Brazilian indigenous children: Review of studies about nutritional status

Crianças indígenas brasileiras: revisão dos estudos sobre o estado nutricional

Abstracts

Objective:

To systematize studies on the anthropometric nutritional status of Brazilian indigenous children in order to examine the ability to address the totality of biological, anthropological, and ecological aspects, as well as to characterize the main analytical results of the determinants of nutritional status of Brazilian indigenous children.

Methods:

MedLine and Lilacs were searched using the intersection of "South American Indians" and "nutritional status" descriptors (the search in MedLine also included the descriptor "Brazil").

Results:

Overall, 65 studies were identified, and 23 were considered relevant to this study. The systematization of these studies highlights the concentration of studies in the midwestern and northern regions of Brazil, as well as the lack of cultural, biochemical, and food consumption approaches. Regarding nutritional status, we found: 1) greater vulnerability of younger children, especially in relation to stunting; 2) absence of differences in nutritional status according to sex; 3) socioeconomic determination of nutritional status; 4) differences in nutritional status between children from different villages.

Conclusion:

The nutritional status of Brazilian indigenous children is associated with age, socioeconomic status, and ethnic characteristics. Efforts are needed to understand the ethnic and cultural influence on nutritional status and on its causal network, as well as of various factors minimally discussed.

Anthropometry; Child; Nutritional status; South American Indians

Objetivo:

Sistematizar os estudos sobre o estado nutricional antropométrico de crianças indígenas brasileiras a fim de examinar a capacidade de abordar a integralidade dos aspectos biológicos, antropológicos e ecológicos, bem como caracterizar os principais resultados analíticos dos determinantes do estado nutricional das crianças indígenas brasileiras.

Métodos:

Realizou-se busca bibliográfica nas bases de dados MedLine e Lilacs, por meio da interseção dos descritores "índios sul-americanos" e "estado nutricional" (a busca no MedLine também incluiu o descritor "Brazil").

Resultados:

Identificaram-se 65 estudos, dos quais 23 foram considerados relevantes para o presente trabalho. A sistematização dos estudos revisados destaca a concentração nas regiões centro-oeste e norte, assim como a carência de abordagens cultural, bioquímica e sobre o consumo alimentar. Em relação ao estado nutricional, sugerem-se: 1) maior vulnerabilidade nas crianças menores, principalmente em relação ao déficit de estatura; 2) ausência de diferenças no estado nutricional segundo o sexo; 3) determinação socioeconômica do estado nutricional; 4) diferenças no estado nutricional entre crianças de diferentes aldeias.

Conclusão:

O estado nutricional das crianças indígenas brasileiras apresenta determinação etária, socioeconômica e étnica, sendo necessários esforços para compreender a influência étnico-cultural no estado nutricional e na sua rede causal, bem como fatores vários abordados minimamente.

Antropometria; Criança; Estado nutricional; Índios sul-americanos

INtrODUÇÃO

Existem, no Brasil, segundo resultados do Censo Demográfico de 2010¹, 505 terras indígenas reconhecidas, presentes em praticamente todos os estados do País e representando 12,5% do território nacional. A população indígena é de 896,9 mil: 36,2% presentes em área urbana e 63,8% na área rural, abrangendo 305 etnias que falam 274 idiomas. Entre as características da população indígena brasileira figuram: 1) estrutura etária marcada por uma população jovem, fruto da persistência de altos níveis de fecundidade; 2) nível educacional mais baixo do que o da população não indígena; 3) situação econômica, habitacional e de saneamento básico desfavoráveis; 4) indicadores econômicos, habitacionais, educacionais e de saúde com pior situação nas áreas rurais, onde a proporção de crianças é maior. Do ponto de vista da saúde, as populações indígenas representam um dos segmentos mais desfavorecidos, o que demanda o fortalecimento de políticas públicas específicas. Entretanto, razões culturais e territoriais, dentre outras, tornam a obtenção de informações sobre as condições de vida desses povos um processo complexo, o que se aplica também às dimensões alimentar e nutricional e restringe o desenvolvimento de intervenções nutricionais.

