem-se por objetivo traçar algumas contribuições da epistemologia genética de Piaget à Educação Física Escolar, buscando sinalizar alguns elementos que contribuam para a reflexão sobre a ação pedagógica do professor de Educação Física, sendo esta considerada como área de conhecimento que contribui para o desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e social dos sujeitos. Para tal, o estudo norteia-se pela seguinte questão: "Quais as contribuições da epistemologia genética de Piaget para a ação pedagógica do professor de Educação Física?". Para responder a essa questão serão apresentadas algumas considerações sobre a epistemologia genética de Piaget para, em seguida, definir quais as contribuições dessa epistemologia para a ação pedagógica do professor de Educação Física.

Compreendendo a epistemologia genética

A epistemologia genética é uma teoria fundada em uma linha evolutiva que busca compreender o desenvolvimento do ser humano, ou melhor, a gênese do conhecimento no ser humano, a partir de suas bases biológicas. Afirma Piaget:

De um modo geral, o problema apresentado pela epistemologia genética consiste em decidir se a gênese das estruturas cognitivas constitui apenas o conjunto das condições de acesso aos conhecimentos ou se ela atinge suas condições constitutivas. A alternativa é, pois, a seguinte: corresponde a gênese a uma hierarquia ou mesmo a uma filiação natural das estruturas, ou apenas descreve o processo temporal segundo o qual o indivíduo as descobre a título de realidades preexistentes? Neste último caso, isso seria o mesmo que dizer que essas estruturas estavam pré-formadas, quer nos objetos da realidade física, quer no próprio indivíduo a título de

a priori,

quer ainda no mundo ideal dos possíveis, num sentido platônico. Ora, a ambição da epistemologia genética era mostrar, pela análise da própria gênese, a insuficiência dessas três hipóteses, donde resulta a necessidade de ver na construção genética

lato sensu

uma construção efetivamente constitutiva (Piaget, 2007, p. 111).

Com isso, a epistemologia genética defende que o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito nem nas características preexistentes do objeto, e sim na interação produzida por ambos (sujeito e objeto). O desenvolvimento cognitivo não se processa unicamente pela experiência (pelas interações com o meio), tampouco é inato (seja genético ou hereditário). Assim, para compreender a teoria psicogenética do epistemólogo Jean Piaget faz-se necessário considerar que o conhecimento se consolida em um processo de construção em que se valorizam tanto os fatores internos do sujeito como os de interação do sujeito com a realidade (Piaget, 2007). Isso significa que "as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer" (Terra, 2006, p. 02).

Pergunta-se aqui: como, segundo a teoria piagetiana, este processo de construção do conhecimento é consolidado? Buscar-se-á sinalizar, sucintamente, alguns elementos fundamentais para a compreensão dessa construção. A constituição do conhecimento, na concepção de Piaget, efetua-se por meio de um mecanismo autorregulatório que consiste no processo de equilibração progressiva do organismo com o meio circundante. Este processo diz respeito a um constante desequilíbrio-adaptação-equilibração do organismo; ou seja, o organismo está incessantemente à busca do equilíbrio, o que envolve novas formas de adaptação, as quais se estabelecem a partir dos mecanismos de assimilação e acomodação.

A assimilação consiste na capacidade do indivíduo de solucionar uma determinada situação-problema a partir da estrutura cognitiva que ele possui naquele momento específico. Constitui-se, assim, como uma tentativa de integrar aspectos experienciais a esquemas previamente estruturados, visando sempre restabelecer a equilibração do organismo. A acomodação, apesar de referir-se a um mecanismo distinto da assimilação, torna-se indissociável da assimilação. A acomodação consiste na capacidade transformar uma estrutura mental antiga em uma nova, o que revela que a experiência é assimilada a uma estrutura de ideias já existentes (esquemas), podendo provocar uma transformação nesses esquemas e, assim, gerar um processo de acomodação (Terra, 2006).

De modo geral, a ideia que a epistemologia genética agrega à construção cognitiva se expressa a partir do processo autorregulatório do organismo - que compreende os processos de assimilação e acomodação do organismo -, já que não se poderiam buscar as raízes biológicas das estruturas cognitivas e a "explicação do fato de que elas se tornam necessárias nem numa ação exclusiva do meio, nem numa pré-formação baseada no puro inatismo, e sim nas autorregulações com seu funcionamento em circuitos e sua tendência intrínseca para a equilibração" (Piaget, 2007, p. 67).

Esse processo autorregulatório pode ser percebido a partir do processo de construção do conhecimento, o qual, segundo a teoria piagetiana, funda-se em quatro períodos que envolvem o desenvolvimento progressivo do ser humano: período sensório-motor (de zero a dois anos); período pré-operatório (de dois a sete anos); período das operações concretas (de sete a doze anos); e período das operações formais (a partir dos doze anos).

