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Trabalho, classe operária e proteção social: reflexões e inquietações

Labor, working class and social protection: reflections and disturbances

Resumos

O presente artigo aborda o trabalho, a classe operária e as inquietações que recaem sobre a proteção social, na atualidade, explicitando de forma reflexiva os processos sociais que a reconfiguram. Evidencia que as contradições no desenvolvimento das forças produtivas estão presentes nas relações sociais e suas formas de reprodução contemporânea, as quais têm forte impacto na sociabilidade da classe operária. Aponta a fratura entre trabalho e proteção social, contextualizada no âmbito de novos processos societários resultantes da valoração predatória do capital.

trabalho; classe operária; proteção social


This study looks at labor, the working class and the current disturbances to social protection, explaining in a reflexive manner the social processes that shape it. It reveals that the contradictions in the development of the productive forces are present in the social relations and their forms of contemporary reproduction, which have a strong impact on the sociability of the working class. It indicates the gap between work and social protection, contextualized in the realm of new corporate processes resulting from the predatory action of capital.

labor; working class; social protection


DOSSIÊ: AS CONFIGURAÇÕES DO TRABALHO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

ARTIGO

Trabalho, classe operária e proteção social: reflexões e inquietações

Labor, working class and social protection: reflections and disturbances

Jussara Maria Rosa Mendes; Dolores Sanches Wünsch

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

RESUMO

O presente artigo aborda o trabalho, a classe operária e as inquietações que recaem sobre a proteção social, na atualidade, explicitando de forma reflexiva os processos sociais que a reconfiguram. Evidencia que as contradições no desenvolvimento das forças produtivas estão presentes nas relações sociais e suas formas de reprodução contemporânea, as quais têm forte impacto na sociabilidade da classe operária. Aponta a fratura entre trabalho e proteção social, contextualizada no âmbito de novos processos societários resultantes da valoração predatória do capital.

Palavras-chave: trabalho, classe operária, proteção social.

ABSTRACT

This study looks at labor, the working class and the current disturbances to social protection, explaining in a reflexive manner the social processes that shape it. It reveals that the contradictions in the development of the productive forces are present in the social relations and their forms of contemporary reproduction, which have a strong impact on the sociability of the working class. It indicates the gap between work and social protection, contextualized in the realm of new corporate processes resulting from the predatory action of capital.

Key words: labor, working class, social protection.

Introdução

O debate atual sobre trabalho (re)coloca no seu cerne duas categorias centrais: a conformação da classe operária e a proteção social; a primeira é fundamental para a compreensão da centralidade do trabalho na contemporaneidade, e a segunda expressa a fratura resultante do crescimento imperioso do capital sobre os produtores da riqueza social.

O presente artigo tem como proposta evidenciar elementos importantes que se encontram presentes no desenvolvimento das forças produtivas, na organização do trabalho e do sistema de proteção social. Tem-se como indicativo que o trabalho e suas mutações permanecem centrais para o processo de valoração do capital e para o exame das novas configurações da classe operária. Constata-se uma imensa fratura entre o trabalho e os direitos de proteção social originários das contradições históricas entre trabalho e capital.

O emprego, neste artigo, do termo "classe operária" objetiva revalidar o significado histórico da mesma, na atualidade. A classe operária, como categoria de análise, permite abstrair elementos que vêm contribuindo para a compreensão do seu processo de mutação. Fundamentalmente, porque a classe operária é um produto histórico do capitalismo e, ao longo do seu desenvolvimento, vem sofrendo transformações quantitativas e qualitativas, e, principalmente, por ter seu protagonismo na construção dos pilares de uma sociedade igualitária e um papel central na construção do sistema de proteção social.