O perfil nutricional das crianças brasileiras e sua evolução têm sido bem definidos a partir de inquéritos nacionais²: Estudo Nacional da Despesa Familiar (ENDEF) de 1974/1975, Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) de 1989, Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV) de 1996/ 1997, Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde (PNDS) de 1996 e 2006. Essas pesquisas mostram um intenso declínio da desnutrição, incluindo ambos os sexos, todas as faixas etárias, áreas urbana e rural, e todos os estratos socioeconômicos, sendo os estratos sociais mais desfavorecidos os que apresentam, ainda, maiores prevalências. De acordo com os dados específicos da PNDS de 2006, as prevalências de déficit de estatura/idade, déficit de peso/estatura, déficit de peso/idade, excesso de peso/estatura, anemia e deficiência de vitamina A em crianças menores de cinco anos foram de 7,0%, 1,98%, 1,7%, 6,6%, 20,9% e 17,4%, respectivamente^3,4. Porém, os povos indígenas não fizeram parte desses inquéritos, o que resulta no desconhecimento das suas condições de alimentação e nutrição.

Diante desse panorama, e considerando a maior vulnerabilidade da população indígena em relação à situação de saúde, que tem no estado nutricional um importante determinante, evidenciou-se a necessidade de dados de abrangência nacional sobre a situação nutricional dos povos indígenas. Assim, planejou-se o desenvolvimento do "I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas" (INSNPI), pesquisa realizada entre 2008-2009⁵. Os resultados desse inquérito apontaram prevalências de déficit de estatura/idade, déficit de peso/idade e anemia de 26,0%, 5,9% e 51,3%, respectivamente, em crianças menores de cinco anos, valores esses bem maiores que os referidos na PNDS de 2006 sobre o estado nutricional das crianças brasileiras não indígenas. Os dados do INSNPI foram analisados para verificar a associação de variáveis demo-gráficas, socioeconômicas, sanitárias e materno-infantis com os déficits antropométricos, resultados que foram publicados posteriormente⁶. Contudo, o INSNPI não considerou a diversidade ecológica, social e cultural dos povos indígenas⁵, o que é essencial para uma melhor compreensão da ecologia e epidemiologia nutricional desses povos.

Considerando os argumentos anteriores, este trabalho teve por objetivo sistematizar os estudos sobre o estado nutricional antropométrico de crianças indígenas brasileiras, com o fim de examinar a capacidade de abordar a integralidade dos aspectos biológicos, antropológicos e ecológicos, bem como caracterizar os principais resultados analíticos dos determinantes do estado nutricional das crianças indígenas brasileiras.

MÉTODOS

O estudo é uma revisão de artigos científicos, que incluíram nas suas amostras menores de cinco anos, sobre o estado nutricional antropométrico de crianças indígenas brasileiras.

Para a identificação dos artigos, realizou-se, em 10 de março de 2013, uma busca nas bases de dados National Library of Medicine, Estados Unidos (MedLine), e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) de todos os estudos publicados no período de 1990 até a data da busca.

A busca bibliográfica foi realizada por dois revisores por meio da interseção dos descritores, em língua inglesa e portuguesa, "índios sul-americanos" e "estado nutricional". No caso da busca no MedLine, o descritor "Brazil" também foi usado.

Para o cômputo do total de estudos identificados, foi verificada a duplicação deles entre as bases de dados, sendo cada artigo contabilizado somente uma vez. A partir dos estudos identificados, selecionaram-se aqueles que parecessem preencher os critérios para sua inclusão, considerando-se a leitura dos títulos e os resumos pelos revisores. Os estudos selecionados foram avaliados pelos revisores, levando-se em conta a leitura e a análise criteriosa do texto completo. Após esta ação os estudos classificaram-se como excluídos ou incluídos considerando os critérios estabelecidos para esses fins (Quadro1).

Quadro 1
Critérios para inclusão e exclusão dos estudos, que incluíram nas suas amostras menores de cinco anos, sobre o estado nutricional antropométrico de crianças indígenas brasileiras

Os artigos classificados como incluídos foram caracterizados segundo o autor e o ano de publicação, procedência acadêmica dos autores, grupos estudados e localização, amostra, índices antropométricos utilizados, uso de outros métodos de avaliação do estado nutricional (bioquímica, consumo alimentar, socioeconômica, cultural) e principais resultados analíticos. Os artigos foram categorizados segundo o tipo de delineamento: transversal ou longitudinal. Possíveis diferenças nas referências de classificação do estado nutricional adotadas pelos pesquisadores não foram consideradas.

RESULTADOS

Identificaram-se 65 estudos. Após análise dos títulos e resumos, foram selecionados 33, que, aparentemente, preenchiam os critérios de inclusão. Com a leitura na íntegra, foram classificados como incluídos um total de 23 artigos, que, adequadamente, preenchiam todos os critérios de inclusão. O fluxo do número de estudos excluídos e incluídos encontra-se no Quadro 2.