O primeiro nível em que se constitui o pensamento denomina-se sensório-motor. Nesse período o desenvolvimento ocorre a partir da atividade reflexa para a representação e soluções sensório-motoras dos problemas (Piaget, 1994). Ao nascer, o bebê ainda não consegue realizar diferenciação do sujeito e do objeto. Nessa fase, apesar de colocar tudo em relação com seu corpo, revelando um estado de egocentrismo, a criança não tem consciência de si mesma, ou seja, percebe o corpo como o centro do mundo, mas um centro que se ignora. Com isso, o reconhecimento do mundo se dá mediante ações motoras como chupar, olhar, agarrar, etc., ações que estabelecem a ligação do próprio corpo com o objeto e demonstram previamente que a criança já nasce com uma inteligência corporal.

Por volta dos dezoito aos vinte e quatro meses, ou seja, no intervalo de um ano e meio a dois anos, acontece a descentração das ações em relação ao próprio corpo, que a criança considera um objeto entre outros. Como decorrência de tal fato aparecem a função simbólica ou semiótica, a linguagem e a inteligência representativa, as quais marcam a passagem do período sensório-motor para o nível do pensamento pré-operatório. Com o surgimento da linguagem, a criança começa a distinguir os sons, as vozes humanas, ruídos e gritos (Piaget, 2007). A linguagem, a função semiótica e o advento da representação ou do pensamento contribuem significativamente para que o sujeito passe a considerar seu próprio corpo "um objeto no meio de outros, num universo espaço-temporal e causal de que ele passa a ser integrante na medida em que aprende a agir sobre ele" (Piaget, 2007, p. 12).

Essa diferenciação, a nível sensório-motor, é marcada simultaneamente "pela formação de coordenações e pela distinção entre elas de duas espécies: por um lado, as que ligam entre si as ações do sujeito e, por outro, aquelas que se referem às ações de uns objetos sobre outros" (Piaget, 2007, p. 14). Para a epistemologia genética, as que ligam entre si as ações do sujeito constituem as primeiras formas dessas coordenações gerais que estão na base das estruturas lógico-matemáticas; e as que se referem às ações de uns objetos sobre outros equivalem a conferir aos objetos uma organização espaço-temporal, cinemática ou dinâmica, análoga à das ações.

Vale destacar que os instrumentos de troca oriundos das coordenações nascentes entre as ações, o sujeito e os objetos, ao nível sensório-motor, continuam sendo de natureza material, já que constituídos pelas ações, o que significa que ainda há uma longa evolução para que se registre sua interiorização em operações; como não existem instrumentos semióticos na inteligência sensório-motora, os esquemas oriundos dessa inteligência ainda não são de fato conceitos, portanto não podem ser manipulados por um pensamento. É nesse ponto que a linguagem, o jogo simbólico e a imagem mental exercem papel fundamental, pois é a partir do surgimento de tais elementos que as ações simples, que asseguram as interdependências diretas entre o sujeito e os objetos, sobrepõem-se a um novo tipo de ação, o qual é interiorizado e mais precisamente conceitualizado.

Assim, com o decorrer do tempo as condutas sensório-motoras (ação) dão lugar às ações conceitualizadas (pensamento), em virtude do convívio social, dos progressos da inteligência pré-verbal1 1 Piaget (2007) mostra, baseado nos resultados da lingüística de Chomsky, que a inteligência precede a linguagem e que essa inteligência pré-verbal já comporta uma lógica, mas de coordenação de esquemas de ações. e da interiorização da imitação em representações, elementos essenciais para a aquisição da linguagem, as transmissões e interações sociais. Esta passagem não ocorre bruscamente, mas sob a forma de uma diferenciação lenta e laboriosa, ligada às transformações da assimilação, o que justifica o fato de as primeiras "funções constituintes", no período pré-operatório, ainda não estarem elaboradas. Isso significa que, a nível pré-operatório, o sujeito passa a classificar, seriar, pôr em correspondência com mais mobilidade e liberdade, apesar de ainda não atingir a reversibilidade e a conservação que caracterizarão as operações.

A assimilação dos objetos entre si, que constitui o fundamento de uma classificação, acarreta a primeira propriedade básica do conceito, a qual consiste na compreensão do "todos" e do "alguns"; ou seja, no primeiro subestágio do pensamento pré-operatório (entre os dois e quatro anos, aproximadamente) os únicos mediadores entre o sujeito e os objetos ainda não são mais do que preconceitos e pré-relações, já que ainda não há a determinação exata do "todos" e do "alguns", o que dificulta a relação da subclasse com a classe.