A proteção social se constituiu em um sistema universal ao longo do século 20, sendo endógena à sociedade salarial. Transformou-se num dos mecanismos de enfrentamento da questão social, que expressa o conflito das relações sociais na sociedade capitalista e as contradições entre produção coletiva e apropriação privada da riqueza social. As mutações do trabalho e o recrudescimento da sociedade salarial desestabilizam os pilares deste sistema e deixam à margem um incontável número de trabalhadores que hoje compõem a classe que historicamente vem produzindo a riqueza social. São novas nuanças que conformam esta classe social e sua sociabilidade no cenário atual, evidenciando as contradições sociais no âmbito da reprodução das relações sociais. Reafirma-se que o trabalho ocupa lugar central ao longo da vida humana, como afirma Lukács (apud ANTUNES; CHASSUDOVSKY; BRIGOS, 2008) pela produção e reprodução da existência, bem como pela conquista da dignidade da humanidade e da felicidade social.

1 Mutações do trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas

A apreensão do real em movimento tem possibilitado identificar as características centrais que vêm reconfigurando o chamado "mundo" do trabalho. São elementos desta realidade: a reestruturação produtiva, as diferentes formas de produção, de gestão e organização do trabalho, as condições e relações de trabalho precarizadas, a intensificação do trabalho, o mercado globalizado e a expropriação dos direitos que resultam em instabilidade, incertezas e inseguranças para os trabalhadores. Este fenômeno contemporâneo se distingue pelo aumento da acumulação capitalista e pelos processos de exclusão social, que, aliados às alterações no papel do Estado, trazem novas determinações para o sistema de proteção social e mudanças na esfera ideológica, política e cultural. Trazem, acima de tudo, novas determinações para a classe operária que incidem na sua forma de ser e viver.

A vigência do sistema de produção capitalista historicamente patenteou o trabalho como categoria central e estabeleceu uma dualidade contraditória e complexa entre capital e trabalho. De um lado, o trabalho afirma-se como elemento insubstituível no processo de produção e reprodução do capital, como impulsionador do desenvolvimento social, tecnológico, econômico. E, por outro lado, os trabalhadores ficam alijados do produto deste desenvolvimento, ao mesmo tempo em que ocorre a redução crescente da absorção da força de trabalho, numa reorganização dos processos de trabalho com ampliação da sua produtividade, fortalecendo o sistema de acumulação do capital.

Desenvolvem-se práticas produtivas que, segundo Mészaros (2002), estão presentes no desenvolvimento do sistema do capital, na sua história de expansão global, que se vincula à subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor de troca das mercadorias. Onde o valor de uso relativo à necessidade e/ou à utilidade das mercadorias é suplantado pela produção de valor que se auto-expande a partir da criação de novas necessidades. Desse modo, o aumento imperioso da produtividade deve responder à tendência decrescente do valor de uso das mercadorias, assim como transformar o trabalho no processo mais radical de alienação. Essa é uma dimensão contraditória constante no trabalho, na qual "o mundo da mercadoria, o mundo do capital, transforma, degrada a vida e subordina, humaniza e degrada, libera e escraviza, emancipa e aliena" (ANTUNES; CHASSUDOVSKY; BRIGOS, 2008, p. 24). Estas são questões centrais nos debates sobre o trabalho, que evidenciam uma tendência sempre presente de "coisificação" do trabalhador na esfera produtiva e da sua expropriação como característica essencial da expansão das relações sociais capitalistas. Revela que "o capital, em seu movimento de valorização, produz a sua 'invisibilidade trabalho' e a 'banalização do humano', condizentes com a indiferença ante a esfera das necessidades sociais e dos valores de uso (IAMAMOTO, 2007, p. 53, grifos da autora).