O Anexo mostra a caracterização dos estudos quanto aos parâmetros adotados. Dos 23 artigos incluídos^7-29, 21 apresentam desenho transversal^7-27, e dois, desenho longitudinal^28,29. Três^13,17,26 dos estudos transversais consideraram mais de um inquérito, analisando a evolução do estado nutricional em diferentes momentos.

Considerando a procedência dos autores, verifica-se que apenas sete trabalhos^{11,19,24-27,29} foram desenvolvidos por pesquisadores vinculados a uma única instituição. A maioria dos estudos tem autores de regiões diferentes do País^{8-10,12-15,17,20-22,28}, com vínculos com instituições das regiões Sul e Sudeste, principalmente. Apenas um estudo²⁸ tem autor da região Nordeste. Destacam-se com maior quantidade de estudos a Fundação Osvaldo Cruz (Rio de Janeiro), a Universidade Federal de Santa Catarina, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal de São Paulo.

As aldeias estudadas localizaram-se, principalmente, na região Centro-Oeste^{7,9,11-15,17,19,21,24,27-29}; desses estudos, quatro^9,15,19,27 estudaram, também, aldeia da região Norte. Além dos mencionados anteriormente, outros sete trabalhos^{10,18,20,22,23,25,26} estudaram grupos localizados na região Norte. No Centro-Oeste, contemplaram-se os estados de Mato Grosso^{7,9,11,12,14,15,19,24,27-29} e Mato Grosso do Sul^13,17,21. Na região Norte, Pará^{18,19,22,25,26}, Rondônia^9,15,20,27 e Amazonas^10,23, foram os estados contemplados. Nenhuma comunidade indígena da região Nordeste foi estudada. cionados anteriormente, outros sete trabalhos^{10,18,20,22,23,25,26} estudaram grupos localizados na região Norte. No Centro-Oeste, contemplaram-se os estados de Mato Grosso^{7,9,11,12,14,15,19,24,27-29} e Mato Grosso do Sul^13,17,21. Na região Norte, Pará^{18,19,22,25,26}, Rondônia^9,15,20,27 e Amazonas^10,23, foram os estados contemplados. Nenhuma comunidade indígena da região Nordeste foi estudada.

Quadro 2
Estudos excluídos e incluídos na revisão de artigos sobre o estado nutricional antropométrico de crianças indígenas brasileiras (estudos incluindo nas suas amostras menores de cinco Nota: ^aLeitura de títulos e resumos; ^bLeitura na íntegra.

No que concerne à amostra, observa-se que a maioria dos autores buscou incluir o total de crianças nas faixas etárias de interesse; três estudos transversais^7,21,22 foram desenvolvidos com quase todos os indivíduos da população-alvo, e apenas um¹³ com amostra probabilística. Considerando a faixa etária, seis estudos^{8,9,13,16,21,26} incluíram exclusivamente crianças menores de cinco anos, e em oito^{7,12,14,15,17,22,24,28}, de um total de catorze^{7,11,12,14,15,17,18,20,22,24,25,27-29} foram relata dos resultados desagregados para crianças menores de cinco anos. Ressalta-se que três artigos^17,19,20 não incluíram crianças com idade inferior a dois anos.

Além da avaliação antropométrica, análises bioquímicas foram consideradas em cinco estudos^{10,11,15,17,18}, todos eles relacionados à anemia, à exceção de um estudo que determinou as concentrações de mercúrio capilar como medida do consumo de peixe¹⁸. O consumo alimentar foi método de avaliação em um único estudo²¹. A análise socioeconômica foi utilizada em cinco^7,8,10,16,21; e o contexto cultural não foi considerado em nenhum dos manuscritos revisados. Ressalta-se que somente dois estudos^10,21 incluíram mais dois métodos de avaliação do estado nutricional, além da antropometria.

A caracterização dos principais resultados analíticos dos estudos aponta que somente cinco^7,8,10,16,21, dos quais três^7,10,16 com análise multivariada, analisaram a influência de diversas variáveis, além das biológicas (sexo, idade), no estado nutricional antropométrico das crianças. A maioria dos estudos não indicou o sexo da criança como discriminante do estado nutricional, seja para a estatura/idade, seja para o peso/estatura ou para o peso/idade. A associação inversa entre a idade da criança e o déficit de estatura/idade foi estabelecida em seis^{7,14,16,17,21,22} dos 13 estudos ^{7,8,10,11,13-17,21,22,24,25} que consideraram esse índice. Resultado similar foi observado em três^14,16,26 dos 11 estudos7,8,10,13-16,21,24-26 que trabalharam com o peso/idade e em um¹⁴ dos dez artigos^{10,11,13-16,21,22,24,25} com resultados para o peso/ estatura. Mattos et al.²⁴ observaram melhores condições de peso/estatura e peso/idade nas crianças menores de 12 meses quando comparadas a crianças na faixa etária entre 12 e 60 meses e maiores que 60 meses.