No segundo nível pré-operatório, por volta dos cinco a seis anos, há um início de descentração que permite a descoberta de certas ligações objetivas, denominadas de "funções constituintes", as quais possuem um caráter orientado, mas são desprovidas de reversibilidade, portanto não comportam conservações necessárias.

Os elementos reversibilidade e conservação passam a configurar-se de forma mais concreta a partir dos sete anos, quando é introduzida a fase das operações concretas. Assim, as ações conceitualizadas começam a adquirir a categoria de operações enquanto transformações reversíveis, modificando certas variáveis e conservando outras a título de invariantes (Piaget, 2007). Até o período pré-operatório o sujeito orienta suas manipulações num único sentido do percurso (> ou <) e embaraça-se quando lhe fazem perguntas relativas ao outro sentido possível.

A partir do estágio das operações concretas o sujeito passa a considerar os dois sentidos ao mesmo tempo (> D e < F), assegurando a reversibilidade do sistema. Assim, a criança começa a estabelecer relações e compreender, por exemplo, que um sujeito A tem um irmão B, e que, ao mesmo tempo, esse irmão B tem um irmão (que no caso é o sujeito A, já que só são dois na família) (Piaget, 2007).

Vale ressaltar que, apesar de a criança começar a realizar mentalmente operações (e não mais em ações físicas, típicas da inteligência sensório-motora) que exigem princípios de reversibilidade e conservação, isso se estabelece a partir da manipulação ou imaginação de situações ou objetos de forma concreta. Por exemplo, ao se perguntar a uma criança "A" qual criança, "C" ou "D", é maior (tem maior estatura), ela conseguirá responder corretamente, estando estas apenas diante de seus olhos, sem ser preciso medi-las; mas se as crianças não estiverem concretamente à sua visão, a resposta certamente será dada com dificuldade. Tal capacidade será construída ao longo dos estágios operatório concreto e formal. Destaca-se também que a capacidade de reversibilidade contribui para que a criança estabeleça relações e coordene pontos de vista diferentes, colocando-se na posição de outrem em determinada situação, ou seja, contribuindo para níveis mais elevados no que diz respeito à moralidade (Terra, 2006).

O período das operações formais constitui-se por volta dos onze a doze anos. De acordo com Piaget (2007, p. 48), nessa fase "o conhecimento supera o próprio real para inserir-se no possível e ligar diretamente o possível ao necessário sem a mediação indispensável do conceito". Essa capacidade de ultrapassar o real se deve ao poder de formar operações sobre operações e raciocinar sobre hipóteses, formando esquemas conceituais abstratos e através destes, executar operações mentais dentro de princípios da lógica formal. De acordo com a teoria piagetiana, o indivíduo, ao adentrar esta fase, consegue alcançar o padrão intelectual que prevalecerá na idade adulta, o que não significa que haverá estagnação das funções cognitivas, podendo haver ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em profundidade (Terra, 2006).

Destarte, em síntese, as estruturas mentais se desenvolvem e organizam-se a partir de uma centração inicial a nível sensório-motor, sem haver diferenciações e relações entre sujeito e objeto; com o surgimento da linguagem e da função semiótica, há assimilação dos objetos e de seus poderes aos caracteres subjetivos da própria ação, o que contribui para as primeiras construções das ações conceitualizadas. Posteriormente há uma nova descentração entre conceitos e ações conceitualizadas. Pelas ações interiorizadas ou conceitualizadas as estruturas cognitivas vão adquirindo a categoria de operações e assegurando o princípio de reversibilidade, para então conseguir formar operações sobre operações.

Epistemologia genética e educação física

Com base nessa breve explanação acerca da epistemologia genética de Jean Piaget busca-se traçar algumas contribuições para o cenário da Educação Física Escolar.

A primeira reflexão que se põe ao leitor está amparada na proposição construtivista/interacionista a respeito da origem do conhecimento, a qual considera que o conhecimento se consolida na interação do sujeito com o objeto, pensada, originalmente, por meio das relações entre o corpo com suas estruturas sensório-motoras e o mundo. Essa proposição provoca reflexões pedagógicas, uma vez que se percebe o aluno como um sujeito em construção, o que implica que o ensino escolar deve ser direcionado para colaborar com essa construção; logo, não se podem conceber os processos educativos como mera transmissão mecânica de aprendizagens, em que o aluno é concebido como passivo no processo educativo. É preciso considerar o aluno como integrante participativo e essencial para a construção do conhecimento, já que este se constitui no entrelaçamento de quem conhece (o sujeito) e do que é conhecível (o objeto) (Moro, 1990). Tal entrelaçamento se constrói numa relação em que se usam, de maneira articulada, a ação, o sentir e o pensar. A Educação Física Escolar não está isolada dessa reflexão: é necessário suplantar a execução de meras tarefas corporais e ressignificá-las ao serem vivenciadas e descobertas pelo próprio aluno, em um movimento imbricado entre as ações do corpo e os modos de sentir e de pensar o mundo.