O processo de valorização do capital é evidenciado nas diferentes configurações econômicas e sociais de cada período de desenvolvimento histórico, demonstrando que "[...] o que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz" (MARX, 1980, p. 204). As mudanças nos processos de trabalho têm implicações nas formas das relações sociais; na verdade, esses processos são organizados e executados como produto de tais relações. Em determinadas épocas, essas relações entram em conflito, rompendo seus limites, porém, segundo Braverman (1987, p. 27), "as mesmas forças produtivas características do fecho de uma época de relações sociais são também características da abertura da época seguinte." As mudanças observadas nos processos de produção, na sua base material e organizacional, incidem sobre as relações de produção e, consequentemente, sobre todas as relações sociais. A transição do processo de produção fordista/taylorista para a vigência de um novo padrão industrial e tecnológico, com novas modalidades de organização e gestão do trabalho, o qual tem recebido a denominação de reestruturação produtiva, com base no modelo toyotista e/ou acumulação flexível1 1 Segundo Ianni (1994), a acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo e se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. , traduz esta era de transformação das relações sociais.

Vivenciam-se tempos em que o "velho" e o "novo" modelos de gestão e organização do trabalho se confrontam, acentuando as contradições sociais presentes. A classe operária sofre nuanças de conformação como classe social. Mas o novo não pode esconder a "herança" da cultura do processo anterior. Entre suas características está a coexistência do trabalhador polivalente, especializado e, consequentemente, com maior nível de instrução, com o trabalhador "massa" do fordismo. A transformação operada nos processos produtivos traz novas exigências, deixando para trás um passivo de trabalhadores "úteis", desqualificados e hostilizados para os padrões do "mundo do trabalho desenvolvido em contraposição a um mundo do trabalho subdesenvolvido". Ambos vivem no mesmo mundo, subjugados a processos, por vezes, muito próximos. Cria-se, portanto, um trabalho com novas formas, significados e sentidos. Ocorrem implicações também no âmbito da consciência destes trabalhadores. O padrão de gestão industrial, bem como suas ramificações para as diferentes áreas de serviços, vem estabelecendo novos modelos de comportamento e estimulando diferentes níveis de "participação". Ocorre, por parte das empresas, uma espécie de tentativa de despertar nos trabalhadores a consciência de que podem aperfeiçoar o processo de trabalho por seu esforço e mérito, desenvolvendo o sentimento de participação (IANNI, 1994), ou, como bem define Braverman (1974, p. 43), esse padrão de gestão representa muito mais um estilo de administração do que alteração na situação do trabalhador, pois a pretensa participação acaba por "[...] escolher entre alternativas fixas e limitadas, projetadas pela administração, que deliberadamente deixa coisas insignificantes para escolha."

Verifica-se que o resultado final deste processo tem sido o aumento da produtividade, tendo como consequência a diminuição da força de trabalho a ser absorvida, que, associada ao avanço tecnológico e científico, vai possibilitando a intensificação do trabalho. Essa combinação reduz o trabalho vivo e amplia o trabalho morto. Em outras palavras, o desenvolvimento científico tende a reduzir cada vez mais o trabalho humano (vivo) e a aumentar cada vez mais o trabalho feito pela máquina (morto), sem, no entanto, jamais eliminar totalmente o trabalho vivo.

Destarte, evidencia-se que o capital transforma todas as formas de trabalho em capital, nos diferentes processos de valorização deste. Este processo é definido por Marx (2008) como trabalho produtivo, ou seja, aquele que produz mais valia e que envolve uma relação determinada entre compra e venda do trabalho. O autor sinaliza que o trabalho produtivo é uma abreviação para designar o conjunto de relacionamentos e formas em que a força de trabalho figura no processo capitalista de produção, demonstrando que todo trabalho humano subjugado ao sistema capitalista de produção cria valor. Diferentemente do trabalho improdutivo, que pode ser entendido como um processo em que o dinheiro é trocado diretamente pelo trabalho, sem produzir capital e sem ser, portanto, produtivo, caso em que se está comprando um serviço2 2 O autor alerta que a mesma espécie de trabalho pode ser produtiva ou improdutiva, o que foi exemplificado por Marx (2008) através do trabalho do professor, escritor, cantor, e ocorre quando o produto deste trabalho reverte em capital para quem o contratou. . Braverman (1974), nesta mesma perspectiva de análise, é enfático ao afirmar que o modo capitalista de produção subordinou a si mesmo todas as formas de trabalho.