Análises estatísticas entre níveis de hemoglobina e índices antropométricos foram realizadas somente em dois estudos^10,17, um deles¹⁷ com significância em relação à estatura/idade. Variáveis relacionadas às condições sanitárias e socioeconômicas, bem como a idade materna, estiveram associadas de maneira inversa ao estado nutricional antropométrico em estudos com análises múltiplas^7,16. Outras variáveis explicativas do estado nutricional às quais os autores prestaram atenção foram o acometimento por doenças infecciosas^8,10, a idade materna¹⁶ e o peso ao nascer⁸.

Os três estudos^19,26,27 que compararam o estado nutricional de crianças de diferentes aldeias indicaram melhor situação para a estatura/ idade em uma das aldeias. Para o peso/estatura (índice de massa corporal/idade) e peso/idade, diferenças entre os grupos foram constatadas, também, em dois^19,26 desses estudos. Em geral, crianças das populações de Alto Xingu¹⁹, Moroxewara²⁶ e Gavião²⁷ tiveram melhores indicadores do estado nutricional quando comparadas às crianças de Ikpeng, Paranatinga e Zoró/Suruí respectivamente. Comparação entre crianças de diferentes civilizações foi conduzida por Viera et al.²³ e constatou crianças indígenas com maior prevalência de déficit de estatura/idade se comparadas às não indígenas de similar vulnerabilidade.

Os resultados relacionados à evolução do estado nutricional, analisada em três estudos transversais que utilizaram vários inquéritos^12,16,26 e em dois longitudinais^28,29, são conflitantes. Para a estatura/idade, relataram-se diminuições^12,28 e aumentos^17,28 (um¹⁷ com o aumento condicionado à faixa etária e outro²⁸ com aumento e diminuição para períodos de tempo diferentes). Para o peso/ estatura, um estudo¹⁷ relatou aumento e outro²⁸ relatou diminuição, sendo a associação do primeiro¹⁷ condicionada à faixa etária. Para o peso/ idade, dois estudos^12,28 relataram diminuição, e outros dois^17,26 relataram aumento condicionado à faixa etária.

DISCUSSÃO

De fato, a investigação dos fatores determinantes da desnutrição nas crianças é considerada um tema de relevância em saúde pública. Os estudos voltados para a análise casuística dos principais agravos à saúde das populações indígenas iniciaram-se na década de 1990. No Brasil, as discussões abordavam a influência das mudanças sociais, ambientais e econômicas no perfil epidemiológico dos povos indígenas³⁰, inserindo a saúde indígena na saúde pública ou coletiva.

Entretanto, observa-se nos resultados desta pesquisa que há um fator importante de dispersão das publicações associado ao tempo (23 anos para 23 estudos) e de concentração associado ao espaço nas regiões Norte e Centro-Oeste. A descrição da procedência acadêmica dos autores também mostra concentração nas regiões Sul e Sudeste, o que contrasta com o panorama que revela a concentração dos estudos em regiões diferentes. Esse cenário pode explicar a pouca diversificação das etnias estudadas e sugerir o interesse dos pesquisadores pelo tema. Essas apreciações podem ser indícios das dificuldades que ainda persistem para o desenvolvimento de pesquisas com populações indígenas, anteriormente descritas³¹.

Outro aspecto importante constatado neste estudo - a dificuldade em obter dados representativos nos estudos de saúde e nutrição das populações indígenas -, tinha sido anteriormente verificado em pesquisa similar com enfoque na América Latina³², evidenciando-se a necessidade de avançar nesse sentido. Outras questões relacionadas à padronização dos estudos sobre os procedimentos metodológicos na obtenção e na análise dos dados antropométricos não se trataram nesta revisão. Essas questões foram tratadas criticamente em estudo anterior sobre o estado nutricional de crianças indígenas brasileiras que sistematizou os resultados das prevalências de déficit antropométrico³⁰.