A teoria de Piaget defende que as estruturas da inteligência são progressivamente transformadas, respeitando-se certa sequência, necessária para a incorporação do conhecimento. Com isso, é fundamental que os educadores respeitem a fase de desenvolvimento em que a criança se encontra, propondo atividades educativas compatíveis com tal fase e úteis à evolução infantil. Por exemplo, ao se trabalhar o conteúdo jogo com crianças do ensino infantil (até cinco anos), não é coerente propor jogos que exijam princípios de reversibilidade, conservação, classificação ou seriação (como a bandeirinha, a queimada, jogos de estafeta, etc.), e sim, jogos simbólicos, de representação e de imitação. De acordo com Piaget (1975), quando participa de um jogo simbólico, a criança exercita uma "forma singular de pensamento que é a imaginação" (p. 155).

Nas aulas de Educação Física os professores podem usar jogos que levem os alunos a não somente executar movimentos, mas também a usar ações pedagógicas capazes de correlacionar a ação motora com a imaginação de papéis sociais. Nesse sentido, o recurso da faculdade de imaginar pode levar as crianças, sob a orientação do professor de Educação Física, a pensar que suas ações não são meras execuções corporais, mas o desempenho de papéis a partir de atividades lúdicas. Ao fazer isso, o professor estará associando, nas aulas, ação motora e pensamento.

O estudo de Knijnik e cols. (2002) elucida essa reflexão a partir da teoria piagetiana. Estes pesquisadores comprovaram a teoria piagetiana ao proporem um jogo de regras (pique tesouro) para crianças de quatro anos de idade (estágio pré-operatório). Essas crianças não conseguiram realizar a atividade proposta ou atuar em grupo, realizando o jogo muito mais como uma brincadeira de fantasia, com base na imaginação. Os autores ressaltam que o erro (a não concretização da atividade pelas crianças) deveu-se às características próprias de crianças no estágio pré-operatório, de acordo com o modelo piagetiano. Em virtude da ausência de reversibilidade na criança de quatro anos, descrita nesse modelo, e da presença exacerbada da fantasia, a criança tem dificuldades em compreender um jogo de regras, tornando-se impossível a realização deste tipo de atividade. Além disso, o forte egocentrismo cognitivo das crianças nesse estágio as impossibilita de integrar-se coletivamente em um grupo e realizar atividades verdadeiramente sociais.

Isto não significa que não se devam propor atividades coletivas às crianças que se encontram nessa fase de desenvolvimento. A teoria de Piaget (1994, 2007) deixa claro que a interação social desfrutada pela criança é condição necessária à construção cognitiva. Com isso, Piaget ressaltava a importância das transmissões socioculturais e das interações sociais para a construção do conhecimento, as quais são condição necessária para o desenvolvimento cognitivo; ou seja, à medida que participa de interações coletivas, o indivíduo constrói-se também intelectualmente.

Sobre isto assim se pronunciam Cavalcante e Ortega:

O desenvolvimento mental do indivíduo, segundo Piaget, é acelerado pela transmissão social, pois a construção operatória, que traduz em estruturas mentais as potencialidades proporcionadas pelo sistema nervoso, apenas se efetua devido às funções de interações dos indivíduos. É a interdependência entre os fatores mentais e as relações interindividuais que contribui para a construção progressiva das operações intelectuais. A relação interindividual produz transformações nos sujeitos individualmente: um sujeito contribuindo para a transformação do outro e vice-versa (Cavalcante & Ortega, 2008, p. 450).

Cavalcante e Ortega (2008), ao se proporem analisar, em um contexto microgenético, o funcionamento cognitivo de crianças por meio do jogo Matix2 2 O Matix é um jogo de tabuleiro, criado na Alemanha, e possui duas versões: uma com 36 casas e outra com 64 casas. Optou-se no referido estudo pela versão de 36 casas em razão do tempo disponível das crianças para a pesquisa. As casas do jogo são preenchidas por um número correspondente de peças, que são assim compostas: 0 (três peças); 1, 2, 3 e 4 (duas peças de cada); 5 (quatro peças); 6 (uma peça); 7, 8 e 10 (duas peças de cada); 15 (uma peça); -1, -2, -3, -4, -5 e -10 (duas peças de cada); e uma peça-coringa. O objetivo do jogo consiste em retirar uma a uma as peças do tabuleiro e conseguir o maior número de pontos. Para isso, somam-se as peças de valor positivo e subtraem-se as de valor negativo. Deve ser jogado por pelo menos duas pessoas: uma joga no sentido horizontal (linhas) do tabuleiro e a outra, no sentido vertical (colunas) (Cavalcante e Ortega, 2008). , constataram que o progresso cognitivo parece estar associado às condições cognitivas de cada sujeito e à possibilidade de sua inter-relação com os parceiros e verificaram que o contexto de jogo propiciou a manifestação de diversas formas de relação entre os participantes e que essas relações contribuíram para o avanço da compreensão do sistema lógico contido no jogo.