O atual padrão de desenvolvimento das forças produtivas recorre a maneiras distintas de extração da força de trabalho e atinge diferentes configurações de trabalho e de trabalhadores potencializados na produção e reprodução do capital em combinação com o desenvolvimento técnico-científico. Contudo, é a coexistência de um número expressivo de trabalhadores "descartáveis" pelo atual padrão, presentes no mercado de trabalho adverso, que tem permitido ao modelo de acumulação flexível apropriar-se de mecanismos rudimentares e "modernos" em que todos contribuem, cada qual à sua forma e maneira, para que o trabalho se transforme em capital, e este, por sua vez, não tem se transformado efetivamente em trabalho. São tempos de um capital global e cada vez mais fetichizado, expressando a inversão do sujeito-objeto (IAMAMOTO, 2007).

Neste cenário, o exame da complexa e heterogênea composição da classe operária possibilita a caracterização de suas mudanças, as quais não dizem respeito apenas à sua materialidade, mas trazem mudanças efetivas na vida do trabalhador, enquanto sujeito histórico e coletivo, e, por conseguinte, para sua classe social. A classe operária, segundo Thompson (1987, p. 10), não surge numa determinada hora, mas "ela historicamente esteve presente ao seu próprio fazer-se." O autor entende por "classe" um fenômeno histórico que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Thompson também não vê "classe" como uma estrutura ou categoria, mas como algo que ocorre efetivamente nas relações humanas. Ainda conforme o autor, [...] a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns, sentem e articulam a identidade de interesses entre si." Thompson (1987, p. 10). Tais experiências são determinadas, em sua grande maioria, pelas relações de produção, assim como o pertencimento a uma classe está relacionado ao papel social ocupado pelo indivíduo ou como ele veio ocupar esse papel em uma determinada organização social.

A análise marxiana de classe operária discute acerca da transformação da "classe em si" para a "classe para si", que se constrói historicamente, nas relações objetivas e subjetivas de ação que vão forjando sua consciência de classe. Ao examinar-se a noção de "classe", ficam latentes as determinações históricas que compõem sua estrutura, e os processos sociais decorrentes, como bem coloca Joffily (2002, p. 66): "As classes sociais são seres históricos. Possuem uma inserção determinada, e relativamente estável, no processo da produção e distribuição das riquezas, e na luta que daí deriva."

Essas são formulações que contribuem para uma reposição conceitual sobre classe operária ou sobre a estrutura de uma "nova classe trabalhadora". Embora com sentidos ambivalentes, classe operária e classe trabalhadora, na literatura clássica apresentam designações diferenciadas. "Classe operária", segundo definição de Engels (1888)3 3 Prefácio da edição inglesa do Manifesto do Partido Comunista, de 1888. , equivale ao proletariado, ou seja, "a classe dos assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviver", enquanto a expressão "classe trabalhadora" vem sendo utilizada tanto popularmente como na literatura para referir-se ao conjunto de todos os trabalhadores assalariados urbanos e rurais. Braverman (1987, p. 31) discorda da concepção de "nova classe trabalhadora", apregoada por diferentes escritores, pois entende que o próprio termo "nunca delineou rigorosamente um determinado conjunto de pessoas [...] e sim um processo social em curso" (Braverman, 1987, p. 31), cujas características ensejam um processo dinâmico e não quantificável. Este autor ressalva que o termo "novo" pode trazer duplo sentido, podendo abranger novas ocupações, recente criadas ou ampliadas, ou ainda, significar algo superior ou avançado em relação ao antigo.