É importante destacar, também, que foram poucos os estudos com abordagens integrais do estado nutricional, incluindo análise bioquímica, de consumo alimentar, socioeconômica e cultural, o que limita a compreensão dos determinantes do estado nutricional. Portanto, indica-se a necessidade de mais pesquisas que abordem os fatores que permanecem pouco explorados no estudo do processo saúde-doença em populações indígenas, sobretudo o contexto cultural/antropológico e o consumo alimentar.

Dosagens bioquímicas são importantes a fim de se obterem informações precisas e precoces sobre alterações produzidas pela insuficiência e/ou excesso de consumo alimentar, como as carências nutricionais específicas³³. Nesse sentido, é importante esclarecer a contribuição da deficiência de ferro/anemia no estado nutricional das crianças indígenas, principalmente no déficit de estatura, uma vez conhecida a associação entre esses fatores³⁴ e a alta prevalência de anemia nas crianças indígenas brasileiras⁵.

A avaliação do consumo alimentar fornece indicadores indiretos do estado nutricional³⁵. Nas comunidades indígenas, a avaliação do consumo de alimentos é importante, uma vez que existem populações submetidas à transição cultural e alimentar, o que pode levar tanto à desnutrição quanto ao sobrepeso^30,36. As repercussões negativas das mudanças alimentares sobre o perfil de crescimento físico foram discutidas por Ribas et al.²¹. Além do abandono das práticas tradicionais, a dependência do ambiente para sua manutenção e a exposição dos povos indígenas a transformações socioeconômicas os colocam em situação de alta vulnerabilidade dietética e nutricional^30,36,37.

O contexto cultural como fator determinante do estado nutricional de populações indígenas explica-se em função de dois fatores: 1) a diversidade ecológica, social e cultural dessas populações; 2) a contribuição negativa nas condições de saúde e de vida dessas populações decorrentes do processo de aculturação³⁷. Além disso, determinantes importantes do estado nutricional, como os hábitos alimentares, as práticas de cuidado, a amamentação e o desmame, apresentam uma alta dimensão cultural entre as sociedades indígenas^6,37.

Apesar das limitações anteriores, os estudos aqui sistematizados fornecem resultados analíticos relevantes que possibilitam traçar um panorama da influência de determinantes no estado nutricional das crianças indígenas brasileiras, considerando o modelo conceitual da desnutrição na infância proposto pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância³⁸ e as assimetrias com os resultados do INSNPI^5,6. Percebe-se, primeiramente, de maneira semelhante, nos manuscritos sistematizados e no INSNPI⁶, que enquanto o sexo da criança não representou fator discriminante do estado nutricional, a idade da criança associou-se de maneira inversa à ocorrência de desnutrição, principalmente da baixa estatura, e, a seguir, do déficit de peso/idade. Converge com esses resultados o de uma análise que constatou os dois primeiros anos de vida como o principal momento do déficit de crescimento, com início pouco antes da concepção, considerando crianças de grupos populacionais não indígenas observadas em 54 inquéritos demográficos de países de ingressos baixos e médios³⁹. Explicam-se esses resultados por ser essa a fase da vida que cor-responde ao período mais dinâmico do crescimento, com grande vulnerabilidade às condições ambientais relacionadas aos padrões alimentares e ao perfil de morbidade. Se não corrigidos até o segundo ano de vida, os efeitos gerados pela desnutrição crônica infantil podem ser permanentes e irreparáveis, com consequências na morbimortalidade, da infância até a vida adulta^40-43, justificando a importância das evidências antepostas para a tomada de decisões e formulação de ações precoces.

Embora poucos estudos da presente revisão tenham incluído análises estatísticas multivariadas, variáveis que caracterizam vulnerabilidade socioeconômica mostraram-se associadas à desnutrição, semelhantemente aos resultados do INSNPI⁶. Essas são condições que produzem privações das necessidades básicas de vida, como alimentação, saúde, saneamento e educação, com restrições no consumo alimentar e elevada carga de morbidade, prejudicando o potencial de crescimento na infância⁴⁴. Nesse contexto, melhorias nas condições do ambiente social e econômico devem ser prioridades relacionadas às questões de saúde das populações indígenas.

Apesar da impossibilidade de se posicionar por meio dos resultados deste trabalho sobre o peso ao nascer e o acometimento por doenças infecciosas, cabe ressaltar que os resultados do INSNPI indicaram prevalências maiores de desnutrição nas crianças nascidas com baixo peso e naquelas hospitalizadas nos últimos 12 meses⁶. É meritório comentar, também, que nenhum dos trabalhos sistematizados abordou as práticas de cuidados e o acesso aos serviços primários de saúde, fatores que exercem notável impacto nos indicadores de saúde e de nutrição das crianças^44,45.