Freire (2005) revela uma experiência relevante ao elaborar um programa de atividades físicas que consistia em explorar noções de classificação, de seriação e de conservação, com o intuito de contribuir para a superação de alunos que apresentavam insucesso no aprendizado de matérias escolares como Português e Matemática. Esses conhecimentos deveriam ser incorporados à vida do aluno, "abrindo-lhe a possibilidade de ser livre, de decidir de acordo com sua própria consciência" (p. 05). As atividades consistiram em colocar os conhecimentos dos alunos em conflito com os dados novos ainda desconhecidos por eles. Foram selecionadas vinte e quatro crianças para participar dessas atividades nas aulas de Educação Física. Os resultados obtidos revelaram 80% de melhora na resolução dos problemas. Ressalte-se que o estudo desenvolvido proporcionou a passagem do plano das práticas corporais para o plano da compreensão, ou seja, a transformação de conceitos motores em conceitos teóricos. Assim, o autor revela que a pedagogia abordada permitiu que os conhecimentos transitassem da ação motora à consciência e desta ao conhecimento lógico, e que, além disso, as crianças ultrapassassem o plano imediato das ações práticas e ganhassem alguma autonomia que pudesse fazer com que o conhecimento assim produzido se generalizasse a outras ações distantes no espaço e no tempo.

O autor destaca que não é tarefa da Educação Física pôr-se a serviço de outras disciplinas como auxiliar, mas, sem perder sua especificidade, ela pode repercutir fortemente no aprendizado de outras matérias escolares e, principalmente, em aprendizados que serão vividos em seu cotidiano. Além disso, ressalta-se a relação existente entre os conhecimentos corporais e aqueles advindos das estruturas mentais, já que ambos se completam e, simultaneamente, auxiliam-se mutuamente no desenvolvimento da criança.

Nesse sentido, Piaget (1977) destaca que o fator social constitui uma condição do desenvolvimento humano, de modo que o indivíduo não adquire as estruturas mentais essenciais sem uma contribuição do meio em que vive. Não obstante, vale ressaltar que a epistemologia genética, teoria defendida por Piaget (2007) sobre a compreensão da gênese do conhecimento no ser humano, mostra que o desenvolvimento cognitivo não se dá unicamente através da experiência (das interações com o meio), tampouco é inato (seja genético ou hereditário). O autor considera que o conhecimento se consolida em um processo de construção a partir da interação entre o sujeito do conhecimento e o mundo a ser conhecido. Nesse processo de construção do conhecimento, valorizam-se tanto os fatores internos do sujeito quanto os fatores de interação do sujeito com a realidade. Isso significa que "as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer" (Terra, 2006, p.02).

Nessa perspectiva, os valores são construídos nas interações cotidianas. Isto significa que Piaget

(...) recusa tanto as teses aprioristas de que os valores são inatos quanto as teses empiristas de que eles são resultantes das pressões do meio social sobre as pessoas. Nessa concepção, de um construtivismo radical, os valores nem estão predeterminados nem são simples internalizações (de fora para dentro), mas resultantes das ações do sujeito sobre o mundo objetivo e subjetivo em que ele vive (Araújo, 2007, p. 20).

Assim, acredita-se que os conhecimentos oriundos da escola perpassam, além dos conhecimentos tradicionais, pelos conhecimentos decorrentes das relações sociais possibilitadas pelo convívio com o outro. Para Piaget (1994, 2007), as interações sociais desfrutadas pela criança são imprescindíveis para seu desenvolvimento. De acordo com o autor, os indivíduos são modificados mediante suas relações sociais, ou seja, o pensamento sociológico é tratado a partir de uma noção de totalidade, o que significa que a vida em sociedade se constitui a partir de três tipos de interações interindividuais: as regras, os valores de troca (reciprocidade) e os signos. "A totalidade social está constituída por uma composição aditiva de todas interações em jogo"3 3 As traduções do espanhol para o português foram feitas pela autora do texto. (Piaget, 1986, p. 40):

Assim, pois, parece que toda interação social se manifesta sob a forma de regras, de valores e de signos. A mesma sociedade constitui, por outra parte, um sistema de interações que começa com as relações dos indivíduos dois a dois e se estende até as interações entre cada um deles e o conjunto dos outros, até as ações de todos os indivíduos anteriores, ou seja, de todas as interações históricas, sobre os indivíduos atuais (Piaget, 1986, p. 39).