Braverman (1987, p. 323) entende que "as novas massas de ocupação das classes trabalhadoras tendem a crescer, não em contradição com a rápida mecanização e 'automação' da indústria, mas em harmonia com elas." É visível a diminuição de postos de trabalho na grande indústria tradicional, porém ao seu redor forma-se um grande número de pequenas indústrias, que realizam trabalhos terceirizados para a "fábrica mãe" e empregam um número importante de trabalhadores em condições de trabalho e salários inferiores. Nas palavras do autor:

A mecanização da indústria produz um excedente relativo da população disponível para o emprego a taxas inferiores de salário que caracterizam essas amplas ocupações [...] à medida que o capital transita para novos setores à busca de investimentos lucrativos, as leis de acumulação do capital nos setores antigos operam para produzir a 'força de trabalho' exigida pelo trabalho em suas novas encarnações (BRAVERMAN, 1987, p. 323).

Muitas das chamadas novas ocupações não ocorrem nas "modernas" indústrias, em seus processos de trabalho "modelos". A coexistência de ambos realimenta o processo de acumulação capitalista e a classe operária vai sofrendo transformações que a fragmentam, quer seja pela sua pulverização em processos produtivos e espaços ocupacionais distintos, quer pela crescente diferenciação salarial e qualificação profissional.

Braverman (1987, p. 342) aponta que a condição do operário, em sentido estrito, vem se expandindo para o conjunto dos assalariados e trabalhadores em geral, como se "[...] quase toda a população transformou-se em empregada do capital." Refere que a força de trabalho que atua nas esferas administrativas e técnicas das empresas em geral não podem ser comparadas a classe média, pois em contraste, essa força ocupa

[...] posições intermediárias, não porque esteja fora do processo de aumento do capital, mas porque como parte deste processo assume características de ambos os lados. Não apenas recebe suas parcelas de prerrogativas e recompensas do capital como também carrega as marcas da condição operária (BRAVERMAN, 1987, p. 344).

Ricardo Antunes (1999) defende uma noção ampliada de classe, empregando a expressão "classe-que-vive-do-trabalho", tendo por objetivo conferir validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora. Busca dar atualidade e amplitude ao ser social que trabalha. Para ele a classe-que-vive-do-trabalho inclui, nos dias atuais, a totalidade dos que vendem a sua força de trabalho, mas tem como núcleo central os trabalhadores produtivos, o proletariado industrial. Ela engloba também os trabalhadores improdutivos, que formam expressivo leque de assalariados, incluindo os inseridos no setor de serviços, bancos, comércio, serviços públicos, [...] também o proletariado rural, [...] o proletariado precarizado, o subproletariado moderno, os trabalhadores terceirizados, [...] além dos trabalhadores desempregados (ANTUNES, p.103). Por outro lado essa noção exclui os gestores do capital, seus altos funcionários, que detêm o controle no processo de trabalho, de valorização e reprodução do capital no interior das empresas, e também os pequenos empresários e a pequena burguesia urbana e rural.

Outra abordagem emblemática a ser realizada é quanto às características gerais do mercado de trabalho brasileiro. De acordo com o PNAD4 4 Apresenta os resultados da pesquisa para o conjunto do País, com informações básicas para o estudo e planejamento do desenvolvimento socioeconômico nacional, abrangendo características gerais da população, migração, educação, trabalho, rendimento e fecundidade, bem como famílias e domicílios. Inclui, ainda, a conceituação das características investigadas e o plano de amostragem (IBGE, 2007). de 2007, metade da população economicamente ativa (PEA) é jovem - 50% deles têm entre 20 e 39 anos; e 43% têm menos de sete anos de estudo. Não ter completado o ensino fundamental traz importantes implicações no tocante à qualificação da mão de obra existente. Destaque-se o expressivo número de mulheres inseridas no mercado de trabalho (46,7%). Conforme a atividade econômica, o setor de serviços5 5 O segmento de serviços engloba prestação de serviços, serviços auxiliares de atividades econômicas, transporte, comunicação social e administração pública (IBGE, 2007). ocupa 42% dos trabalhadores, 17,5% estão na agricultura, 18,2% no comércio, 6,8% na construção civil e, 15,3% estão na indústria. É interessante registrar que metade da PEA (50,7%) está inscrita na Previdência Social, o que significa que, no campo da proteção social, outra parcela de trabalhadores que vem sofrendo regressão nos direitos conquistados historicamente. Isso é evidenciado também pelas formas de contratação do trabalho, as quais revelam uma taxa de 57,9% da PEA que se declara empregada, dente os quais apenas 33,7% informa ter a carteira de trabalho assinada (7% são servidores públicos civis ou militares). Outros 17,3% se declaram empregados sem registro.