Ainda, destaca-se, entre os resultados desta pesquisa, a ocorrência de diferenças no estado nutricional de crianças de diferentes etnias. Considerando que o INSNPI verificou maiores prevalências de desnutrição na região Norte⁶, sugere-se que sejam as etnias dessa região as mais vulneráveis. A constatação desse panorama preliminar mostra grande relevância, pois, apesar de o Brasil apresentar uma das maiores diversidades sociais das Américas, a relação entre etnicidade e saúde tem sido pouco explorada. Além disso, outros desafios reconhecidos relacionam-se à capacidade das pesquisas de lidar com grandes diferenças socioculturais, incluindo cosmologias, línguas, formas de subsistência, organização social e sistemas políticos próprios^46-48. No INSNPI, ressalta-se, ainda, a necessidade de considerar as transformações ambientais, socioeconômicas, culturais e relativas aos estilos de vida que se verificam, de maneira heterogênea, em praticamente todas as terras indígenas do País⁵.

Nessa conjuntura de desafios, aborda-se, na literatura, o impacto que nas condições de saúde e nutrição têm as mudanças socioeconômicas, culturais e ambientais que vêm experimentando os povos indígenas no Brasil³¹. Nesse quadro de transformações, a restrição territorial, o progressivo esgotamento dos recursos naturais e

o comprometimento das atividades de subsistência, com consequências negativas na diversidade alimentar, aparecem como elementos comuns^5,37. À instabilidade na produção de alimentos soma-se, ainda, a homogeneidade nas precárias condições de saneamento, baixas coberturas dos serviços de saúde, deficiências nos serviços de saúde de atenção primária e um perfil de morbimortalidade caracterizado por frequências elevadas de doenças infecciosas e parasitárias que influenciam negativamente o estado nutricional^5,8,12,37. Assim, evidencia-se a necessidade de reforçar as ações que melhorem o acesso às terras e à assistência à saúde, ao saneamento básico e à educação das famílias indígenas, com respeito à cultura indígena.

É importante enfatizar que os resultados deste trabalho não permitem uma caracterização nacional nem generalista no tocante ao estado nutricional das crianças indígenas brasileiras. Possibilitou, porém, traçar um panorama do conhecimento sobre fatores determinantes, podendo subsidiar tanto as decisões de pesquisas futuras, quanto a definição de políticas públicas. Nesse contexto, cabe ressaltar a importância de compreender como a diversidade étnica, geográfica, ecológica, cultural e social dos povos indígenas relaciona-se com outros determinantes intermediários do estado nutricional que não apresentam significado uniforme em contextos interculturais, como os fatores socioeconômicos, e como influencia determinantes imediatos, como o consumo alimentar e as práticas de cuidados. A consolidação e a ampliação do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional Indígena podem ser estratégicos para esses fins.

CONCLUSÃO

Com este trabalho, foi possível produzir um importante conjunto de dados sobre o perfil do estado nutricional de crianças indígenas, com enfoque principal nos fatores determinantes, delimitando a influência da idade da criança, das condições socioeconômicas e a maior vulnerabilidade de algumas etnias quando comparadas a outras. É importante ressaltar, nesse sentido, que o delineamento de futuras pesquisas deve considerar fatores pouco estudados como o consumo alimentar, o estado nutricional de micronutrientes, o adoecimento por doenças infectoparasitárias, as práticas de cuidados e o acesso à assistência primária de saúde, bem como a influência étnico-cultural no estado nutricional e na sua rede causal. Para que os estudos possam apreender a sociodiversidade própria dos povos indígenas e a influência dos contextos locais, é necessária a desconcentração geográfica dos estudos e da procedência acadêmica dos pesquisadores.

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ANEXO CARACTERÍSTICAS DOS ARTIGOS, QUE INCLUÍRAM NAS SUAS AMOStrAS MENORES DE CINCO ANOS, SOBRE O ESTADO NUtrICIONAL ANtrOPOMÉtrICO DE CRIANÇAS INDÍGENAS BRASILEIRAS

Publication Dates

• Publication in this collection
  Jul-Aug 2014

History

• Received
  28 Nov 2013
• Reviewed
  09 June 2014
• Accepted
  26 June 2014