Nesse contexto a escola exerce o papel fundamental de propor práticas pedagógicas que fomentem as relações entre as crianças e a aprendizagem de como conviver socialmente, contribuindo para a construção de uma sociedade fundada em valores morais. Pensar a educação moral como processo de construção implica buscar a formação de sujeitos que pensem, julguem, criem, critiquem, reconheçam e decidam por si mesmos; ou seja, implica a formação de sujeitos autônomos, concebendo, então, a moralidade como produto cultural, social e educativo, compreensão que é essencial para os sujeitos enfrentarem autonomamente os desafios da formação moral no mundo contemporâneo.

Considera-se a Educação Física como disciplina privilegiada no contexto escolar para oportunizar aos alunos atividades que promovam a interação e a socialização entre eles, possibilitando-lhes o exercício de aprender a conviver; num encontro entre o individual e o coletivo, contribuindo para o desenvolvimento da capacidade cognitiva.

Além disso, a gênese do conhecimento se fundamenta essencialmente no corpo. De acordo com a epistemologia genética (Piaget, 2007), o bebê, ao nascer, não tem consciência de que ele é um sujeito corporal. Centra-se no seu corpo, onde descobre o mundo que o rodeia a partir de ações motoras. O ato motor, nessa fase, é de fundamental importância para a criança e seu desenvolvimento, pois é o único recurso de que ela dispõe para efetuar uma interação com o mundo que a cerca e é por meio dele que todos os outros aspectos (cognitivos, afetivos, etc.) se manifestam, efetivando-se de fato em um só tipo de comportamento: o motor (Knijnik e cols., 2002).

De acordo com Rappaport, Fiori e Herzberg (1982), a criança descobre o seu corpo e inicia a formação do seu primeiro autoconceito, diferenciando-se dos objetos que a cercam e estabelecendo seu esquema corporal pelo movimento. Esse autoconceito inicial (que se ampliará muito no decorrer da vida) tem o seu ponto de partida no das partes do corpo: é nesta primeira estruturação do seu esquema corporal que a criança começará a construir o seu eu, sua primeira identidade pessoal.

Nesse sentido, os conhecimentos sobre o corpo constituem um importante conteúdo para integrar a prática pedagógica do professor de Educação Física Escolar, na medida em que se entende que conhecer o corpo é conhecer a si mesmo; de modo que o corpo seja considerado sede de sensações e emoções. Conduzir o aluno a compreender a dimensão emocional que se expressa nas práticas da cultura corporal de movimento e a percepção do corpo sensível e emotivo por meio de vivências corporais, descobrindo limites e possibilidades (Brasil, 1998; Darido & Rangel, 2008) é uma forma de construção do eu e de reconhecimento da singularidade de cada um, ou seja, é uma possibilidade de trabalhar o autoconceito, contribuir para a estruturação do esquema corporal e, então, da construção das estruturas do pensamento.

Com isso, fica clara a importância do desenvolvimento motor na infância para a evolução dos estágios de desenvolvimento da inteligência. No cenário da Educação Física Escolar, destaca-se o jogo como rico conteúdo para promover a socialização e interação entre as crianças e destas com o meio que as circunda. Segundo a epistemologia genética (Piaget, 2007), o jogo é altamente significativo para uma efetiva construção das estruturas mentais do sujeito. Alguns estudos (Camargo & Suleiman, 2006; Ferraz, 1997; Kammi & De Vries, 1991; Sena, 2007) revelam o jogo como uma ferramenta pedagógica que contribui para a formação do ser humano, sobretudo para o desenvolvimento da inteligência, durante a infância.

Segundo Santos e Ortega (2009), a prática do jogo pode se transformar em um recurso didático poderoso quando utilizado com sistematização, propósitos claros e conteúdos explicitados. Para os autores, o jogo pode estimular a construção de esquemas cada vez mais complexos, permitindo a construção de competências que permitam articular tais esquemas com os próprios desafios do jogo e do cotidiano dos jogadores. Sendo assim, apesar de o referido estudo ter como objetivo focar o jogo para avaliação do aspecto cognitivo, é possível identificar uma relação entre tal aspecto, o afetivo (considerando-se o individual e o coletivo) e o motivacional na prática do jogo.