2 Lacuna entre trabalho e proteção social e o papel Estado

As mudanças que envolvem a esfera do trabalho na sociedade atual têm repercussões na proteção social, que estão relacionadas também com as mudanças no papel do Estado, contextualizadas no início da década de 1980 e 1990 com o advento do paradigma neoliberal. Este vem revelar um descompasso no tripé capital-trabalho, Estado e proteção social, protagonizado pelas necessidades que emergem das novas formas produtivas, as quais alteram não só a natureza dos seus processos, como já referimos, mas principalmente o volume de emprego e as relações de trabalho. Do mesmo modo, a incidência da questão social - que decorre dessa nova configuração social e representa uma recorrência de antigas manifestações socialmente reconhecidas em meio à fratura da sociedade dividida em classes sociais - depara-se com a ausência de novas respostas do Estado, que se restringem à regulação das relações sociais da produção capitalista, que foram garantindo a base de legitimação ao capital.

Como afirma Mészáros (2002, p. 106): "A formação do Estado moderno é uma exigência absoluta para assegurar e proteger permanentemente a produtividade do sistema." Mas, paradoxalmente, as mudanças estruturais que se verificam na sociedade atual criaram novos e complexos problemas para o Estado capitalista (PEREIRA, 2002).

Assim, entende-se que a proteção social representa um conjunto de ações que visam assegurar a satisfação das necessidades sociais da população decorrentes dos padrões da sociabilidade humana sob a égide do Estado, representa as conquistas da classe operária que lhe asseguram um conjunto de direitos sociais. O Estado desenvolve políticas sociais públicas que materializam estes direitos, em particular as políticas sociais, as quais representam mediações entre Estado e sociedade (FLEURY, 1994) e um mecanismo de vinculação da população ao Estado.

As políticas sociais, conformadas através de um sistema de proteção social na denominada seguridade social, transformaram-se em um sistema universal que, ao longo do século 20, desenvolveu-se no seio da sociedade salarial. Esta foi se constituindo num mecanismo de enfrentamento da "questão social", que expressa o conflito das relações sociais e as contradições entre produção coletiva e apropriação privada da riqueza social. As contradições de classe geradas pela desigualdade estão representadas nas formas de resistência e organização por parte da classe operária. Como referem Iamamoto e Carvalho (1983, p. 49):

A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado.

Compreende-se na atualidade que a questão social, a partir de sua gênese na desigualdade, "[...] evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que a sustentam" (IAMAMOTO, 2000, p. 21).

Identifica-se que a evolução das políticas sociais públicas respondeu, entre outras coisas, ao avanço da organização da classe operária, que buscava e continua buscando a proteção contra as situações inerentes às condições em que vive, assim como a satisfação de necessidades sociais básicas para a sua reprodução. A conformação de um sistema de seguridade social, portanto, indicava a ideia de superação do conceito de seguro social, significando que a sociedade seria solidária com o indivíduo colocado em dificuldades pelo mercado (VIANNA, 2002).

No modelo de economia capitalista os sistemas de proteção social constituem mecanismos públicos reguladores das relações e das condições de trabalho, sendo evidenciados através de políticas sociais promovidas pelo Estado, necessárias para o desenvolvimento da sociedade do trabalho (PEREIRA, 2002). O sistema de seguridade social, portanto, estruturou-se com o trabalho e para o trabalho, que tem como protagonista central o trabalhador assalariado.

Por outro lado, a seguridade social paradoxalmente volta a se aproximar cada vez mais da noção de seguro social - por estar fundada na contribuição dos trabalhadores inseridos no mercado formal - e tende a garantir proteção a um número progressivamente mais restrito da população.

O nível de inserção no mundo da produção tem determinado o grau de proteção social. A crise no sistema produtivo compromete os próprios mecanismos de reprodução social, na medida em que é crescente o número de trabalhadores sem a garantia de renda de substituição6 6 Segundo Marques (1997), corresponde à renda necessária para o segurado manter-se quando da falta de salário derivado de motivo de doença, velhice, invalidez ou desemprego. . Em suma, o contraste entre a fratura no padrão de seguro social, pela queda do trabalho formal, e a ausência de um modelo efetivamente universal de seguridade social, no que tange aos direitos "perdidos" pela não inserção no trabalho formal, tem implicações imediatas sobre os níveis de proteção social. Este movimento vem duplamente imbricado de forma conflitante: de um lado, tem-se a pressão pela contra-reforma do Estado (BEHRING, 2008) no que concerne aos direitos sociais e, por outro lado, a redução do número de trabalhadores "segurados" socialmente.

A seguridade social, ao se apresentar sob o viés securitário, registra uma lacuna histórica entre a previdência social e as demais políticas do tripé que a compõe. A seguridade social se organizou no país sob o caráter contributivo. A ampliação do conceito de seguridade social a partir da Constituição de 1988 incluiu a assistência social, concebida como uma política pública, e a saúde como um direito universal. Contudo, o terceiro componente, a previdência social, continua a ser contributiva e contratual e não tem avançado de forma a possibilitar a inclusão de situações decorrentes das novas necessidades produzidas pela queda do trabalho formal. Razão esta que vem contribuindo para a dissociação da seguridade social enquanto sistema de solidariedade social, o qual permitiria, na adversidade, a garantia de uma renda mínima aos trabalhadores - que, na grande maioria, já estiveram vinculados -, independentemente da sua vinculação previdenciária quando ocorresse essa necessidade.

Como bem coloca Fleury (1994, p.154), "[...] o caráter público do seguro social introduz uma contradição entre o vínculo individual e a garantia social do benefício". A proteção dos riscos associados ao trabalho, que criou as primeiras leis de proteção social, foi progressivamente evoluindo. Entretanto, o trabalho foi retrocedendo, fragilizando as próprias conquistas sociais e o acesso aos direitos legalmente constituídos.

O desafio da seguridade social atualmente é a necessidade de ultrapassar a visão dualista da proteção social - contratual e assistencial -, concebida como um conjunto de medidas que se sobrepõe a saídas individuais, tal como é ideologizado pelo paradigma neoliberal, que entende que a inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, nos demais mecanismos alicerçados no acesso a ele, está restrita à responsabilidade e à capacidade do indivíduo de se inserir nesse mercado.

Considerações finais

Pode-se concluir que a adoção de mecanismos de proteção social concerne a mediações que efetivamente dizem respeito ao papel do Estado, no âmbito do trabalho, são negligenciadas para garantir externalidades aos embates capital/trabalho, produzindo o equilíbrio necessário para o funcionamento do mercado. Por sua vez, essa dubiedade tem ampliado o que Thébaud-Mony e Appay (2000) chamam de precarização social, por entendê-la como um processo multidimensional da institucionalização da instabilidade, caracterizada pelo crescimento das diferentes formas de precariedade e exclusão. Desemprego, expropriação de direitos, modificações perversas de recriação de formas de contratação da força de trabalho são ameaças recorrentes para a classe trabalhadora, mesmo para aqueles que acreditavam estar protegidos.