Camargo e Suleiman (2006) também destacam o jogo como ferramenta poderosa para promover o desenvolvimento, pois pode ser proposto como atividade que desencadeia no aluno a busca de resoluções e estratégias. Por meio da consciência das regras, o jogo pode estimular o espírito de iniciativa e independência, conduzindo o aluno à conquista da autonomia. Além disso, os autores ressaltam o trabalho com jogos como subsídio para promover a socialização entre os alunos e a conscientização do trabalho em equipe. Afirmam:

O jogo requer a participação ativa do aluno, que aprende a tomar decisões e a saber avaliá-las. São momentos em que há desenvolvimento da criatividade e do senso crítico. Particularmente, a participação em jogos de grupo permite a conquista cognitiva, emocional, moral e social para o estudante, uma vez que, "pensando", estando motivado e tomando decisões, ele busca estratégias para a obtenção de objetivos comuns, através da vivência nas situações de cooperação (Camargo & Suleiman, 2006, p. 205).

Na prática pedagógica também se considera o jogo como conteúdo representativo para as aulas de Educação Física Escolar pois pode contribuir para o desenvolvimento social, cognitivo, motor e afetivo da criança. Neste sentido, parece-nos importante mostrar aqui uma experiência pedagógica que muito significou para o aprendizado de alunos do 3º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de Natal/RN ao tematizar o jogo da peteca nas aulas de Educação Física. Realizamos uma leitura coletiva de um texto retirado da internet "Jogos infantis: a peteca" (Kishimoto, 1993), que perpassa pela historicidade da peteca, considerando sua origem e modificações ocorridas no decorrer do tempo no que se refere a questões relacionadas a esse jogo. Assim, buscou-se contextualizar a peteca enquanto jogo recreativo e brinquedo até a sua institucionalização como jogo esportivo. Posteriormente, as crianças confeccionaram com jornal suas próprias petecas, vivenciaram o jogo e construindo as regras coletivamente, em pequenos e grandes grupos.

Pode-se observar que a tematização da peteca se apresentou com um elevado nível de complexidade e exigência cognitiva em todas as fases (na contextualização, na confecção, na vivência do jogo) do processo educativo. Assim, acredita-se que essa experiência contribuiu tanto para o desenvolvimento motor das crianças como para o desenvolvimento cognitivo, exigindo delas princípios de reversibilidade, conservação e organização, e despertando-a para a busca de resoluções e estratégias. Também contribui para o desenvolvimento afetivo, pois no caso em foco proporcionou momentos de socialização e integração entre as crianças, desencadeando atitudes ligadas a valores e normas ao participarem coletivamente da aula. Destaca-se que os aspectos cognitivo, social, afetivo e motor não se constituíram isoladamente em determinados momentos da aula, mas de forma entrelaçada, num movimento simultâneo de aprendizagens.

A organização social do jogo, a compreensão das regras e a própria execução dos movimentos exigem maturidade cognitiva do sujeito, o que leva a entender que o desenvolvimento motor exerce expressiva influência no desenvolvimento cognitivo.

Nesse contexto, o movimento humano expresso no jogo da queimada, do "escravos de jó", do pega-pega, da bandeirinha, da peteca e de tantos outros jogos populares constitui-se como manifestação social, afetiva e cognitiva. Isso significa que a criança, ao jogar, desenvolve toda a inteligência expressa pelo corpo, trazendo, implícitas no movimento vivenciado, contribuições para a construção das estruturas do pensamento.

A partir desse entendimento de movimento torna-se incompreensível, na prática pedagógica do professor, separar o saber-fazer (ligado aos procedimentos) com o saber-pensar (ligado ao pensamento) e com o saber-sentir (ligado às atitudes). Essas dimensões (procedimental, conceitual e atitudinal) estão relacionadas aos aspectos motor, cognitivo e afetivo e devem ser contempladas nas aulas de Educação Física Escolar, uma vez que o objeto central da cultura corporal de movimento gira em torno do fazer, do compreender e do sentir com o corpo (Brasil, 1998; Darido & Rangel, 2008) e que "o movimento, o jogo, a ação corporal e a vivência das sensações constituem o elo entre o eu, o mundo e os outros, o primeiro plano de um fazer mental e expressivo" (Colello, 1993, p. 60).

Destarte, a epistemologia genética de Piaget permite perceber na Educação Física ricas possibilidades educativas. Considera-se que as aprendizagens oriundas na Educação Física Escolar perpassam pela construção ou reconstrução de estruturas lógicas do pensamento, já que toda aprendizagem requer a formação e a transformação das estruturas do pensamento, da autorregulações e do desenvolvimento da lógica cognitiva.