A concepção de proteção social baseia-se na premissa de que o trabalho é o mecanismo central e histórico de garantia de acesso aos meios de produção e de reprodução da vida material e social. Fundamentalmente, o trabalho incide sobre a forma de organizar a própria sociedade, e, portanto na medida em que se desestruturam os pilares do trabalho, fragilizam-se os meios de sustentação da sociedade. Porém, quem protege o trabalho? A quem cabe protegê-lo como alicerce de proteção social?

Os agentes Estado, capital e trabalho, ao interagirem nos diferentes contextos, implementaram uma nova ordem, que inevitavelmente trouxe novos componentes à questão social, seja em decorrência das mutações do trabalho em meio à acumulação flexível, seja pela forma em que esta vem sendo enfrentada ou negligenciada, em particular pelo capital. O fortalecimento do paradigma neoliberal no final do século 20 ampliou as desigualdades sociais, que, na especificidade do trabalho, traduzem-se na forma como o ingresso no mercado de trabalho vem sendo compreendido, uma vez que estar nele tem o signo da "oportunidade" e da "capacidade". Esse direcionamento vem deixando à margem um número sempre crescente de trabalhadores.

Enfim, o entendimento sobre as transformações do papel do Estado, articuladas à reestruturação do capital e às mudanças que recaem sobre o trabalho, demonstra que as necessidades sociais decorrentes das relações de produção e do mercado tendem a desestabilizar ainda mais os padrões de proteção social. Isso conduz os trabalhadores a saídas e a respostas cada vez mais individualizadas, disciplinadas pela lógica concorrencial do capital que busca converter a todos em meros ofertadores de sua capacidade de trabalho (FONTES, 2008). Porém, essa questão, tratada sob a perspectiva da luta social, recoloca sobre a classe operária o elemento balizador para o enfrentamento desta realidade, compondo com diferentes atores sociais e contribuindo para o estabelecimento de uma nova correlação de forças no papel do Estado. Ou seja, ela parte da capacidade e do poder de transformar as atuais necessidades em demandas políticas (FLEURY, 1994), levando, assim, o Estado a dar respostas que ensejem políticas efetivas no âmbito do desenvolvimento da sociedade e da proteção social.

Notas

Recebido em 29.03.2009. Aprovado em 12.08.2009.

Jussara Maria Rosa Mendes

mjussara@pucrs.br Doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)

Professora na Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEST/PPGSS/PUCRS)

Dolores Sanches Wünsch

doloressw@terra.com.br Doutorado em Serviço Social pela PUCRS

Professora na Faculdade de Serviço Social da PUCRS

Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEST/PPGSS/PUCRS)

PUCRS - Faculdade de Serviço Social

Departamento de Pós-Graduação em Serviço Social

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  • 1
    Segundo Ianni (1994), a acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo e se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
  • 2
    O autor alerta que a mesma espécie de trabalho pode ser produtiva ou improdutiva, o que foi exemplificado por Marx (2008) através do trabalho do professor, escritor, cantor, e ocorre quando o produto deste trabalho reverte em capital para quem o contratou.
  • 3
    Prefácio da edição inglesa do Manifesto do Partido Comunista, de 1888.
  • 4
    Apresenta os resultados da pesquisa para o conjunto do País, com informações básicas para o estudo e planejamento do desenvolvimento socioeconômico nacional, abrangendo características gerais da população, migração, educação, trabalho, rendimento e fecundidade, bem como famílias e domicílios. Inclui, ainda, a conceituação das características investigadas e o plano de amostragem (IBGE, 2007).
  • 5
    O segmento de serviços engloba prestação de serviços, serviços auxiliares de atividades econômicas, transporte, comunicação social e administração pública (IBGE, 2007).
  • 6
    Segundo Marques (1997), corresponde à renda necessária para o segurado manter-se quando da falta de salário derivado de motivo de doença, velhice, invalidez ou desemprego.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      12 Ago 2009
    • Recebido
      29 Mar 2009
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