Assim, a Educação Física Escolar tem um papel fundamental no ato educativo da criança, que com ela adquire um conhecimento de natureza vivencial, baseado na expressão e na linguagem do corpo em movimento. Ademais, é um rico fator de aprendizagens, no sentido de contribuir decisivamente para o desenvolvimento social e afetivo e para a construção cognitiva dos sujeitos envolvidos no processo educativo.

Considerações finais

A epistemologia genética permitiu, neste estudo, lançar à Educação Física Escolar um olhar que percebesse a experiência corporal como uma experiência que pode ser considerada de forma associada ao pensamento lógico. Assim, é possível pensar as aulas de Educação Física como espaço de ação reflexiva e não de mera realização de ações motoras.

A ação pedagógica do professor de Educação Física pode estar amparada em uma epistemologia que valorize o processo de construção do conhecimento por meio da integração entre gesto motor e a atividade de pensar. Isso significa a superação de posturas epistemológicas empiristas ou aprioristas (Piaget, 2007), que pode nos conduzir a dissociar a experiência de agir da de pensar. Pensar, para Piaget, é sempre um ato que nasce das ações sensório-motoras do sujeito que conhece. Tal perspectiva nos leva a considerar as aulas de Educação Física como um espaço pedagógico propício à formação de sujeitos em construção cognitiva, social, motora e afetiva.

A epistemologia genética (Piaget, 2007) apresenta-se não apenas como uma teoria para explicar a experiência do conhecimento, mas, sobretudo, para sugerir uma prática pedagógica fundada no entendimento de que conhecer é uma construção que nasce da relação do corpo que age e sente o mundo. Nesse sentido, como perspectiva pedagógica, a epistemologia genética de Piaget pode ser uma ferramenta para o professor de Educação Física conhecer o processo de desenvolvimento humano, de construção das estruturas mentais e do desenvolvimento dos diferentes aspectos do comportamento.

Por fim, reafirma-se que o desenvolvimento motor exerce papel fundamental no desenvolvimento cognitivo, na medida em que se considera o movimentar-se dotado de sentidos e significados e como expressão social e cognitiva. Além disso, os pressupostos epistemológicos que regem a teoria piagetiana conferem oportunidades de socialização e integração, que são condições essenciais para o desenvolvimento cognitivo da criança, o que reafirma a rica contribuição que a Educação Física pode oferecer para a construção do pensamento, das estruturas mentais e do desenvolvimento cognitivo da criança. Nessa dinâmica de associar o desenvolvimento motor ao desenvolvimento cognitivo, o corpo se constitui como elemento-chave da prática pedagógica. Há uma inteligência expressa pelo corpo que se movimenta: um corpo que é intercâmbio social, vivência simbólica, comunicação e expressão.

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Recebido em: 29/06/2012

1ª. Reformulação em: 19/12/2012

2ª. Reformulação em: 28/05/2013

Aprovado em: 19/09/2013

Sobre os autores

Glycia Melo de Oliveira (glyciam@yahoo.com.br)

Mestre em Educação Física - Programa Associado de Pós-Graduação UPE/UFPB

Iraquitan de Oliveira Caminha (iraqui@uol.com.br)

Doutor em Filosofia - Université Catholique de Louvain

Docente do Departamento de Educação Física da Universidade Federal da Paraíba

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  • 1
    Piaget (2007) mostra, baseado nos resultados da lingüística de Chomsky, que a inteligência precede a linguagem e que essa inteligência pré-verbal já comporta uma lógica, mas de coordenação de esquemas de ações.
  • 2
    O
    Matix é um jogo de tabuleiro, criado na Alemanha, e possui duas versões: uma com 36 casas e outra com 64 casas. Optou-se no referido estudo pela versão de 36 casas em razão do tempo disponível das crianças para a pesquisa. As casas do jogo são preenchidas por um número correspondente de peças, que são assim compostas: 0 (três peças); 1, 2, 3 e 4 (duas peças de cada); 5 (quatro peças); 6 (uma peça); 7, 8 e 10 (duas peças de cada); 15 (uma peça); -1, -2, -3, -4, -5 e -10 (duas peças de cada); e uma peça-coringa. O objetivo do jogo consiste em retirar uma a uma as peças do tabuleiro e conseguir o maior número de pontos. Para isso, somam-se as peças de valor positivo e subtraem-se as de valor negativo. Deve ser jogado por pelo menos duas pessoas: uma joga no sentido horizontal (linhas) do tabuleiro e a outra, no sentido vertical (colunas) (Cavalcante e Ortega, 2008).
  • 3
    As traduções do espanhol para o português foram feitas pela autora do texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2012
    • Aceito
      19 Set 2013
    • Revisado
      28 Maio 2013
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